INCAPACIDADE INTELECTUAL

Definições e importância do problema

Incapacidade intelectual (II) é definida como o conjunto de perturbações caracterizadas por um funcionamento intelectual global inferior à média. Engloba funções como o raciocínio, solução de problemas, planeamento, pensamento abstracto, julgamento, aprendizagem através do ensino e experiência adquirida e compreensão prática.

A tradução clínica destas dificuldades repercute-se na compreensão verbal, memória de trabalho, funções perceptivas, pensamento abstracto e desempenho intelectual. Acompanha-se de limitações do funcionamento adaptativo em, pelo menos, duas das seguintes áreas: comunicação, cuidados próprios, vida doméstica, competências sociais/interpessoais, utilização de recursos comunitários, autocontrolo, competências académicas funcionais, trabalho, lazer, saúde e segurança.

O funcionamento intelectual é tipicamente medido com testes individualmente administrados, psicometricamente válidos, adaptados à compreensão e cultura da criança/jovem. Em Portugal os mais utilizados nos centros de pediatria do neurodesenvolvimento, são o teste de Griffiths (0-8 anos) e a WISC (6-16 anos).

O início da II deve ocorrer antes dos 18 anos; apresenta múltiplas etiologias e corresponde à via final comum de vários processos patológicos que afectam o funcionamento do sistema nervoso central (SNC).

Segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-IV, a incapacidade intelectual integra os seguintes graus:

  • Ligeira: QI >50-55 <70
  • Moderada: QI >35-40 <50- 55
  • Grave: QI >20-25 <35-40
  • Profunda: QI <20-25
  • Deficiência Mental, gravidade não especificada

Mais recentemente, a versão V do referido documento – DSM-V, publicada em 2013, reflecte e aproxima-se conceptualmente da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde para crianças e jovens. Com efeito, os vários níveis de gravidade passaram a ser definidos com base no funcionamento adaptativo e não pelos valores de QI, já que é o funcionamento adaptativo que determina qual o suporte requerido. Por outro lado, as medições de QI no extremo inferior do intervalo dos valores de QI têm menor validade.

Quanto à prevalência, importa referir que cerca de 1-3% da população geral apresenta II, com variações em função da idade. É importante reconhecer que a grande maioria das crianças (85%) se situa no grupo de II ligeira, crianças consideradas “educáveis”, muitas vezes apenas com “dificuldades de aprendizagem”. A II moderada representa cerca de 10% das crianças, as quais são consideradas “treináveis” e com capacidade de integração comunitária. Apenas 1% dos casos de II se classificam como graves e detectados no primeiro ano de vida; apenas 6 por 1.000 correspondem a II profunda. O diagnóstico é efectuado em idades na razão inversa da gravidade: quanto mais grave, mais precocemente detectada; por tal motivo, muitos casos da forma ligeira são diagnosticados em idade pré-escolar ou escolar.

A melhoria dos cuidados de saúde (e do respectivo acesso) tem contribuído para diminuir a prevalência de tal patologia.

Mas, se por um lado o diagnóstico pré-natal e a intervenção precoce permitiram reduzir as consequências da síndroma de Down, da fenilcetonúria e do hipotiroidismo congénito, tem-se assistido a um aumento de casos devido a um aumento da prevalência da doença crónica e da sobrevivência de crianças de alto risco perinatal (relacionado designadamente com prematuridade extrema e muito baixo peso) e aumento de exposição pré-natal a drogas de abuso.

Constituindo a patologia do neurodesenvolvimento mais frequente, sobretudo no sexo masculino (M), verificam-se as relações M/F seguintes: de 2/1 no défice cognitivo ligeiro e de 1.5/1 no défice cognitivo grave.

Factores etiológicos

Como já referimos existem muitas causas de incapacidade intelectual, frequentemente em concomitância. A identificação da causa é muitas vezes inconclusiva, pelo que não é recomendada por rotina uma investigação exaustiva de todas as causas possíveis, mas sim uma investigação orientada pela clínica.

Os factores a ter em consideração para investigar um défice cognitivo são:

  • Gravidade do défice cognitivo (quanto mais grave for, maior a possibilidade de um diagnóstico etiológico).
  • História familiar ou semiologia sugestiva de perturbação específica.
  • O desejo dos pais de uma nova gravidez o que, por si só, justifica esforços acrescidos no esclarecimento etiológico.
  • Opinião dos pais: alguns estão mais interessados no tratamento e outros estão focados na etiologia, tendo dificuldade em iniciar a intervenção antes de conhecer o diagnóstico.

Na população com II Ligeira há frequentemente um envolvimento de componentes genéticos e ambientais (sócio-económicos, culturais, etc.) salientando-se que as causas específicas de

II ligeira/moderada são diagnosticáveis em menos de 30% dos casos.

Na população com II grave e profunda é mais provável a possibilidade de identificação de

causas orgânicas e, uma vez que o impacte na família pode ser determinante, devem ser desenvolvidos mais esforços no sentido de identificar uma possível etiologia; neste grupo as etiologias pré-natais são predominantes. As causas perinatais e pós-natais comparticipam apenas 10-25% dos casos nas formas mais graves de défice cognitivo. Exemplos de factores causais referentes ao período pré-natal incluem as anomalias cromossómicas e doenças genéticas com múltiplas anomalias congénitas major/minor, e causas não genéticas como a exposição a tóxicos (álcool ou drogas de abuso), infecções maternas (rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus), alterações estruturais do SNC (perturbações da migração neuronal, agenésia do corpo caloso, hidrocefalia). Exemplos de etiologia perinatal incluem o sofrimento fetal, hipóxia ou complicações da prematuridade. As causas de II pós-natal incluem as infecções do SNC, hipotiroidismo, má nutrição, trauma e exposição a toxinas (chumbo), etc.. Em geral, quanto mais precocemente ocorrer a noxa, mais graves as consequências como é o caso das perturbações que afectam a embriogénese precoce: anomalias cromossómicas (trissomia 21, X frágil), doenças hereditárias do metabolismo/perturbações neurodegenerativas (mucopolissacaridose) e anomalias do desenvolvimento do SNC (défice de migração neuronal, lisencefalia) (Parte XXXII).

 

Manifestações clínicas e diagnóstico

 

Excluindo as situações de dismorfia (síndroma genética, como por exemplo a trissomia 21 ou

microcefalia isolada), patologia já identificada ou situações de risco (como a prematuridade), a maior parte das crianças com II recorre ao pediatra ou médico de família por não cumprir as metas de desenvolvimento nas idades esperadas. Nalguns casos em que não há estigma físico que permita uma orientação etiológica, os pais podem sentir que algo está errado com a sua criança, cabendo ao pediatra e médico de família na sua vigilância regular de saúde infantil perceber se os desempenhos são próprios da idade cronológica. As perturbações do comportamento adaptativo são também frequentemente o sintoma revelador da II. O comportamento adaptativo refere-se à maneira como as crianças lidam com as necessidades da vida diária e ao grau de independência pessoal em relação ao esperado para um indivíduo do seu grupo etário. O médico deve inquirir e observar a criança em relação ao seu comportamento e desenvolvimento de forma a fazer uma detecção precoce e orientação adequada. Pode usar testes simples de rastreio (como o Denver II) ou questionários dirigidos aos pais. Entre os 6 e os 18 meses são mais frequentemente detectados problemas nas áreas motoras, hipotonia ou hipertonia, com atraso nas aquisição de competências como o sentar-se, gatinhar ou andar. Os problemas de linguagem e comportamentais, são queixas referidas, sobretudo, após os 18 meses. Algumas situações mais ligeiras, podem só ser detectadas com o início do infantário ou mesmo da escolaridade. Por outro lado, quanto mais grave for o défice cognitivo, mais precoce será o diagnóstico e maior a necessidade imediata de intervenção.

Assim, numa criança em que se verifique a suspeita de II (com ou sem orientação etiológica definida), deve ser programada uma avaliação completa do desenvolvimento por profissionais

especializados, idealmente numa equipa multidisciplinar. Esta avaliação não se limita apenas à realização de testes psicológicos individuais, que permitem a definição do QI e consequentemente a classificação nosológica, mas deve resultar na definição de um perfil funcional individual. É, pois, possível diagnosticar II em crianças com QI≥70 e ≤75 se existirem concomitantemente défices significativos no comportamento adaptativo. Inversamente, não será diagnosticada II em criança com QI≤70 se não coexistirem défices ou perturbações significativas do comportamento adaptativo. Naturalmente, os instrumentos de avaliação deverão ter em conta factores limitantes como por exemplo o nível sócio-cultural, língua materna e a associação de limitações nas áreas da comunicação, motora e sensorial.

 

Na maioria dos testes são avaliadas diferentes sub-áreas: motricidade grosseira, motricidade fina, socialização, autonomia pessoal e comunitária, a linguagem e a comunicação verbal e não verbal, a cognição verbal e não verbal, o comportamento e a atenção, etc..

É através de uma caracterização extensa e pormenorizada destes múltiplos desempenhos que é possível construir um perfil quanto ao desenvolvimento. Este perfil permite, não apenas confirmar o diagnóstico e avaliar a presença de co-morbilidades (de notar que pode haver II associada a défices específicos em determinadas áreas), mas conhecer as áreas “fortes e fracas” da criança, o que é imprescindível para a elaboração de um programa de intervenção adequado e eficaz.

A investigação etiológica inclui, geralmente estudos neuroimagiológicos (anomalias do SNC, doenças neurodegenerativas, anomalias de desenvolvimento do SNC), estudos cromossómicos (cromossomopatias), moleculares (X frágil) e metabólicos (mucopolissacaridoses, doenças do ciclo da ureia, outras doenças metabólicas). As crianças com II apresentam frequentemente problemas de visão, audição, emocionais e comportamentais associados. Se não forem atempada e adequadamente diagnosticados e tratados tais problemas associados potenciam adversamente a evolução destes casos.

Por outro lado, conhecer a etiologia do défice cognitivo pode ajudar a diagnosticar problemas associados na medida em são habituais em determinados casos: por exemplo na trissomia 21 é frequente a coexistência de hipotiroidismo, subluxação atlantoaxial e défices sensoriais; e na síndroma de X frágil e síndroma fetal-alcoólica são frequentes os problemas comportamentais.

O Quadro 1 refere-se a anomalias cromossómicas frequentemente associadas a II (três exemplos). (ver Parte III)

QUADRO 1 – Anomalias cromossómicas associadas a défice cognitivo

SÍNDROMA DO X FRÁGIL
Quadro clínico
    • Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial característica (QI:20-80; média ~50).
    • Macrocrânia, pavilhões auriculares proeminentes.
    • Hiperextensibilidade articular/hipotonia.
    • Macrorquidismo
    • Prolapso da válvula mitral.
    • Perturbação da comunicação
    • Hiperactividade

NB – Nas crianças pequenas os sinais dismórficos faciais poderão não ser evidentes; as orelhas salientes poderão ser a única característica mais exuberante.

SÍNDROMA DE TURNER (XO)
SÍNDROMA DE KLINEFELTER (XXY)

Intervenção 

Independentemente do maior ou menor sucesso na identificação da etiologia, a intervenção na II deve ser iniciada imediatamente uma vez feito o diagnóstico de II e definido o perfil de funcionalidade da criança.

Quando o diagnóstico é precoce, deve ser de imediato sinalizada para uma equipa em centro especializado e iniciar-se um programa de intervenção definido de acordo com as dificuldades e

potencialidades da criança. A intervenção deve ser feita no domicílio ou na instituição que a criança frequenta e ser sobretudo centrada no apoio indirecto aos pais, que deverão sempre ser considerados parceiros fundamentais na estimulação da criança.

De acordo com o modelo inclusivo que é actualmente defendido a nível mundial, as crianças devem ser integradas em estabelecimentos de ensino regular, com apoio de educação especial. Só este modelo de integração permite que elas desenvolvam um comportamento convencional e adaptativo, que é a chave para a sua aceitação na comunidade. O programa de intervenção deve ser reavaliado e reajustado periodicamente; por isso o pediatra do neurodesenvolvimento deve elaborar um plano de vigilância e seguimento, em colaboração com o pediatra geral ou médico de família, a equipa de técnicos, e os pais.

Um diagnóstico em tempo oportuno e uma intervenção, o mais precoce possível, poderão permitir minorar as dificuldades da criança ajudando-a a rendibilizar as suas potencialidades e a encontrar o seu lugar na comunidade. Em Portugal são fundamentais o Sistema Nacional de Intervenção Precoce (SNIPI), sustentado pelos DL 281/2009 e o DL 3/2008, os quais regulam o apoio às crianças com necessidades educativas especiais, numa perspectiva inclusiva.

BIBLIOGRAFIA

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Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

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Shapiro BK. Mental Retardation in Batshaw ML, Perret YM (ed). Children with Disabilities. Baltimore: Paul H Brookes, 1992: 259-289

COMPORTAMENTO E TEMPERAMENTO

Definições e importância do problema

Define-se comportamento como o conjunto de acções, reacções ou actividades motoras observáveis como resposta aos estímulos internos e externos. Desde o nascimento as crianças apresentam diferentes comportamentos: algumas choram muito, outras são mais calmas, umas mais sisudas, outras mais sorridentes e activas.

Define-se temperamento como o conjunto de características biológicas que influenciam o humor, comportamento e emoções, correspondendo ao substrato biológico sob o qual se estrutura a personalidade. São exemplos o nível de actividade motora, capacidade de adaptação à mudança, qualidade e intensidade das respostas a novas situações, limiar sensorial, humor positivo ou negativo, capacidade de atenção, concentração e persistência. Temperamento é, afinal, um estilo comportamental de etiologia biológica com componente fortemente genética.

O perfil de temperamento na primeira infância é traduzido pelos ritmos de sono e alimentação, reacção ao banho, adaptação a novos alimentos e pessoas, frequência e intensidade do choro e riso, etc..

Na segunda infância é traduzido pelo relacionamento com os pares, padrões de jogo, capacidade de atenção e persistência nas tarefas. 
Na criança em idade escolar relaciona-se com a adaptação à escola, à família, aos pares, às actividades lúdicas e de grupo, orientadas por educadores, ou seja, pelo reportório de interacção.

O temperamento é, assim, intrínseco à criança, por oposição ao comportamento que é influenciado pelo meio e pelo relacionamento e perfil da mãe ou substituto materno (vinculação). 

De referir que a vinculação é fundamental para o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança, sendo a sua avaliação primordial para a apreciação dos problemas do comportamento, sobretudo durante o primeiro ano de vida.

A partir do segundo e terceiro anos de vida, a criança torna-se menos dependente das figuras de vinculação.

Em 1988, Belsky e, posteriormente, Bydar e Brooks-Gunn, concluíram que período superior a 20 horas semanais em creche, durante o primeiro ano de vida, pode pôr em risco a relação mãe-filho, bem como o desenvolvimento cognitivo, emocional e comportamental da criança o que não acontece quando a actividade laboral materna é adiada para o segundo ou terceiro ano de vida. A problemática da separação mãe-filho noutras situações como a hospitalização, institucionalização, adopção, etc., condicionou uma maior ênfase no encurtamento das mesmas; sublinhou-se, por exemplo, as vantagens do hospital de dia, dos internamentos de curta duração e da aceleração dos processos de adopção. 

Define-se perturbação do comportamento como a modificação do padrão de acções, reacções ou respostas aos estímulos do meio, de carácter persistente ou repetitivo, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes regras ou normas sociais próprias da idade. Tal situação gera um défice clinicamente significativo na actividade social escolar ou laboral.

A prevalência da perturbação do comportamento parece ter aumentado nas últimas décadas; é usualmente mais elevada nos meios urbanos comparativamente aos rurais e varia entre menos de 1% e 10%.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Foram estabelecidos dois tipos de perturbação do comportamento com base na idade de início (início na infância ou início na adolescência), podendo apresentar-se de forma ligeira, moderada ou grave. O tipo início na infância é definido pelo menos por um dos critérios característicos da perturbação do comportamento antes dos 10 anos (Quadro 1).

QUADRO 1 – Perturbação do comportamento: critérios de diagnóstico

Padrão de comportamento repetitivo e persistente, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes regras ou normas sociais próprias da idade, manifestando-se pela presença de três ou mais dos seguintes critérios, durante os últimos 12 meses e, pelo menos, de um critério durante os últimos 6 meses.


Agressão a pessoas ou animais

  1. Com frequência insulta, ameaça ou intimida as outras pessoas.
  2. Com frequência inicia lutas físicas.
  3. Utilizou uma arma que pode causar graves prejuízos aos outros.
  4. Manifestou crueldade física para com as pessoas.
  5. Manifestou crueldade física para com os animais.
  6. Roubou confrontando-se com a vítima.
  7. Forçou alguém a uma actividade sexual.

Destruição de propriedade

  1. Lançou deliberadamente fogo com intenção de causar prejuízos graves.
  2. Destruiu deliberadamente a propriedade alheia.

Falsificação ou roubo

  1. Arrombou a casa, propriedade ou automóvel de outra pessoa.
  2. Mente com frequência para obter ganhos ou favores ou para evitar obrigações.
  3. Rouba objectos de certo valor sem confrontação com a vítima

Violação grave das regras

  1. Com frequência permanece fora de casa de noite apesar da proibição dos pais, iniciando este comportamento antes dos treze anos de idade.
  2. Fuga de casa durante a noite, pelo menos duas vezes, enquanto vive em casa dos pais ou em lugar substitutivo da casa paterna.
  3. Faltas frequentes à escola com início antes dos treze anos.


Tipos

Tipo início na segunda infância: antes dos 10 anos, início de pelo menos uma característica do critério de Perturbação do Comportamento.

Tipo início na adolescência: antes dos 10 anos ausência de qualquer critério característico do critério de Perturbação do Comportamento.

Perturbação do comportamento, início não especificado: a idade de início é desconhecida.


Gravidade

Ligeira: poucos ou nenhum dos problemas de comportamento para além dos requeridos para fazer o diagnóstico sendo de referir que os problemas de comportamento causaram apenas pequenos prejuízos aos outros.

Moderada: o número de problemas de comportamento e os efeitos sobre os outros situam-se entre ”ligeiros” e “graves”.

Acentuada: muitos problemas de comportamento que excedem os requeridos para fazer o diagnóstico ou os problemas de comportamento causam consideráveis prejuízos aos outros.

Trata-se habitualmente de crianças do sexo masculino, evidenciando frequentemente agressividade física com os outros, relações perturbadas com os companheiros, perturbação da oposição no início da infância e sintomas que preenchem os critérios de perturbação do comportamento antes da fase pubertária. Muitas crianças com este tipo têm também perturbação de hiperactividade com défice de atenção.

O tipo início na adolescência é definido pela ausência de características de perturbação do comportamento antes dos 10 anos de idade. Comparativamente ao tipo anterior manifestam-se menos comportamentos agressivos com tendência para relações mais aproximadas do normal com os companheiros.

Evolução

A evolução da perturbação do comportamento é variável; verifica-se remissão até à idade adulta na maior parte das crianças. Contudo existe uma proporção que continua a revelar na idade adulta comportamentos anti-sociais. 
O início precoce prenuncia um mau prognóstico e risco mais elevado de evoluir para uma perturbação anti-social da personalidade ou para perturbações associadas ao abuso de drogas na idade adulta.

Tipos especiais de comportamento social

Comportamentos considerados apropriados ou aceitáveis em determinadas idades passam a patológicos quando surgem mais tardiamente.

Os espasmos do soluço, mentira, impulsividade e birras são considerados normais entre os 2- 4 anos e devidos a uma necessidade de afirmação e autonomia face à real dependência motora e social, traduzindo frustração e zanga por tal facto. São analisados alguns exemplos:

espasmo do soluço (pausa respiratória e cianose com choro) é observado nos dois primeiros anos de vida e tem por objectivo o controle do meio, nomeadamente dos pais e cuidadores, nas situações de desprazer da criança. 

Este comportamento deve ser ignorado e acaba por extinguir-se, se a criança não atinge os seus objectivos.

mentira é utilizada entre os 2 e os 4 anos como meio de treino da linguagem e imaginação (fabulação), expressando a criança a fantasia dos seus desejos.

Na criança em idade escolar por vezes a mentira é utilizada para encobrir algo que ela não aceita no seu comportamento, conseguindo desta forma um bem-estar temporário e preservação da auto-estima.

pré-delinquência é uma entidade clínica manifestada através de vários comportamentos anti-sociais como o roubo, mentira, destruição de propriedade, crueldade para com os animais, violação, crueldade física para com os outros e repetidas tentativas de fuga. 

comportamento de oposição é manifestado através de comportamentos menos graves como a birra, o desrespeito de regras, atitude de desafio permanente, culpabilização sistemática dos outros, comportamento vingativo e frequente utilização de linguagem obscena.

Os comportamentos de oposição e as birras (teimosia e zanga), frequentes entre os 18 meses e os 3 anos, são de alguma forma apelativos, na medida em que procuram centralizar a atenção dos pais. A resposta desajustada, nomeadamente através de punição, reforça e perpetua este tipo de comportamento, pelo que os pais devem dar espaço e tempo à manifestação da criança que, depois de acalmada, deve ser chamada à razão através de um diálogo profícuo, explicando o motivo pelo qual o seu comportamento é inaceitável, moldando e controlando progressivamente a referida conduta. 

Define-se agressão como qualquer forma de hostilização; é frequentemente considerada como um traço negativo, apesar de desempenhar papel relevante na evolução da espécie animal.

agressividade, tipo de comportamento social, pode ser expressa de diferentes maneiras: não verbal, sob a forma de pontapés e empurrões; verbal, traduzida por apreciações mais ou menos depreciativas, que podem ir até ao insulto, instrumental e hostil (intencionalidade); e a individual ou de grupo.

Um tipo de agressividade e violência actualmente praticado em ambiente escolar é designado pelo termo, em inglês, bullying (traduzindo para português: tirania ou acto praticado por tirano). Segundo estatísticas, surge em cerca de 10% dos estudantes pré-adolescentes ou adolescentes: agressão física ou psicológica levada a efeito por colega ou grupo de colegas mais fortes a outros mais fracos, podendo estes últimos ficar afectados física e psicologicamente (depressão, ansiedade, etc.). Por vezes verifica-se fenómeno de retaliação.

Tal como já foi referido, a agressividade da criança ou adolescente pode ser condicionada pela dificuldade de relacionamento com os pares ou pais, sendo, importante investigar as causas e motivos.

As crianças e jovens sem comportamento empático ou pró-social são frequentemente agressivos e podem necessitar de intervenção de equipa de saúde mental.

Nas crianças expostas a modelos de agressividade nos meios audiovisuais como a televisão desenvolve-se mais frequentemente comportamento de agressividade, comparativamente a crianças não expostas.

Intervenção

Na maior parte dos casos as perturbações de comportamento são transitórias e regridem, ou espontaneamente, ou através de atitudes educativas como o reforço positivo de comportamentos pró-sociais e adequados.

Contudo, tais perturbações exigem maior atenção para prevenir situações graves (delinquência), ou do foro psicopatológico.

Existem diferentes modos de lidar com a conflitualidade, comportamento anti-social ou pré-delinquência; por exemplo ignorar o comportamento em causa, separação das outras crianças para evitar reforçar o referido comportamento, recompensar a atitude não agressiva, reforçar regras, efectuar manobras de diversão, explicar a igualdade de direitos, incentivar a autodefesa, sugerir soluções, encorajar a amizade, ensinar boas maneiras, desaprovar, etc..

A intervenção só se justifica se a agressividade for mantida, condicionando ruptura com o meio familiar, escolar ou social.

Dois tipos de intervenção podem ser utilizados com sucesso nas perturbações de comportamento: treino da criança na capacidade de solucionar problemas e treino dos pais.

O primeiro utiliza a modelo comportamental, do tipo “role-playing”, através da análise das boas razões, da correcção de conduta, e de reforço social de comportamentos adequados (imaginação de soluções, perspectiva do outro, etc.) em sessões suficientes para obter resultados (nunca menos de 20-30 sessões).

O treino parental envolve o ensino de princípios e técnicas educativas que promovam comportamentos ajustados, de que são exemplo o reforço positivo ou condicionado (premiar ou louvar o comportamento adequado), cobrar ou “multar” a resposta inadequada (por exemplo com a perda de pontuação) e plano de contingência adaptado.

Existem diferentes tipos de intervenção centrada no apoio e ensino dos pais englobando os seguintes aspectos:

  • Observar, identificar e monitorizar o comportamento do filho;
  • Reforçar o comportamento adequado e pró-social;
  • Lutar contra comportamentos agressivos ou de ruptura, ignorando-os;
  • Dar directivas claras e concisas;
  • Avisar uma única vez as consequências do não cumprimento de uma ordem ou directiva;
  • Utilizar tempo limitado para o cumprimento de uma ordem (3-5 minutos).

BIBLIOGRAFIA

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DESENVOLVIMENTO E INTERVENÇÃO

Períodos, etapas e áreas de desenvolvimento

É universalmente aceite que o desenvolvimento da criança se faz por etapas e que existem desempenhos característicos de cada idade. De acordo com certos autores (Piaget, Gesell, Freud, Winnicott) essas etapas têm fundamentos filosóficos diferentes e traduzem-se por aquisições em áreas ou domínio de funções diferentes do mesmo.

A teoria de Piaget, baseada no desenvolvimento, (ou “desenvolvimentista”), muito utilizada, baseia-se na interacção contínua do indivíduo com o meio, num processo de adaptação (acomodação-assimilação) e traduz-se por vários estádios que fornecem informação acerca de capacidades e limitações da criança numa dada idade. De uma forma geral, os períodos de desenvolvimento tendem a ser organizados em dois grandes grupos, do zero aos seis anos e dos seis aos 12 anos. Tal deve-se ao facto de, após os seis anos de idade, se considerar a escolaridade como indicativa do desenvolvimento em várias áreas, sendo o aproveitamento escolar demonstrativo de algumas aquisições, permitindo dar muita informação sobre a criança.

No entanto, estas noções devem sempre ser encaradas de uma forma dinâmica e contextualizada, com o intuito de promover o acompanhamento da criança, e nunca de forma a estigmatizar as falhas e a impor um “rótulo”. É, por isso, fundamental ter a noção de que é essencial um suporte orgânico ou alicerce para o desenvolvimento, mas também que é a estimulação providenciada pelo meio que permite o desenvolvimento de potencialidades. As várias aquisições fazem-se de acordo com a maturação orgânica e exigências exteriores, em sinergia e continuidade. Cada aquisição é fundamental para o desenvolvimento da seguinte, não só porque constitui o seu substrato, mas também porque funciona como fonte de estímulo para novas aprendizagens.

Exemplo disto é a sequência sentar-se → elevação para posição bípede; o aumento do tono da coluna vai permitir uma elevação do campo da visão e necessariamente uma maior curiosidade pelo meio. Embora as habilidades e aquisições da criança devam ser entendidas num todo porque são interdependentes, a avaliação da criança deve ser realizada por áreas dado que este modelo permite uma maior pormenorização de tarefas e melhor sistematização das alterações quando estas existem. Deste modo e, independentemente da escala de desenvolvimento utilizada, são contemplados globalmente os seguintes parâmetros:

  • Autonomia pessoal e social – O desenvolvimento pessoal envolve uma grande variedade de habilidades que podem ser agrupadas em hábitos – alimentação, controlo de esfíncteres, e emoções – sorrir, noção de identidade.
  • Comunicação – A comunicação envolve mais competências não verbais, como as expressões faciais, gestos e movimentos posturais, bem como competências verbais. A comunicação está obviamente ligada à audição e à cognição na medida em que é a função intelectual que analisa, quer a linguagem compreendida, quer a linguagem expressiva.
  • Cognição – Esta área de desenvolvimento inclui o leque de atenção, a noção de permanência do objecto, a noção de causalidade, a imitação, a estruturação espacial-temporal e o jogo, sendo através deste último que a criança recria o mundo que a rodeia, aprendendo a brincar e a jogar de formas cada vez mais complexas. A cognição relaciona-se com o desenvolvimento social e emocional, e os processos mentais superiores com o pensamento, memória e aprendizagem.
  • Motricidade grosseira – As habilidades motoras globais envolvem o movimento de grandes massas musculares e incluem o controlo postural e os padrões locomotores rudimentares – sentar-se, gatinhar, andar, correr. Numerosos autores, especialmente Wallon, deram grande importância ao tono no desenvolvimento motor e psicológico. O desenvolvimento é acompanhado de um aumento do tono axial e processa-se a par da diminuição progressiva da hipertonicidade dos membros; é uma certa extensibilidade que permite o jogo harmonioso dos músculos para a realização das sinergias motoras.
  • Motricidade fina e visão – A motricidade, é o meio através do qual a consciência se edifica e se manifesta. Nesta perspectiva, a motricidade passa a ser compreendida nas estruturas associativas que a planificam, elaboram, regulam, executam e integram. O desenvolvimento das habilidades motoras finas (preensão, manipulação) é uma aquisição que distingue o ser humano das outras espécies animais. A visão está intimamente associada à motricidade fina, permitindo avaliar, entre outros, designadamente a capacidade visual, a persistência e a dominância (Quadro 1).

QUADRO 1 – Etapas do desenvolvimento psicomotor (dos 3 aos 60 meses)

Áreas/ Parâmetros


Idades

Locomoção
Motricidade global

Pessoal e Social
Autonomia pessoal e social
Audição e Linguagem
Comunicação
Visão – manipulação
Motricidade fina e visão

Proezas e raciocínio
Cognição

3 mesesEleva a cabeça na posição dorsal

Segue pessoa com o olhar
Sorri em resposta a uma atitude

   
6 meses

Senta-se com suporte
Rola

Manipula colher (a brincar)
Bebe por caneca

Emite mais do que quatro sons
Responde quando chamado
Brinca com objecto
Segue objecto a cair
Tira objecto da mesa
9 meses

Tenta gatinhar
Fica sentado no chão

Tira um chapéu
Ajuda a segurar um copo

Galreia
Diz uma palavra nítida

Faz preensão fina (“pinça” com o polegar e indicador)
Atira para fora objectos

Brinca com pedaço de papel
Fica com objecto

12 meses

Gatinha
Anda com auxílio

Brinca com a colher (sabe função)
Bate palminhas

Reage vocalmente à música
Balbucia quando sozinho

Aponta um dedo
Pega num lápis

Cumpre ordem simples
15 meses

Anda sozinho
Sobe escadas

Usa a colher sozinho
Abraça os pais

Usa cinco palavras
Identifica objectos

Coloca objecto sobre o outro
Rabisca livremente

Indica desejos
Põe e tira objectos de uma caixa

18 meses

Anda “marcha-atrás”
Trepa cadeira

Utiliza copo meio cheio
Tira sapatos e meias

Diz nove palavras
Gosta de livros ilustrados

Atira uma bola
Faz uma torre com três cubos

Tapa uma caixa
Aponta uma parte do corpo

24 meses

Chuta uma bola
Sobe e desce escadas

Ajuda a vestir-se/despir-se
Consegue abrir a porta

Nomeia quatro brinquedos
Usa frases

Atira uma bola ao cesto
Faz um traço horizontal

Desenrosca um frasco
Aponta quatro partes do corpo

36 meses

Salta com pés juntos
Equilibra-se com um pé

Diz o 1º nome quando pedido
Guarda os brinquedos

Nomeia doze objectos
Usa dois ou mais adjectivos

Faz uma torre com oito cubos
Copia um círculo

Sabe o que é dinheiro
Distingue grande/pequeno

48 meses

Marcha com música
Salta dois degraus

Calça meias e sapatos
Sabe a idade

Usa pronomes pessoais
Conhece seis cores

Corta um quadrado em dois
Desenha um homem

Conta para além de quatro
Compara dois tamanhos e dois pesos

60 meses

Corre para chutar uma bola
Desce escadas como adulto

Lava sozinho mãos e cara
Sabe morada (rua e número)
Usa bem o garfo e a faca

Define pelo uso seis palavras
Descreve um desenho grande

Copia uma cruz
Desenha uma casa
Corta papel com tesoura

Conhece duas moedas
Conhece três moedas
Conta dez cubos

QUADRO 2 – Desenvolvimento psicomotor e sinais de alarme

1 – 2 meses

  • Em posição sentada: instabilidade cefálica;
  • Em posição vertical ou quando suportado pelo examinador em decúbito ventral, evidencia hiper ou hipotonicidade;
  • Não segue a face do observador;
  • Não sorri;
  • Não estabelece qualquer tipo de contacto social.

3 – 4 meses

  • Não fixa, nem segue objectos;
  • Não dirige os olhos ou a cabeça para o som (principalmente) quando ouve a voz humana;
  • Deixa cair a cabeça para trás, quando seguro pelas mãos e antebraços;
  • Mantém as mãos sempre fechadas;
  • Membros rígidos em repouso;
  • Postura assimétrica;
  • Reage com choro ao tacto;
  • Actividade motora monótona.

6 meses

  • Não “segura” a cabeça (instabilidade);
  • Membros inferiores com rigidez;
  • Segue objectos;
  • Assimetria na postura;
  • Não reage aos sons, evidenciando “apatia”;
  • Ausência de vocalização;
  • Ausência de preensão palmar (não agarra os objectos);
  • Estrabismo constante.

9 meses

  • Desequilíbrio em posição de sentado;
  • Imobilidade na posição de sentado, permanece imóvel;
  • Ausência notória de preensão palmar, não levando os objectos à boca;
  • Ausência de vocalização;
  • Ausência de contacto social;
  • Engasgamento fácil.

12 – 18 meses

  • Imobilidade permanente, não procura mudar de posição;
  • Postura assimétrica;
  • Não agarra os objectos ou agarra-os só com uma mão;
  • Ausência de resposta à voz;
  • Não mastiga;
  • Não brinca, mantendo apatia;
  • Não “obedece” às ordens simples;
  • Não diz palavras que se percebam.

2 anos

  • Ausência de marcha;
  • Manipulação dos objectos sem finalidade aparente;
  • Parece não compreender o que se lhe diz;
  • Não diz palavras perceptíveis.

Mais de 3 anos

  • Hiperactividade e dificuldade de concentração;
  • Linguagem incompreensível;
  • Aparenta “não ver”;
  • Alterações do comportamento (agressividade na escola ou no meio familiar, dificuldade no convívio com outras crianças, birras excessivas, reacção excessiva se separado da mãe.

 

De reiterar que todos estes domínios são interdependentes, cada um deles influenciando e sendo influenciado pelos outros. Após a avaliação de cada um destes domínios por tarefas, (sendo de referir que cada uma permite perceber mais do que uma capacidade), é importante analisar o desempenho e verificar se as falhas são pontuais ou globais e se eventualmente são alarmantes e carecem de encaminhamento para centro especializado na perspectiva de possível intervenção. No caso de crianças prematuras deve ter-se em conta a idade corrigida até aos dois anos de idade.

Chamando-se a atenção para variações individuais de semanas ou meses no respeitante, designadamente ao desenvolvimento cognitivo e motor tendo como referência o padrão médio da idade-chave em questão, o Quadro 2 de interesse prático para o clínico, elucida sobre determinadas falhas consideradas alarmantes, implicando eventual intervenção.

Pontos de viragem “Touch points” e intervenção preventiva

Está demonstrado que a auto-estima da criança poderá ser melhorada se a família adquirir conhecimentos e competências sobre o desenvolvimento motor, cognitivo e emocional em idade pediátrica. Nesta perspectiva, em colaboração com o médico e profissional de saúde, seguindo em conjunto a criança, e discutindo assuntos relacionados, haverá excelentes oportunidades para prevenir certas falências do desenvolvimento.

Por outro lado reforça-se a confiança e aliança entre profissional e família, o que contribui para o progresso do desenvolvimento. 
É esta a filosofia do modelo dos touchpoints, (pontos de viragem), que teve a sua criação em Terry Brazelton, seguido e desenvolvido em Portugal por Gomes Pedro. 
Baseia-se na teoria de sistemas. Cada componente deve reagir a todo e qualquer motivo de estresse que possa incorrer no sistema, e dado que cada membro partilha as suas reacções, a presença do técnico de saúde poderá reduzir o estresse tanto nos pais, como na criança. Cada momento de estresse é visto como uma oportunidade de aprendizagem, seja para o sucesso, seja para o insucesso.

O modelo dos “pontos de viragem” corresponde a um tipo de intervenção preventiva que dá relevo principal aos potenciais e forças da família e que combina a compreensão do desenvolvimento da criança com a criação de relações entre os intervenientes (técnico, clínico, pais e criança). O desenvolvimento da criança é descrito como não linear; é dinâmico, em surtos, com regressões, saltos e pausas, sendo que uma área de desenvolvimento influencia as outras. Os pontos de viragem são momentos em que uma mudança do sistema é provocada por uma alteração no desenvolvimento da criança, correspondendo a períodos previsíveis de regressão que ocorrem antes de um “salto” no desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento é multidimensional e interdependente; um salto numa área causa uma regressão temporária noutra área. Estes períodos de regressão causam desorganização no sistema no qual a criança está inserida, mas correspondem também a um período de reorganização. É possível que os pais se sintam desorientados e tenham medo de que a regressão conduza a uma alteração do comportamento.

Uma vez que estes períodos são previsíveis – um na gravidez, sete no primeiro ano, três no segundo ano e dois em cada ano subsequente, é função do médico e do técnico de saúde explicar antecipadamente o seu sentido aos pais, tendo em vista reduzir a ansiedade e aumentar a confiança naqueles. (Quadro 3)

Resumem-se a seguir, com exemplos concretos, alguns aspectos relacionados os oito pontos de viragem considerados por Brazelton e Gomes Pedro (desde a gravidez até aos 12 meses):

  • 1º Ponto de Viragem – O 1º ponto é importante para formar uma relação com os futuros pais; no 7º mês de gravidez o profissional tem a oportunidade de conhecer e partilhar preocupações com os pais establecendo-se uma relação de confiança antes da chegada do bebé.
  • 2º Ponto de Viragem – O 2º ponto dá-se no hospital ou em casa, pouco depois de o bebé nascer; pai e mãe, participando na consulta de avaliação, poderão ser sensibilizados para o comportamento do bebé designadamente no que respeita à sua notável capacidade para reagir ao ambiente que o rodeia.
  • 3º Ponto de Viragem – O 3º ponto deverá ocorrer entre as 2 – 3 semanas de vida; ou seja, antes da idade de 4 – 12 semanas, período este caracterizado por choro irritante ao fim do dia relacionado com a reacção do sistema nervoso imaturo aos estímulos ambientais. Com a intervenção antecipada (2–3 semanas), explicando aos pais que não deverão pegar no bebé (o que constitui estímulo adicional para choro irritante), o período de choro pode ser reduzido e o bebé fica mais calmo. É também a oportunidade para criar um ambiente calmo e caloroso, esclarecendo regras sobre a prática do aleitamento materno. Consequentemente os pais sentirão que foram bem sucedidos.
  • 4º Ponto de Viragem – O quarto ponto corresponde aos 2 meses, data de vacinas e em que se reavalia a alimentação, o sono e os ciclos de agitação. Se o profissional comentar com os pais certos padrões de comportamento do bebé (contacto social frente a frente, actividade motora, etc.), os mesmos poderão avaliar a aprendizagem já ocorrida no bebé, aumentando-lhes o auto-estima e o sentido de responsabilidade.
  • 5º Ponto de Viragem – O 5º ponto (consulta dos 4 meses) antecede um período de sobressalto na consciência cognitiva do ambiente: interrompe a refeição, olha em volta atento aos estímulos do ambiente e começa a acordar de noite após período de sono seguido, com mudança dos padrões alimentares. Esta fase do desenvolvimento corresponde a “rápido” sobressalto do mesmo, ou de “desorganização”. É então altura de os pais serem esclarecidos que tal período é precursor de rápido desenvolvimento e não constitui qualquer fracasso no que respeita aos cuidados prestados. É sinal de que o bebé precisará de refeições mais curtas sendo importante que os pais compreendam esta evolução. No que respeita ao sono, se o bebé tiver aprendido a encontrar conforto através duma forma independente de adormecer (por exemplo, chuchando no dedo ou agarrando-se ao cobertor), e não habituado a adormecer ao colo dos pais, haverá maior probabilidade de adormecer depois de acordar de noite.
  • 6, 7º e 8º Pontos de Viragem – Aos 6, 10 e 12 meses ocorrem mais três pontos de viragem, cada um dos quais constitui uma oportunidade para discutir questões que vão surgindo, com os pais. Cada ponto de viragem antecede um sobressalto numa ou mais áreas.

O Quadro 3 resume os aspectos principais de cada ponto de viragem até aos 36 meses. Salienta-se que a data em que os pontos de viragem acontecem pode ser alterada nos casos de prematuridade.

Em suma, os pais da criança sentirão que o médico e o profissional de saúde se preocupam não só com o progresso físico, mas também estão atentos ao seu desenvolvimento psicológico. Por outro lado, os referidos pontos de viragem podem ser encarados como oportunidades para dar apoio aos pais preocupados.

QUADRO 3 – Aspectos principais de cada ponto de viragem (touchpoints)

IDADES

1) Pré-natal

Preparação para a paternidade

Bebé imaginado (idealizado/real)

Relações familiares

Pai imaginado

2) Recém-nascido

Saúde

Bebé real

Emoções parentais

Afeição

3) 2-3 semanas

Exaustão parental

Alimentação

Relações entre os pais

Individualidade

4) 2 meses

Sociabilidade

Autoconfiança parental

Relações com o mundo exterior

 

5) 4 meses

Afeição

Interesse pelo mundo

Padrões de cuidados

 

6) 6 meses

Capacidades motoras

Alimentação

Sono

Permanência do objecto

7) 10 meses

Mobilidade

Referência social

Controlo (mover/pensar)

Permanência de pessoas

8) 12 meses

Independência

Capacidades motoras

Aprendizagem (descoberta)

Irritabilidade

9) 15 meses

Autonomia

Brincadeira (exploração)

Dependência

Linguagem

10) 18 meses

Conhecimento

Noção do “eu”

Exercício do controlo

Linguagem

11) 24 meses

Brincadeiras de “faz-de-conta”

Linguagem

Autonomia

Capacidades motoras

12) 36 meses

Imaginação

Medos e fobias

Linguagem

Relações com outras crianças

Os Anos Incríveis (ou Inacreditáveis) -“The Incredible Years”

Uma outra forma de abordar o neurodesenvolvimento infantil por pais e educadores é o de adoptar programas cientificamente comprovados em diferentes vertentes da vivência da criança, privilegiando o meio natural de vida, promotores de aquisição de competências e desempenho.

Carolyn Webster-Stratton defende desde os anos 80, um modelo de fácil aplicabilidade por pais e docentes a crianças de diferentes meios sócio-económicos, culturais e educativos; tal modelo resultou de um trabalho de investigação de mais de 20 anos.

O referido programa apresenta objectivos de curto prazo, designadamente:

  • Promoção de competências sociais, regulação emocional, atributos facilitadores de desempenho positivo, preparação académica e solução de problemas;
  • Prevenção, redução e tratamento de problemas emocionais e comportamentais em crianças pequenas;
  • Melhoria da interacção pais-filhos, construindo relações positivas e vinculação, aperfeiçoamento da funcionalidade parental, menos impositiva e mais orientadora, e promoção das atitudes de suporte na solução de problemas;
  • Melhoria das capacidades de liderança e pedagógicas dos docentes em sala de aula, relação de partilha e compromisso entre docente e aluno, e currículos que potenciem as competências sociais, emocionais e capacidade de gestão de conflitos.

Os objectivos a longo prazo visam prevenir problemas de comportamento, delinquência, violência e consumo de drogas.

As crianças e famílias elegíveis e potenciais alvos destes programas são:

  • Famílias de elevado risco, socioeconomicamente carenciadas;
  • Famílias biológicas e de acolhimento referenciadas para as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ);
  • Crianças com problemas de comportamento (de agressividade, oposição e impulsividade);
  • Crianças com défice de atenção, de concentração, e com hiperactividade.

Estes programas têm sido aplicados com comprovado sucesso nos EUA.

Em Portugal, o Sistema Nacional de Intervenção Precoce para a Infância (SNIPI – DL 281/2009) apresenta uma base teórica segundo os modelos ecossistémicos, muito idêntica; tal sistema tem sido desenvolvido no nosso país com sucesso.

Contudo, muito há ainda a fazer, levantando-se, entre outras, as seguintes questões:

  • Cobertura do território nacional;
  • Necessidades das crianças e famílias em risco (dado que a maior parte dos recursos são consumidos por crianças em situação de deficiência instalada, do que resulta exígua cobertura das crianças e famílias de risco);
  • Necessidade de implementação de um programa contínuo de formação e aperfeiçoamento de docentes e técnicos ligados à infância, que integrem as Equipas Locais de Intervenção (ELI).

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NEURODESENVOLVIMENTO

Conceitos fundamentais

“Eu sou eu e as minhas circunstâncias…”
Ortega e Gasset

Em Pediatria, Neurodesenvolvimento é definido geralmente como processo de aquisição de competências, habilidades e comportamentos cada vez mais complexos, o qual resulta da interacção de influências exteriores ao indivíduo com o próprio indivíduo congregando múltiplas potencialidades.

Para que a criança e o adolescente rendibilizem plenamente as suas potencialidades, é necessária a existência de condições psicossociais entre as quais se destacam:

  • amor e afecto;
  • meio familiar consistente e previsível propiciando a exploração e a descoberta.

A assimilação de todos estes estímulos psicoafectivos pressupõe capacidade de interacção; e o processo que se designa por desenvolvimento processa-se à medida que a criança reage aos estímulos do ambiente e aprende a fazer exigências ao seu meio.

A avaliação do referido processo tem como objectivo, não só a obtenção de um diagnóstico, mas também a avaliação do perfil das chamadas “áreas fortes” e “fracas”, quer da criança, quer da família e respectivos sistemas de suporte cultural, educativo e social, a fim de se efectuar a programação e integração das áreas a privilegiar.

Uma das áreas que mais atenção tem suscitado é a perspectiva actual da criança como parceiro e modulador activo do seu meio social e cultural, e não como receptor passivo de socialização.

Os diversos modelos biopsicossociais reconhecem actualmente que o Desenvolvimento é o produto de uma herança genética (nature) e do ambiente (nurture).

A investigação tem demonstrado o profundo impacte das primeiras experiências no desenvolvimento cerebral. O cérebro compreende, à nascença, 100 biliões de neurónios; cada neurónio desenvolve, em média, 15.000 sinapses até aos 3 anos de vida, que se mantêm estáveis até aos 10 anos, declinando depois o número dos mesmos. À medida que se formam novas sinapses, outras desaparecem, sendo este fenómeno condicionado pela menor utilização.

Assim se explica a característica de plasticidade do sistema nervoso central (SNC) em caso de lesão estrutural: a exercitação de vias sinápticas acessórias viabiliza alternativas de crescimento e reforço sináptico e neuronal que poderão condicionar a substituição da função de células lesadas por outras células, vias e áreas do sistema nervoso central, reactivando ou regenerando áreas silenciosas geradoras da recuperação total ou parcial. Esta capacidade é máxima durante os primeiros três anos de vida, reduzindo-se progressivamente até aos 10 anos, mantendo-se durante toda a vida, embora com cada vez menor impacte. A permanente experiência e aprendizagem do meio (nurture) influencia a estrutura cerebral gerada (nature).

Também assim se compreende que crianças com diferentes talentos e temperamentos (nature) provoquem diferentes estímulos no meio (nurture) e que, face a estímulos ambientais idênticos, possam interpretá-los e a eles reagir de forma diversa.

As experiências, quer sejam positivas ou negativas, influenciam a evolução e a capacidade adaptativa da criança aos futuros estímulos, isto é o seu desenvolvimento. São assim determinantes deste, as influências biológicas, ambientais, psicológicas e sociais, estas últimas designadas, mais apropriadamente, como condicionantes sociais.

Para avaliar adequadamente progressos, identificar variantes, atrasos ou anomalias, aconselhar devidamente os pais e planear a intervenção, torna-se, pois, necessário que o pediatra, o clínico geral e os profissionais de saúde que prestam cuidados a crianças e adolescentes compreendam o sentido abrangente do termo Desenvolvimento e estejam a par das teorias, perspectivas e estratégias baseadas na evidência.

Influências psicológicas

De salientar, em síntese, que a avaliação do desenvolvimento deve ser individualizada, dinâmica e compartilhada com a criança e sua família. Influências psicológicas Erik Erikson identificou o primeiro ano de vida como o período de estabelecimento de uma ligação de confiança e afecto mútuo adquiridos através de resposta atempada e adaptada às necessidades e estímulos da criança. A noção de vinculação diz respeito à tendência do lactente em procurar a proximidade dos pais, quando colocado em risco, e à relação que lhe permite utilizar os pais como pessoas com capacidade para restabelecer conforto, segurança e bem-estar após uma experiência desagradável. Em todos os estádios evolutivos, a criança necessita de um adulto com quem estabeleça uma ligação afectiva electiva e que corresponda adequadamente aos seus reptos verbais e não verbais, mantendo simultaneamente um estado de receptividade e de auto-regulação da sua progressiva autonomia.

Influências sociais e família como modelo ecológico

O centro deste modelo pressupõe a existência de formas específicas de interacção entre a criança e o ambiente (os chamados processos proximais) que actuam através do tempo e são considerados prioritários para o desenvolvimento humano; naturalmente que estes ocorrem preferencial e electivamente no âmbito da interacção familiar.

Exemplos paradigmáticos deste tipo de processos são os cuidados alimentares e de higiene prestados pela mãe ao recém-nascido e o reforço da díade e vinculação que proporcionam no dia-a-dia. Mais tarde será a actividade lúdica (só ou em grupo), a leitura, a resolução de problemas, a ideação e execução de planos, assim como a aquisição de novos conhecimentos.

A família funciona como sistema com ligações internas e externas, subsistemas, papéis e regras de interacção. Em famílias com subsistema parental rígido e autoritário é geralmente negada à criança capacidade de decisão, incitando à rebeldia e desobediência, comparativamente a famílias com espaço de comunicação e maior permeabilidade às opiniões e preferências da criança; neste último caso as circunstâncias que estimulam os filhos à criatividade e sentido de responsabilidade.

Ou seja, para que uma criança se desenvolva é necessário que esta inicie uma actividade, que esta seja regularmente reactivada por períodos de tempo razoáveis e que haja reciprocidade nas permutas afectivas, lúdicas e sociais. Daí a necessidade de cuidadosa atenção à gama de estímulos presentes no meio ambiente geradoras de experiências e de novas aprendizagens.

Os considerandos referidos integram a definição de ecossistema subdividido em micro e macrossistema. No primeiro incluem-se as características dos pais, amigos, professores, etc., que participam activamente na vida da criança, regularmente e por períodos extensos; e, no segundo, o padrão ideológico subjacente à organização política e socio-económica da sociedade em que estão inseridas.

Mas, o modelo bioecológico é ainda mais abrangente ao englobar na estrutura do microssistema, não só a interacção com pessoas, mas também com objectos, símbolos, conceitos, critérios, estruturas e instituições que particularizam o ambiente nos denominados processos proximais, ampliando-o; constitui-se, assim, o macrossistema.

Entre os dois sistemas, localiza-se mesossistema (ou exossistemas), que integra estruturas: em que a criança participa activamente, como a escola viabilizando e interacção com os pares; e estruturas que, sem intervenção directa, têm repercussão na qualidade de vida da criança – por exemplo a estabilidade laboral e económica dos pais, viabilizando disponibilidade e qualidade de cuidados parentais.

Risco, resiliência e modelo transaccional (de transigência)

Em Pediatria define-se risco como a presença de factores biopsicossociais adversos, e resiliência como a capacidade de resistir ou ultrapassar factores adversos ao longo do ciclo de vida da criança; por oposição à resiliência define-se vulnerabilidade como particular susceptibilidade aos referidos factores. O modelo proposto por Baltes defende que a criança é função da interacção entre as influências biológicas e sociais, sublinhando o papel de factores normativos como a idade e época histórica vivenciada, e de factores não normativos relacionados com acontecimentos imponderáveis (doença grave e incapacitante, acidente, morte de progenitor, etc.).

Exemplo de factores normativos relacionados com factos históricos e políticos é o das crianças que crescem em zonas de guerra, instabilidade política e económica geradoras de fome, angústia e amputadora de projectos de vida.

Determinados factores como o temperamento e o estado de saúde influenciam o ambiente onde a criança cresce e se desenvolve; por sua vez a criança pode ser directamente afectada pelos condicionalismos ambientais daí decorrentes.

Um recém-nascido (RN) prematuro evidencia longos períodos de sono e curtos períodos de vigília, hipotonia fisiológica e menor capacidade de fixação do olhar na face materna, choro débil e pouco frequente, comparativamente a um RN de termo (factores normativos). Este comportamento pode gerar curtos períodos de interacção e oportunidades de vinculação, eventualmente agravados e potenciados por depressão materna pós-parto.

Pelo contrário, RN e lactentes com períodos de vigília mais longos e choro vigoroso, interpretados apelativamente pela mãe, proporcionam maiores oportunidades de interacção e vinculação da díade que, quando bem funcionantes e integradas, proporcionam elevado grau de satisfação e sensação de competência materna.

Um outro aspecto é o da desvantagem social e da pobreza de certas crianças as quais são submetidas, designadamente, a maior exposição a factores de risco, quer biológicos como a desnutrição ou a intoxicação por agentes químicos, quer a dificuldades de acesso a oportunidades e experiências educativas (factores não normativos).

Quando submetidas a programas de intervenção em tempo oportuno, intensivos e suficientemente prolongados (a que as famílias social e economicamente auto-suficientes têm acesso facilitado), as crianças de risco mostram uma marcada melhoria na sua trajectória de desenvolvimento, de capacidades.

Assim, a privação e a desvantagem decorrem de uma complexa interacção entre factores de risco ecológicos, culturais, históricos, demográficos e Psicológicos.

De referir que tem sido valorizada a importância de determinados factores protectores biológicos, tais como: carácter persistente, apetência por modalidade desportiva, quociente de inteligência elevado, comportamento cooperativo, eficácia, auto-estima, empatia, sentido de humor e capacidade de liderança, importantes.

Alguns estudos sublinham ainda a importância de determinismos sociais como a existência de um adulto de referência – pais, avós ou professor – com quem a criança manteve ou mantém relacionamento electivo ou preferencial, bem como crença religiosa, contribuindo significativamente para o incremento da resiliência.

BIBLIOGRAFIA

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BAIXA ESTATURA

Definição

Na sequência do capítulo anterior, reitera-se que o crescimento humano é o resultado da expressão fenotípica duma potencialidade genética modulada pela nutrição, pela homeostase do meio interno, por certas hormonas e por múltiplos factores de crescimento. As alterações surgidas ao nível de um ou vários sistemas reguladores originam falência do padrão considerado normal, o qual se pode manifestar sob a forma de atraso ou aceleração do crescimento. Neste capítulo procede-se à abordagem sucinta das situações de atraso consubstanciando na prática o conceito de baixa estatura.

Nesta perspectiva, baixa estatura (BE) define-se auxologicamente por estatura inferior a dois desvios-padrão (DP) em relação à média correspondente para a idade, sexo e grupo populacional.

Etiopatogénese e classificação

Tratando-se dum problema complexo, pela observação do Quadro 1 discriminam-se múltiplos factores etiológicos envolvidos.

BE idiopática define-se auxologicamente por estatura inferior a 2 DP em relação à média correspondente para a idade, sexo e grupo populacional, após exclusão de doença sistémica, endócrina, nutricional ou anomalias cromossómicas. Este critério engloba crianças com peso e comprimento normais ao nascer e sem défice de hormona do crescimento. Estima-se que 60-80% das crianças com BE cumpram os critérios de BE idiopática.

Tal conceito engloba um grupo heterogéneo de crianças sem causa identificada, incluindo subgrupo de crianças:

  • Com baixa estatura familiar; e
  • Com baixa estatura no contexto de atraso constitucional do crescimento e puberdade (ACCP).

QUADRO 1 – Baixa estatura – classificação etiopatogénica

BE idiopática
Variantes do normal
BE de causa conhecida
Variantes patológicas do crescimento

Baixa estatura familiar

Atraso constitucional do crescimento e puberdade

Baixa estatura idiopática não familiar

PrimáriaSecundária

Entidades clínicas de causa genética:

  • S. de Turner
  • S. de Down
  • S. de Noonan
  • S. de Prader-Willi
  • S. de Silver-Russell

Osteocondrodisplasias congénitas: acondroplasia, hipocondroplasia

Crianças pequenas para a idade gestacional: restrição de crescimento intrauterino, sem crescimento compensatório suficiente

Entidades clínicas de causa endócrina:

  • Défice de hormona do crescimento (Growth Hormone – GH), congénito ou adquirido
  • Hipopituitarismo
  • S. de Cushing
  • Hipotiroidismo
  • Puberdade precoce
  • Diabetes mellitus com mau controlo

Metabólica: alterações do metabolismo dos lípidos, hidratos de carbono ou proteínas

Doenças de órgão ou sistémicas: cardíaca, pulmonar (fibrose quística), hepática, intestinal (doença celíaca; síndroma de intestino curto), renal (insuficiência renal crónica), hematológica (anemia crónica), artrite

Psicossocial: privação afetiva

Iatrogénica: glucocorticóides; terapia anti-neoplásica (quimioterapia, irradiação do SNC)

O diagnóstico de uma variante do crescimento normal implica avaliação rigorosa e demonstração da integridade de todos os mecanismos de crescimento.

Avaliação clínica

A avaliação de uma criança com baixa estatura inclui a realização de anamnese pormenorizada e exame objetivo completo. No Quadro 2 salientam-se os dados mais relevantes a ter em conta e obrigatoriamente a inquirir. A presença de desproporção entre segmentos ou de sinais dismórficos poderão levar a admitir causas patológicas específicas, numa minoria dos casos. Os registos das avaliações prévias de somatometria são de extrema importância para se poder traçar a curva de crescimento, a qual constitui instrumento de avaliação essencial perante casos de BE.

QUADRO 2 – Baixa estatura – avaliação clínica

Antecedentes familiares

· Estatura dos pais e irmãos (medição na consulta, se possível)

· Cálculo da estatura-alvo familiar

· Marcos de puberdade dos pais e irmãos (menarca, início de barba)

Antecedentes pessoais

· Gestação e parto (intercorrências)

· Somatometria ao nascer (RCIU)

· Problemas/anomalias congénitas detetadas durante o período neonatal

· Neurodesenvolvimento

Antecedentes patológicos· Doenças anteriores – infecções de repetição, diarreia crónica, cardiopatia, asma e seu tratamento (corticoterapia)
História social· Eventos disruptivos na família. Privação afectiva
Dados antropométricos prévios

· Construção da curva de crescimento com base nos registos do BSIJ

· Cálculo da velocidade de crescimento

Exame objectivo

· Peso, estatura

· Relação peso/estatura

· Proporção entre segmentos – tronco, membros superiores e inferiores

· Desenvolvimento pubertário com especificação dos estádios

· Pesquisa de dismorfias

· Pressão arterial e frequência cardíaca

· Palpação da glândula tiroideia

A partir dos elementos recolhidos calculam-se:

  • Estatura-alvo familiar – estimativa do potencial genético de altura da família, útil do ponto de vista comparativo. Calcula-se como uma média ponderada da altura dos pais, ajustada para o sexo da criança:
    • Rapaz: [(altura da mãe + 13) + altura do pai] / 2
    • Rapariga: [altura da mãe + (altura do pai-13)] / 2

Constitui critério de ulterior investigação a verificação de uma estatura inferior à estatura-alvo familiar em pelo menos 1,5 DP;

  • Velocidade de crescimento (VC) – incremento em estatura por unidade de tempo, que se calcula e exprime em centímetros por ano (cm/ano) – ver capítulo anterior. O intervalo mínimo para poder ser calculada com rigor é de 6 meses.

Também, tal como referido no capítulo anterior, constitui critério para investigação, e sinal de alarme de causa patológica de BE, uma velocidade de crescimento inferior a 4 cm/ano, e/ou inferior ao P25 em curvas de velocidade de crescimento;

  • Relação peso/estatura
    • Diminuída – peso mais afetado do que a estatura: sugestivo de doença crónica ou desnutrição;
    • Aumentada – estatura mais comprometida do que o peso: maior probabilidade de causa endocrinológica.

Diagnóstico diferencial e exames complementares

A avaliação da idade óssea (IO) através da radiografia do punho é um elemento da maior importância para o raciocínio clínico e diagnóstico diferencial, de forma integrada com os dados clínicos (Quadro 3).

QUADRO 3 – Baixa estatura – padrões de crescimento e diagnóstico diferencial

Abreviaturas: IO → idade óssea; IC → idade cronológica

 IO versus ICVelocidade de crescimentoDiagnóstico diferencial
IO ≅ ICNormal

· Baixa estatura familiar

· Síndromas de causa genética

· Displasias ósseas

· Restrição do crescimento intrauterino / RCIU

IO < ICNormal

· Atraso constitucional do crescimento e puberdade

· Doença crónica ou desnutrição ligeiras

IO << ICDiminuída

· Causa endócrina

· Doença crónica ou desnutrição graves

Constituem sinais de alarme de causa patológica de baixa estatura, nomeadamente do tipo endócrino: estatura inferior a -3 DP, crescimento com velocidade inferior ao percentil 25, IO com atraso superior a 2 anos em relação à IC. Nestas situações está indicada ulterior investigação de eventual défice de GH.

Em todas as crianças com estatura inferior a -2 DP (ou abaixo do percentil 3), a avaliação clínica deve ser complementada com exames auxiliares de diagnóstico. Além dos exames dirigidos a eventual suspeita clínica de causa patológica, deve ser feita uma avaliação geral conforme sugerido no Quadro 4.

Se os resultados obtidos forem normais, poder-se-á, numa fase inicial, vigiar o crescimento da criança, monitorizando a velocidade de crescimento. Salienta-se que, pelo facto de a secreção de GH ocorrer de forma pulsátil, não está indicado o doseamento basal desta hormona, mas sim do factor de crescimento IGF-I e respectiva proteína transportadora IGFBP3, cuja concentração sérica não é afectada pela pulsatilidade.

QUADRO 4 – Baixa estatura – exames complementares de diagnóstico

Exames imagiológicos· Radiografia do punho – idade óssea
Exames laboratoriais gerais

· Hemograma completo

· Marcadores de inflamação (velocidade de sedimentação, proteína C-reactiva / PCR)

· Ureia, creatinina, ionograma

· Gasometria

· Cálcio, fósforo, magnésio, fosfatase alcalina

· AST, ALT, GGT

Exames para avaliação de autoimunidade· Autoanticorpos anti-transglutaminase IgA
Exames endocrinológicos

· Insulin-like growth factor I (IGF-I) e IGF-I Binding Protein 3 (IGFBP3)

· Tirotropina (TSH) e tiroxina livre (T4L)

Exames de genética· Cariótipo (se paciente do sexo feminino)

Formas clínicas

Abordam-se em seguida as causas mais relevantes de baixa estatura na criança. As mais prevalentes integram o grupo designado por baixa estatura idiopática, constituindo variantes do crescimento normal (baixa estatura familiar e atraso constitucional do crescimento e puberdade). Entre as causas patológicas, o défice de hormona do crescimento, a síndroma de Turner e as crianças pequenas para a idade gestacional sem crescimento compensatório têm em comum a possibilidade de tratamento com hormona de crescimento biossintética.

1. BAIXA ESTATURA FAMILIAR

Trata-se de uma das causas mais frequentes de baixa estatura, que traduz a forte influência dos factores genéticos na estatura final de um indivíduo. Sendo um diagnóstico de exclusão, obriga ao seguimento continuado da criança ao longo do tempo, a fim de se detectar atempadamente qualquer desvio.

Uma criança com baixa estatura familiar nasce habitualmente com peso e comprimento adequados à idade gestacional, vindo a cruzar percentis de estatura durante os dois primeiros anos de vida, fase em que os fatores genéticos passam a ter maior influência sobre o crescimento infantil. Após estabilizar num percentil igual ou inferior ao 3, a criança cresce com velocidade de crescimento normal e apresenta uma maturação óssea adequada à idade cronológica. O pico de crescimento e maturação pubertária ocorrem na idade habitual.

2. ATRASO CONSTITUCIONAL DO CRESCIMENTO E PUBERTÁRIO

Também no diagnóstico desta entidade clínica os antecedentes familiares são de extrema importância, visto que se trata de uma situação de incidência familiar, cujas causas não estão completamente esclarecidas.

A somatometria ao nascer é habitualmente adequada à idade gestacional, e o crescimento é normal até ao início da idade pré-escolar, período a partir do qual poderá surgir desaceleração. A velocidade de crescimento volta a ser normal durante a infância, ocorrendo desaceleração nos anos pré-puberais, com cruzamento de percentis. Verifica-se nestes casos um atraso da maturação óssea e sexual.

O diagnóstico de exclusão de tal situação nem sempre é linear, exigindo avaliação complementar e monitorização clínica e auxológica, visto que o padrão de crescimento pode ser idêntico ao que ocorre em formas ligeiras de doença crónica (por exemplo doença de Crohn, doença celíaca, acidose tubular renal, etc.). O diagnóstico é confirmado quando é atingida a estatura-alvo familiar, após o surto de crescimento pubertário, que é tardio (pelos 14 anos nas raparigas e 16 anos nos rapazes), mas suficiente para atingir o normal potencial genético.

O Quadro 5 resume as principais características destas duas formas de baixa estatura idiopática. Em ambos os casos, por definição, o diagnóstico implica exclusão de doença sistémica, endócrina, nutricional ou anomalias cromossómicas.

QUADRO 5 – Baixa estatura familiar e atraso constitucional do crescimento e pubertário

Abreviaturas: IO → idade óssea; IC → idade cronológica; EAF → estatura alvo familiar

 Baixa estatura familiarAtraso constitucional do crescimento e da puberdade
Antecedentes familiaresFamiliares com baixa estaturaAtraso pubertário; surto de crescimento tardio; mãe com menarca tardia
Estatura alvo familiar (EAF)BaixaNormal
Somatometria ao nascerNormalNormal
Velocidade de crescimentoNormal

Diminuída nos primeiros 3-5 anos de vida

e na fase pré-pubertária

IO versus ICIO normal: IO @ ICAtraso significativo de IO: IO < IC
PuberdadeNormalAtraso pubertário
Estatura finalCorrespondente a EAF (baixa)Correspondente a EAF (normal)

3. DÉFICE DA HORMONA DE CRESCIMENTO

Etiopatogénese

O défice de GH (hipopituitarismo) é uma causa rara de baixa estatura. Pode ser idiopático (na maior parte dos casos) ou de causa conhecida – congénita ou adquirida. As causas congénitas podem ser genéticas, associadas a defeitos estruturais do sistema nervoso central (displasia septo-óptica, agenésia do corpo caloso, síndroma da sela turca vazia) e/ou a defeitos da linha média (fenda palatina, incisivo central único).

As causas de défice de GH adquirido incluem os tumores do sistema nervoso central (craniofaringeoma, adenoma hipofisário), bem como as relacionadas com as respectivas intervenções terapêuticas (cirurgia, irradiação e/ou quimioterapia). Menos frequentemente, ocorrem também causas traumáticas ou infecciosas.

Manifestações clínicas

O quadro clínico do défice de GH é variável consoante a idade de apresentação.

No período neonatal acompanha-se de outros défices do eixo hipotálamo-hipofisário, traduzindo-se por hipoglicémia neonatal (défice de GH e ACTH / cortisol), micropénis (défice de gonadotrofinas) e icterícia neonatal prolongada. A díade de hipoglicémia neonatal e micropénis deve constituir um alerta clínico para o diagnóstico de hipopituitarismo, implicando tratamento urgente. Saliente-se que nestes casos o hipotiroidismo central não é detectado pelo rastreio neonatal do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce, no qual são identificadas amostras com TSH elevada que surgem perante hipotiroidismo congénito primário.

Na criança mais velha, o défice de GH traduz-se por baixa estatura proporcionada e desaceleração progressiva do crescimentocom atraso de idade óssea e por vezes atraso pubertário. Geralmente, no exame físico não são evidenciadas alterações, exceptuando baixa estatura. Alguns casos apresentam aumento da obesidade troncular (“aspecto redondinho”), fácies de “boneca” ou de “querubim” (fronte ampla, hipoplasia da ponte nasal), voz aguda, pele e cabelos finos, característicos do défice congénito de GH. O défice de GH pode associar-se a manifestações clínicas relacionadas com a causa do défice, nomeadamente defeitos da linha média – incisivo central único, fenda palatina, lábio leporino, ou displasia septo-óptica com nistagmo.

Diagnóstico

Uma criança com suspeita clínica de défice de GH deverá ser dirigida a consulta de Endocrinologia Pediátrica. O respectivo diagnóstico implica a verificação de critérios clínicos e auxológicos, bem como confirmação laboratorial. Perante níveis basais de IGF-I diminuídos, o défice hormonal deve ser comprovado por provas de estimulação da produção de GH. Igualmente, deve proceder-se à realização de RM cranioencefálica em todos os casos de défice confirmado para estudo da região hipotálamo-hipofisária e exclusão de patologia do SNC, nomeadamente tumoral.

Tratamento

Em Portugal, o tratamento com GH está sujeito a critérios definidos, sendo os casos submetidos a avaliação por uma Comissão Nacional. A hormona biossintética é administrada diariamente, em injecção subcutânea única, à noite, previsivelmente até ser atingida a idade óssea de 14 anos na rapariga, e de 16 anos no rapaz. Também os critérios de suspensão da terapêutica se encontram definidos.

4. SÍNDROMA DE TURNER

Importância do problema

A síndroma de Turner (ST), ocorrendo em 1/2.500 indivíduos do sexo feminino, deve-se a alteração numérica ou estrutural de um dos cromossomas X. Em cerca de 50% dos casos verifica-se a ausência de um dos cromossomas X (cariótipo 45, X0), em 20-30% ocorrem anomalias estruturais (deleção do braço curto ou do braço longo, cromossomas em anel, isocromossomas); de salientar que em 20-30% dos casos de ST existe mosaicismo (mais frequentemente 45, X0 / 46, XX).

Mais raramente, uma das linhas em mosaicismo pode incluir o cromossoma Y, associando-se o risco acrescido de gonadoblastoma; esta circunstância constitui indicação para gonadectomia profiláctica. De referir que os mosaicos somente são detectados se forem contadas mitoses suficientes ou se forem utilizadas técnicas avançadas de genética molecular. (ver parte referente à Genética).

Manifestações clínicas

O fenótipo da ST é muito amplo em diversidade e gravidade de manifestações. De facto, até 38% dos diagnósticos só são feitos na idade adulta. O cariótipo 45, X tende a associar-se com um fenótipo mais grave do que os mosaicos, mas não existe uma previsível correlação genótipo-fenótipo.

FIGURA 1. Síndroma de Turner. Pescoço curto alado/pterigium colli (NIHDE)

 

baixa estatura é um sinal clínico major. Verificando-se em 95-100% dos casos, constitui o achado clínico que mais frequentemente desencadeia a marcha diagnóstica da ST na criança e adolescente. Associada a velocidade de crescimento normal até cerca dos 3 anos, ao longo da infância ocorre desaceleração progressiva do crescimento, o qual persiste além dos 14 anos, fruto da ausência de surto de crescimento pubertário.

Sem tratamento, a estatura final só é atingida na terceira década, e sofre o chamado “efeito Turner” – perda de cerca de 20 cm face ao esperado pela estatura alvo familiar (altura final média de cerca de 143 cm).

Em todas as crianças do sexo feminino com baixa estatura inexplicada dever-se-á considerar a possibilidade de ST, sobretudo perante adolescente com atraso pubertário ou paragem do desenvolvimento pubertário.

A insuficiência gonadal é outra das características nucleares da síndroma, ocorrendo em mais de 90% dos casos. Traduz-se clinicamente por atraso pubertário ou paragem de progressão dos sinais iniciais de puberdade.

No recém-nascido do sexo feminino deve suspeitar-se de ST perante edema linfático das mãos e pés e pele redundante na região posterior do pescoço ou pescoço alado (pterigium colli) (Figura 1).

O Quadro 6 sintetiza a frequência dos múltiplos achados clínicos associados a ST. Destacam-se as alterações cardiovasculares. Os defeitos cardíacos ocorrem em cerca de 1/3 dos casos e atingem mais frequentemente o coração esquerdo: – válvula aórtica bicúspide; – coarctação da aorta; – prolapso da mitral; – mesocárdia; e – aneurisma dissecante da aorta.

Tratamento

O tratamento tem como objectivos:

  • aproveitar o potencial de crescimento através da terapêutica com GH biossintética (desde o diagnóstico e na ausência de critérios de exclusão), e também,
  • a substituição hormonal necessária à indução de maturação pubertária, replicando o padrão fisiológico (estrogénios a iniciar em idade pubertária, dose inicialmente baixa com aumento progressivo, associando-se posteriormente um progestagénio).

QUADRO 6 – Manifestações clínicas da síndroma de Turner

* Deformidade de Madelung: deformação do punho traduzida por angulações radial e palmar da extremidade distal do rádio

Alterações do crescimento esquelético

Baixa estatura

Pescoço curto

Alteração da relação segmento superior/inferior

Cubitus valgus

Encurtamento dos metacárpicos

Deformidade de Madelung*

Escoliose

Genu valgum

Fácies característica: micrognatia

Palato em ogiva

~100%

40%

97%

47%

37%

8%

13%

35%

60%

38%

Obstrução linfática

Pescoço alado (Pterigium colli)

Inserção baixa do cabelo e orelhas rodadas

Edema das mãos e pés

Displasia das unhas

Dermatoglifos característicos

25%

42%

22%

13%

35%

Defeitos das células germinais

Falência gonadal

Infertilidade

96%

99%

Defeitos vários

Estrabismo

Ptose

Nevi pigmentados múltiplos

Anomalias cardiovasculares

Hipertensão

Anomalias renais e renovasculares

18%

11%

26%

55%

7%

39%

Doenças associadas

Tiroidite de Hashimoto

Hipotiroidismo

Doenças gastrintestinais

Intolerância à glucose

34%

10%

3%

40%

5. CRIANÇAS PEQUENAS PARA A IDADE GESTACIONAL

No âmbito da endocrinologia pediátrica, considera-se por pequeno para a idade gestacional (PIG) todo o recém-nascido com comprimento e/ou peso inferior a -2 DP para a idade e sexo. Em 90% destas crianças verifica-se um processo de crescimento compensatório, atingindo uma estatura final normal. A recuperação do crescimento ocorre, na maioria dos casos, até aos 2 anos de idade, havendo ainda uma pequena probabilidade de recuperação até aos 4 anos. Em 10 a 15% das crianças PIG, o crescimento compensatório é insuficiente, não sendo atingida uma estatura final concordante com a estatura alvo familiar. Em particular, as crianças que não recuperam estatura (não atingindo o percentil da estatura alvo familiar até aos 2 anos de idade), têm maior probabilidade de vir a ter estatura final baixa (< -2 DP).

A realização de exames complementares em situações de BE numa criança PIG deve ser completa – como aliás em qualquer outro caso – visto que podem coexistir outras formas de morbilidade, nomeadamente ST, baixa estatura familiar, défice de GH ou osteocondrodisplasias.

Em tais circunstâncias, os pacientes beneficiam do tratamento com GH, havendo, no entanto, importante variabilidade interindividual na resposta à terapêutica. Salienta-se que a resposta é tanto mais favorável quanto mais cedo for iniciada (a partir dos 4 anos), e quanto mais anos de terapêutica tiverem antecedido a puberdade. Assim, o encaminhamento para a consulta de endocrinologia pediátrica deve ser atempado.

De acordo com as normas da Comissão Nacional para a Normalização da Hormona do Crescimento, constituem critérios para terapêutica com GH em crianças PIG:

  • Peso e/ou comprimento ao nascer <-2 DP para a idade gestacional
  • Estatura aos 4 anos de idade <-2,5 DP para o sexo e idade
  • Diferença entre o DP da estatura da criança e o DP da estatura alvo familiar > 1
  • Variação do Z–score da estatura < percentil 50 no último ano (tabelas para consulta na área de especialidade)
    – Pré-púbere (volume testicular < 4 mL no rapaz e ausência de botão mamário na rapariga)

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CRESCIMENTO

Definições

crescimento constitui um fenómeno complexo de aquisição de massa, maturação morfológica e aquisição de capacidade funcional. No sentido estrito, crescimento designa o aumento de dimensões dos tecidos e órgãos resultante do aumento contínuo do número e volume celulares. Trata-se de um processo contínuo de modificação das dimensões corporais desde a fecundação (ovo) até ao indivíduo adulto, passando pelas fases de embrião, feto, criança e adolescente.

Na prática clínica pediátrica, tal área do conhecimento é aplicada na avaliação e interpretação dos parâmetros somáticos. Na prática clínica, através do exame físico, o crescimento pode ser quantificado por certos parâmetros mensuráveis, como o aumento de peso, a estatura e o perímetro cefálico.

auxologia é a ciência multidisciplinar que estuda o crescimento na espécie humana utilizando certas técnicas.

antropometria ou somatometria designa precisamente o conjunto de técnicas utilizadas com a finalidade de quantificar as dimensões corporais pela medição de parâmetros somáticos – estatura, peso e perímetro cefálico, índice de massa corporal, entre outros. Tais técnicas de medição são aplicadas como componente fundamental do exame pediátrico, permitindo identificar atempadamente desvios da normalidade, o que contribuirá para orientar o estudo e tratamento de eventuais condições patológicas subjacentes.

Importa referir que o crescimento é indissociável do conceito de desenvolvimento que, no sentido global fisiológico, significa diferenciação e modificação funcional das células, tecidos ou órgãos.

Fisiologia do crescimento – conceitos fundamentais

Sendo um processo fundamental e complexo, o crescimento é regulado por várias ordens de factores que interagem desde a vida intrauterina até ser atingida a estatura final. (Figura 1)

Os factores genéticos são os que têm maior peso relativo, determinando em elevada proporção (até cerca de 80%) a estatura final. Na prática clínica, nenhuma avaliação de estatura está completa sem ter em conta a altura dos pais, e o cálculo da respectiva estatura-alvo familiar.

Os factores reguladores neuroendócrinos incluem o eixo hipotálamo-hipófise, bem como outros eixos endócrinos.

  • A hormona de crescimento (growth hormone – GH) é uma hormona com 191 aminoácidos produzida pela hipófise sob controlo hipotalâmico – o hipotálamo produz o growth hormone releasing factor (GHRF) que estimula a hipófise para a secreção de GH. O hipotálamo produz também um factor inibitório da secreção de GH: somatostatina ou somatotropin release inhibiting factor (SRIF). A secreção de GH faz-se de forma pulsátil e predominantemente nocturna. Na prática clínica, deve ter-se este dado em atenção, sendo inútil um doseamento sérico esporádico de GH na investigação laboratorial de situações caracterizadas por baixa estatura.
    A GH circula associada a proteínas de ligação e, a nível periférico, liga-se aos seus receptores. Exerce alguma actividade metabólica directa (lipolítica, hiperglicemiante, anabólica), mas a sua acção é predominantemente mediada por insulin-like growth factors (IGF), entre os quais o mais importante para o crescimento é o insulin-like growth factor I (IGF-I). Sintetizado a nível hepático e a nível local (cartilagem de crescimento ou de conjugação), o IGF-I induz o crescimento através do aumento da multiplicação de condrócitos nas cartilagens de crescimento, aumentando a actividade proliferativa local.
    Verifica-se um aumento gradual da produção de IGF-I desde o nascimento até à puberdade. Quando se avalia laboratorialmente, é muito importante ter em conta valores de referência adequados à idade e estádio de maturação pubertária. De salientar que os níveis séricos de IGF-I são estáveis ao longo do dia, não sendo influenciados pela condição de secreção pulsátil de GH (pulsatilidade). Contudo, os níveis de IGF-I são influenciados pelo estado de saúde global e nutricional da criança, estando diminuídos em situações de doença crónica (renal, hepática) ou subnutrição. O IGF-I circula ligado a proteínas transportadoras (binding-proteins – BP), das quais a IGF1-BP3 é a mais abundante; esta última é relevante do ponto de vista da avaliação laboratorial, na medida em que, além de não ter variação circadiana, é menos influenciada por factores nutricionais do que o IGF-I.
  • Os outros eixos endócrinos envolvidos incluem as hormonas tiroideias, os esteróides gonadais, o cortisol e a insulina (esta último relevante no crescimento intrauterino).
    As hormonas tiroideias são essenciais para os processos de desenvolvimento cerebral e maturação óssea, e interagem com o eixo GH-IGF-I na medida em que também promovem a secreção de GH e aumentam a síntese de IGF-I nas cartilagens de conjugação.
    Os esteróides gonadais (em particular a testosterona) promovem a secreção de GH, aumentam a síntese de IGF-I nas cartilagens de conjugação; por outro lado, são responsáveis por cerca de “metade” do crescimento atingido durante a puberdade e permitem, não só a maturação sexual, como a esquelética.
    Refira-se que são os estrogénios os responsáveis pelo final do crescimento linear, determinando o encerramento da cartilagem de crescimento no final da puberdade, em ambos os sexos.

FIGURA 1. Factores que influenciam o crescimento

O papel dos glucocorticóides no crescimento tem relevo sobretudo do ponto de vista da fisiopatologia, visto que em estados de hipercortisolismo há diminuição da secreção de GH e da síntese de IGF-I, bem como diminuição da sensibilidade à sua acção periférica.

Os chamados factores permissivos do crescimento traduzem a forma como o estado global da criança pode permitir ou não que outros factores actuem na sua plenitude. Tais factores incluem o estado de saúde versus doença, estado de nutrição e o grau de suprimento das necessidades psicossociais e afectivas. É conhecido o efeito da doença crónica enquanto factor de compromisso do potencial de crescimento. Por outro lado, crianças em situação de instabilidade familiar e privação afectiva podem apresentar períodos de desaceleração do crescimento sem outra causa identificada.

Fases do crescimento

Descrevem-se quatro fases no crescimento, com factores reguladores e velocidades de crescimento diferentes:

  • Crescimento pré-natal ou intrauterino;
  • Primeiros 2 anos de vida;
  • Fase infantil (> 2 aos 9 anos);
  • Fase pubertária (desde o início até ao final da puberdade).

Essencial à compreensão das várias fases de crescimento é o conceito de velocidade de crescimento (VC): incremento em estatura por unidade de tempo, que se calcula e exprime em centímetros por ano (cm/ano).

Constitui critério para investigação, e sinal de alarme quanto a desvio patológico do crescimento, a verificação da respectiva velocidade, inferior a 4 cm/ano, e/ou inferior ao P25 em curvas de VC. O Quadro 1 resume a VC habitual para cada fase de crescimento.

QUADRO 1 – Velocidade de crescimento (VC) linear

Idade VC (cm/ano)
0-12 meses20-25
13-24 meses12
25-36 meses8
3 anos – fase pré-púbere4-8
Puberdade8-12

Crescimento pré-natal ou intrauterino

O crescimento pré-natal é influenciado por fatores maternos, placentários e fetais. Os factores maternos incluem a estatura, peso, estado nutricional da mãe, bem como a presença de doença crónica ou consumos nocivos. O crescimento intrauterino está mais dependente dos factores genéticos maternos do que dos paternos, razão pela qual o peso do recém-nascido tem, em mulheres com bom estado de nutrição, uma correlação positiva com a estatura materna.

Nos factores placentários, além do papel dos fluxos sanguíneos útero-placentários, refira-se o papel da placenta enquanto órgão endócrino:

  • Produção de insulin-like growth factor II (IGF-II), um dos factores reguladores mais importantes no crescimento intrauterino;
  • Produção da gonadotropina coriónica humana (hCG) e da hormona lactogénea placentária, que têm acção metabólica semelhante à da GH.

Como factores fetais, há a referir: anomalias cromossómicas, síndromas malformativas, fetopatias infecciosas, e gestação múltipla, entre outros.

A regulação endócrina do crescimento fetal não depende da GH, sendo a insulina a principal hormona responsável pelo crescimento intrauterino. O efeito promotor do crescimento intrauterino pela insulina é bem evidente na macrossomia fetal que se verifica nos estados de hiperinsulinismo materno.

Importa ainda referir o papel das hormonas tiroideias no crescimento fetal, inteiramente dependente da função tiroideia materna até às 20 semanas, fase em que a produção de hormonas tiroideias pelo feto é independente da produção materna.

O crescimento pré-natal inicia-se por uma fase em que predomina a hiperplasia celular (até às 18 semanas), seguindo-se predominantemente hipertrofia celular (até às 28 semanas). O pico ponderal é atingido cerca das 34 semanas, iniciando-se, nas últimas semanas da gestação, desaceleração do crescimento.

Crescimento nos primeiros 2 anos de vida

O crescimento do lactente é uma continuação do crescimento fetal, caracterizando-se por uma velocidade de crescimento rápida (até 25 cm/ano), que diminui ao longo do tempo, para cerca de metade no segundo ano de vida. O crescimento neste período é essencialmente dependente dos factores nutricionais. Apesar de o papel regulador da GH começar a exercer-se a partir dos 6 meses de vida, tem ainda pouca expressão nesta fase da infância.

Fase infantil

Na fase de crescimento entre os 2 anos completos e o início da puberdade, a velocidade de crescimento é lenta e estável, entre 4-8 cm/ano. Este crescimento em ritmo estável, sem desvios, depende dos factores genéticos, da regulação primordial pela GH, bem como da influência das hormonas tiroideias.

Fase pubertária

Com o início da puberdade, última fase do crescimento linear, ocorre nova aceleração da velocidade de crescimento para cerca de 8-12 cm/ano, predominantemente dependente da acção dos esteróides gonadais, apesar de continuar efectiva e relevante a acção da GH. O surto de crescimento pubertário inicia-se aos 10-12 anos na rapariga, e aos 12-14 anos no rapaz. O crescimento pubertário termina no final da maturação sexual, coincidindo com o encerramento das epífises ósseas, por ação dos estrogénios. A avaliação do estádio pubertário (abordada nos capítulos dedicados à adolescência) é importante para interpretar a evolução do crescimento.

Na sequência do que foi descrito, pode afirmar-se que a curva de crescimento da espécie humana tem uma morfologia sigmóide, com dois períodos de crescimento rápido separados por um período de crescimento estável, o que pode ser documentado na Figura 2.

FIGURA 2. Curva de velocidade de crescimento para a estatura, considerando os diversos segmentos do corpo (SBP)

Avaliação do crescimento

Generalidades

A avaliação do crescimento baseia-se:

  • Na análise de parâmetros antropométricos (como modificações que se verificam com a idade, duma forma global (peso, comprimento/altura ou estatura, índice de massa corporal, perímetro cefálico, medição dos segmentos superior e inferior e da envergadura – ver adiante); ou
  • Na análise de parâmetrosnão antropométricos (como a medição das pregas do tecido celular subcutâneo, perímetro braquial, determinação da idade óssea por método radiológico, exame das fontanelas, cronologia do aparecimento dos dentes decíduos no lactente, etc.).

Neste capítulo, dá-se particular ênfase à medição (com craveiras apropriadas) do parâmetro estatura – considerando a terminologia de comprimento, em decúbito até aos 2 anos, – e a de altura, em ortostatismo, após os 2 anos.

As instruções de medição abaixo indicadas constam das normas aplicadas para recolha de dados de estatura divulgadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

  • Comprimento: devem ser retirados os adornos e penteados que interfiram com o posicionamento e despir por completo a criança, incluindo retirar fraldas. Idealmente a medição deve ser feita com dois observadores: a pessoa que vai efectuar a leitura (leading observer– coordenador responsável) posiciona a criança com ombros e ancas em ângulos rectos em relação ao eixo longitudinal do corpo, uma mão mantendo os membros inferiores em extensão e contacto com o plano subjacente (com ligeira pressão nos joelhos), e outra mão ajustando o apoio de pés para a medição. A segunda pessoa (assisting observer- ajudante) mantém o posicionamento da cabeça – plano de Frankfurt posicionado verticalmente. (Figura 3A)
  • Altura: retirar quaisquer adornos e penteados que interfiram com o posicionamento, bem como retirar sapatos. Os pés devem ficar ligeiramente afastados, e é essencial assegurar que todas as seguintes partes do corpo tocam o plano vertical posterior: parte posterior da cabeça; omoplatas; nádegas; região gemelar e calcanhares. Quando possível, a medição deve ser efectuada por duas pessoas: uma com a face ao nível da face da criança, posiciona a cabeça com o plano de Frankfurt horizontal (Figura 3B), e traz o plano de medição até à cabeça, comprimindo o cabelo. A segunda pessoa segura os joelhos e tornozelos para manter os membros inferiores em extensão e os pés apoiados, podendo fazer uma ligeira compressão no abdómen para corrigir a posição lordótica lombar fisiológica.

 

A) Plano de Frankfurt posicionado perpendicularmente à superfície horizontal
B) Plano de Frankfurt posicionado perpendicularmente à superfície vertical

FIGURA 3. Posicionamento do Plano de Frankfurt na medição do comprimento (A) e da altura (B)

Outros parâmetros que completam a avaliação do crescimento, são particularmente relevantes quando há desvios da normalidade na restante somatometria. Refira-se a medição dos segmentos superior e inferior e da envergadura.

segmento inferior (SI) mede-se pela distância entre o limite superior da sínfise púbica e a superfície plantar, na posição adequada de avaliação de estatura. O segmento superior (SS) é a distância medida entre o vértex (ponto mais elevado da abóbada craniana no plano sagital mediano) e o cóccix, e pode calcular-se subtraindo o SI ao comprimento ou altura. A envergadura é a distância máxima entre as extremidades dos dedos médios de cada mão, com os membros superiores estendidos na horizontal à altura dos ombros, paralelamente ao pavimento.

Os índices constituem relações numéricas entre estes parâmetros, e são relevantes na prática clínica para avaliar a proporcionalidade entre o tronco e os membros.

índice SS/SI é tanto maior quanto menor a idade, de acordo com o crescimento fisiológico, variando desde aproximadamente 1.7 ao nascer, 1.0 pelos 10 anos e < 1.0 no adolescente, após o surto de crescimento pubertário. O índice SS/SI pode estar alterado em situações acompanhadas de defeitos esqueléticos, com alteração das proporções habituais.

A envergadura é inferior ao comprimento no recém-nascido, e superior à altura a partir dos 10 anos nos rapazes e dos 12 anos nas raparigas (na maior parte dos indivíduos excede a altura no máximo em 5 cm).

Para a interpretação de todos os parâmetros antropométricos é essencial a comparação – “medir é comparar”. Trata-se, por um lado, da comparação com crianças da mesma idade e sexo, feita através das curvas de percentis; por outro lado, da comparação dos parâmetros de uma mesma criança ao longo do tempo, revelando padrões evolutivos. Ainda um terceiro eixo de comparação refere-se às já citadas relações entre diferentes parâmetros somáticos de uma mesma criança.

Curvas de crescimento

As curvas de crescimento (construídas a partir de percentis, ou de média e desvio padrão) constituem um instrumento fundamental para avaliar o crescimento de crianças e adolescentes. No âmbito do Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil de 2013, a DGS recomendou, pelas suas vantagens, a adopção das curvas da OMS MGRS (Multicenter Growth Reference Study) passando a fazer parte do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil actual – para cada sexo, curvas de peso, comprimento e altura, perímetro cefálico, índice de massa corporal (IMC – relação peso em kg/altura ao quadrado em metros).

Ao contrário das curvas anteriormente utilizadas (CDC), construídas de forma transversal, as curvas de crescimento preconizadas pela OMS foram construídas de modo longitudinal, com avaliação seriada do mesmo grupo de crianças com representatividade mundial, e pretendem ser padrão internacional único do crescimento fisiológico das crianças, bem como estabelecer a criança sob aleitamento materno como o modelo normativo de crescimento e desenvolvimento. Mostram como a criança deveria crescer num ambiente saudável, com alimentação adequada, cuidados de saúde, prevenção e controlo de infecções, sem exposição a tabaco na gravidez ou após o nascimento.

As suas principais vantagens face às curvas anteriores são o facto de permitirem uma mais correcta avaliação do crescimento dos lactentes alimentados com leite materno, com desaceleração do crescimento pelos 3-4 meses de idade (podendo evitar-se suplementação desnecessária com fórmula); e o facto de permitirem identificar mais precocemente crianças com excesso de peso, problema preocupante e de elevada prevalência na população portuguesa.

FIGURA 4. Raparigas – Peso 0-5 A

FIGURA 5. Raparigas – Comprimento/altura 0-5 A

FIGURA 6. Raparigas – Peso 5-10 A

FIGURA 7. Raparigas – Altura 5-19 A

FIGURA 8. Raparigas – IMC 0-5 A

FIGURA 9. Raparigas – IMC 5-19 A

FIGURA 10. Raparigas – Perímetro cefálico 0-24 M

FIGURA 11. Rapazes – Peso- 0-5 A

FIGURA 12. Rapazes – Comprimento/altura 0-5 A

FIGURA 13. Rapazes – Peso 5-10 A

FIGURA 14. Rapazes – Altura 5-19 A

FIGURA 15. Rapazes – IMC 0-5 A

FIGURA 16. Rapazes – IMC 5-19 A

FIGURA 17. Rapazes – Perímetro cefálico – 0-24 M

* Nota – É útil estabelecer, com aproximação, a correspondência entre curvas de crescimento baseadas respectivamente em percentis e em DP (desvios-padrão):
+ 1 DP <> percentil 85 – 1 DP <> percentil 15
+ 1,6 DP <> percentil 95 – 1,6 DP <> percentil 5

+ 2 DP <> percentil 3 – 2 DP <> percentil 97
+ 3 DP <> percentil 99,7 – 3 DP <> percentil 0,3

– Os dados da avaliação individual ou populacional devem ser apresentados sob a forma de percentis, em percentagens para o percentil 50, ou ainda, preferencialmente, em Z-scores
– Resultados da avaliação em % para o percentil 50 = valor actual / valor do percentil 50×100
– Resultados da avaliação em Z-score = valor actual – valor do percentil 50 / desvio-padrão de referência

Desvios da normalidade

A avaliação do crescimento é um excelente indicador do estado de saúde da criança. De salientar que um qualquer factor adverso que se repercuta sobre o peso e a estatura será necessariamente mais grave e prolongado do que aquele que apenas tenha repercussão sobre o peso, poupando a estatura. A baixa estatura será abordada no próximo capítulo.

As crianças e adolescentes com estatura elevada, superior a dois desvios-padrão (DP) em relação à média correspondente para a idade, sexo e grupo populacional, devem também ser alvo de investigação e referenciação a consulta de especialidade.

gigantismo, definido como situação clínica caracterizada por crescimento exagerado do esqueleto, tanto em altura como em largura, em comparação com o crescimento normal de indivíduos da mesma raça e idade, pode estar associado a perturbações endócrinas hipofisárias que cursem com secreção excessiva de GH. A acromegália, em geral associada a adenoma da hipófise, é o aumento anormal das dimensões do nariz, orelhas, maxilar inferior, mãos e pés, relativamente ao resto do corpo.

O Quadro 2 objectiva regras práticas muito simples no âmbito da avaliação do crescimento como complemento dos achados obtidos pela utilização das curvas de crescimento.

QUADRO 2 – Regras práticas sobre o crescimento em crianças saudáveis, nascidas de termo

INCREMENTOS APROXIMADOS
PesoComprimento/estaturaPerímetro cefálico (PC)
1º trimestre → 200 g / semana1º ano → 25 cm1º ano → 1 cm/mês
2º trimestre → 130 g / semana2º ano → 12 cm2º ano → 2 cm
3º trimestre → 85 g / semanaPelos 2 anos ~1/2 da altura em adultoPelos 2 anos ~80% do PC em adulto
4º trimestre → 75 g / semana  

Outros critérios de avaliação do crescimento

Para além dos parâmetros descritos, outros poderão ser utilizados como complemento dos primeiros: exame das fontanelas no lactente, dentição, e determinação da idade óssea por método radiológico.

As pregas cutâneas e o perímetro braquial são abordados no capítulo em que se aborda a avaliação nutricional.

Determinação da idade óssea por método radiológico

O grau de maturação óssea é considerado representativo da idade biológica, nomeadamente do grau de maturação pubertária. A idade óssea obtém-se por observação comparativa de uma radiografia da mão e punho do lado não-dominante, com imagens de atlas de referência (Greulich-Pyle). Compara-se o grau de maturação dos núcleos de ossificação do carpo e do estado de calcificação das áreas de junção diáfise – epífise dos ossos longos, com imagens referentes ao desenvolvimento padrão em cada idade. Existem também métodos numéricos e informatizados, que não estão tão difundidos na prática clínica.

Considera-se fisiológico um atraso ou avanço de ± 20% da relação idade óssea-idade cronológica, o que corresponde a uma variação da idade óssea dentro do período até 2 anos. Desvios superiores a este serão com maior probabilidade patológicos.

Cursam com atraso de idade óssea a generalidade das doenças crónicas, o hipotiroidismo, e o atraso constitucional do crescimento e puberdade, por exemplo. Ocorre avanço da idade óssea nas situações de puberdade precoce e de hipercortisolismo, entre outras. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Comparação entre idade cronológica e idade óssea

RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo
1 ano – Carpo: 3 núcleos; Tarso: 2 núcleos
2 anos – Cabeça do úmero; Carpo idem; Tarso: adição da epídise do perónio
3 anos – Carpo: adição do piramidal; Tarso: adição do 1º cuneiforme
4 anos – Carpo: adição de mais 1 núcleo; Tarsp adição de mais 2 núcleos
5 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos
6 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos
Exame das fontanelas

No lactente as fontanelas constituem um marcador do estado de ossificação do esqueleto. Considerando as seis fontanelas, a que mais interessa no âmbito do tópico em análise é a fontanela anterior ou bregmática. A sua exploração (que deverá ter sempre em consideração, em concomitância, o valor do perímetro cefálico) faz-se por palpação anotando-se em centímetros a medida das diagonais ântero-posterior e transversal. (ver capítulo sobre Discranias).

Dentição

Este tópico é analisado no âmbito da Parte sobre Estomatologia.

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ANOMALIAS CONGÉNITAS

Definições

Num sentido lato, Anomalias Congénitas (AC) – termo sinónimo de malformações congénitas/defeitos congénitos – são erros de desenvolvimento, presentes desde o período embriofetal e manifestando-se por alterações estruturais, funcionais ou bioquímicas, que podem ser detectadas ao nascer ou mais tardiamente.

A sua etiologia é heterogénea, inerente ao feto como no caso das anomalias cromossómicas ou génicas, ou exterior a ele como no caso de factores físicos, infecciosos, bioquímicos ou outros. Muitas vezes pode haver acumulação de factores como no caso da chamada etiologia multifactorial.

Num conceito mais restrito, o termo refere-se a um defeito estrutural de instalação embriofetal, reconhecido ou não ao nascer, e de etiologia variável.

O termo Dismorfologia diz respeito ao estudo das anomalias de forma do organismo humano, assim como dos respectivos mecanismos causais.

Importância do problema

A ocorrência de AC está documentada desde os tempos mais remotos da Humanidade, em muitos textos da Antiguidade, sendo inúmeras as suas representações na Arte em todas as civilizações.

A explicação das suas causas, bem como o comportamento da sociedade, tem variado naturalmente de acordo com as várias culturas e o momento da História. Mas foram os enormes avanços da Genética Médica alcançados nas últimas décadas, e o reconhecimento de factores nocivos do ambiente como causa de anomalias congénitas, que tornaram possível não só os conhecimentos que hoje temos da sua etiologia e epidemiologia, bem como a utilização de métodos de prevenção cada vez mais eficazes.

Hoje as AC são um problema de Saúde Pública e a sua incidência é tanto mais elevada quanto menor for a idade gestacional considerada. Se no período pré-natal é difícil quantificar a sua importância devido ao elevado número de perdas embrionárias e fetais por AC, elas são relativamente frequentes e preocupantes no período pós-natal, uma vez que 2 a 3 por cento dos recém-nascidos vivos têm uma ou várias AC de gravidade muito variável, o que justifica frequentemente o recurso a hospitalizações.

De acordo com estatísticas hospitalares (www.marchofdimes.com/peristats), cerca de 50% dos casos de AC identificados em RN corresponde a defeitos múltiplos; 10% dos que requerem hospitalização, corresponde a situações do foro genético; em 18% a etiologia é desconhecida; e em 40% é requerida correcção cirúrgica.

No que respeita à comparticipação das AC na mortalidade neonatal, nos USA, em 2015, foram obtidos os seguintes dados: 137 óbitos/100.000 nados-vivos; para comparação, os valores obtidos quanto a mortalidade neonatal por outras causas foram os seguintes: prematuridade e ou baixo peso – 109/100.000; síndroma de morte súbita/SMS/SIDS – 55/100.000.

É clássica a comparação das AC a um iceberg. As que se evidenciam após o nascimento, representadas pela parte visível da massa gelada, são apenas uma pequena parcela da realidade. Na verdade, a maioria das AC, particularmente as mais devastadoras, são letais no período pré-natal:

  • Cerca de 40% dos zigotos não sobrevivem devido a erros de desenvolvimento, particularmente durante as primeiras oito semanas;
  • 2 a 3% dos recém-nascidos (RN) têm anomalias congénitas, a maioria das quais de natureza genética;
  • Das mais de 4.000 doenças mendelianas indexadas no catálogo de doenças hereditárias de McKusick, cerca de 1.900 têm alterações da morfogénese, sendo para cima de 1.000 as descritas com conjuntos malformativos complexos.

Etiopatogénese

Como complemento do que foi referido na alínea anterior, o Quadro 1 resume os factores etiológicos mais frequentemente implicados: genéticos e ambientais (teratogénicos), por vezes associados; pode concluir-se que, na maioria dos casos não é possível identificar o factor causal.

QUADRO 1 – Anomalias congénitas – Etiologia

Jones Kl, 2997

Etiologia

· Factores de Ambiente (Teratogénicos) (~10%)

· Factores genéticos (~10-25%)

  • Determinação poligénica
  • Genes mutantes
  • Desequilíbrio genético (anomalia cromossómica)

· Factores Ambientais e Genéticos

· Factores Desconhecidos (~65-75%)

QUADRO 2 – Anomalias congénitas – Factores ambientais

Jones Kl, 2997

Factores Ambientais (Teratogénicos)

· Germes Microbianos

  • Agentes TORCH
  • Vírus da varicela

· Doenças Maternas

  • Diabetes mellitus
  • Fenilcetonúria materna
  • Hipertemia

· Agentes Químicos, Físicos, Drogas

  • Álcool
  • Aminopterina e metotrexato
  • Anticonvulsantes
  • Dietilestilestrol
  • Lítio
  • Metil-mercúrio
  • Radiações
  • Tetraciclina
  • Talidomida
  • Análogos da Vitamina A (ácido retinóico)
  • Varfarina
  • Cocaína

No Quadro 2 são referidos alguns exemplos de factores ambientais (teratogénicos).

Desenvolvimento embrio-fetal normal e patológico – Breves conceitos

O genoma que o zigoto recebe dos seus progenitores constitui um conjunto de regras que permite construir um embrião. Essas regras, que constituem o mecanismo regulador do desenvolvimento embrionário, estão na base de uma sucessão muito complexa de acontecimentos minuciosamente programados no tempo e no espaço.

Desses acontecimentos fazem parte processos tão importantes como a divisão celular, a adesão celular, a indução, a migração das células, a apoptose, o crescimento e a diferenciação.

Os genes são os “instrumentos” moleculares responsáveis pela organização de toda a morfogénese e estrutura cromossómica. Convém, no entanto, ter sempre presente que num cariótipo se vêem os cromossomas mas não se visualizam os genes.

Cabe à biologia molecular explicar como a informação unidimensional contida na cadeia de ácido desoxirribonucleico (ADN) origina uma informação tridimensional (proteína) responsável pelas transformações têmporo-espaciais que caracterizam o normal desenvolvimento do embrião.

A partir do ovo, o embrião tem, pois, teoricamente todas as potencialidades para se desenvolver e crescer de uma forma harmoniosa e previsível. Esta evolução está dependente da interacção de factores genéticos específicos de cada indivíduo e de factores ambientais muito diversos com particular relevância para os factores nutricionais, endócrinos e metabólicos.

O programa de crescimento e desenvolvimento do embrião é muito preciso no que respeita ao tempo e ao espaço em que ocorrem os acontecimentos que irão transformar o ovo num recém-nascido.

Com uma frequência muito maior do que seria de esperar e do que seria desejável, existem falhas de natureza genética ou epigenética que conduzem a uma disrupção do programa estabelecido com consequências mais ou menos graves na estrutura e funcionamento do embrião.

É muito útil para compreender a génese das anomalias congénitas, relembrar os fenómenos da fertilização e as fases do desenvolvimento embrio-fetal , caracterizadas por uma sucessão de estádios ininterruptos mas morfologicamente bem definidos.

fertilização é um fenómeno complexo de interacção entre um óvulo e um espermatozóide, veículos da informação genética materna e paterna, indispensável ao normal desenvolvimento do embrião e do feto. A fertilização tem como consequência a formação do zigoto, considerado como o ponto zero do desenvolvimento embrionário.

Por vezes, a informação que chega ao zigoto, quer por via materna, quer por via paterna, contém erros de natureza génica ou cromossómica, responsáveis pela génese de anomalias congénitas de natureza e gravidade muito variáveis.

Assim, as anomalias cromossómicas de número (devidas a não-disjunção meiótica), as anomalias cromossómicas de estrutura e as mutações génicas, podem chegar ao zigoto por via materna, paterna, ou ambas simultaneamente.

A anomalia cromossómica mais frequente no RN vivo é a trissomia 21, (Figura 1, Capítulo sobre anomalias cromossómicas) que pode revestir a forma de trissomia livre (Figura 1) ou de trissomia por translocação (translocação 21/14 na Figura 2).

FIGURA 1. Trissomia 21 – Cariótipo (forma livre)

FIGURA 2. Trissomia 21 – Cariótipo (translocação: 21/14)

Neste último caso, é necessário provar se a anomalia é herdada de um dos progenitores ou se é uma situação de novo a fim de poder calcular riscos de repetição.

Mas a não-disjunção pode também ser mitótica (pós-zigótica) conduzindo à formação de mosaicos. De igual modo, as mutações génicas podem aparecer só nas primeiras fases do desenvolvimento, com consequências variáveis em termos de expressão fenotípica.

Nas primeiras 24 horas que se seguem à fusão dos pronúcleos feminino e masculino, inicia-se uma série de divisões mitóticas de forma que no 4º dia existe um conjunto de 32 células constituindo a mórula.

Na fase de mórula, cada uma das células que a compõem pode exprimir todo o potencial genético do novo indivíduo e uma só célula pode dar origem a um indivíduo. Estas células pluripotenciais totipotentes, quando confrontadas com erros genéticos ou agressões ambientais, têm uma grande capacidade de se intersubstituir podendo, assim, compensar esses erros. Se não forem capazes de o fazer, o destino do embrião será a morte. Este fenómeno que é conhecido como a lei do tudo ou nada, tem muita importância quando é necessário avaliar o risco de aparecimento de anomalias congénitas em caso de agressão teratogénica nesta fase do desenvolvimento.

A partir do 4º dia de vida a mórula começa a absorver líquido dando lugar à formação de uma cavidade interna; toma então o nome de blastocisto que se vai implantar na parede uterina por volta do 6º dia. No fim da primeira semana o embrião é unilaminar.

Entretanto a capacidade totipotente das células perde-se e, com o blastocisto, começa uma fase de especialização celular. As células tornam-se pluripotentes, isto é, são capazes de se diferenciar em quase todos os tecidos embrionários excluindo a placenta e anexos.

A partir da segunda semana dá-se a formação do embrioblasto, cujo destino é o desenvolvimento do embrião e do trofoblasto originando o desenvolvimento da placenta. No fim da segunda semana o embrião é bilaminar.

Durante a terceira semana forma-se o embrião trilaminar com o disco embrionário tridérmico que dará origem à ectoderme, mesoderme e endoderme e, posteriormente, a todos os tecidos e órgãos definitivos.

Durante a quarta semana do desenvolvimento têm lugar transformacões muito complexas e rápidas que marcam a passagem para a organogénese.

A estas quatro primeiras semanas, em que se dão os acontecimentos mais importantes em termos de desenvolvimento embrionário, dá-se o nome genérico de blastogénese. Embora muitos embriologistas não atribuam muita importância à individualização destas primeiras quatro semanas no contexto da embriogénese, o facto é que o seu conhecimento é indispensável para compreender a génese das anomalias congénitas.

Assim, é nesta fase que se estabelecem os campos de desenvolvimento, os eixos do embrião, a linha média, a lateralidade e a segmentação, que ocorre a neurulação, a cardioangiogénese, a mesonefrogénese e aparecem os esboços dos membros. A placenta, que também inicia a sua formação durante a blastogénese é naturalmente determinante para a sobrevivência do feto (ver adiante).

Os campos de desenvolvimento têm um enorme interesse na compreensão da génese das anomalias congénitas.

Os defeitos mais graves do desenvolvimento estabelecem-se na blastogénese. Os erros ocorridos nesta fase podem naturalmente dar origem à morte do embrião, ou mais tardiamente do feto, mas podem também conduzir ao nascimento de crianças com anomalias congénitas gravíssimas, interessando um ou mais campos de desenvolvimento.

A partir da quinta semana começa a organogénese que decorre entre o 28º e o 56º dias. São outras quatro semanas, durante as quais se vão formar todos os órgãos, organizando-se em aparelhos ou sistemas. Nesta fase cada órgão e cada sistema tem um momento ou período crítico de formação cujo conhecimento volta a ter muita importância na avaliação do risco teratogénico.

Na organogénese distinguem-se dois processos fundamentais: a morfogénese – formação dos órgãos, e a histogénese – diferenciação das células e organização dos tecidos.

No fim da oitava semana termina organogénese, última fase embriogénese.

O período entre as nove semanas e o nascimento, (período fetal) é dominado pelo crescimento e maturação do feto.

fenogénese, terceira e última parte do desenvolvimento, prolonga-se para além da vida fetal terminando quando se atinge a maturidade sexual.

Nas Figuras 3 e 4 são apresentados alguns exemplos de anomalias congénitas.

FIGURA 3. Sirenomelia/Embriopatia diabética

FIGURA 4. Embriofetopatia alcoólica

Figura 3
Feto com 20 semanas de idade gestacional, em que se verifica um único membro inferior constituído por 3 segmentos. O exame radiológico identificou um único fémur alargado e achatado com 2 côndilos, 2 rótulas, 2 tíbias e ossos de pé rudimentares. Havia também imperfuração anal, agenésia renal bilateral e agenésia do útero e restantes estruturas do aparelho genital.
A história revelou diabetes insulinodependente e gravidez seguida de forma irregular.
Trata-se de um defeito da blastogénese.
Diagnóstico – Embriopatia diabética e regressão caudal com sirenomelia.

Figura 4
Feto com 20 semanas de idade gestacional, com cardiopatia congénita. A existência de lábios muito finos num feto de raça negra levou-nos a pôr a hipótese de embriofetopatia alcoólica. A história revelou gravidez não vigiada e mãe com hábitos alcoólicos muito acentuados. Neste caso a valorização de uma anomalia minor foi o fio condutor para o diagnóstico.
O efeito do álcool teve o seu início na embriogénese (cardiopatia) e prolongou-se pela fenogénese com evidência de uma anomalia minor (lábios finos).
Diagnóstico – Embriofetopatia alcoólica.

Campos de desenvolvimento e sua relação com a génese das anomalias congénitas

Na primeira metade do século XX os trabalhos de embriologia experimental de H Spemann e JS Huxley introduziram a noção de campo de desenvolvimento. Em 1982 JM Opitz propunha a sua aplicação em genética clínica e, a partir desse ano, um grupo de trabalho internacional propunha uma nova terminologia para os erros da morfogénese adoptando o conceito de campo de desenvolvimento para explicar a génese da maioria das anomalias congénitas.

Assim, um campo morfogenético ou de desenvolvimento é constituído por uma parte do embrião representando uma unidade coordenada de indução embrionária da qual resulta um conjunto de estruturas anatómicas. Daí decorre que o campo de desenvolvimento é a unidade fundamental do desenvolvimento, também definida como uma unidade reactiva que responde de forma idêntica a agressões diferentes, como anomalias cromossómicas, mutações génicas ou teratogénios.

Na fase inicial da blastogénese a totalidade do embrião constitui um campo de desenvolvimento primário que contém em si próprio o modelo geral do desenvolvimento. Gradualmente, o campo primário divide-se em vários campos progenitores, que são os primórdios das estruturas definitivas.

Os campos progenitores, por sua vez, dão origem aos campos secundários que, já durante a organogénese, serão os responsáveis pelas estruturas finais e irreversíveis do embrião.

Todo este processo aparece, pois, como um conjunto de acontecimentos em cascata e as anomalias serão tanto mais graves e diversificadas quanto mais precoce for o momento em que o erro acontece. Nesta perspectiva, os erros ocorridos na blastogénese durante o estabelecimento dos campos progenitores, devido à sua proximidade e à partilha de mecanismos moleculares, originam anomalias que afectam estruturas diferentes em várias regiões do corpo; são referidas como defeitos politópicos de campo, isto é, envolvem dois ou mais campos progenitores.

As anomalias da blastogénese são heterogéneas do ponto de vista etiológico, graves e altamente letais, com baixo risco de recorrência e afectando predominantemente as estruturas da linha média. Um mesmo conjunto malformativo pode ter etiologias diversas, uma vez que o campo de desenvolvimento reage da mesma maneira a agressões diferentes.

Uma excelente revisão de J. Opitz refere uma extensa lista de anomalias a incluir como defeitos da blastogénese, em que sobressaem a gemelaridade monozigótica, os defeitos politópicos de campo, as associações, as anomalias aparentemente monotópicas mas com provável origem na blastogénese e as anomalias da formação do cordão umbilical e da placenta.

Por outro lado, os erros ocorridos durante a organogénese nos campos secundários originam anomalias limitadas a uma só estrutura ou região do corpo, sendo referidos como defeitos monotópicos de campo. São exemplos as anomalias localizadas tais como fenda palatina, hipospádia ou polidactilia. Mesmo assim, embora se venham a manifestar durante o período da organogénese, a sua origem real pode ter sido durante a blastogénese.

Findo o período da embriogénese, correspondente às oito primeiras semanas de vida do embrião, as estruturas embrionárias estão formadas de uma forma irreversível e assume-se que já não será possível o desenvolvimento de anomalias estruturais graves (ou major).

Durante a fenogénese é possível o aparecimento de anomalias ligeiras (minor); refere-se que pequenas dismorfias faciais podem tornar-se aparentes apenas em fases mais tardias do desenvolvimento embrionário. As anomalias cromossómicas, que produzem os seus efeitos desde a blastogénese, reunem frequentemente anomalias major e minor, o que significa que a sua acção se prolonga durante a fenogénese. (ver adiante)

O mapa génico das anomalias congénitas

O enorme impacte que as técnicas de biologia molecular tiveram no estudo do genoma humano permitiram a construção de um mapa que identifica e localiza os genes em segmentos cromossómicos específicos.

Dado que se trata de uma ciência sempre em expansão, qualquer livro estará sempre parcialmente desactualizado nesta matéria e a consulta de artigos “on-line” é indispensável para uma actualização permanente. Não cabe no âmbito deste livro uma referência extensa aos genes já identificados, mas pode-se dizer que mais de 50% das doenças que constam da última edição do indispensável livro “Smith’s Recognizable Patterns of Human Malformation” já têm genes identificados.

Do conhecimento cada vez mais completo do funcionamento da embriologia molecular decorrem duas observações importantes que são a heterogeneidade alélica e a heterogeneidade génica de certas anomalias isoladas ou múltiplas.

No primeiro caso, mutações diferentes no mesmo gene são responsáveis por fenótipos diferentes. São exemplos as mutações no gene GLI3 localizado no cromossoma 7, que são responsáveis por doenças tão diferentes como a síndroma de Pallister-Hall, a síndroma de Greig ou certas formas de polidactilia isolada. Também a acondroplasia e o nanismo tanatóforo, situações até há pouco tempo consideradas independentes, dependem de mutações diferentes do mesmo gene localizado no cromossoma 4.

No segundo caso, uma mesma síndroma com quadro clínico em tudo semelhante, pode ser devida a mutações em genes diferentes. Temos como exemplo a síndroma de Bardet-Biedl, na qual já se demonstrou a relação causal com vários genes diferentes localizados nos cromossomas 3, 4, 11, 14, 15, 16 e 20.

Ao contrário do que alguns investigadores supunham, o conhecimento dos genes responsáveis pelas AC não diminuiu, mas aumentou a importância da observação clínica cuidadosa, assim como a responsabilidade do sindromalogista, que deve interpretar e construir um padrão de anomalias que possa conduzir a um diagnóstico. Só através deste será possível determinar qual o gene alvo que queremos encontrar.

Classificação

Para efeitos práticos as AC são divididas em major e minor.

As anomalias ditas major são causa de perturbações funcionais ou estéticas de gravidade variável pelo que requerem cuidados médicos ou cirúrgicos como terapia curativa ou paliativa. As anomalias ditas minor são mais frequentes do que as major, mas a sua presença não levanta problemas de natureza funcional ou estética, pelo que não requerem, em geral, qualquer intervenção terapêutica. No entanto, a sua valorização é importante, pois podem constituir um fio condutor para a procura de outras anomalias mais graves que podem ocorrer em conjunto, como é o caso das anomalias renais detectadas através da existência de anomalias minor dos pavilhões auriculares.

Do ponto de vista qualitativo, é útil dividir as anomalias congénitas em quatro subgrupos:

Malformação – consiste num processo anormal de desenvolvimento de natureza intrínseca responsável por um defeito morfológico de um ou mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como consequência de uma anomalia cromossómica.

Disrupção – depende de um acidente grave causado por factores extrínsecos à estrutura do embrião, normal até dada fase do desenvolvimento; tais factores são em geral desconhecidos. De tal resulta um defeito morfológico de um ou mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como consequência da existência de bandas amnióticas.

Deformação – resulta da acção de forças mecânicas extrínsecas ou intrínsecas ao feto, que modificam a forma, o tamanho ou a posição da totalidade do corpo ou de parte dele (com normalidade prévia, até se verificar a acção de tais forças). É o que acontece, por exemplo, como consequência do oligoâmnio.

Displasia – quando há morfogénese anómala com alteração mais ou menos grave da organização celular de um ou vários tecidos. É o que acontece, por exemplo, nas displasias renais ou nas displasias ósseas.

Por vezes é difícil distinguir estes grupos entre si. Mas essa distinção é indispensável em termos de aconselhamento genético, uma vez que as formas de transmissão são diferentes, e diferente o risco de repetição.

As AC podem ser únicas ou múltiplas. É neste último grupo que existe actualmente alguma confusão no que respeita à definição, nomenclatura e limites da variabilidade fenotípica.

Em 1982 formou-se um Grupo de Trabalho Internacional (IWG) liderado por J Spranger, que se debruçou sobre os erros da morfogénese, a sua definição e terminologia. Posteriormente, no Congresso Internacional de Genética reunido em Berlim, em 1986, o mesmo grupo clarificou e redefiniu esses conceitos, de acordo com o conhecimento da etiologia e patogenia dos conjuntos malformativos.

Do ponto de vista quantitativo são consideradas as anomalias que constam do Quadro 3: hipo e hiperplasia, hipo e hipertrofia, atrofia, agenésia e aplasia.

Estes conceitos têm-se revelado de grande utilidade quando se trata de compreender melhor as AC, calcular riscos de repetição e planear diagnóstico pré-natal em futuras gravidezes.

QUADRO 3 – Alterações quantitativas da morfogénese

Hipoplasia/Hiperplasia
· Hipo ou hiperdesenvolvimento de um tecido, órgão ou organismo em função, respectivamente, do nº. diminuído ou aumentado de células.
Hipotrofia/Hipertrofia
· Hipo ou hiperdesenvolvimento em função das dimensões diminuídas ou aumentadas das células.
Agenésia
· Ausência de uma parte do corpo devido a ausência do “primordium”
Aplasia
· Ausência de uma parte do corpo por não desenvolvimento do “primordium”
Atrofia
· Diminuição das dimensões e/ou nº das células de órgão (s) ou tecido (s) normalmente desenvolvido (s).

São descritas quatro formas de conjuntos de anomalias (múltiplas):

Síndroma – define-se como um conjunto de anomalias relacionadas entre si, constituindo uma entidade etiologicamente bem definida (génica, cromossómica, teratogénica), embora a patogenia nem sempre possa ser esclarecida. Daqui decorre que a trissomia 21 e a embriofetopatia alcoólica são exemplos de síndromas, e também que “síndroma de etiologia desconhecida”, frase tantas vezes utilizada, não tem sentido.

Associação – define-se como a ocorrência de um conjunto de anomalias de uma forma mais frequente do que o acaso faria supor, e cuja etiologia e patogenia são desconhecidas. Este grupo poderia também ser designado como defeitos da blastogénese de natureza idiopática. Uma associação é habitualmente designada por acrónimos, como por exemplo a associação VACTERL (Vertebral, Anal, Cardiac, fístula Tráqueo-Esofágica, Renal, Limbs) e a associação CHARGE (Coloboma, Heart, Choanal Atresia, Retardation, Genital, Ears).

Mas a etiologia das associações tende naturalmente a ser esclarecida e quando isso acontece, a associação dá lugar a síndroma. Exemplo disso é o que aconteceu com a já mencionada associação CHARGE depois de recentes investigações demonstrando várias mutações no gene CHDZ localizado em 8q12, responsáveis por grande número de casos da associação CHARGE.

Sequência – define-se como um conjunto de anomalias que tem a sua origem numa única anomalia que constitui o acidente primário e que é responsável por um conjunto de acontecimentos em cascata. A etiologia, conhecida ou não, é heterogénea e os mecanismos patogénicos são, evidentemente, conhecidos. Temos como exemplo o mielomeningocele cuja sequência será: defeito de encerramento do tubo neural – desenvolvimento incompleto dos ossos da coluna vertebral com exteriorização da medula (anomalia de Arnold-Chiari) – hidrocefalia e pés botos.

Defeito politópico de campo – este tipo de defeito já foi referido atrás; as anomalias relacionam-se com alterações de dois ou mais campos progenitores.

As anomalias múltiplas, no seu conjunto, estão intimamente relacionadas com os campos de desenvolvimento e os seus erros.

Avaliação clínica

A avaliação clínica das anomalias únicas ou múltiplas, além do seu interesse académico, tem como objectivo último um diagnóstico que permita esclarecer os pais quanto às causas do seu aparecimento, à história natural da doença, à eficácia de eventuais terapêuticas médicas ou cirúrgicas, às formas de transmissão e riscos de recorrência e à possibilidade de eventual diagnóstico pré-natal numa futura gravidez. Este conjunto de actividades define o chamado aconselhamento genético; e para que ele seja possível, torna-se indispensável uma avaliação clínica pormenorizada e a utilização de meios complementares de diagnóstico adequados.

O protocolo habitualmente utilizado no estudo e diagnóstico das anomalias congénitas não é diferente do habitualmente usado em Pediatria, mas envolve algumas particularidades relacionadas com a necessidade de construir um padrão dismorfológico que seja um fio condutor para o diagnóstico de uma entidade conhecida.

Assim, o protocolo deverá incluir:

  1. Anamnese pessoal e familiar com representação gráfica da árvore genealógica;
  2. Observação geral e dos parâmetros de desenvolvimento físico, psicomotor e sensorial;
  3. Descrição da dismorfologia facial;
  4. Descrição pormenorizada das anomalias presentes;
  5. Registo fotográfico da face e das anomalias relevantes.

O estudo clínico orientará para os exames complementares necessários a cada caso, salientando-se:

  1. Exame citogenético com eventual recurso a citogenética molecular;
  2. Exame radiológico e outros registos imagiológicos;
  3. Exames de natureza hematológica, bioquímica, enzimática ou outra;
  4. Estudo génico orientado pela hipótese diagnóstica proposta para cada caso.

Na observação de uma criança com AC reveste-se de particular importância a apreciação do seu aspecto geral (características faciais, forma do corpo, postura, movimento, linguagem e comportamento), de forma a identificá-la por meio de uma comparação subjectiva com outras cujo diagnóstico é conhecido. Esta impressão global ou Gestalt, que se apoia no facto de as várias impressões isoladas (visuais, auditivas e outras) estarem de tal forma organizadas que são percebidas como um todo e não como fenómenos dissociados, leva-nos a identificar uma pessoa conhecida quando a vemos sem necessidade de analisar as suas várias componentes.

A primeira tarefa do especialista em anomalias da forma do organismo ou dismorfologista é, pois, interpretar uma dada constelação de sinais observados no seu doente de forma a identificar uma síndroma, uma associação ou uma sequência. A parte mais difícil desta tarefa reside no facto de não haver, em geral, sinais patognomónicos, o espectro de anomalias poder ser restrito ou vasto dentro de uma mesma entidade, e várias doenças etiologicamente bem definidas partilharem anomalias comuns. A dismorfologia é uma ciência em evolução permanente.

A indispensável definição de critérios mínimos e de limites quanto a expressão fenotípica de uma determinada entidade nem sempre tem reunido o consenso dos dismorfologistas. A tudo isto acresce a contínua publicação de casos clínicos cuja interpretação também nem sempre é coincidente. Com algum sentido de humor, A Verloes apontava recentemente que os sindromalogistas se podem dividir: nos que separam entidades até aí bem definidas em vários subgrupos a que dão novos nomes (splitters); nos que reunem numa entidade única várias outras doenças até aí consideradas como independentes (lumpers); e nos que mudam certos conjuntos de anomalias de uma síndroma para outra (cutters and pasters).

Num futuro próximo e à medida que se forem identificando os genes responsáveis pela génese das AC estes problemas vão perder a sua importância.

Convém, contudo, não esquecer que, em termos de aconselhamento genético e de diagnóstico pré-natal, o reconhecimento clínico de uma entidade e o conhecimento da sua história natural terá sempre importância. Mutações diferentes no mesmo gene podem corresponder a situações clínicas de gravidade muito variável; e, se a variação intrafamiliar não é significativa, não é a presença de uma determinada mutação génica, mas sim o quadro clínico esperado, que poderá influenciar a decisão dos pais de optar por uma interrupção de gravidez.

No contexto da observação clínica, a apreciação das anomalias morfológicas faciais assume uma importância muito particular. Assim, em presença de uma criança dismórfica, o aspecto facial pode identificar uma determinada doença, reconhecer outra já vista anteriormente, mas não imediatamente identificável, ou simplesmente revelar uma situação completamente nova para nós. Nas situações difíceis, a comparação com outros casos publicados, o recurso a programas informatizados de diagnóstico diferencial com imagem, e a discussão clínica com outros colegas com experiência em dismorfologia, poderão ser de grande utilidade. Como noutras áreas da Medicina é preciso conhecer para diagnosticar.

Convém ter sempre presente que, se por um lado, um diagnóstico correcto tem todas as vantagens não só em termos de uma adequada intervenção terapêutica como na dispensa de exames desnecessários, por outro lado um diagnóstico errado, por falta de experiência ou precipitação, pode ter consequências muito graves. Rotular uma criança com um diagnóstico que não corresponde à sua situação invalida uma eventual intervenção terapêutica, multiplica múltiplas consultas e exames desnecessários e pode influenciar erradamente um casal quanto à sua vida reprodutiva. As consequências podem ser, pois, muito negativas.

Nunca é demais salientar um aspecto que nos parece muito importante e tem certamente forte repercussão no aconselhamento genético aos pais e na decisão quanto a futuras gravidezes. Trata-se do empenho que deve ser posto no esclarecimento etiológico de um feto ou de um recém-nascido com uma situação malformativa muito grave mesmo quando a morte pareça ser inevitável. O que parece ser inútil revela-se extremamente útil para o futuro.

O diagnóstico pré-natal, já abordado, noutro capítulo, tem tido nos últimos anos um grande desenvolvimento como método de prevenção secundária de anomalias congénitas. Mas, se por um lado as anomalias que estiveram na origem da interrupção médica de gravidez necessitam de ser comprovadas, por outro tem-se verificado um enorme interesse dos pais em saber as causas da morte fetal e o grau de risco para futuras gravidezes. Isto levou ao desenvolvimento de uma actividade multidisciplinar que é a embriofetopatologia clínica. Esta actividade, ponto de encontro de patologistas, dismorfologistas, geneticistas, perinatologistas e obstetras, no contexto dos Centros de Diagnóstico Pré-natal, tem protocolos próprios. Se em linhas gerais são semelhantes aos descritos no protocolo anterior, para a avaliação clínica dos nados-vivos, revestem-se, como é óbvio, de alguns aspectos particulares.

Assim, mantêm-se os 5 primeiros pontos, com excepção naturalmente do neurodesenvolvimento, bem como do ponto 7. No que respeita ao ponto 6, está provado que a tentativa de efectuar estudo citogenético após a morte tem taxas de sucesso baixas e muito dependentes das condições em que as colheitas são realizadas.

Daí que é da maior importância enquanto o feto está vivo, colher e armazenar produtos biológicos para estudos de biologia molecular, bioquímicos ou outros, que estão naturalmente comprometidos quando existe morte fetal, embora no caso da biologia molecular seja possível utilizar material fetal obtido em certas condições para armazenamento de ADN. Torna-se necessário, portanto, desenvolver protocolos de participação entre os especialistas acima referidos, de forma a tornar possível o diagnóstico da causa de morte fetal e o aconselhamento genético aos pais.

Registos Nacionais e Internacionais

Existem, actualmente, em muitos países registos da ocorrência e natureza das AC bem como das circunstâncias pessoais, familiares e ambientais do seu aparecimento. Estes registos têm como objectivo a determinação da prevalência nacional e regional das AC e a determinação das suas causas.

Em Portugal, além de alguns Registos regionais ou de Registos nacionais por patologias, habitualmente sediados em Serviços Hospitalares, existiu um Registo Nacional de AC da responsabilidade do Instituto Nacional de Saúde (Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas – Cerac), que teve o seu início em 1996.

Actualmente, também na dependência do INSA/Departamento de Epidemiologia, existe o chamado RENAC (Registo Nacional de Anomalias Congénitas) que, tal como o anterior CERAC, é um registo de base populacional que recebe notificações de várias origens, principalmente dos Serviços Hospitalares de Obstetrícia, Pediatria e especialidades pediátricas, mas também de outros Serviços como Anatomia Patológica e Genética Médica. Os seus objectivos consistem em determinar a prevalência das AC e a sua distribuição geográfica por residência das mães, observar as suas variações e tendências espaciais e temporais e estabelecer um sistema de vigilância epidemiológica.

São notificados todos os recém-nascidos vivos cujas anomalias sejam detectadas até ao final do período neonatal, as mortes fetais com anomalias e as interrupções de gravidez por patologia malformativa. São registadas as anomalias estruturais major, mas não as minor quando isoladas. (ver adiante)

Segundo o relatório do RENAC, abrangendo um período de 11 anos (2000-2010 a que correspondem 1.298.580 nados-vivos em Portugal), foram notificados 11.502 casos e diagnosticadas 17.502 AC. Em 72,6% dos RN observou-se uma AC isolada e, em 27,4%, AC múltiplas.

As AC cardiovasculares foram as mais prevalentes com 38,8 casos/10.000 nascimentos, seguindo-se-lhes as AC musculoesqueléticas (29,09 casos /10.000 nascimentos, e as do aparelho urinário (com 19,29/10.000 nascimentos). As AC de origem cromossómica surgiram com uma prevalência de 13,42/10.000 nascimentos.

Na Europa existem outros Registos de AC, nacionais ou regionais. O EUROCAT (European Registry of Congenital Anomalies and Twins) é um Projecto financiado pela Comissão Europeia, constituído por uma rede de vários Registos regionais europeus que trabalham com a mesma metodologia e publicam os seus dados em conjunto. Portugal colabora no Eurocat desde 1990 com a Região a sul do Tejo.

É ainda de assinalar a existência de um importante Registo com uma participação populacional muito mais alargada, a International Clearinghouse for Birth Defects Monitoring Systems, que reúne vários países da Europa, Ásia e Américas do Norte, Centro e Sul.

Prevenção

Num contexto global da prevenção cabe aos profissionais de saúde que trabalham na comunidade um papel muito importante. O seu conhecimento da patologia familiar, das condições ambientais porventura perigosas em que decorre a vida das famílias e o papel que desempenham nas consultas de planeamento familiar, tornam-nos interlocutores privilegiados no contexto das actividades que contribuem para a prevenção das anomalias congénitas.

Se, pelo conhecimento do contexto familiar, os mesmos podem identificar anomalias ou síndromas hereditárias e situações de risco durante a gravidez e providenciar o recurso a consultas especializadas, por outro lado podem ter um papel decisivo na prevenção primária de algumas situações frequentes, mas evitáveis.

Assim, as embriopatias ocasionadas pela diabetes materna e pela rubéola, a embriofetopatia alcoólica e os defeitos do tubo neural, são exemplos destas situações nas quais o controle adequado da diabetes materna, a vacinação anti-rubéola em tempo útil, o combate aos hábitos alcoólicos da mulher na idade reprodutiva e a administração de ácido fólico no período pré-concepcional, são medidas decisivas para diminuir a morbilidade e a mortalidade de algumas anomalias congénitas.

A prevenção de algumas anomalias congénitas é, pois, possível, mas seguramente exige um trabalho colectivo.

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(acesso em Junho, 2018)

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Unidade de Fetopatologia do Hospital de Egas Moniz toda a colaboração iconográfica do presente capítulo.

DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL

Definição e importância clínica

O conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) abrange um conjunto de técnicas de diagnóstico para avaliar a integridade estrutural ou genética de um embrião ou feto. Recorre a meios complementares de diagnóstico não invasivos como a ecografia e a ressonância magnética (RM), ou invasivos como a colheita de vilosidades coriónicas ou a amniocentese. É utilizado em caso de feto com patologia malformativa ou anomalia genética, mas também em caso de história familiar das mesmas. As intervenções de DPN necessitam do funcionamento harmonioso de uma equipa multidisciplinar que inclui, nomeadamente:

  • Obstetras com experiência em medicina fetal, técnicas de DPN e procedimentos para a realização de interrupção de gravidez;
  • Pediatras, nomeadamente neonatologistas, com conhecimento e experiência em doenças raras de etiologia genética, dismorfologia e anomalias congénitas;
  • Geneticistas com diferenciação em DPN, nomeadamente com experiência em anomalias do sistema nervoso central, doenças do esqueleto, metabólicas e outras com manifestações in utero;
  • Cirurgiões, cardiologistas pediátricos e especialistas de outras áreas clínicas, com experiência no diagnóstico e tratamento de doenças raras de fisiopatologia complexa;
  • Enfermeiros, técnicos do serviço social e psicólogos.

Esta equipa integra conhecimentos e experiência diversificados em termos científicos, e competências para prestar cuidados especializados ao feto desde a realização de técnicas de diagnóstico até intervenções complexas de medicina fetal em que o feto é cuidado na sua globalidade, isto é, como doente in utero.

Importa ainda realçar as implicações éticas e legais de uma tão grande diversidade de intervenções. De acordo com a legislação portuguesa, a interrupção de gravidez por doença grave ou malformação congénita detetada através de DPN pode ser realizada até às 24 semanas de gravidez, excluindo-se o caso de feto inviável, que por ser uma situação incompatível com a vida extrauterina poderá ser realizada em qualquer momento da gestação.

Os hospitais com Centros de Diagnóstico Pré-Natal (CDPN) são dotados de Comissão Técnica de Certificação de Interrupção de Gravidez (CTCIG), cuja constituição está consignada na Portaria n.º 741-A/2007 de 21 Junho Diário da República, 1.ª série—N.º 118. A CTCIG avalia o pedido da interrupção de gravidez realizado no seguimento da realização de exames de DPN e respetivo consentimento informado (em anexo), nomeadamente se a situação clínica cumpre os critérios enunciados anteriores, e elabora uma deliberação.

Portaria n.º741-A/2007 de 21 Junho Diário da República, 1.ª série—N.º 118

CAPÍTULO V

Interrupção da gravidez por grave doença ou malformação congénita do feto ou fetos inviáveis

Artigo 20.º

Comissões técnicas de certificação

1 – A certificação da situação prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal compete à comissão técnica, criada em cada estabelecimento de saúde oficial que realize interrupções da gravidez.

2 – Cada comissão técnica é composta por três ou cinco médicos como membros efectivos e dois suplentes, a nomear pelo conselho de administração do estabelecimento oficial de saúde pelo período de um ano, renovável.

3 – Da comissão técnica fazem parte, obrigatoriamente, um obstetra/ecografista, um neonatologista e, sempre que possível, um geneticista, sendo os restantes membros necessariamente possuidores de conhecimentos adequados para a avaliação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez.

4 – A comissão técnica pode, sempre que necessário, solicitar o parecer de outros técnicos ou peritos.

5 – A comissão técnica reúne:

  1. Mediante convocação do presidente, sempre que necessário;

  2. Obrigatória e imediatamente, após a recepção dos atestados, relatórios, pareceres médicos e documento normalizado de consentimento.

6 – A comissão técnica deve prestar os esclarecimentos pertinentes à mulher grávida ou seu representante legal.

7 – Ao funcionamento da comissão técnica aplica-se o disposto no Código do Procedimento Administrativo quanto aos órgãos colegiais.

Técnicas

Sistematizando, podem ser consideradas as seguintes modalidades de técnicas de DPN: não invasivas e invasivas.

Técnicas não invasivas

As técnicas não invasivas de DPN são aplicadas a um número alargado de situações, nomeadamente no caso de entidades clínicas em que ainda não foi possível identificar o gene causador de doença ou nos casos em que não seja possível determinar um diagnóstico clínico definitivo. Em tais circunstâncias podem ser utilizadas a ecografia em diversas modalidades, o ecocardiograma fetal, e ainda outras técnicas imagiológicas em função do contexto clínico e idade gestacional. Nos casos em que há alteração estrutural do sistema nervoso central, a RM crânio-encefálica (CE) fetal é de extrema relevância para a caracterização detalhada das anomalias estruturais detetadas, assim como a ecografia 3D para caracterização complementar das características morfológicas, nomeadamente, alterações craniofaciais.

Surgiram recentemente técnicas de análise de ADN fetal em sangue materno (NIPT) que, apesar de não serem considerados exames diagnósticos, são testes que apresentam elevadas sensibilidades e especificidades para a determinação de presença de trissomia 21, 18 e 13 no feto. Em contexto de investigação, estas técnicas de NIPT têm sido também desenvolvidas para a deteção de doenças monogénicas.

Técnicas invasivas

1 – Amniocentese

A amniocentese é a técnica de DPN invasivo efetuada há mais tempo, continuando a ser a mais amplamente utilizada. Realiza-se sob controlo ecográfico cerca das 14-16 semanas de gestação. A sua execução tem um risco de perda fetal estimado 0,5%, sendo inferior nos CDPN de maior diferenciação que realizam maior número de exames invasivos. Deve ser precedida por um exame ecográfico para confirmar o número e a viabilidade dos fetos, a localização da placenta e do cordão umbilical, assim como a quantidade de líquido amniótico. É de fácil realização, com inserção de uma agulha através da parede abdominal diretamente no saco amniótico, e aspiração de 20-30 ml de líquido amniótico. Após a amniocentese, deve verificar-se a presença de atividade cardíaca fetal, que idealmente deverá estar normal, e se existe sangramento da placenta, feto ou cordão umbilical. Caso não ocorra qualquer intercorrência, relativamente aos cuidados a ter após realização da técnica, apenas se aconselha à grávida que limite a realização de esforços importantes, natação ou banho de imersão nas 24 a 48 horas seguintes.

Nas gestações gemelares dizigóticas, dever-se-á proceder à injeção de um produto de contraste que permita identificar o saco amniótico que vai ser puncionado. A partir das células fetais presentes no líquido amniótico podem ser realizados inúmeros exames de citogenética, de genética molecular e de bioquímica genética, entre eles a determinação do cariótipo fetal, a análise cromossómica por array-CGH, a pesquisa de mutação genética familiar, o estudo molecular de um gene específico por sequenciação de Sanger ou um painel de genes por técnicas de sequenciação de nova geração. Tecnicamente é possível inclusivamente a sequenciação de todo o genoma do feto, embora atualmente em contexto clínico se realize apenas a sequenciação da porção codificante do mesmo (exoma) em situações pontuais.

2 – Colheita de vilosidades coriónicas

A colheita de vilosidades coriónicas pode ser realizada por via transcervical ou transabdominal cerca das 10-12 semanas de gestação. A colheita de material biológico implica a colocação de um cateter estéril em contacto com a placenta, sob controlo ecográfico, e a aspiração de 10-25 mg de vilosidades coriónicas. Trata-se duma técnica de DPN do primeiro trimestre de gestação, sendo as suas indicações, em termos genéricos, semelhantes às da amniocentese. Apesar de vários estudos realizados em vários países terem mostrado que o risco de perda fetal é semelhante ao da amniocentese, atualmente é ainda aplicada em número inferior na maioria dos países europeus.

3 – Cordocentese

A cordocentese ou colheita de sangue dos vasos do cordão umbilical fetal, realiza-se a partir das 18 semanas de gestação. Tem indicações muito precisas e exige que o especialista em medicina fetal tenha grande experiência nesta área. A sua principal indicação é a avaliação da presença de infeção fetal nomeadamente citomegalovírus ou parvovírus B19, e respetivo impacto na homeostase do feto. A cordocentese é também utilizada para terapêutica fetal, nomeadamente, para transfusão intravascular de produtos sanguíneos, e para a administração de medicamentos diretamente ao feto.

4 – Fetoscopia e biópsia de tecidos

A fetoscopia é uma técnica invasiva que permite a visualização do feto com recurso a equipamento de endoscopia com uma lente de focagem associada a bandas de fibras ópticas que transmitem luz para a cavidade amniótica. Para a colheita de tecidos fetais associa-se ao fetoscópio uma pinça de biópsia específica. A realização desta técnica tem caído em desuso pelo desenvolvimento da biologia molecular que permite realizar o DPN específico, sem necessidade de biópsias fetais. A fetoscopia está actualmente reservada para terapia fetal, nomeadamente no caso de transfusão feto-fetal.

Indicações

1 – Idade materna ≥35 anos

A idade materna igual ou superior a 35 anos, durante muitos anos a indicação mais frequente para realização de DPN invasivo, associa-se a risco elevado de anomalia cromossómica no feto por não disjunção dos cromossomas.

As anomalias cromossómicas mais frequentes associadas a idade materna avançada, são as trissomias 21, 18 e 13.

O desenvolvimento do rastreio combinado do 1º trimestre de gravidez, que integra para além da idade materna, marcadores ecográficos do feto, como translucência da nuca ou presença de osso nasal, e ainda marcadores bioquímicos como a gonadotrofina coriónica humana beta (β-hCG) e proteína A do plasma associada a gravidez (PAPP-A), possibilita atualmente o cálculo individualizado do risco do feto para as trissomias referidas, permitindo à grávida tomar a sua decisão relativamente à realização de exame diagnóstico invasivo confirmatório. A realização do rastreio ecográfico do 1º trimestre pressupõe a realização de aconselhamento genético, não diretivo, à grávida, formação especializada dos obstetras que realizam esta avaliação ecográfica, existência de condições de controlo de qualidade analítica, bem como uma comunicação adequada entre todos os intervenientes.

Para além do rastreio combinado do 1º trimestre surgiram recentemente estudos do ADN fetal em sangue materno, já referidos, que podem ser particularmente úteis nos casos em que a grávida apresente baixo risco de feto com trissomia e não pretenda estudo invasivo por risco de perda fetal, uma vez que a maioria destes testes apresentam sensibilidade superior ao rastreio combinado do 1º trimestre para determinação das trissomias 21, 18 e 13.

De salientar que tanto o rastreio combinado do 1º trimestre como os estudos não invasivos em sangue materno não são exames diagnósticos, sendo que neste momento a única análise que permite a determinação, com certeza, de presença ou não de trissomia no feto é através da determinação do cariótipo fetal.

No Quadro 1 apresenta-se a incidência de trissomia 21 em função da idade materna.

QUADRO 1 – Incidência de trissomia 21

Adaptado de Burton PR, 2006

Idade materna no parto Risco de trissomia 21 ao nascer
351/384
361/307
371/242
381/189
391/146
401/112
411/85
421/65
431/49

2 – Filho anterior com aneuploidia

Se um casal teve um filho com aneuploidia na forma livre, de novo, o risco empírico de recorrência é superior ao risco dada a idade cronológica. É estimado que caso o feto anterior apresente trissomia 21 o risco de recorrência desta cromossomopatia é de cerca de 0,5% (1 em 200) e de 1% para as restantes aneuploidias.

3 – Progenitor com translocação equilibrada

Nestes casos existe risco aumentado de translocação desequilibrada no feto. O risco de recorrência depende dos cromossomas envolvidos e da localização no cromossoma da anomalia estrutural. Um casal neste contexto poderá ter fetos com composição cromossómica normal, anomalia igual à do progenitor ou desequilibrada. Para além do estudo não invasivo ecográfico, existe sempre indicação para estudo invasivo, uma vez que a ecografia e a RM apenas detectam anomalias estruturais.

4 – Feto com anomalia fetal estrutural

Os fetos com diagnóstico de uma anomalia congénita major têm em 4% dos casos outras anomalias morfológicas. Deste modo, é necessário realizar sempre um estudo ecográfico detalhado, estando indicada técnica invasiva para determinação da constituição cromossómica, tanto através de realização de cariótipo fetal, para identificação de anomalias cromossómicas estruturais, como através de realização de array-CGH ao feto, se aplicável, para determinação de presença microdeleções/duplicações cromossómicas, como o exemplo da microdeleção do cromossoma 22q11.2 no caso de cardiopatia conotruncal.

Inúmeras variações do número de cópias (CNV) cromossómicas estão atualmente descritas como associadas a síndromes de anomalias congénitas múltiplas.

Pode ainda estar indicado o estudo molecular de uma mutação genética específica, como no caso de suspeita de acondroplasia por restrição do crescimento intra-uterino com encurtamento e encurvamento dos ossos longos, ou através de sequenciação de nova geração de painel de genes como no caso da síndrome de Noonan, suspeitada por exemplo quando na presença de aumento da translucência da nuca e cardiopatia com cariótipo fetal normal, ou no caso de displasia esquelética, cujo diagnóstico in utero é extremamente complexo pela sobreposição fenotípica, fenótipo incompleto e heterogeneidade génica.

Nos casos de patologia malformativa complexa em que não se consegue formalizar um diagnóstico clínico, ou cujos resultados dos estudos genéticos anteriores não revelem alterações patogénicas, pode ser ponderada a realização da sequenciação do exoma do feto através de técnicas de sequenciação de nova geração. Importa realçar a importância da multidisciplinaridade na abordagem do feto com anomalias congénitas múltiplas, havendo lugar a avaliação específica e respetivo parecer de especialidades como a neurologia pediátrica, a nefrologia pediátrica ou a cardiologia pediátrica, entre outras, consoante as manifestações clínicas, cabendo ao médico geneticista muitas vezes a integração dos diferentes dados e a escolha do teste genético adequado, após o respetivo aconselhamento genético ao casal.

5 – Doenças genéticas específicas

Após a caracterização molecular do caso índex através da identificação da mutação genética causadora de doença, é possível realizar o DPN específico para essa doença. Tal inclui doenças com transmissão mendeliana (dominante, recessiva, recessiva ligada ao cromossoma X ou outra) e mutações dinâmicas como a distrofia miotónica de Steinert. Habitualmente só se realiza diagnóstico invasivo nos casos de patologia grave, em que o casal pondere realização de interrupção de gravidez ou em que o diagnóstico genético altere a conduta médica em relação ao feto; estas condicionantes surgem tanto para evitar procedimentos médicos desnecessários como para proteger o direito do feto de “não saber” quando adulto, como no caso de doenças neurológicas de manifestação tardia.

Estudo do feto

Os fetos com anomalias congénitas que resultaram de interrupção médica de gravidez, devem ser estudados de forma apropriada após a expulsão, implicando avaliação prévia pelos especialistas de medicina fetal, de obstetrícia, de neonatologia e genética médica. Devem registar-se os dados essenciais do fenótipo, como dismorfia facial, anomalias de membros, caracteres sexuais, fossetas, disrupções do tegumento, avaliação de faneras ou outras anomalias congénitas (hábito externo), que são complementadas pelo exame necrópsico, vulgo autópsia, com avaliação externa da morfologia dos órgãos internos como coração, encéfalo, entre outros (hábito interno). O exame necrópsico deve ser sempre complementado com radiograma do esqueleto fetal e quando possível com RM fetal, nomeadamente RM-CE no caso de malformação do SNC, sempre com o objetivo primordial de se obter o diagnóstico etiológico genético.

Importa realizar sempre os seguintes procedimentos:

  • Descrição do hábito externo e das anomalias encontradas;
  • Registo por imagens fotográficas em vários planos, desde a perspectiva global ao registo detalhado de aspectos particulares que poderão ser úteis para o diagnóstico;
  • Realização de radiogramas em dois planos;
  • Colheita de sangue do cordão ou biópsia da pele para estudos genéticos, nomeadamente cariótipo, estudos metabólicos quando adequado com eventual imortalização de linha celular, estudos moleculares como array-CGH ou sequenciação de gene específico, quando aplicável, e ainda extração de ADN para conservação e estudos genéticos adicionais.

Diagnóstico genético pré-implantação

O diagnóstico genético pré-implantação (DGPI) permite realizar o diagnóstico genético de um embrião e transferir para o útero apenas embriões não afetados pela doença genética analisada. A utilização desta técnica de procriação medicamente assistida (PMA) pressupõe a determinação prévia da(s) mutação(ões) genética(s) causadora(s) de doenças hereditárias presentes no casal. Esta técnica de PMA inclui estimulação ovárica, punção folicular com aspiração ecoguiada de oócitos, colheita de espermograma e individualização de espermatozoides, fecundação através de injeção intracitoplasmática (ICSI), biópsia embrionária com recolha de 1 ou 2 células (blastómeros) 3º ou 5º dia após a fecundação, estudo genético específico e transferência ou criopreservação dos embriões sem doença. Os objectivos principais desta técnica, são o nascimento de um ser humano sem a alteração genética identificada anteriormente no caso índex ou histocompatível para doação de material biológico necessário à vida de outro ser humano.

Em Portugal continental esta técnica de reprodução medicamente assistida, no Sistema Nacional de Saúde, realiza-se apenas no Centro Hospitalar de São João no Porto.

Terapêutica fetal

O progresso científico e tecnológico permite já hoje a realização de intervenções sobre o feto durante a gestação, de carácter médico ou cirúrgico, com impacte na sobrevivência e na qualidade de vida do recém-nascido. Esta área corresponde, na verdade, à Medicina do Feto. Prevê-se que nalgumas das áreas venha a ocorrer um maior desenvolvimento nos próximos anos. Eis alguns exemplos:

1. Hidrocefalia

O procedimento de registo internacional designado por “Fetal Surgery Registry” encontrou uma sobrevivência de 83% após cirurgia de drenagem

da hidrocefalia fetal. Porém, em 18 dos 34 sobreviventes foram detectadas posteriormente alterações importantes no desenvolvimento psicomotor.

2. Hiperplasia congénita da suprarrenal

A administração de betametasona à grávida, o mais precocemente possível até se determinar o sexo fetal, pode impedir a virilização no sexo feminino.

3. Disritmias cardíacas

Estima-se que a incidência da taquicardia supraventricular seja entre 1/10.000 e 1/25.000 fetos. Quando diagnosticada, deverá ser abordada como uma emergência e tratada com digoxina, o que permite obter resultados geralmente favoráveis no bloqueio aurículo-ventricular completo cuja frequência é cerca de 1/20.000 recém-nascidos. Destes, cerca de metade tem alterações cardíacas estruturais. A terapêutica medicamentosa com terbutalina ou isoproterenol, permite um sucesso relativo e está indicada, apenas, quando não existem anomalias cardíacas estruturais associadas, ou hidropisia fetal.

4. Síndroma das válvulas da uretra posterior

Apresenta-se sob duas formas distintas: a) com obstrução unilateral ou ligeira obstrução bilateral e líquido amniótico normal; b) com oligoâmnio grave e rins displásicos. Os fetos com função renal não afectada são candidatos à realização de cirurgia in utero, com boas expectativas de sucesso terapêutico. Os fetos com sinais de displasia renal significativa não beneficiam da cirurgia fetal.

5. Anomalia adenomatosa quística congénita

A correcção intrauterina desta patologia poderá realizar-se através de toracocentese com colocação de derivação para o líquido amniótico, ou por cirurgia fetal, com histerotomia e remoção da massa pulmonar torácica. Até ao momento, o número de intervenções cirúrgicas realizadas é escasso, pelo que se torna necessário avaliar com ponderação os resultados favoráveis que foram publicados.

6. Hérnia diafragmática congénita

A hérnia diafragmática congénita é a principal causa de morte por falência respiratória, com hipertensão pulmonar devida a hipoplasia pulmonar em recém-nascidos. Nalgumas séries, a cirurgia in utero permitiu a sobrevivência de 70% a 80% dos fetos.

Legislação portuguesa

A legislação portuguesa mais relevante na área do diagnóstico pré-natal é a seguinte:

Despacho 5411/97, de 8 de Setembro

Define o âmbito e os princípios, a população em risco e os modelos de organização dos Centros de Diagnóstico Pré-Natal, e estabelece o modo de participação da Genética nesses Centros.

Despacho 10325/99, de 5 de Maio

Complementa o Despacho anterior e define o modelo de constituição dos Centros e os recursos de que deverá dispor.

Portaria 189/98, de 26 de Fevereiro

Estabelece a constituição das Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção de Gravidez e as respetivas competências.

Lei nº 16/2007, de 17 Abril

Sobre a interrupção da gravidez, nomeadamente por motivo de doença grave ou malformação congénita.

Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho

Actualiza a informação sobre a constituição das Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção de Gravidez e as respetivas competências. (ver atrás)

Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro

Sobre a informação genética pessoal e informação de saúde.

Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho; Diário da República, 1.a série—N.º 143

Regula a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida.

GLOSSÁRIO

Ácidos nucleicos > constituintes da célula viva (essencialmente do núcleo), que contêm uma base púrica, um açúcar e ácido fosfórico (sob a forma de éter). Existem 2 tipos: o ácido desoxirribonucleico (ADN) e o ácido ribonucleico (ARN).

ADN > ácido desoxirribonucleico que suporta a informação genética do indivíduo. Este material consiste numa dupla hélice, como uma escada em espiral, na qual: o corrimão é feito de moléculas alternadas de desoxirribose (um açúcar) e fosfato; e os degraus feitos de bases purínicas e pirimidínicas, mantidas juntas por pontes de hidrogénio. A “escada” é torcida em dupla hélice. As bases purínicas são a adenina (A) e a guanina (G); e as pirimídicas: a citosina (C) e a timina (T). As referidas pontes de hidrogénio ”garantem” o emparelhamento de A com T e de G com C. Quando o ADN se replica, os 2 filamentos separam-se e cada um, com a ajuda da enzima ADN polimerase, forma um novo filamento, dando origem a 2 novas hélices, idênticas na sequência de bases: G – C/A – T.

Alelo > um dos dois genes diferentes que ocupam posições correspondentes ou idênticas (locus) em cromossomas homólogos, que exercem a mesma função, mas determinam características diferentes.

ARNm (mensageiro) > o ácido nucleico que transporta do núcleo para o citoplasma a informação genética do ADN para ser traduzida (ver adiante o termo tradução) em proteína (cadeia polipeptídica).

Autossoma > qualquer cromossoma que não seja sexual. Bandeamento cromossómico (banding) > Processo técnico que permite observar um padrão determinado de bandas claras e escuras para cada cromossoma. Descrevem-se vários tipos: C,G,N,Q,R,T.

Carga genética (liability) > efeito cumulativo dos factores genéticos na ocorrência de uma doença.

Clone celular > conjunto de células geneticamente idênticas com origem, por divisão mitótica, numa única célula-mãe.

Clones de ADN > múltiplos fragmentos iguais, obtidos por meio de técnicas de recombinação do ADN.

Codão > sinónimo de Tripleto (ver adiante).

Codominância > situação em que há expressão individual dos dois alelos de um locus, num heterozigoto.

Congénito > qualquer característica ou doença que esteja presente, visível ou não, no nascimento.

Consanguinidade > quando um casal partilha ascendentes comuns.

Cromossoma > estrutura intracelular que contém o material hereditário do indivíduo. A capacidade de coloração deve-se à cromatina.

Deleção > tipo de aberração cromossómica em que há perda de parte de um cromossoma. A nível molecular significa a perda de um ou mais nucleótidos do ADN.

Dermatoglifos > padrões ou tipos de distribuição das pregas ou sulcos dos dedos e palmas ou plantas dos pés.

Diplóide > diz-se de uma célula que possui uma série dupla de cromossomas homólogos.

Enzima de restrição > grupo de enzimas de origem bacteriana que corta o ADN em sequências específicas.

Exão > segmento do gene que regula a sequência de aminoácidos duma proteína.

Expressividade > a intensidade com que se exprime um determinado fenótipo.

Fenocópia > fenótipo devido à acção de factores ambientais, mimetizando um carácter determinado geneticamente.

Fenótipo > características físicas de um indivíduo; representa a interacção entre o património genético do indivíduo e os factores ambientais.

FISH > “Fluorescent in situ hybridization”; é um método da genética laboratorial.

Fratria > conjunto de irmãos e irmãs descendentes de um casal.

Gene > unidade essencial do material hereditário (segmento de ADN) que codifica um produto que vai desempenhar uma função.

Gene candidato > gene que se considera estar associado a determinado carácter ou doença no decorrer de estudos moleculares, face à proteína que codifica ou às suas características conhecidas.

Genoma > conjunto de genes dos cromossomas. Mais pormenorizadamente: conjunto dos cromossomas de um gâmeta (célula sexual), cujo número é característico de cada espécie e que estão presentes em exemplares simples (ao contrário dos cromossomas das células somáticas que se apresentam aos pares, possuindo assim cada célula somática dois genomas). Na espécie humana, o genoma é formado por 23 cromossomas.

Genómica > estudo do genoma e da sua acção.

Genótipo > toda a informação genética contida no ADN do indivíduo, que inclui o ADN existente nos cromossomas, nas mitocôndrias e noutros organelos intracelulares.

Gonossoma > cromossoma sexual, o X ou o Y.

Haplóide > diz-se de células que possuem apenas um exemplar de cada um dos cromossomas próprios da espécie (23 na espécie humana). Os gâmetas são haplóides.

Haplótipo > sequência de locus com proximidade num cromossoma que tendem a ser herdados em conjunto.

Hemizigotia > presença de um único alelo no genoma, condição que se verifica, normalmente, para a grande maioria dos loci do cromossoma X, nos indivíduos do sexo masculino. Corresponde também a condições anormais (por ex. após deleção) em que, em vez de um genótipo diplóide, se encontra uma única cópia de um alelo.

Hereditabilidade > proporção da variância total de uma característica que é causada pelos genes.

Hereditariedade mitocondrial > hereditariedade que tem por base os genes localizados nas mitocôndrias e que são transmitidos exclusivamente por via materna.

Heterozigoto > ter uma forma alélica deferente de um gene, em locus homólogos; isto é, 2 genes diferentes, com a mesma localização em cromossomas homólogos.

Homozigoto > ter a mesma forma alélica nos dois locus homólogos; isto é, 2 genes idênticos com a mesma localização em cromossoma homólogos.

Imprinting > fenómeno pelo qual um dos genes do par de alelos de um locus tem expressão diferente do outro gene desse locus, em função do sexo do progenitor de que foi herdado (origem paterna ou materna). Assim, o contributo paterno ou materno para o genoma do zigoto (em termos funcionais) pode não ser equivalente, provavelmente devido a graus de metilação diferentes.

Intrão > segmento do gene que intervém na (ou concretiza) sequência de aminoácidos duma proteína.

Limiar > valor do efeito cumulativo dos factores genéticos, que permite a ocorrência de uma característica multifactorial.

Linkage > situação em que genes, localizados com grande proximidade, tendem a ser co-herdados.

Locus > a localização específica de um gene específico num cromossoma.

Microdeleção > perda de material cromossómico com uma extensão que não permite a sua visualização por microscopia de luz.

Monogénica (doença) > doença causada por mutações que surgem na sequência de ADN de um único gene.

Mutação > alteração espontânea que ocorre no material hereditário.

Mutação mtADN > mutação de gene mitocondrial.

Parentesco em 1.° grau > indivíduos que partilham 50% do património genético: pais, irmãos, filhos.

Parentesco em 2.° grau > indivíduos que partilham 25% do património genético: meios-irmãos, avós, tios, sobrinhos, netos.

PCR > técnica de biologia molecular que permite amplificar selectivamente sequências de ADN (Reacção da polimerase em cadeia ou Polymerase Chain Reaction).

Penetrância > expressão da frequência com que ocorre determinado fenótipo, quando um dos alelos tem uma mutação.

Polimorfismo > característica genética em que existe mais de uma forma comum na população.

Portador > indivíduo heterozigoto em que um dos alelos tem uma mutação de uma doença autossómica recessiva.

Proteonómica ou Proteómica > técnicas que estudam as proteínas produzidas pelo genoma e como interagem para determinar as funções biológicas.

Susceptibilidade genética > predisposição para a ocorrência de determinada doença pela presença de um alelo particular ou combinação de alelos.

Telómero > a extremidade natural de um cromossoma.

Tradução > processo pelo qual uma cadeia polipeptídica se origina a partir de um ARN.

Transcrição > processo pelo qual um gene se expressa num ARN mensageiro.

Transgene > gene que foi incorporado no genoma de outro organismo.

Translocação > deslocamento de um ou mais segmentos de cromossoma, quer num mesmo cromossoma, quer por troca recíproca dos segmentos destacados, entre dois cromossomas.

Triploidia > situação de um núcleo, de uma célula, ou de um organismo cujo complemento cromossómico inclui três genomas haplóides. A triploidia é uma das formas frequentes de poliploidia.

Tripleto > grupo de três bases púricas (ou purínicas) ou pirimídicas na molécula de ADN ou ARN, que condiciona a incorporação de (codifica para) um aminoácido específico na molécula de uma proteína. Sinónimo de codão.

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DOENÇAS MULTIFACTORIAIS

Conceitos básicos

Na maioria dos casos as doenças genéticas e as anomalias congénitas resultam da interacção entre factores genéticos, comportamentos e estilos de vida das pessoas, e factores ambientais. As doenças genéticas com estas características são denominadas multifactoriais ou poligénicas.

Neste contexto, surgiu uma nova área do conhecimento – a Epigenética – traduzindo a interface entre a genética e os factores ambientais. Com base em dados experimentais, determinados genes (epialelos) sensíveis a influências ambientais (por ex. dieta), sofrem alterações moleculares (por ex. metilação do ADN sem alterar a respectiva sequência nucleotídica) (ver adiante).

Ao contrário das doenças mendelianas, que são doenças raras, as doenças multifactoriais são em geral frequentes, mais evidentes com a idade e encontram-se em quase todos os doentes. Estas últimas, integrando patologias cuja etiologia tem uma componente genética com interacção com factores ambientais e comportamentos, manifestam-se pela agregação familar de casos ou pela evolução clínica com características similares à de outros familiares.

Alguns genes não causam a doença por si só, mas influenciam, com outros genes a predisposição genética ou susceptibilidade individual, que contribui para causar ou manifestar clinicamente a doença. Os factores etiológicos das doenças multifactoriais, de causa genética ou ambiental, designam-se por carga genética (liability). O modelo multifactorial pressupõe que esta “carga” tem uma distribuição normal na população, que é responsável por uma grande variabilidade dos fenótipos.

É maior nos familiares dos indivíduos afectados, o que vai aumentar o risco de recorrência de acordo com a proximidade familiar.

Outro pressuposto deste modelo é o de limiar (threshold), ou seja, a doença manifesta-se quando é ultrapassado um determinado gradiente, e o fenótipo tem uma expressão clínica tanto mais grave em termos clínicos, quanto mais esse limiar for superado. Quando a carga genética não ultrapassa o limiar, a doença não se expressa em termos clínicos.

O sexo do indivíduo, a proximidade de parentesco e a existência de vários casos na família, são algumas das variáveis que influenciam o limiar, o que pode aumentar ou diminuir o risco de manifestação da doença.

A contribuição dos factores genéticos para as doenças multifactoriais resulta do efeito combinado de genes múltiplos, em locus diferentes. A contribuição individual de cada gene para a predisposição poderá ser muito reduzida. Designa-se por hereditabilidade (hereditability) a proporção da variação fenotípica que pode ser atribuída aos factores genéticos, e é determinada por estudos populacionais ou em indivíduos com características particulares como gémeos ou adoptados. A hereditabilidade varia entre 1, quando a variação depende exclusivamente da acção dos genes, e 0 se depende apenas de factores ambientais. No pé boto estima-se ser 0,8, na estatura de 0,8 e na inteligência entre 0,5 a 0,8.

O estudo com gémeos monozigóticos e dizigóticos que partilham a totalidade ou metade do material genético tem grande utilidade. A concordância ou não da doença em vários contextos, como a separação ao nascer, que não pode ser explicada por transmissão mendeliana, permite obter indicações relevantes sobre a contribuição genética para doenças ou características contínuas, de que são exemplos a altura ou a inteligência. Os estudos com indivíduos adoptados permitem igualmente obter dados importantes, em condições metodológicas rigorosas.

A componente genética que resulta da interacção de genes não se traduz por critérios compatíveis com a transmissão mendeliana, e não tem manifestação cromossómica. Têm sido identificados em doenças multifactoriais alguns genes, como é o caso do cancro, mas não explicam apenas por si a etiologia da doença. O conceito de oligogenia refere-se às situações em que um locus tem um efeito predominante no fenótipo, ainda que necessite da colaboração de outros genes para que a doença se expresse.

Os factores ambientais implicados na origem destas doenças são variados, o que decorre de os indíviduos viverem numa interacção permanente com outros indivíduos e com o ambiente físico envolvente e terem comportamentos, atitudes e crenças que influenciam a saúde e a doença. Aspectos como o comportamento alimentar, o sedentarismo ou a prática regular de exercício físico, os valores e a vivência espiritual, a capacidade de interagir socialmente, têm sido referidos como variáveis relevantes para a etiologia e a evolução clínica de algumas destas doenças.

Reportando-nos ao conceito atrás citado – Epigenética – traduzindo a interface entre a genética e os factores ambientais e, portanto, a sensibilidade de determinados genes (epialelos) a influências ambientais, os referidos genes poderão (“funcionar ou não”, isto é, estar “on ou off ”), o que se repercute na função de órgãos e tecidos do organismo. Isto é, os factores ambientais podem influenciar a expressão do ADN sem alterar a respectiva sequência dos nucleótidos (fala-se hoje em “plasticidade” do ADN).

Em síntese, poderemos considerar que as principais características do modelo multifactorial para explicar a etiologia das doenças complexas embora frequentes, com contribuição de factores genéticos para a etiologia, são as seguintes:

  • Todos os genes têm um efeito no fenótipo, com importância variável;
  • O efeito dos genes é aditivo ou sinérgico;
  • Os genes individualmente não exprimem dominância ou recessividade;
  • O efeito da “carga genética” exprime-se a partir de um limiar;
  • A variação dos fenótipos tem uma distribuição normal.

Epidemiologia

Não existe uma definição consensual sobre “doença comum” embora, de acordo com Harper em 2004, possa corresponder às patologias com expressão clínica cuja frequência seja superior a 1 em cada 1.000. Porém, Portugal adoptou o critério para definir doença rara utilizado pela União Europeia de 1 em cada 2.000, o que poderá ser tido em conta por exclusão. Ao nascer, cerca de 70% das doenças genéticas têm uma etiologia multifactorial, em comparação com 2,4% para as doenças mendelianas e 0,4% para as cromossómicas. De acordo com Baird et al, no Canadá, a frequência destas patologias é de 46,4 por 1.000 indivíduos com idade inferior a 25 anos.

Relativamente às anomalias congénitas, estima-se que sejam responsáveis, pelo menos, por 50% dos casos. Nalgumas doenças multifactoriais a incidência varia de acordo com o género, como é o caso da estenose do piloro, que é 5 vezes mais frequente no sexo masculino. As anomalias do tubo neural, pelo contrário, são mais frequentes no sexo feminino. Na doença arterial coronária, sabe-se que é mais frequente nos homens, e ao considerar a origem étnica, mais frequente em indivíduos com origem africana do que em caucasianos ou asiáticos.

Com recurso a tecnologias recentes como os estudos GWAS (genome-wide association studies), foi avaliada a influência do sexo na frequência de doenças comuns como a hipertensão arterial, a diabetes tipos I e II e a artrite reumatóide, entre outras.

Foram encontradas associações específicas entre doença arterial coronária e o género masculino, e entre doença de Crohn e o feminino. Estas tecnologias inovadoras poderão trazer novos contributos ao conhecimento das doenças multifactoriais. Relativamente a algumas doenças que foram inicialmente consideradas multifactoriais, comprovou-se mais tarde terem outra etiologia. É o caso da úlcera péptica antes da descoberta de um agente infeccioso, o Helicobacter pylori, que se associa à etiologia desta doença.

Nem sempre é possível distinguir entre o que é genético ou herdado pelo facto de os indivíduos partilharem condições de vida, cultura e valores, e estarem incorporados na vida quotidiana das comunidades. Um exemplo clássico é o Kuru, uma variante da doença de Creutzfeldt-Jakob identificada em nativos da Nova Guiné, cuja etiologia não foi compreendida inicialmente; mais tarde foi relacionda com canibalismo ritual, o que explicava a distribuição e as características dos indivíduos afectados.

Predisposição

A associação entre a doença e factores genéticos pode manifestar-se em diferentes contextos e tem suscitado um redobrado interesse. Uma das formas mais bem conhecidas e mais estudadas é a associação entre algumas doenças com componente imunológico e os antigénios HLA, cujo locus se encontra no cromossoma 6. Entre outros exemplos, destacam-se as associações entre o HLA B27 e a espondilite anquilosante, o DR4 e a artrite reumatoide e o DR2 na narcolepsia.

Ainda não são conhecidos os mecanismos implicados na associação, mas deve ter-se em conta que a simples presença do marcador HLA não significa que o indivíduo venha a manifestar a doença.

Nos últimos anos, na sequência do Projecto do Genoma Humano e das tecnologias de estudo molecular que foram desenvolvidas, foram identificadas diversas associações entre genes e marcadores para doenças comuns. Muitos destes trabalhos não foram posteriormente confirmados por outros autores em populações diversas, o que releva questões de ordem metodológica, incluindo o tipo de estudos, a definição de caso ou a homogeneidade dos fenótipos. Novas tecnologias como a GWAS e instrumentos bioestatísticos complexos, têm permitido reapreciar os resultados de estudos anteriores e reavaliar o interesse científico de algumas conclusões.

Uma patologia muito estudada é a doença de Alzheimer, doença muito complexa cuja natureza genética não está totalmente esclarecida. Os casos com manifestação precoce correspondem a mutações dominantes, mas a sua frequência é rara, enquanto os casos com manifestação tardia poderão explicar-se pela presença de variantes genéticas com uma frequência elevada, mas com baixa penetrância.

Num estudo de meta-análise foram identificados 20 polimorfismos em 13 genes relacionados com esta patologia, com um OR para o risco entre 1,1 e 1,38, e com um efeito protector entre 0,92 e 0,67 (Beltram et al), o que sugere não terem utilidade clínica. As toxidependências, incluindo a estupefacientes e álcool, são patologias complexas de outra natureza, mas cada vez é mais evidente o contributo de factores genéticos para a sua etiologia.

Vários estudos mostram a associação de variantes genéticas com significado estatístico. A influência da variação genética na adição poderá verificar-se a vários níveis do processo comportamental, das vias metabólicas e da biodistribuição dos produtos.

No caso do cancro da mama, a predisposição tem características diferentes, com a identificação de dois genes o BRCA1 e BRCA2. O risco relativo de cancro da mama nas mulheres com mutações no BRCA1 é superior ao das que as têm no BRCA2, mas em ambos, é maior do que se não forem identificadas mutações. O risco para cancro da mama numa mulher ao longo do seu ciclo de vida, se tiver uma mutação nestes genes, é de 50 a 80%, 5 a 8 vezes superior em relação às restantes mulheres. Em 40% das mulheres com mutação no BRCA1 e 20% no BRCA2 é diagnosticado cancro do ovário, o que constitui um risco significativo face ao da população em geral.

Mas encontra-se uma mutação nestes genes em apenas metade dos casos familiares. Estão identificados outros genes de predisposição para o cancro da mama, mas raramente são identificadas mutações. Estes dados contribuem para o entendimento de que existem diferentes mecanismos envolvidos na etiologia desta forma de cancro, envolvendo factores genéticos e ambientais.

Outra área de investigação tem a ver com a circunstância de a predisposição poder ter implicações para os trabalhadores expostos a situações de risco no local de trabalho. Alguns estudos indiciam correlações entre polimorfismos e o risco profissional, mas ainda se torna necessário mais investigação para se obter prova científica. O interesse desta linha de investigação é interessante na perspectiva da segurança dos postos de trabalho.

Em termos moleculares, a predisposição é complexa e ainda muito mal compreendida pela interferência de inúmeros processos que se interligam. Alguns modelos computacionais com aplicações gráficas avançadas apontam para provável predisposição, mas actualmente ainda sem conduzirem a um esclarecimento cabal. Com efeito, a predisposição não pode ser explicada por simples mutação ou polimorfismo dos genes, havendo que contar com factores biológicos como o número de cópias (copy number variation – CNV), variações epistáticas (epistatic interactions), efeitos modificadores e epigenéticos e outras interacções mal conhecidas com o ambiente.

Risco

Nas doenças multifactoriais, o risco empírico representa a probabilidade de ocorrer uma doença genética particular na população. Esse risco obtém-se, em grande parte, a partir dos resultados encontrados em estudos epidemiológicos de base populacional em condições quase naturais.

O risco empírico tem grande importância para o aconselhamento genético e reprodutivo, por exemplo, quando um casal já tem um filho afectado ou um dos progenitores é portador de uma doença genética.

O risco empírico da ocorrência de uma doença multifactorial depende de vários factores, nomeadamente:

  • Frequência da doença na população;
  • Grau de parentesco com a pessoa afectada (maior risco nos parentes em primeiro grau);
  • Número de familiares afectados;
  • Gravidade clínica do caso índex;
  • Sexo da pessoa afectada.

Os resultados de estudos efectuados em populações e em períodos temporais diferentes mostraram variações na estimativa do risco, o que deve ser tomado em consideração pelo médico. Para além das diferenças genéticas eventualmente existentes entre populações, questões metodológicas como a “definição de caso”, a nomenclatura e a classificação das doenças ao longo do tempo devem ser ponderadas.

Alguns exemplos práticos da utilização do risco empírico de recorrência no aconselhamento genético em situações comuns, são:

  • Lábio leporino e fenda palatina: risco global de 4% numa futura gestação se o casal tiver um filho afectado e de 10% se tiver dois afectados, na condição de nenhum dos progenitores ter doença; risco de 2,2% para a primeira gestação se um dos progenitores tiver a doença;
  • Comunicação interventricular: 3,5% se o casal tiver um filho afectado e os pais forem saudáveis; 3-5% se um dos progenitores tiver a cardiopatia;
  • Luxação congénita da anca: risco global de 6%, mas variando entre 1% para o sexo masculino e 11% para o feminino; se um dos progenitores for afectado, o risco de recorrência é 12%.

Prevenção

Quando são conhecidos os factores ambientais associados com a etiologia de uma doença genética, a estratégia de prevenção passa pelo afastamento de factores nefastos, pela suplementação, ou pela modificação dos comportamentos e estilos de vida. Um exemplo que demonstra a possibilidade de se intervir na prevenção das doenças multifactoriais corresponde à descoberta da relação entre o ácido fólico e as anomalias do tubo neural. Nas famílias de risco, a suplementação com ácido fólico no período pré-concepcional e pré-natal reduziu a incidência destas anomalias de forma significativa.

Actualmente, a suplementação em ácido fólico no período pré concepcional e pré-natal faz parte das recomendações de vigilância de saúde durante a gravidez para todas as grávidas em Portugal, existindo campanhas a nível internacional para que seja possível generalizar a suplementação de todas as mulheres.

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ANOMALIAS CROMOSSÓMICAS

Introdução

O número de cromossomas e a sua morfologia são característicos de cada espécie, podendo variar desde um cromossoma único, como ocorre em vírus e bactérias, até centenas nalgumas plantas ou animais. O estudo das características dos cromossomas e das suas anomalias constitui o objectivo da citogenética.

Recorda-se que a espécie humana tem um número diplóide de cromossomas constituído por 46 cromossomas agrupados em 23 pares. Os cromossomas dividem-se em autossomas (22 pares de cromossomas homólogos numerados de 1 a 22 por ordem decrescente de comprimento – conquanto o 22 seja maior do que o 21 – ) e heterocromossomas ou cromossomas sexuais, 1 par (cromossomas X e Y : XX no sexo feminino, e XY no sexo masculino). Os cromossomas X e Y são bastante diferentes no que respeita à sua extensão e aos genes que possuem. Na sequência do que foi referido em anterior capítulo, a indicação do número de cromossomas, dos cromossomas sexuais, é designada por cariótipoO número total de cromossomas seguido de vírgula é a primeira indicação do cariótipo. O complemento cromossómico sexual é indicado de seguida. Exemplificando com situação de normalidade: 46, XY – no sexo masculino; 46, XX – no sexo feminino.

Uma constrição do cromossoma constituída por cromatina – o centrómero – divide-o em duas porções: o braço longo (designado por <> queue) e o braço curto (designado por <> petit). A anteceder a letra que simboliza o braço indica-se o número do cromossoma (por exemplo, 1q para designar o braço longo do cromossoma 1. As extremidades dos cromossomas designam-se telómeros.

De acordo com a posição do centrómero, os cromossomas podem ser classificados do seguinte modo: -metacêntricos quando o centrómero está aproximadamente no meio do cromossoma (cromossomas 1, 3, 16, 19 e 20); -submetacêntricos quando o centrómero se localiza entre o meio do cromossoma e uma das extremidades (cromossomas 2, 4-12, 17, 18 e X); -acrocêntricos se o centrómero se localiza perto da extremidade de modo que um dos braços é muito curto (cromossomas 13-15, 21, 22, e Y). Recorrendo aos parâmetros tamanho, posição do centrómero e presença ou ausência de satélites, é possível distribuir os cromossomas em sete grupos designados pelas primeiras sete letras do alfabeto, de A a G. Uma Comissão Permanente de Nomenclatura em Citogenética actualiza regularmente a terminologia e publica um relatório designado por ISCN/International System for Human Cytogenetic Nomenclature. (ver capítulo sobre Genética: importância do laboratório).

Em 1959 foi demonstrado pela primeira vez uma aplicação médica do estudo dos cromossomas: Jérome Lejeune e colaboradores descobriram a presença de um cromossoma extra nas crianças com síndroma de Down. A partir de então, foram reconhecidas outras síndromas causadas por anomalias cromossómicas.

Actualmente, estima-se que as anomalias cromossómicas sejam responsáveis por cerca de 70% dos abortos espontâneos precoces (antes das 7 semanas de gestação) e por 50 a 60% dos que ocorrem durante o primeiro trimestre da gestação. Estima-se, ainda, que se aproxime de 0,8% (~1/150) o número de recém-nascidos que apresentam uma anomalia desta natureza.

Os indivíduos com anomalia cromossómica têm, em geral, um fenótipo característico e frequentemente apresentam semelhanças com outros com a mesma anomalia; porém têm traços familiares dos seus irmãos e progenitores com quem partilham o material genético.

As características fenotípicas resultam maioritariamente do desequilíbrio genético, ou seja, da sobre ou sub expressão de genes, o que perturba o curso natural do desenvolvimento embrionário. De referir, a propósito, que a perda de material genético origina, geralmente, efeitos mais graves no desenvolvimento do afectado do que o ganho de material genético.

Em todas as cromossomopatias caracterizadas por desequilíbrio genético estão presentes dismorfias, anomalias congénitas, atraso do desenvolvimento psicomotor ou défice cognitivo de grau variável.

Nos casos de rearranjos estruturais equilibrados, ou seja, de situações em que a totalidade do material genético está presente e, por conseguinte, não existe sobre ou sub expressão de genes, em regra os cromossomas, embora estruturalmente anómalos, poderão associar-se muitas vezes (nem sempre), a fenótipos normais.

Classificação das anomalias cromossómicas

As anomalias cromossómicas podem ser numéricas ou estruturais e afectar um ou mais cromossomas, sejam autossomas, heterossomas, ou ambos. Uma determinada anomalia pode estar presente em todas as células do indivíduo designando-se anomalia cromossómica constitucional, ou representar apenas uma linha celular, dando origem a casos de mosaicismo (caso designado mosaico).

As anomalias cromossómicas constitucionais devem-se a erros meióticos durante a divisão celular que precede a formação dos gâmetas (erro pré-zigótico). Os casos de mosaicismo originam-se de erros mitóticos numa fase precoce da divisão do zigoto (erro pós-zigótico), e a proporção de células normais e anómalas varia, habitualmente de tecido para tecido. Uma outra entidade, mas de ocorrência muito rara, são os casos em que um indivíduo tem células provenientes de dois zigotos diferentes, o que se designa por quimera.

1. Anomalias numéricas

O total de cromossomas de um gâmeta (n=23) designa-se por haplóide, o dobro do número haplóide por euplóide, ou seja com 46 cromossomas.

Os múltiplos de n superiores a 2n, designam-se poliplóides: um cariótipo com 3n designa-se triplóide e, com 4n, tetraplóide. As triploidias são conhecidas no homem, embora poucos indivíduos com esta anomalia tenham nascido vivos. As tetraploidias foram encontradas apenas em abortos precoces.

A poliploidia ocorre por mecanismos ainda mal esclarecidos.

Uma variação numérica de apenas um cromossoma que afecte apenas um par de cromossomas denomina-se trissomia (2n+1) ou monossomia (2n-1).

Qualquer número de cromossomas num cariótipo que não seja um múltiplo exacto do número haplóide designa-se por aneuplóide. Estas podem ocorrer nos autossomas ou nos heterossomas.

As aneuploidias surgem maioritariamente por erros meióticos pré-zigóticos, concretamente por uma não disjunção cromossómica, na primeira ou na segunda divisão meiótica, dando origem a gâmetas numericamente anómalos e consequentemente, após a fecundação, a zigotos aneuplóides. Estes erros meióticos dão-se maioritariamente durante a meiose materna e estão muitas vezes associados a um aumento da idade materna.

Praticamente todas as trissomias completas e virtualmente todas as monossomias completas de autossomas têm um efeito tão nefasto no desenvolvimento embrionário que terminam em aborto. Numa minoria dos casos, as trissomias de autossomas não são necessariamente letais in utero (cromossomas 13, 18 e 21).

As aneuploidias são, por definição, alterações cromossómicas desequilibradas com sobre ou sub expressão de material genético, pelo que estão sempre associadas a um fenótipo clínico.

De salientar que, numa população, a frequência de anomalias clínicas devidas a alterações estruturais dos cromossomas é menor do que a frequência de anomalias devidas a alterações numéricas.

2. Anomalias estruturais

As anomalias estruturais (deleções, cromossoma em anel, duplicações, isocromossoma, inversões, translocações, inserções) resultam de uma quebra ou quebras num cromossoma e subsequente rearranjo diferente. As quebras cromossómicas podem ocorrer a nível do centrómero ou dos braços do cromossoma.

A identificação das alterações estruturais beneficiou com o recurso a estudos citogenéticos com bandeamento, em particular com o bandeamento de alta resolução.

Os rearranjos podem ser equilibrados e não-equilibrados. Nos equilibrados, não há perda ou ganho de material cromossómico em quantidade e qualidade que se reflicta em consequências patológicas; nos não-equilibrados há uma quantidade de material cromossómico anormal a que se associa, habitualmente, um fenótipo anormal.

Para que ocorra uma alteração estrutural de um cromossoma é necessário que haja pelo menos uma quebra cromossómica. As quebras dos cromossomas podem ocorrer espontaneamente ou resultar da acção de agentes químicos ou físicos, como a radiação imunizante. Normalmente, as quebras cromossómicas são reparadas por enzimas que estabelecem a continuidade do DNA. Contudo, quando a quantidade de quebras é muito grande, por exposição anómala a agressores do genoma (por exemplo as radiações), ou quando o indivíduo tem capacidade deficiente de reparação do DNA, poderá não ocorrer a restituição completa da sequência cromossómica. Nestas condições podem perder-se fragmentos cromossómicos (delecção- ver adiante), ou haver um rearranjo intra- ou intercromossómico.

Em face da relativa baixa resolução das técnicas citogenéticas a este nível, será talvez preferível utilizar o termo “aparentemente equilibrado”, já que muitas vezes, ao nível molecular e com técnicas de maior resolução, se verifica existirem desequilíbrios submicroscópicos. Acresce que indivíduos com rearranjos aparentemente equilibrados de novo associam-se a um maior número de anomalias congénitas e atraso do neurodesenvolvimento por razões que só agora começam a ser modestamente compreendidas, tais como: os efeitos de dosagem resultantes de desequilíbrios de muito pequenas dimensões, efeito de lesão directa devido à disrupção de genes no ponto de quebra, efeito resultante da incongruência da origem parental do segmento cromossómico (imprinting genómico) e efeitos de posição, onde um gene num ambiente cromossómico novo se torne disfuncional.

2.1 A delecção consiste na perda de uma região do cromossoma, o que, tal como foi referido anteriormente, resulta num desequilíbrio genómico muitas vezes patogénico por sub-expressão dos genes presentes na região que sofreu delecção. Como se poderá compreender, uma delecção resulta de um ou mais pontos de quebra cromossómicos, pelo que desses pontos de quebra resultarão dois ou mais fragmentos. O fragmento acêntrico (que não integra o centrómero) será o fragmento que se perderá na divisão celular seguinte. Desta forma, uma delecção pode ser terminal se ocorrer apenas um ponto de quebra, ou intersticial se existirem dois pontos de quebra.
As deleções terminais subteloméricas resultantes de um ponto de quebra junto aos telómeros (região terminal do cromossoma) associam-se a várias síndromas que cursam com défice cognitivo, como por exemplo a síndroma do cri-du-chat caracterizada tipicamente por choro semelhante ao “miar do gato”, para além doutra sintomatologia como atraso grave no neurodesenvolvimento, microcefalia, alterações faciais e cardiopatia. Esta síndroma, caracterizada por uma delecção terminal do braço curto do cromossoma 5 – 46,XY, del (5p), corresponde à primeira anomalia estrutural não equilibrada a ser descrita.
O cromossoma em anel é um rearranjo cromossómico que resulta de uma delecção terminal de ambas as extremidades do cromossoma e posterior união das extremidades, dando ao cromossoma uma conformação citogenética característica, em anel.

2.2 A duplicação consiste na existência de duas cópias de um segmento de um cromossoma. Se a estas duas cópias se adicionar a cópia do outro cromossoma homólogo verifica-se que uma duplicação origina uma trissomia parcial.
O efeito fenotípico da duplicação depende do material cromossómico envolvido no que se refere ao número de genes e ao número de cópias. As duplicações parciais têm consequências menos graves do que as deleções parciais.
Geralmente, a identificação de genes causadores de doença a partir de duplicações é mais difícil do que em casos de deleções, uma vez que as trissomias parciais, tipicamente, apresentam consequências fenotípicas menos evidentes do que as monossomias parciais . Por vezes, duplicações em determinados loci manifestam-se com o fenótipo “oposto” ao observado na delecção da mesma região. De salientar que as duplicações não dão origem a manifestações clínicas, pelo que todas as situações de duplicação devem ser interpretadas de forma muito cautelosa.

2.3 A inversão é um rearranjo estrutural intracromossómico relativamente frequente, com uma frequência estimada de 1/1.000 indivíduos. Pode ser encontrada como neo-mutação ou ser herdada ao longo de diversas gerações duma família.
Nesta alteração estrutural não há perda nem ganho de material cromossómico. Ocorre quando se produzem duas quebras num cromossoma seguidas de translação/ “passagem para cima ou para baixo” de 180º do fragmento cromossómico delimitado pelas quebras; por consequência, altera-se a ordem dos genes no cromossoma (ou das bandas, quando citogeneticamentre detectáveis).
As inversões podem ser paracêntricas ou pericêntricas, sendo estas últimas mais frequentes.
Nas inversões paracêntricas, as duas quebras ocorrem num mesmo braço do cromossoma. Assim, o rearranjo cromossómico não implica alteração da posição do centrómero, nem da morfologia do cromossoma, embora se altere a sequência das bandas no segmento invertido.
Nas inversões pericêntricas há uma quebra em cada braço de um cromossoma, ficando o centrómero incluído no fragmento sujeito a inversão. Assim, é habitual observar-se uma alteração morfológica bem aparente, inclusive da posição do centrómero.

2.4 A translocação constitui uma das alterações cromossómicas mais frequentes na espécie humana. Consiste na troca ou recombinação de partes de cromossomas não homólogos. Em geral, não se verifica perda de material cromossómico ou a perda de material cromossómico não afecta o fenótipo do indivíduo portador de uma forma equilibrada de translocação.
Classicamente descrevem-se três tipos de translocação: recíproca, robertsoniana e insercional ou de inserção.
Na translocação recíproca, a mais comum (frequência ~1/500 indivíduos), verifica-se a troca de dois fragmentos cromossómicos localizados em posição distal em relação a quebra ocorrida nos braços de dois cromossomas não homólogos. Qualquer cromossoma pode estar envolvido, bem como qualquer dos braços de dois cromossomas não homólogos.
Para as translocações recíprocas compatíveis com produtos de concepção viáveis, o risco de recorrência raramente é superior a 20-30%. Quando as alterações são extensas, o risco de recorrência é mais baixo devido à morte daqueles.
Os portadores de translocação recíproca podem estar em risco de ter descendência com anomalias físicas e intelectuais.
A translocação robertsoniana está entre os rearranjos cromossómicos mais comuns na população geral, com uma frequência variando entre 1/500 e 1/1.000 indivíduos.
Ocorrendo entre cromossomas acrocêntricos (13, 14, 15, 21, 22), seja entre os diversos ou entre homólogos, de salientar que a quebra se verifica no centrómero ou próxima deste nas sequências repetitivas do braço curto. Os fragmentos acêntricos correspondentes aos braços curtos perdem-se em subsequentes divisões celulares e os braços longos dos dois cromossomas fundem-se pelos topos originados pela quebra e originam uma nova forma de cromossoma.
O portador de uma translocação equilibrada tem um fenótipo normal dado que nos braços curtos apenas se localizam heterocromatina constitutiva e genes ribossomais cuja falta não se faz sentir porque os outros acrocêntricos também possuem este tipo de genes.
Nos indivíduos com translocação robertsoniana equilibrada entre cromossomas acrocêntricos homólogos (por exemplo 21;21 ou 13;13) todos os gâmetas produzidos são anormais, tendo como critério as características dos respectivos cromossomas.
A translocação insercional, ou simplesmente, inserção, na sua forma simples, requer três pontos de quebra. Os primeiros dois libertam um segmento intersticial de um cromossoma, que é depois inserido no espaço criado pelo terceiro ponto de quebra.
Na inserção simples intercromossómica, um segmento de um cromossoma é intercalado noutro cromossoma diferente.
Na inserção intracromossómica o segmento é intercalado numa parte diferente do mesmo cromossoma.
A inserção equilibrada, outra forma de translocação insercional, não se associa habitualmente a manifestações clínicas; contudo, tal como os restantes rearranjos cromossómicos que envolvem pontos de quebra já discutidos, pode associar-se a determinados fenótipos com risco elevado, da ordem de 50%, de a descendência ter anomalias.

2.5 No isocromossoma clássico, o material dos dois braços tem uma constituição igual, como uma imagem em espelho a partir do centrómero. O outro braço perde-se.
Um dos mecanismos que está na origem dos isocromossomas consiste na divisão transversal (em vez de longitudinal) do centrómero na mitose ou na meiose, separando as duas cópias dos braços curtos para um lado e as duas cópias dos braços longos para outro.
O isocromossoma dos autossomas não acrocêntricos é letal devido à extensa delecção de material que origina (todo o material de um dos braços). O isocromossoma X é compatível com a vida. O mais frequente é o isocromossoma do braço longo do cromossoma X associado a síndroma de Turner. (ver adiante)

Síndromas de causa cromossómica

Seguidamente descrevem-se algumas síndromas mais representativas da etiopatogénese cromossómica, fazendo parte da iconografia da Unidade de Recém-Nascidos (URN) do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa.

Trissomia 21 (Síndroma de Down)

A trissomia 21 foi descrita pela primeira vez por Langdon Down em 1866, mas a sua causa foi desconhecida durante quase um século. Desde as descrições iniciais ressaltou que a idade materna destes indivíduos era avançada. Só em 1959 foi verificado que as crianças com trissomia 21 tinham 47 cromossomas, sendo o cromossoma extra um acrocêntrico, o 21. A designação de mongolismo caiu em desuso: referia-se ao facto de o fenótipo sugerir uma origem oriental pela obliquidade em V das fendas palpebrais. A trissomia 21 é geralmente diagnosticada ao nascer ou pouco depois, pela dismorfia facial característica e outras alterações fenotípicas.

As crianças são geralmente hipotónicas, o que tem relevância nos primeiros meses de vida. Em cerca de 40% a 60% dos casos existe cardiopatia congénita, (frequentemente defeitos completos do septo aurículo-ventricular). Existem também associadas outras anomalias do tubo digestivo e da área neuro-sensorial. Todas as crianças têm deficiência mental, habitualmente de grau moderado. Os indivíduos afectados têm uma sobrevivência cada vez mais longa.

A trissomia 21 (na proporção de 1/1.700 nados-vivos) ocorre na forma livre, por translocação ou em mosaico. A forma mais frequente é a forma livre (95% dos casos) em que todas as células apresentam 47 cromossomas. A causa principal é a não disjunção, relacionada com o aumento da idade materna. Em 4% dos casos, a trissomia 21 resulta de uma translocação que pode ocorrer de novo ou relacionar-se com uma translocação num dos progenitores, mais frequentemente dos cromossomas 14 e 21. O risco de recorrência depende dos cromossomas envolvidos e do progenitor com translocação. Cerca de 1% dos casos são mosaicos que, na maioria dos casos, correspondem a fenótipos menos marcados. A associação e a prevalência das características variam (Figura 1 e Quadro 1).

FIGURA 1. Caso de trissomia 21 (fácies)

QUADRO 1 – Síndroma de Down. Algumas características

Características faciais

· Face redonda/Dismorfia craniofacial

· Pregas do epicanto e inclinação em V das fendas palpebrais

· Manchas na íris, catarata, estrabismo

· Profusão da língua

· Orelhas pequenas

Outras anomalias

· Occiput achatado

· Sulcos anormais na palma das mãos e planta dos pés (dermatóglifos)

· Hipotonia, obesidade, hiperlaxidão ligamentar

· Cardiopatia congénita (40% dos casos)

· Atrésia duodenal

Problemas de manifestação tardia

· Dificuldades de aprendizagem

· Baixa estatura

· Infecções respiratórias correntes

· Défice auditivo relacionável com otite serosa

· Risco elevado de leucemia

· Risco de instabilidade atlanto-axial (rara)

· Hipotiroidismo

· Doença de Alzheimer

Trissomia 18 (Síndroma de Edwards)

A trissomia 18, descrita pela primeira vez por Edwards em 1960, tem uma frequência de 1 em cada 8.000 recém-nascidos. A esperança de vida destas crianças é em média de 2 meses, apesar de alguns casos sobreviverem vários anos. Cerca de 80% dos indivíduos são do sexo feminino. A etiologia da trissomia 18 mais frequente é a não disjunção, correspondendo cerca de 10% a mosaicos.

As crianças com trissomia 18 têm atraso de desenvolvimento grave, dismorfia facial característica (nomeadamente fronte proeminente, hipoplasia da mandíbula e pavilhões auriculares de baixa implantação e malformados). O esterno é curto. As mãos fecham-se de um modo característico, com o segundo e o quinto dedo sobrepondo-se ao primeiro e ao quarto. Os pés são arqueados com calcanhares proeminentes. São frequentes defeitos cardíacos (Quadro 2 e Figuras 2 e 3).

Outras anomalias do cromossoma 18

Foram identificadas outras anomalias, como deleções parciais do braço curto e longo, trissomia do braço longo, e cromossoma 18 em anel. Os fenótipos são característicos de cada anomalia.

FIGURA 2. Síndroma de Edwards. Inclinação antimongolóide (em A) das fendas palpebrais

FIGURA 3. Síndroma de Edwards. Aspecto de calcanhar saliente, “em martelo”

QUADRO 2 – Síndroma de Edwards

· Maxilar inferior hipoplásico

· Orelhas de implantação baixa

· Sobreposição dos dedos das mãos (polegar sobre a palma, sobreposição do médio com o anelar)

· Calcanhar saliente (em forma de “martelo”)

· Defeitos congénitos cardíacos e renais

Trissomia 13 (Síndroma de Patau)

A trissomia 13 foi pela primeira vez descrita por Patau em 1960. A frequência estimada é de 1 em cada 12.000 recém-nascidos, sendo as anomalias associadas invariavelmente identificadas em diagnóstico pré-natal. O mecanismo mais frequente é a não disjunção meiótica materna numa percentagem semelhante à trissomia 18. As anomalias mais frequentes são: holoprosencefalia, fenda labial e palatina (60-80% dos casos), microftalmia, polidactilia, defeitos cardíacos e renais. Cerca de 50% de RN afectados morre no período neonatal. (Figura 4)

Síndroma de Klinefelter (47, XXY)

Esta síndroma, descrita em 1942 por Klinefelter, tem uma frequência estimada de cerca de 1:1.000 crianças do sexo masculino. Fenotipicamente caracteriza-se por imaturidade no desenvolvimento sexual, testículos pequenos, alterações ou ausência de espermatogénese e ginecomastia; alguns pacientes são altos e de tipo eunuco. O défice cognitivo tem sido uma das características apontadas a esta e outras síndromas causadas por aneuploidias dos cromossomas sexuais; no entanto, os estudos mais recentes têm vindo a desmistificar este conceito, demonstrando que, apesar de o quociente de inteligência médio dos portadores destas cromossomopatias ficar ligeiramente abaixo da média do QI dos seus progenitores, o mesmo não atinge valores que possam considerar-se patológicos. Cerca de 15% dos casos corresponde a mosaicos, com duas ou mais linhas celulares, nomeadamente 46,XY/47,XXY.

Existem outras variantes, tais como síndroma 48,XXYY, 48,XXXY e 49,XXXXY, habitualmente associadas a fenótipos ligeiramente mais marcados.

FIGURA 4. Síndroma de Patau em RN com holoprosencefalia

Síndroma de Turner (45,X)

A síndroma de Turner foi descrita em 1938 por Turner. Cerca de três quartos desta cromossomopatia são de causa paterna, resultado de um erro da meiose durante a gametogénese paterna. As raparigas afectadas têm um grau variável de baixa estatura, pescoço largo, baixa implantação da linha do cabelo e atraso/insuficiência pubertária. Tal como na síndroma de Klinefelter, as dificuldades de aprendizagem têm sido desvalorizadas pelos últimos estudos: muitos autores defendem que não deveriam fazer parte da caracterização desta situação. Na maioria dos casos há infertilidade e amenorreia. Cerca de 40% correspondem a mosaicos. Esta anomalia encontra-se frequentemente associada a hidropisia fetal e abortos espontâneos (Quadro 3). A cardiopatia é também uma das características possíveis e quando presente um indicador de mau prognóstico.

QUADRO 3 – Síndroma de Turner

· Linfedema das mãos e pés no recém-nascido

· Baixa estatura

· Prega do pescoço (pterygium colli)

· Cúbito valgo

· Mamilos muito afastados da linha média

· Defeitos cardíacos congénitos (particularmente coarctação da aorta)

· Disgenésia ovárica com consequente infertilidade

· Desenvolvimento cognitive normal

Síndroma de Williams

Resulta de uma delecção do gene da elastina em 7q11, na maior parte dos casos de novo. Os indivíduos têm um fenótipo que varia ao longo da vida com características bastante específicas tais como: dismorfia facial (arcadas supraciliares proeminentes, ponte nasal plana e boca grande); íris estrelada; cardiopatia (estenose aórtica supravalvular e estenoses periféricas da artéria pulmonar); défice cognitivo; perfil comportamental com loquacidade verbal e grande sociabilidade; e voz rouca.

Síndroma de Prader-Willi

É causada em cerca de 70% dos casos por uma delecção em 15q11-13 no cromossoma de origem paterna; dos restantes casos, uma parte tem origem em dissomia uniparental materna. O fenótipo é relativamente característico, com hipotonia e dificuldades na alimentação desde o nascimento, dismorfia facial, atraso do neurodesenvolvimento ligeiro a moderado, baixa estatura e compulsão para a comida, que se pode traduzir em obesidade.

Síndroma de Angelman

Resulta de uma delecção em 15q11-13 em 60% dos casos, no cromossoma de origem materna, e geralmente de novo. Os casos restantes são causados por dissomia uniparental paterna e por outros mecanismos moleculares não deleccionais (20% dos casos). Esta patologia caracteriza-se por um atraso cognitivo grave, défice importante da linguagem e microcefalia. As etapas de desenvolvimento estão afectadas precocemente, estando descritas alterações neurológicas características.

Síndroma de Smith-Magenis

Resulta de uma microdelecção na região 17p11.2. Os indivíduos têm défice cognitivo, fenótipo comportamental que se caracteriza por auto-agressividade e perturbação no padrão do sono. É frequente a baixa estatura e a obesidade.

Alterações cromossómicas somáticas no cancro

Em 1960, Peter Nowell e David Hungerford associaram pela primeira vez, uma anomalia cromossómica com o aparecimento de cancro, utilizando uma técnica de citogenética em tecido tumoral.

Especificamente, foi descrito o cromossoma Philadelphia em doentes com leucemia mieloide crónica. Este cromossoma resulta de uma translocação específica entre os cromossomas 9 e 22.

As técnicas de biologia molecular permitiram saber que no ponto de quebra, no cromossoma 9, ocorrendo a fusão dos genes BCR e ABL, que passam a codificar uma proteína anómala que interfere com regulação normal do ciclo celular, surge crescimento celular descontrolado.

Posteriormente, foram identificadas centenas de alterações cromossómicas associadas a genes específicos que provocam instabilidade no genoma. Estas anomalias são altamente variáveis em diferentes cancros, bem como os fenótipos resultantes. O seu estudo tem valor para confirmar o diagnóstico e para prognóstico.

Algumas translocações foram associadas a diferentes tipos de cancro, como são o caso da t(2;5) (p23;q35) no linfoma anaplásico de células grandes, e a t(8;14) no linfoma de Burkitt (gene c-myc).

Uma das hipóteses apontadas para explicar esta associação sugere que as primeiras alterações patogénicas nas células tumorais resultam de rearranjos equilibrados, que conferem à célula características proliferativas. Os rearranjos interrompem genes específicos envolvidos na regulação celular, como proto-oncogenes ou genes supressores de tumores, formando genes híbridos ou interferindo com os mecanismos de reparação de ADN. Com a progressão da neoplasia, surgem as mais variadas alterações cromossómicas, estruturais ou numéricas, tornando-se cada vez mais desequilibradas com a progressão da doença.

O estudo das formas hereditárias de cancro tem contribuído para a compreensão dos mecanismos associados à génese tumoral, identificando-se vários genes relacionados com o desenvolvimento de cancro familiar. As tecnologias de microarrays e CGH têm permitido obter conhecimentos importantes nesta área.

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TIPOS DE HEREDITARIEDADE

Os diversos tipos de hereditariedade traduzem a forma como uma determinada doença é transmitida na família, permitindo assim prever o seu risco de recorrência.

Os dois grandes grupos de hereditariedade são a mendeliana, geralmente classificado como autossómica dominante ou recessiva ou ligada ao X/Y e a não mendeliana como a mitocondrial ou fenómenos de imprinting.

1. HEREDITARIEDADE MENDELIANA

Definição

Definem-se como patologias mendelianas as doenças causadas por uma mutação num único gene seguindo os padrões de hereditariedade descritos por Gregor Mendel em 1865. O termo hereditariedade mendeliana é utilizado desde 1901 para designar patologias com hereditariedade unifactorial.

As doenças mendelianas são classificadas como autossómicas se codificadas por um gene localizado num dos 22 autossomas, ou ligadas ao ou Y se codificadas por um gene localizado num dos cromossomas sexuais.

Em genética, o termo locus entende-se como a localização específica num cromossoma de um determinado gene. Reforçando o que foi referido no capítulo anterior, alelos são cada um de dois genes situados no mesmo locus dos cromossomas homólogos.

Se os dois alelos forem idênticos, o indivíduo é homozigótico; se os dois alelos forem distintos, o indivíduo é heterozigótico. Um indivíduo com duas mutações distintas, no mesmo locus, em ambos os alelos, é considerado um heterozigótico composto.

Nota: alguns autores consideram: locus como as duas posições homólogas de um par de cromossomas; que cada locus é ocupado por dois alelosou seja, duas formas alternativas de um gene (uma que foi herdada do pai e outra que foi herdada da mãe); que quando dois alelos são idênticos, há homozigotia; que quando são diferentes – um pode ter uma mutação, e outro não – há heterozigotia para o locus em causa.

Tipos de hereditariedade mendeliana

Hereditariedade autossómica dominante

As doenças autossómicas dominantes (AD) ocorrem quando um indivíduo apresenta uma mutação num único alelo de um determinado gene associado a patologia.

Ou seja, a existência de um só alelo mutado é suficiente para que se manifeste a doença.

A principal característica da hereditariedade AD identificada no pedigree/árvore genealógica é a sua transmissão vertical, isto é, a patologia é transmitida de geração em geração de forma vertical, ou seja, cada indivíduo afectado tem um progenitor afectado. No entanto, estas patologias podem também ocorrer espontaneamente através de uma mutação de novo.

As patologias autossómicas dominantes afectam ambos os sexos de igual modo e o seu risco de recorrência na descendência é de 50%.

Nas doenças autossómicas dominantes é fundamental ter em consideração os seguintes conceitos:

  • Penetrância incompleta: refere-se à proporção dos indivíduos portadores de uma mutação que não expressam fenotipicamente/clinicamente a patologia em causa;
  • Expressividade variável: indivíduos portadores da mesma mutação (doenças AD) podem expressar um fenótipo diferente (variabilidade interfamiliar), com gravidade diferente, mesmo dentro da mesma família (variabilidade intrafamiliar). Têm sido propostas várias explicações para a expressividade variável, desde o efeito de factores ambientais, à interacção com outros genes adjacentes ao mutado ou o fenómeno de imprinting (ver Glossário).
    • Mutação de novo: ocorrência de mutação patológica no genoma do indivíduo durante o desenvolvimento embrionário, não existindo história familiar dessa patologia.

Para as doenças genéticas, monogénicas, com os respetivos genes associados identificados, pode recorrer-se a testes de genética molecular para efeitos de diagnóstico, quer por estudo dirigido (sequenciação de um só gene), quer por painel de Next Generation Sequencing (NGS) quando a patologia tem mais do que um gene associado identificado (ver Glossário).

Exemplos de patologias AD: acondroplasia, cancro da mama (BRCA1 e BRCA2), distrofia miotónica, esclerose tuberosa, neurofibromatose do tipo 1, osteogénese imperfeita, polipose adenomatosa familiar, síndroma de Noonan, etc..

Hereditariedade autossómica recessiva

Neste tipo de hereditariedade é necessária a existência de dois alelos mutados para que se verifique a doença. Ou seja, as doenças autossómicas recessivas (AR) ocorrem quando um indivíduo apresenta uma mutação em ambos os alelos, designando-se por homozigótico ou heterozigótico composto, conforme respectivamente as mutações identificadas são iguais ou distintas entre si respectivamente.

A maioria das mutações identificadas num gene associado a uma determinada patologia AR no caso índex são herdadas dos progenitores que, por sua vez, são heterozigóticos saudáveis.

A principal característica da hereditariedade AR identificada no pedigree/árvore genealógica é a sua transmissão horizontal, isto é, os indivíduos afectados pertencem todos à mesma fratria e a patologia não se apresenta na geração seguinte.

As patologias autossómicas recessivas afectam ambos os sexos de igual modo.

O risco de recorrência na descendência, quando ambos os progenitores são heterozigóticos para uma mutação, é de 25% para indivíduos afectados, 50% para os indivíduos heterozigóticos e 25% para indivíduos homozigóticos normais (sem mutação).

A consanguinidade é um factor que aumenta o risco de ocorrência de patologias AR raras (risco 3% superior ao da população em geral).

Algumas patologias associadas a genes recessivos são mais frequentes em populações particulares com maior proporção de consanguinidade. São o caso da talassémia em algumas populações mediterrânicas e da doença de Tay-Sachs nos judeus Ashkenasi.

Exemplos de patologias AR: β-talassémia, drepanocitose, fibrose quística, hemocromatose, hiperplasia congénita da suprarrenal e alguns tipos de Surdez (GJB2, GJB6).

Hereditariedade ligada ao cromossoma X

As doenças genéticas causadas por mutações em genes localizados no cromossoma X designam-se por doenças ligadas ao X (em inglês – X linked) ou ligadas ao sexo.

Todas as células somáticas de um indivíduo do sexo feminino contêm dois cromossomas X; no entanto, um está inactivado na maior parte do ciclo celular, assegurando assim o outro alelo, a globalidade das funções necessárias ao indivíduo.

Este fenómeno de inactivação, a “lionização”, é aparentemente aleatório, explicando o facto de algumas mulheres portadoras manifestarem sintomatologia de determinada doença.

Deste modo, os indivíduos do sexo feminino são geralmente heterozigóticos para mutações num dos genes localizados no cromossoma X e os homens hemizigóticos.

As patologias causadas por genes localizados no cromossoma X podem ser de hereditariedade recessiva ou dominante.

Hereditariedade recessiva ligada ao cromossoma X

Nas patologias associadas a mutações em genes localizados no cromossoma X que se comportam como recessivas, a sua expressão depende do sexo do descendente.

Desta forma, os indivíduos do sexo masculino com mutação num dos genes do cromossoma X são afectados, uma vez que só possuem uma cópia desse cromossoma (hemizigóticos) e os do sexo feminino heterozigóticos para a mutação são “portadores” saudáveis.

Um indivíduo do sexo feminino portador de uma patologia ligada ao X recessiva transmitirá a patologia a:

  • 50% da sua descendência masculina;
  • 50% da sua descendência feminina será portadora saudável da mesma mutação.

Assim sendo, um indivíduo do sexo masculino saudável (sem mutação num gene associado a patologia ligada ao X) não tem risco de transmitir a patologia à sua descendência.

Por outro lado, um indivíduo do sexo masculino afectado com patologia ligada ao X:

  • Transmitirá a mutação a toda a sua descendência feminina – serão portadoras saudáveis;
  • Não transmite a mutação a nenhum dos seus descendentes do sexo masculino (estes herdam o cromossoma Y paterno).

A inexistência de transmissão da patologia de homem para homem é uma característica específica das doenças ligadas ao cromossoma X.

Quando surgem novos casos numa família, em geral correspondem a mutações de novo. São exemplos a hemofilia A e B, e as distrofias musculares de Duchenne e de Becker.

Hereditariedade dominante ligada ao cromossoma X

As doenças ligadas ao cromossoma X dominantes são muito raras.

Uma mutação num gene dominante localizado no cromossoma X provocará uma determinada patologia que afectará, tanto indivíduos do sexo feminino (heterozigóticos), como do sexo masculino (hemizigóticos).

As mulheres heterozigóticas para uma mutação num gene associado a doença ligada ao X dominante tem um risco de transmitir a patologia à sua descendência de 50% independentemente do sexo. Os homens afectados com patologia ligada ao X dominante transmitirão a doença a toda a sua descendência do sexo feminino, e todos os descendentes do sexo masculino serão indivíduos saudáveis (herdam o cromossoma Y do progenitor masculino).

As características identificadas na árvore genealógica assemelham-se às das patologias AD com a excepção de não existir transmissão de homem para homem e de existir um “excesso” de indivíduos do sexo feminino afectados.

Um exemplo de uma doença ligada ao X dominante é a síndroma de Rett.

Hereditariedade ligada ao cromossoma Y

As patologias genéticas associadas a alterações no cromossoma Y ou a mutações em genes localizados neste cromossoma são, tal como as doenças dominantes ligadas ao X, extremamente raras.

Neste tipo de doenças só os indivíduos do sexo masculino são afectados e, por isso, a transmissão é de pai para filho e toda a sua descendência masculina será afectada.

Os genes envolvidos no desenvolvimento das gónadas masculinas e na espermatogénese encontram-se localizados no cromossoma Y. Um exemplo de uma patologia ligada a este cromossoma é a deficiência espermática não obstrutiva, responsável por infertilidade masculina, a qual se deve a mutações no gene USP9Y (ubiquitin-specific protease 9Y).

2. HEREDITARIEDADE NÃO MENDELIANA

Definição e tipos de hereditariedade não mendeliana

Todas as doenças genéticas que não obedecem aos padrões clássicos de hereditariedade mendeliana anteriormente descritos, são classificadas como tendo um padrão de hereditariedade não mendeliana. São descritos a seguir os tipos de hereditariedade não mendeliana.

Hereditariedade mitocondrial

A hereditariedade mitocondrial assenta na informação genética transmitida pelo DNA mitocondrial. Associadas ao DNA mitocondrial de uma célula podem encontrar-se duas condições: homoplasmia e heteroplasmia.

A homoplasmia traduz a presença de identidade do DNA mitocondrial numa célula, seja normal ou mutado; a heteroplasmia designa a condição em que coexistem DNA mitocondrial normal e DNA mitocondrial mutado numa célula.

Nos casos de heteroplasmia, durante as divisões sucessivas a partir duma célula única, podem formar-se, aparentemente ao acaso, diferentes linhas celulares em relação ao conteúdo em DNA mitocondrial, ou ainda linhas apenas com DNA mutado ou com DNA normal.

Mutações no DNA mitocondrial provocam síntese de ATP insuficiente através da fosforilação oxidativa, o que compromete a produção de energia pelas mitocôndrias; tal circunstância tem implicações clínicas importantes pelo papel significativo no desenvolvimento de doenças degenerativas crónicas, particularmente em órgãos que requerem níveis de energia mais elevados (cérebro, músculos esquelético e cardíaco).

As manifestações clínicas resultam duma redução acentuada da produção de energia mitocondrial, como consequência de um aumento da percentagem de moléculas de DNA mitocondrial mutadas.

Na hereditariedade mitocondrial distinguem-se as seguintes características:

  • Natureza materna da transmissão hereditária do DNA mitocondrial a ambos os sexos, isto é, os descendentes de mãe afectada serão todos afectados;
  • Indivíduos do sexo masculino afectados com doença mitocondrial não transmitem a patologia aos seus descendentes (os espermatozóides contêm escassez de mitocôndrias – ~100/cada espermatozóide versus – 100.000/cada ovócito), sendo que as mitocôndrias são eliminadas após penetração no ovócito);
  • Existência de heteroplasmia materna não permite prever o impacte da mutação na descendência, uma vez que um descendente pode herdar mitocôndrias normais, mitocôndrias com mutação ou mitocôndrias com e sem mutação em percentagem variável; assim, a expressividade de uma patologia de hereditariedade mitocondrial pode variar entre irmãos.

Devido à elevada taxa de mutações, a variabilidade no DNA mitocondrial é elevada entre pessoas não aparentadas. O oposto se verifica em indivíduos da mesma família, em que as sequências de DNA mitocondrial dos familiares maternos são muito semelhantes.

Esta particularidade permite que o estudo do DNA mitocondrial tenha diversas aplicações a nível científico, como por exemplo, na identificação de familiares desaparecidos, elaboração de árvores genealógicas, e confirmação de identidade em situações de rapto, entre outras.

Em cada célula, o genoma mitocondrial e o nuclear comunicam entre si, numa interacção permanente, o que explica que em muitas situações, mutações em genes nucleares se traduzam por manifestações a nível da fisiopatologia da mitocôndria. Mutações no DNA nuclear que causam patologia mitocondrial têm um padrão de hereditariedade AD ou AR.

Citam-se alguns exemplos de patologia da hereditariedade mitocondrial: neuropatia óptica hereditária de Leber (LHON), neuropatia tipo MELAS (mitochondrial encephalomyopathy with lactic acidosis and stroke-like episodes) ou ANS (ataxia neuropathy syndromes – MIRAS, SCAE, SANDO e MEMSA), síndroma de Pearson, síndroma de Leigh, etc..

“Imprinting” genómico

De acordo com os conceitos clássicos da genética mendelina, um gene comporta-se do mesmo modo, independentemente do sexo do progenitor através do qual foi herdado pelo descendente. Apesar de este conceito continuar a ter validade para muitos caracteres genéticos, admite-se que em cerca de 1% dos genes humanos e expressão dos mesmos não é independente do sexo do progenitor. Daí a noção de “imprinting genómico, (ou simplesmente, imprinting”)aplicável a situações em que a função de alguns genes difere conforme a respectiva origem, paterna (“imprinting” paterno) ou materna (“imprinting” materno).

Deste modo, o “imprinting” genómico consiste numa modificação epigenética (uma vez que a estrutura do DNA não é modificada) de expressão génica, de natureza reversível, que inibe a expressão de um alelo em gerações sucessivas, em função do sexo do progenitor que o transmite. Ou seja, dependendo do sexo do progenitor que o transmite, um dos genes (materno ou paterno) está activo, e outro inactivo.

A nível estrutural, de modo sucinto, sabe-se que “imprinting” resulta da modificação histónica e/ou da metilação das citosinas de um dos alelos que inactivam a sua expressão, enquanto o outro alelo permanece desmetilado e activo.

Apesar de a transmissão dos alelos sujeitos a imprinting obedecer às normas de hereditariedade mendeliana, a sua expressão fenotípica não é mendeliana.

São exemplos de afecções, em que foi identificado “imprinting”, certos tumores sólidos e leucemias (tumor de Wilms, retinoblastoma, leucemia mieloide crónica), distrofia miotónica, coreia de Huntington, diabetes juvenil, síndromas de Angelman, de Prader-Willi, de Beckwith-Wiedeman, etc..

Dissomia uniparental

A dissomia uniparental é uma forma muito rara de hereditariedade, resultante de erros na meiose. Pode ocorrer como heterodissomia ou como isodissomia.

Na heterodissomia uniparental, o complemento cromossómico diplóide é constituído por um par de cromossomas homólogos que provém de um mesmo progenitor, o que é explicável pela não disjunção na primeira divisão da meiose.

Na isodissomia uniparental, o par cromossómico em causa tem igualmente origem num único progenitor, mas resulta da duplicação de um dos cromossomas do par de homólogos. Neste caso, a situação é explicável pela não disjunção na segunda divisão da meiose.

Além dos mecanismos expostos baseados em erros ocorridos na meiose é ainda necessário, para que não ocorra trissomia, que haja perda do cromossoma oriundo do progenitor que contribui apenas com um cromossoma.

Existindo heterodissomia ou isodissomia uniparental para genes sujeitos a fenómenos de “imprinting” poderão ocorrer patologias por falta de expressão de um gene que através dos fenómenos referidos se tenha tornado inactivo, ou por expressão de dois alelos idênticos mutados porque não ocorreu “imprinting”.

Desta forma pode ocorrer uma patologia genética AR num doente em que só um dos progenitores é heterozigótico para a mutação em causa devido à dissomia uniparental.

As duas entidades clínicas que, por excelência, exemplificam o conceito de dissomia uniparental são as síndromas de Prader-Willi e de Angelman.

Cerca de 20 a 30% dos casos de síndroma de Prader-Willi são devidos a heterodissomia uniparental materna para o cromossoma 15. Por sua vez, a heterodissomia uniparental paterna para o cromossoma 15 é responsável por casos de síndroma de Angelman. Há ainda casos de síndroma de Beckwith-Wiedeman em que está em causa isodissomia uniparental paterna para o cromossoma 11 com origem pós-zigótica.

Mutações dinâmicas e antecipação

As mutações dinâmicas ocorrem quando existe expansão do número de sequências repetitivas de tripletos, cuja unidade é um conjunto de três nucleótidos (por exemplo, CGG, CAG, CAA, TAA e GAG) presentes num determinado gene.

Um indivíduo, em condições normais, possui um número reduzido de tripletos repetidos sequencialmente num gene. O alargamento de uma região nucleotídica, em particular, se incluir pequenas sequências repetitivas, pode traduzir-se em instabilidade do DNA.

As unidades repetitivas de trinucleótidos são frequentemente encontradas em genes que codificam factores de transcrição (proteínas que regulam a expressão de outros genes) ou em genes que regulam o desenvolvimento.

A transmissão de expansões nestas unidades repetitivas que correspondem às mutações dinâmicas podem ocorrer por via materna ou paterna, só por via materna, ou só por via paterna dependendo do gene e respectiva patologia associada.

Ao contrário das mutações “clássicas”, nestas mutações pode ocorrer variação no número de cópias das sequências, por vezes entre gerações, com os descendentes a apresentar alelos de tamanhos diferentes do dos progenitores.

Para que a doença se manifeste é necessário que o gene possua um número de repetições acima de um “limiar” (threshold). Quando o número de unidades repetitivas se encontra próximo desse “limiar” designa-se por pré-mutação; nesta circunstância, a expansão não afecta a expressão normal do fenótipo.

A mutação completa define-se quando o número de unidades repetitivas de tripletos se associa à manifestação clínica da doença.

São exemplos de patologias associadas à expansão de tripletos a síndrome de X-frágil (expansão CGG), a distrofia miotónica de Steinert (expansão CTG), a doença de Friedreich (expansão GAA), doenças degenerativas como a atrofia muscular espinobulbar, a coreia de Huntington, a atrofia dentato-rubro-pálido-Luysiana e ataxias espinocerebelosas (SCA), como a tipo 1 e a doença de Machado-Joseph (DMJ).

Relacionado com este tipo de patologias provocadas por mutações dinâmicas, como a expansão de tripletos, está o fenómeno de antecipação que se define como o aumento da gravidade da expressão da patologia numa família em gerações sucessivas, associado ao aumento do número de unidades repetitivas de tripletos num dos alelos. De salientar que a idade de manifestação da doença pode também ser antecipada ao longo das gerações.

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GENÉTICA: IMPORTÂNCIA DO LABORATÓRIO

Introdução

A disponibilidade de material biológico de diversas origens (tecidos, sangue, líquido amniótico, células do epitélio bucal, entre outras) e a maior ou menor facilidade em o obter potenciaram o desenvolvimento de diversas técnicas laboratoriais altamente específicas e tendencialmente mais eficazes. Desta forma, tornou-se possível associar alterações genéticas a quadros patológicos, confirmar diagnósticos clínicos e/ou definir estratégias de prevenção e de decisão terapêutica (incluindo as opções reprodutivas e o aconselhamento genético).

A realização de um exame laboratorial do foro genético (teste de genética) necessita apenas de um conjunto de células somáticas nucleadas, pois cada uma delas contém, à partida, a mesma constituição cromossómica da primeira célula embrionária, reflectindo as alterações germinais herdadas ou que surgiram de novo.

A visualização dos cromossomas in vitro tornou-se possível a partir de 1956 quando Tijo e Levan desenvolveram um tipo de coloração do DNA (desoxyribonucleicacid) que evidenciava um conjunto de bandas claras e escuras, formando um padrão característico de cada cromossoma. A padronização das bandas (ou “bandeamento”) dos cromossomas permite o reconhecimento de anomalias estruturais específicas, associadas a determinadas síndromas genéticas. O cariótipo molecular constitui uma ponte poderosa entre a citogenética clássica e a biologia molecular.

Ao nível molecular, desde que Watson e Crick, em 1953, definiram a estrutura química da molécula de ADN, o avanço da genética humana teve dois pontos altos:

  • Quando, nos anos 80 do século passado, foi definida e apurada a metodologia de sequenciação do DNA, permitindo conhecer finalmente a sequência de nucleótidos e;
  • Com a participação da bioinformática no desenvolvimento de software viabilizando a leitura das sequências de DNA.

Estes dois factos tornaram possível iniciar o Projeto do Genoma Humano, na década de 90, terminando com a descodificação do Genoma em 2003.

Com a automatização crescente e a possibilidade de estudar muitas regiões genómicas ao mesmo tempo, o diagnóstico genético é actualmente muito rápido, específico e eficaz, tornando-se um poderoso instrumento para o diagnóstico clínico.

Por outro lado, a interferência do ambiente, as regiões de susceptibilidade, a noção de que uma patologia pode ser originada por alterações em diferentes genes e que um mesmo gene pode ser responsável por patologias diferentes, consoante o tipo de mutação ocorrida, modificou a forma como a Genética Clínica aborda o aconselhamento genético e incluiu definitivamente a genética molecular como parceiro no diagnóstico final.

Ao nível dos processos metabólicos celulares, o desenvolvimento da bioquímica genética, e a detecção precoce e/ou a acumulação de metabólitos potencialmente patológicos, potenciaram o aparecimento de terapêuticas de substituição que permitam compensar ou retardar o efeito nocivo da alteração metabólica. A complementação dos testes bioquímicos com estudos de genética molecular contribuiu para a multidisciplinaridade da Genética Médica, alargando o conjunto de testes disponíveis, adequando as terapêuticas e aumentando a responsabilidade de se estabelecer um diagnóstico precoce e correcto das doenças hereditárias do metabolismo.

Organização do material genético

A designação material genético diz respeito a toda a informação que um indivíduo contém em cada célula nucleada, podendo dar origem a uma característica, ou condicionar o seu aparecimento e expressão. Cada célula do organismo contém, teoricamente, a mesma informação genética, uma informação que se diz diplóide (ou 2n) e que foi herdada dos seus progenitores – metade (n) de cada um, resultando da fusão dos gâmetas (óvulo e espermatozóide), resultando na formação do embrião, contendo um património genético único para cada indivíduo.

Genes e genoma

Os genes são as unidades básicas da informação genética de um indivíduo. Correspondem aos segmentos da molécula de DNA (ou ADN, ácido desoxirribonucleico, em português), que contêm a informação necessária para a produção duma proteína ou dum polipéptido, contribuindo para a formação de uma característica.

Na célula, o DNA localiza-se em duas estruturas próprias: o núcleo, onde se encontra a maior parte do DNA dito nuclear; e as mitocôndrias, organitos responsáveis pelos processos energéticos, onde se localiza o DNA dito mitocondrial (DNAmt). A informação genética individual contida nos genes nucleares e nos genes mitocondriais designa-se por genoma.

A molécula de DNA é constituída por sequências de nucleótidos (também designados por bases), havendo 4 diferentes, simbolizadas por letras do alfabeto – Adenina (A), Timina (T), Citosina (C) e Guanina (G) – que se dispõem numa cadeia dupla emparelhada e enrolada helicoidalmente, falando-se frequentemente em “pares de bases”. As referidas letras (do “alfabeto genético”) organizam-se em sequências mais ou menos longas, seguindo um código com significado para o organismo.

Cada gene pode ter entre centenas de nucleótidos (como é o caso do gene da insulina, codificada por uma sequência de cerca de 1.500 pares de bases, que dá origem a uma proteína de 110 aminoácidos) a milhões, (como é o caso do gene da distrofina, que se estende por cerca de 2,2 milhões de pares de bases e dá origem a uma proteína de 3.700 aminoácidos).

Cada gene está localizado num ponto definido (locus) de um dado cromossoma. Os genes nucleares distribuem-se ao longo da cadeia de DNA, intercalados por sequências de nucleótidos, muitas vezes repetitivas, cujo significado e relevância biológica ainda se desconhece em grande parte.

Há uma associação directa entre a localização de um gene no DNA e a sua posição no cromossoma, resultando numa ordenação própria que é similar em ambos os cromossomas homólogos (de origem materna e de origem paterna), permitindo um emparelhamento perfeito aquando da divisão celular.

O código genético inclui programas que determinam a leitura dos genes, de forma sequencial ou alternada, consoante a situação metabólica e/ou estádio do desenvolvimento do indivíduo.

O DNA nuclear contém cerca de seis mil milhões de pares de nucleótidos. Estima-se que existam cerca de 20.000 genes diferentes, correspondendo a pouco mais de 5% do genoma e contendo as instruções de produção das proteínas que formam as células, tecidos e órgãos do organismo.

O resto das sequências que compõem o DNA denomina-se DNA não codificante. Embora as respectivas sequências não codifiquem proteínas, estas sequências contêm regiões com funções muito importantes, nomeadamente na regulação e controlo da actividade dos genes, activação e inactivação dos programas celulares, realização de diversas tarefas celulares, como o emparelhamento dos cromossomas, a duplicação do material genético, a manutenção dos telómeros (estruturas com propriedades especiais ocupando a extremidade livre de um cromossoma), entre outras.

O DNA mitocondrial (DNAmt), de menor dimensão e com características diferentes, é constituído por 16.570 nucleótidos a que correspondem 37 genes que ocupam 93% da molécula.

As mitocôndrias são organitos intracitoplasmáticos cuja principal função é a produção da energia necessária à célula através de um processo denominado fosforilação oxidativa. Essa energia fica retida em moléculas de adenosina trifosfato (ATP) que podem ser utilizadas nos diversos processos metabólicos da célula. Estima-se que as mitocôndrias sejam responsáveis pela produção de mais de 90% do ATP necessário para cada indivíduo. As mitocôndrias também estão envolvidas noutras vias metabólicas como a biossíntese de pirimidinas, do colesterol e dos neurotransmissores.

O DNA mitocondrial (DNAmt) é uma molécula circular, semelhante à dos plasmídeos bacterianos. O genoma mitocondrial e o nuclear comunicam entre si, numa interacção permanente, sendo o DNA nuclear o responsável pela codificação da maioria das proteínas necessárias à mitocôndria.

Cromossomas

Os cromossomas correspondem a moléculas de DNA que se formam durante o ciclo celular, quando a célula se divide. É a forma de organizar o DNA, através de múltiplos enrolamentos altamente controlados, envolvendo as histonas, proteínas nucleares com características específicas, que formam arranjos geométricos específicos, recorrendo ao enrolamento e superenrolamento helicoidal da cadeia. Este processo permite, entre outras situações, que o DNA esteja acessível, em particular as regiões importantes para o emparelhamento dos cromossomas homólogos e para a transcrição do RNAm.

É possível visualizar os cromossomas em laboratório, permitindo verificar se a sua estrutura está intacta ou sofreu alterações que possam ser responsáveis por patologias genéticas.

Na preparação laboratorial, os cromossomas apresentam um aspecto linear, sendo constituídos por dois braços unidos por uma zona de constrição, o centrómero. O braço curto é designado por p (petit), e o braço longo designado por q (letra que se segue no alfabeto à letra p, ou proveniente da palavra queue, que significa fila ou cauda em inglês).

Cada cromossoma tem um tamanho próprio e um conjunto específico de genes. Por exemplo, o cromossoma 1 é dos maiores; contém cerca de 246 milhões de pares de bases, o que representa 8% do DNA nuclear. Neste cromossoma existirão 2.100 a 2.600 genes.

As regiões terminais de ambos os braços dos cromossomas correspondem aos telómeros, que têm funções específicas na replicação e manutenção do cromossoma.

Os cromossomas distinguem-se pelo seu tamanho, posição do centrómero e padrão de bandas, quando corados em laboratório. O centrómero pode estar posicionado no centro (e o cromossoma designa-se metacêntrico), afastado do centro (submetacêntrico) ou próximo de uma das extremidades (acrocêntrico).

Actualmente, com as técnicas de coloração e bandeamento existentes, é possível obter um padrão de bandas específico para cada cromossoma, permitindo verificar se a sua estrutura está intacta ou sofreu alterações que possam ser responsáveis por patologias de origem genética. Por outro lado, com a descodificação do genoma humano tornou-se possível associar os genes a cada banda representada no cariótipo, o que constitui um instrumento muito útil na compreensão das anomalias cromossómicas e suas implicações para o indivíduo.

Cada espécie tem um total de cromossomas característico. A espécie humana tem 46, que se organizam em 23 pares, dos quais 22 autossomas homólogos ou autossomas, e um par de cromossomas sexuais, denominados de X e Y.

Recorda-se, a propósito, que:

  • Cromossomas homólogos ou autossomas são os dois cromossomas reunidos num par, de estrutura fundamental idêntica e, cada um deles, proveniente de um dos genitores;
  • Os cromossomas sexuais, por vezes designados de gonossomas, correspondem aos cromossomas X e Y, e definem o género do indivíduo consoante se organizam num par XX (género feminino), ou XY (género masculino);
  • Alelos são cada um de dois genes que ocupam pontos idênticos (locus) nos cromossomas homólogos. A excepção surge nos cromossomas sexuais onde, no caso do indivíduo do sexo masculino, apenas apresenta um alelo para cada gene do cromossoma X e um alelo para cada gene do cromossoma Y.

Os autossomas foram numerados pelo tamanho, do maior para o menor, de 1 a 22, sendo o 23º par correspondente aos comossomas sexuais.

Ao conjunto e organização dos cromossomas em pares designa-se por cariótipo ou carta cromossómica. A constituição cromossómica humana representa-se pelos caracteres 46, XX ou 46, XY, consoante se trata de um indivíduo do género feminino ou masculino, respectivamente.

Quando a célula inicia a divisão celular, os cromossomas homólogos emparelham-se. Na formação das células germinais, durante a divisão celular pode ocorrer recombinação genética ou crossing over, que permite a troca de material cromossómico entre cromossomas homólogos.

Quando ocorre uma alteração na constituição (nº de cromossomas) e/ou na estrutura cromossómica, o cariótipo surge alterado. A notação do cariótipo reflecte a anomalia ocorrida. As alterações podem implicar perda e/ou ganho de material, parcial ou total, ou a deslocação de um cromossoma (ou parte dele) para outra região, formando uma estrutura diferente. Por exemplo:

  • A síndroma de Down designa-se por 47, XX+21, ou 47, XY+21, reflectindo a existência de um cromossoma 21 extra;
  • Um cariótipo 46, XX, 5p- representa um indivíduo do sexo feminino onde ocorreu a perda do braço curto do cromossoma 5; mas se for referida a banda cromossómica delecionada, por exemplo, se a notação incluir 46, XX del5p(14.3), significa que a banda terminal do cromossoma 5, identificada como 14.3 no padrão de coloração, foi eliminada, perdendo-se esse material genético. Normalmente, a primeira situação (5p-, deleção do braço curto do cromossoma 5) é associada à situação rara síndroma do Cri-du-Chat, enquanto a perda de uma ou mais bandas dessa região condicionam fenótipos de severidades variáveis, conforme o nº de genes que deixou de existir, podendo coincidir com parte da sintomatologia da síndroma do Cri-du-Chat; 
  • Se a notação for 46, XY, der (14)t(14,21), significa que se trata de um indivíduo do sexo masculino que apresenta apenas um cromossoma 14 livre e um cromossoma derivado (der) resultante da translocação (t) do outro cromossoma 14 com o 21 (os dois cromossomas ligam-se pelo centrómero formando uma entidade diferente). Como resultado, o indivíduo tem material adicional do cromossoma 21 (dois cromossomas 21 livres e um terceiro translocado com o 14). Aparentemente a informação genética do cromossoma 14 poderá estar presente na totalidade, distribuída pelo cromossoma 14 livre e pelo 14 translocado. O resultado será, provavelmente, um fenótipo de síndroma de Down (ver Glossário – Translocação).

Mutações

O DNA pode sofrer alterações na sequência de nucleótidos, (as chamadas mutações), que se podem traduzir ou não por doença e transmitir à descendência.

As mutações podem ocorrer em qualquer parte do genoma, mas tornam-se relevantes em termos clínicos quando afectam regiões dos genes que codificam proteínas ou que modulam a sua expressão.

As alterações na região de codificação dos genes, os exões, podem alterar de forma directa a sequência de nucleótidos e modificar a grelha de leitura (frameshift), resultando na alteração da cadeia de aminoácidos traduzida e da respectiva proteína, a qual pode ser inexistente, truncada ou ter configuração anómala.

As principais mutações são a deleção, a inserção, e a substituição de nucleótidos na molécula de DNA. Fala-se em mutação silenciosa se a alteração do nucleótido permitir codificar o mesmo aminoácido, mutação missense, se resultar num aminoácido diferente e mutação nonsense, quando o tripleto mutado origina um codão STOP.

São conhecidas dezenas de mutações pontuais e inúmeros rearranjos associados a uma grande variedade de doenças e vias metabólicas.

Se a mutação afectar os intrões, regiões não codificantes do gene, pode ter consequências para a expressão do gene. O tipo mais conhecido de mutações intrónicas são as mutações de splicing, que alteram o ponto de ligação exão/intrão, dando origem a uma sequência de RNAm diferente, resultando eventualmente na expressão de uma proteína anormal, truncada ou disfuncional.

As mutações também podem ocorrer fora das sequências génicas, nos cerca de 95% de DNA não codificante. No entanto, se a mutação ocorrer em regiões de controlo dos genes, como as zonas de regulação e os centros de imprinting (ver Glossário), poderá também ter consequências biológicas e até o aparecimento de doenças genéticas.

Certas regiões genómicas apresentam uma sequência de nucleótidos que a torna muito mais susceptível a variações (ocorrência de deleções/inserções de nucleótidos), constituindo as regiões “hipervariáveis” do genoma. Algumas destas regiões podem conferir instabilidade à molécula de DNA, tornando-se, de divisão para divisão, cada vez mais instável. Os mecanismos moleculares de instabilidade do DNA estão na origem de algumas doenças genéticas, como a síndroma do X-frágil, diversas ataxias espinais cerebelosas (como a Doença de Machado-Joseph). Quando essas sequências hipervariáveis se encontram na vizinhança de regiões de controlo génico, pode resultar numa taxa de ocorrência de mutações patológicas elevada.

Actualmente, as mutações também estão a ser estudadas a nível do RNAm, permitindo uma informação mais direta sobre a expressão das proteínas nos diferentes tecidos e as consequências patológicas que as mutações possam ter.

taxa de mutação do DNAmt é maior comparativamente ao DNA nuclear. No entanto, como cada célula contém um número variável de mitocôndrias, o resultado dessas mutações é heterogéneo.

A mutação patológica que ocorre nas células germinais, óvulos e espermatozóides, é transmitida à descendência, constituindo a base da doença genética hereditária.

Se as alterações ocorrerem nas células somáticas, como é o caso do cancro, podem afectar apenas as células filhas nesse tecido e não são hereditárias (ver Glossário).

Testes de genética

Os testes de genética podem agrupar-se, numa perspectiva laboratorial, em três grupos: citogenética, genética molecular e bioquímica genética. As suas principais indicações foram abordadas no capítulo anterior.

Citogenética

A citogenética engloba um conjunto de técnicas que permite visualizar o DNA contido nos cromossomas o que, para além de se traduzir num conhecimento sobre a ocorrência de alterações na molécula nucleotídica, dá indicações sobre o tipo de alterações, a fase do ciclo celular em que terá acontecido, e o potencial de consequências resultantes para o indivíduo em estudo, incluindo as opções reprodutivas dos seus progenitores ou dele próprio, quando for o caso. De entre as principais técnicas destaca-se o cariótipo, a hibridação in situ e o array CGH.

Cariótipo

Como foi referido antes, é possível visualizar os cromossomas em laboratório. O estudo e a organização dos cromossomas em pares homólogos designam-se por cariótipo.

A visualização dos cromossomas in vitro surge após um período de cultura celular, em que é sincronizada a divisão das células em estudo, sendo interrompido o processo no momento em que os cromossomas estão formados, e seguindo-se um procedimento de coloração que “pinta” cada cromossoma com um padrão próprio de bandas escuras e claras.

Esta técnica permite detectar a ocorrência de anomalias cromossómicas (estruturais e/ou numéricas) associáveis a patologias genéticas como a trissomia 21, mesmo em contexto de diagnóstico pré-natal (DPN).

As alterações numéricas entram no grupo das aneuploidias, onde o material de um (ou mais) cromossoma inteiro pode estar adicionado ou ter sofrido deleção, designando-se por trissomia ou monossomia, respectivamente. As alterações estruturais podem apresentar diferentes aspectos, desde deleções parciais de material cromossómico, a troca de material entre cromossomas, a inversão da localização de parte do cromossoma, entre outras.

Actualmente, as técnicas de “bandeamento” de alta resolução permitem visualizar entre 400 e 550 bandas distribuídas pelos 23 pares de cromossomas. Esta resolução não permite identificar alterações com tamanhos inferiores ao milhão de pares de bases.

O cariótipo pode realizar-se a partir de vários tecidos como o sangue, pele, medula óssea e líquido amniótico e vilosidades coriónicas no período pré-natal. Podem ser identificados vários tipos de alterações como aneuploidias, deleções e duplicações parciais, rearranjos equilibrados ou desequilibrados e, até, identificar a presença de fracturas cromossómicas, características de patologias como a anemia de Fanconi e outras doenças hematológicas.

FISH – hibridação com sondas específicas fluorescentes

A associação de algumas doenças genéticas à ocorrência de microdeleções cromossómicas tem sido explorada através de técnicas FISH (fluorescence in situ hybridization).

Nesta tecnologia são usadas sondas contendo um marcador fluorescente. Quando as sondas entram em contacto com o DNA ligam-se à região para a qual têm afinidade, permitindo garantir que essa região está presente. Quando o sinal está ausente ou aparece em número diferente do esperado, é possível associar esse achado a uma patologia (dois sinais fluorescentes para sondas de cromossomas autossómicos e 1 ou 2 sinais para os cromossomas sexuais, consoante se trata do cromossoma X ou Y, considerando os dois géneros, masculino e feminino, respectivamente).

São exemplos a síndroma de Prader-Willi (15q11.2-q13) e a síndroma de Williams (7q11.23), patologias em que pode ocorrer microdeleção das regiões assinaladas nos cariótipos – bandas q11.2 a q13 do cromossoma 15 no caso da síndroma de Prader Willi, e banda q11.23 do cromossoma 7, no caso da síndroma de Williams. Estas deleções normalmente não são detectáveis pela citogenética clássica.

Esta metodologia também pode ser útil para identificar aneuploidias de forma rápida (como a trissomia 21, 18 ou 13, ou até a monossomia do X na síndroma de Turner), permitindo também posicionar os rearranjos cromossómicos, localizando os pontos de quebra e os diferentes cromossomas envolvidos na translocação. A identificação de microdeleções subteloméricas pode apoiar diagnósticos complexos de atraso do neurodesenvolvimento e insuficiência intelectual. Nem sempre a microdeleção explica a totalidade dos casos, podendo-se complementar com outras técnicas moleculares.

Cariótipo molecular – Array CGH

Recentemente foi desenvolvida a tecnologia de cariótipo molecular, ou Array CGH (Comparative Genomic Hybridization) que permite efectuar um rastreio do genoma com intervalos de resolução de 1.000 a 5.000 pares de bases ou menos, consoante a região analisada.

array CGH traduz-se num “varrimento” do genoma, podendo detectar alterações genéticas em todos os cromossomas em simultâneo, sem necessidade de um passo prévio de cultura celular. Utiliza milhares de oligonucleotídeos (sondas de DNA) específicos, identifica diferentes tipos de regiões, associadas ou não a patologia genética, cobrindo o genoma de forma a identificar também a ocorrência de ganhos ou perdas (duplicações ou deleções, por exemplo) de material genético, bem como perdas de heterozigotia.

Possui sensibilidade e especificidade significativamente maiores do que os exames de citogenética (cariótipo e FISH).

Existem diferentes tipos de array, conforme o nível de resolução que se pretende ter – o array CGH 60K utiliza 60.000 sondas espalhadas pelo DNA, o array CGH 750K envolve cerca de 750.000 sondas e o array CGH-HD pode ir até ao 2,8 milhões de sondas. As alterações identificadas podem ser correlacionadas com diversas patologias, ou até identificar novas regiões patológicas, que contribuam para o diagnóstico do doente.

A recomendação para a realização deste tipo de teste genético é cada vez mais alargada, estando este exame complementar actualmente incluído no estudo de doentes complexos portadores de síndromas com multideficiência, atrasos de neurodesenvolvimento, anomalias da diferenciação sexual, como ambiguidade genital, patologias comportamentais incluindo o autismo e os défices de aprendizagem, entre outros.

Como consequência do grande aumento da resolução e capacidade de detecção de alterações nucleotídicas, surgem as regiões de significado incerto (VOUS – variants of unknown significance), que representam um dos maiores desafios da genética molecular actual, pela dificuldade em atribuir ou excluir um significado claro no contexto da patologia.

Genética molecular

Do ponto de vista laboratorial, o avanço da genética molecular apostou na criação de metodologias que permitissem identificar os nucleótidos que constituem os genes e/ou as regiões adjacentes. O método de sequenciação de Sanger permitiu conhecer, a partir dos anos 80, a sequência de nucleótidos existente num fragmento de DNA, e a sua associação a técnicas de amplificação da cadeia de DNA, por reacção de polimerização (PCR, polymerase chain reaction), está na base de todas as tecnologias moleculares atualmente utilizadas.

Com o Projeto do Genoma Humano iniciou-se uma nova era em que são valorizados os mecanismos molecular e celular da patologia, assim como a regulação de todos os passos que vão desde a sequência de nucleótidos do gene até à expressão da característica final.

A sequenciação é o método de estudo mais utilizado para o diagnóstico das patologias mendelianas, normalmente monogénicas, como são os casos da fibrose quística, da distrofia muscular de Duchenne e da síndroma de Marfan, permitindo a confirmação do diagnóstico clínico. Uma mutação num gene pode ser responsável pelo aparecimento de uma doença, mas, consoante a localização e o tipo de mutação, pode dar origem a variantes fenotípicas da mesma patologia ou mesmo a patologias diferentes. De igual forma, uma mesma patologia pode ser originada por mutações em diferentes genes, representando por vezes algumas variações (heterogeneidade) na forma como a patologia se manifesta, quando se manifesta ou até como evolui, ao longo do ciclo de vida.

Por exemplo, na drepanocitose (gene HBB) uma única mutação pode ser responsável pela ocorrência da doença, interferindo com o quadro de leitura da sequência de bases, traduzindo um aminoácido diferente. Já na fibrose quística foram descritas centenas de mutações diferentes no gene CFTR que se manifestam de forma clinicamente variável, mostrando a importância dos estudos de correlação entre o genótipo e o fenótipo. Na síndroma de Marfan, o gene FBN1 está claramente associado à forma clássica desta síndroma (identificadas mutações em 70 a 93% dos casos), mas outros dois genes – o TBFBR1 e o TBFBR2 – correspondem a fenótipos semelhantes, associando adicionalmente aneurisma da aorta, pectus excavatum ou ectopia do cristalino.

Foram também identificados genes de susceptibilidade implicados na etiologia de doenças multifactoriais como o cancro e doenças degenerativas do adulto cuja valorização para a prática clínica deve ser feita caso a caso.

Em termos tecnológicos, a informatização e automatização de procedimentos, o aumento da especificidade, a rapidez e diminuição do tamanho dos equipamentos de sequenciação, possibilitaram o estudo simultâneo de imensas (milhares) regiões genómicas, apostando na resposta em tempo útil. Neste campo, sempre baseado no conceito da sequenciação, destacam-se as tecnologias de:

  • NGS (next generation sequencing) que possibilita a sequenciação de vários genes em simultâneo, com interesse para a patologia em estudo. Permite a criação de painéis de genes e regiões genómicas associadas a fenótipos patológicos e não apenas a uma patologia, como ataxias, cancro, cardiopatias, patologias da visão, etc.;
  • WES (whole exome sequencing), que pode ser o exoma clínico, envolvendo a sequenciação de todas as regiões genómicas contendo sequências codificantes (a maior parte dos exões existentes em cerca de 4.800 genes) ou o exoma alargado, que inclui tudo o que já foi reportado no OMIM com interesse para a patologia genética. Numa perspectiva futura será possível sequenciar o genoma (WGS – whole genome sequencing), indo para além das sequências exómicas (codificantes) e considerando outras regiões com potencial de interferência na patologia, como as zonas de metilação, de imprinting e de marcação epigenética.

O MLPA (multiplex ligation-dependent probe amplification), surge como tecnologia complementar, usando um método semiquantitativo que detecta grandes deleções ou duplicações, ou identifica sequências de 60 nucleótidos que sofreram deleção ou amplificadas (num único exão ou intrão, e/ou apanhando regiões de regulação do gene).

Por fim, uma referência ao GWAS (genome-wide association study), metodologia que explora as relações entre as variantes genéticas comuns (SNP – single nucleotide polymorphism) ao longo de todo o genoma e a predisposição à doença, com o objectivo de identificar regiões de susceptibilidade. São comparadas amostras de doentes com controlos normais e procura-se perceber se as variantes identificadas nos doentes podem ser, de alguma forma, associadas à patologia. Esta metodologia tem permitido identificar novos loci de susceptibilidade e compreender melhor a complexidade das relações entre a componente genética e a heterogeneidade fenotípica.

O estudo da susceptibilidade genética tem implicações práticas importantes no desenvolvimento de fármacos adaptados às alterações individuais e na escolha de medicamentos a aplicar de modo dirigido ou específico, em cada caso. Trata-se, pois, do desenvolvimento de áreas emergentes da ciência, tais como a farmacogenética e a medicina de precisão.

Bioquímica genética

Nos organismos vivos, os processos biológicos ocorrem por etapas, libertando e/ou consumindo pequenas quantidades de energia, criando passos intermédios do metabolismo celular, através de vias metabólicas, de construção, de destruição, de manutenção, ou até, de regulação de concentrações.

Quando ocorrem erros ou anomalias nos mecanismos dos referidos processos surge certo tipo de patologias – as doenças hereditárias do metabolismo.

Tais erros (abordados noutra parte deste livro dedicada a Doenças Hereditárias do Metabolismo/DHM) podem ser agrupados de acordo com o organelo afectado (lisossoma, mitocôndria, peroxissoma), ou a via metabólica alterada (por exemplo as dos aminoácidos, ácidos orgânicos, hidratos de carbono, etc.).

Técnicas analíticas como a espectrometria de massa, os doseamentos bioquímicos de um leque muito alargado de metabólitos e a enzimologia, permitem o diagnóstico de mais de 400 DHM e constituem a base da Bioquímica Genética.

Uma das aplicações é o rastreio metabólico neonatal, permitindo a detecção de defeitos metabólicos antes que os seus efeitos patológicos se instalem. Os primeiros testes incidiram sobre o hipotiroidismo e a fenilcetonúria; actualmente o rastreio foi alargado a um leque muito variado de patologia.

Quando o gene da patologia já foi identificado, estes testes são complementados com a genética molecular, permitindo o diagnóstico de portadores e o diagnóstico pré-natal.

Existem outras situações em que o teste bioquímico constitui a primeira abordagem com vista ao esclarecimento do diagnóstico (por ex. doseamento do factor VIII na Hemofilia A e electroforese das hemoglobinas com quantificação das hemoglobinas A2 e F nas talassémias). Estes testes são utilizados nas etapas iniciais do diagnóstico, seguidos pela realização de testes de genética molecular.

Os tecidos biológicos em que se realizam os exames de bioquímica variam de teste para teste e estão padronizados. Para cada caso é desejável contactar previamente o laboratório que irá realizar o exame para confirmar aspectos como as condições da colheita, o acondicionamento, a temperatura e o tempo do transporte até ao laboratório.

Implicações clínicas

A escolha e realização de um teste genético deve prender-se fundamentalmente com a utilidade do mesmo em função do contexto clínico de cada caso, respeitando os princípios éticos estabelecidos.

Por exemplo, em contexto de diagnóstico pré-natal, o teste escolhido, para além de poder responder às questões que se colocam (existência de anomalias cromossómicas, de mutações familiares específicas, ou ainda de variantes genómicas com significado patológico) deve respeitar os tempos da gravidez, cumprindo todos os enquadramentos legais.

No caso do DPI (diagnóstico pré-implantatório), um dos passos limitantes é a disponibilidade de material biológico (à partida pouco mais que algumas células), o que condiciona a metodologia a utilizar.

No caso das DHM não identificadas pelo rastreio neonatal, é o factor tempo que mais se considera para se poder identificar a patologia metabólica, já que a acumulação anormal de certos metabólitos terá consequências irreversíveis para o desenvolvimento da criança. Assim, a escolha da tecnologia terá que considerar a rapidez da resposta, por vezes em detrimento da maior especificidade.

Já na identificação de variantes de susceptibilidade genética em situações de decisão terapêutica, como sucede na resposta a certo tipo de fármacos (em cardiopatias, em neoplasias, na patologia mental, por exemplo), embora o factor tempo seja fundamental, é a especificidade da resposta que importa, sob pena de a terapêutica iniciada não actuar ou ter um efeito adverso.

Todos estes factores reforçam a importância do teste genético no diagnóstico e na decisão terapêutica. O diálogo entre o clínico e o especialista do laboratório de genética é fundamental, constituindo um exemplo de multidisciplinaridade, reprodutível em qualquer especialidade clínica.

Por fim, salienta-se que a opção por tecnologias que apresentem variantes de significado incerto obrigam a grande ponderação.

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A IMPORTÂNCIA DA GENÉTICA NA CLÍNICA PEDIÁTRICA

Importância do problema

A Genética Médica representa na Medicina moderna uma das estratégias essenciais para melhorar a saúde das pessoas e das comunidades. Para esta conclusão contribuíram os enormes conhecimentos obtidos nos últimos anos, nomeadamente com a sequenciação do genoma humano e a compreensão de mecanismos pelos quais os produtos dos genes actuam e podem provocar doença nos seres humanos.

O interesse da Genética para os profissionais de saúde abrange áreas como o diagnóstico, a prevenção e o tratamento de síndromas e doenças genéticas. A Biologia Molecular permitiu identificar alterações do genoma humano que viabilizaram o estabelecimento de critérios mais rigorosos de diagnóstico de algumas doenças e explicaram a variabilidade de expressão de outras pelo tipo de mutações encontradas no gene, entre outros aspectos.

Com a excepção das doenças genéticas, que resultam de uma alteração num cromossoma ou da mutação de um gene específico, a maior parte das doenças genéticas resulta da interacção entre a susceptibilidade genética da pessoa e factores ambientais, na generalidade dos casos pouco conhecidos. Muitas destas doenças, como algumas formas de cancro, de doenças cardiovasculares e da diabetes, são verdadeiros problemas de Saúde Pública.

O conhecimento actual é ainda muito limitado quanto à compreensão dos mecanismos da interacção entre os factores genéticos e ambientais que contribuem para a patogenia das doenças genéticas.

A contínua divulgação de novos conhecimentos na literatura científica e na comunicação social, a necessidade de se prestarem os cuidados de saúde na área da genética, de que os indivíduos e famílias carecem, as questões de ética que são colocadas à sociedade com as novas descobertas e inovações, alertam para a necessidade de os médicos, e muito em especial os pediatras, adquirirem novas qualificações nestes temas e procurarem actualizar os seus conhecimentos. As próprias associações científicas estão conscientes desta realidade e têm proposto iniciativas científicas de formação dirigidas aos profissionais.

A Genética Médica tem uma considerável importância em Clínica Pediátrica. Os pediatras, para além de cuidarem de crianças e adolescentes que têm doenças genéticas ou um risco elevado de, mais tarde, virem a expressá-las, estão em estreita ligação com as famílias, já constituídas ou em período de constituição, o que os torna uma fonte de grande credibilidade para informação e aconselhamento genético. O pediatra e o clínico, que prestam assistência a crianças e adolescentes não devem, pois, perder esta oportunidade de comunicação; por outro lado, devem ter uma atitude próactiva na sua intervenção.

Para serem mais eficazes na assistência a crianças e adolescentes, os referidos clínicos devem estar familiarizados com o diagnóstico das doenças genéticas mais frequentes, o aconselhamento genético, e saber orientar os casos mais complexos para serviços especializados. São estes os aspectos a desenvolver nesta parte do livro.

A consulta de Genética

A consulta de Genética é uma consulta médica, pelo que inclui elementos comuns a toda a prática médica em que a história clínica é um elemento essencial.

A história pessoal inclui uma revisão pormenorizada da gravidez, da transição e do percurso na infância, do crescimento, do desenvolvimento psicomotor e sensorial, das complicações médicas, precisando o início das manifestações da doença, os exames complementares e as intervenções clínicas entretanto realizadas. A história familiar deve recolher informação relativa a, pelo menos, três gerações e, nalgumas circunstâncias, torna-se mesmo útil inquirir outros familiares. É necessário inventariar outros casos semelhantes na família, anomalias congénitas, doenças genéticas, atraso mental ou perturbações neurocomportamentais, mortes fetais ou neonatais, ainda que aparentemente não estejam relacionados com o caso índex. Com base nestas informações é construída a árvore genealógica simplificada, que permite identificar rapidamente as relações de parentesco, perspectivar um modo de transmissão e avaliar os riscos genéticos.

O exame clínico é fundamental para o diagnóstico, interessando quer a percepção global (a impressão diagnóstica) e o apelo à memória de casos semelhantes, quer a avaliação e registo das particularidades do fenótipo. Estas características são mais tarde estudadas com pormenor, e comparadas com bases de dados de imagens, programas informáticos de diagnóstico de síndromas e a revisão da literatura científica. A orientação e a sequência do exame dependem, também, de um diagnóstico clínico prévio. Os elementos mais significativos devem ser sempre registados sob a forma de imagem.

A proposta de exames complementares decorre das hipóteses diagnósticas formuladas e a sua realização deve ser criteriosa e económica, tendo em conta os critérios que permitem o diagnóstico da doença (os elementos necessários para a “definição de caso”). Poderá recorrer-se a diferentes tipos de estudos, mas o diagnóstico não segue uma “cartilha”. Sempre que é exequível determinado teste genético com utilidade clínica, o mesmo deverá realizar-se por ser importante para o doente ter o diagnóstico, o que tem implicações a outros níveis como o aconselhamento genético, o plano de cuidados ou o projecto de vida.

A principal responsabilidade do médico geneticista é assegurar aos indivíduos e familiares de risco genético, informação científica correcta, transmitida de forma adequada e apropriada, sobre a natureza genética da patologia, as técnicas que permitem obter o diagnóstico e o risco genético para a descendência. Nesta perspectiva, para as doenças genéticas o risco corresponde à probabilidade de um descendente ou familiar nascer com uma doença genética particular.

O aconselhamento genético é um processo de comunicação em que são discutidos riscos genéticos, opções reprodutivas e apoio à família e suporte comunitário. É um acto médico que tem três dimensões principais: realizar ou confirmar o diagnóstico de uma doença genética, avaliar o risco genético de recorrência e apoiar o casal nas suas opções reprodutivas. Por definição não directivo, processa-se em termos de respeito pela autonomia e dignidade da pessoa. Porém, o papel do médico não pode ser passivo, nem neutro ou indiferente, quando participa no processo de tomada de decisão pelo casal.

Indicação para consulta de Genética

Considera-se que os indivíduos com doença genética ou de risco genético elevado, e os seus familiares, deverão ter acesso a uma consulta de Genética Médica ao longo do seu ciclo de vida. Porém, como os recursos actualmente existentes são escassos, considera-se que as principais indicações para o acesso são as seguintes:

  1. Indivíduo com suspeita de doença genética ou anomalias congénitas múltiplas;
  2. Indivíduo com défice cognitivo ou perturbação neurocomportamental, com ou sem dismorfias;
  3. Indivíduo com risco genético elevado pela história familiar;
  4. Progenitores de feto cuja gravidez foi medicamente interrompida (IMG), ou criança falecida com suspeita de doença genética;
  5. Grávida de risco genético ou com diagnóstico de anomalia embrionária ou fetal;
  6. Mulher com abortos recorrentes;
  7. Casal com patologia da reprodução.

Árvore genealógica

Ao longo dos anos foram-se uniformizando os símbolos utilizados para construir uma árvore genealógica, seja no âmbito da consulta de Genética, seja da comunicação científica. Os símbolos que são usados com maior frequência, encontram-se descritos no Quadro 1.

A árvore genealógica é geralmente representada em três gerações, embora nalgumas famílias seja conveniente ser mais abrangente quando existirem vários indivíduos afectados ou consanguinidade.

Deve ser construída de maneira simples e revelar o máximo de informação possível, tendo em conta a doença particular em estudo. É necessário incluir os dois lados da família e indicar na árvore o caso índex e os laços de parentesco.

Na árvore genealógica as gerações são representadas em números romanos e da vertical para a horizontal (I, II, III, etc.). Os indivíduos da mesma geração são representados por numeração árabe, da esquerda para a direita, geralmente no lado direito do símbolo a que se refere.

A árvore genealógica pode ser elaborada durante a consulta a partir da informação que o doente faculta, o que permite desde logo ter uma compreensão global dos dados relevantes da família. Quando existem relações mais complexas, ou vários casos de consanguinidade, podem ser registados sequencialmente os dados essenciais de cada membro da família e, posteriormente, construir-se a árvore genealógica.

QUADRO 1 – Árvore genealógica: simbologia utilizada

SimbologiaSignificado
Homem
Mulher
Casamento
Pais e filhos
Gémeos dizigóticos
Gémeos monozigóticos
Sexo indeterminado
Indivíduos afectados
Número de crianças de sexo determinado e indeterminado
Condutora (doenças recessivas ligadas ao X)
Morto
Caso index
Aborto ou feto-morto de sexo indeterminado
Casamento consanguíneo

Os testes de Genética

Os testes de genética têm por objectivo realizar o diagnóstico de doenças genéticas ou identificar pessoas de risco elevado. A realização dos testes de genética processa-se com recurso a várias tecnologias laboratoriais de acordo com procedimentos técnicos normalizados e normas éticas e de segurança que garantam a qualidade dos cuidados.

Indicações

As principais indicações para realizar testes de genética na prática clínica, são:

  1. Confirmação do diagnóstico de uma doença genética;
  2. Identificação do estado de portador de uma doença genética numa pessoa saudável, mas em risco pela história familiar;
  3. Estudo na fase pré-sintomática de indivíduos de risco elevado pela história familiar, em doenças genéticas de manifestação tardia;
  4. Rastreio e diagnóstico neonatal, particularmente para doenças genéticas que necessitam de terapêutica precoce (por exemplo a fenilcetonúria);
  5. Diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético pré-implantação (DGPI);
  6. Estudos de farmacogenética.

Para se obter o diagnóstico, por vezes é necessário realizar vários testes de acordo com o critério clínico e uma estratégia, considerando os recursos disponíveis e o estado da arte. A certeza do diagnóstico é essencial em Genética, pois o médico assume as consequências do diagnóstico em termos de aconselhamento genético e reprodutivo. Colocar um diagnóstico implica que o doente preencha os critérios obrigatórios da “definição de caso”, o que nem sempre é possível com as tecnologias actualmente existentes. Em genética molecular, muitas vezes são identificadas mutações ou variantes ainda não descritas e cujo significado patológico não pode ser garantido, mesmo com recurso a tecnologias informáticas que simulam o efeito previsível que terá na configuração da proteína. Na neurofibromatose tipo 1 e na síndroma de Marfan, por exemplo, o diagnóstico é clínico/laboratorial, de acordo com critérios de consenso definidos por peritos. Nestas situações, a realização de testes de genética molecular não é obrigatória, apenas quando têm utilidade clínica, por exemplo para fins de reprodução.

Vantagens

Os testes genéticos constituem, em muitos casos, o único método que permite obter um diagnóstico correcto para algumas doenças complexas. Mas, pelas suas particularidades, é necessário saber usar este instrumento de diagnóstico de forma adequada.

Para o pediatra e o clínico geral, o diagnóstico correcto tem a vantagem para estabelecer um programa mais personalizado de cuidados de saúde que tenha em conta a história natural da doença, prever o recurso a outras formas de apoios como terapias, ou antecipar mudanças de comportamentos e estilos de vida.

Nas doenças genéticas de manifestação tardia, como a doença de Machado-Joseph ou a paramiloidose familiar, o resultado do teste pré-sintomático assegura ao indivíduo a oportunidade para perspectivar a sua vida profissional e reprodutiva, quer seja afectado ou não, o que é muito relevante para o seu projecto de vida.

Limitações

A utilização de testes de genética também tem limitações importantes que o médico deve conhecer e ter bem presentes na prática clínica. Por outro lado, com a inovação constante nesta área, estão disponíveis continuamente novos testes cuja utilidade clínica e custo/benefício não é evidente, pelo que o seu uso sem critério pode aumentar os custos de forma significativa sem ganhos para o doente. Algumas das limitações são:

  1. Não permitem confirmar o diagnóstico de certeza em todas as doenças;
  2. Alguns genes são demasiado extensos para serem estudados na totalidade, pelo que a pesquisa de mutações se limita a alguns exões ou a algumas mutações específicas;
  3. Nem sempre a presença de uma mutação significa que a doença se venha a manifestar, por penetrância incompleta;
  4. O significado patológico de algumas mutações não é conhecido e nem sempre são responsáveis pela doença;
  5. A identificação de uma alteração genética implicada na predisposição, por exemplo nos genes BRCA1 BRCA2 relacionados com o cancro da mama e do ovário, aumenta o risco do indivíduo, mas não significa que o indivíduo venha a ter essa doença; e o inverso também é verdade, por estarem implicadas na etiologia diversas vias fisiopatológicas;
  6. O impacte do teste genético nem sempre se traduz por benefícios, antes por discriminação social por motivos genéticos, e nem sempre se traduz por alteração de comportamentos ou mais protecção da saúde por parte do doente (ver Glossário).

Contexto de realização dos testes

Deve ser assegurado um conjunto de critérios para que os testes de genética se realizem de forma correcta, que tenha em conta uma avaliação clínica criteriosa e o diagnóstico diferencial. O aconselhamento genético prévio é essencial e o médico deve explicar ao doente o tipo de exame que irá realizar, as limitações dos resultados e os benefícios esperados. Esta intervenção, a base do consentimento livre e esclarecido, é sempre necessária de modo a assegurar o respeito pela personalidade, dignidade, direitos e superiores interesses da pessoa. A finalidade dos exames tem importância em termos de prescrição. Em contexto hospitalar, os médicos podem e devem prescrever os testes de genética que são necessários para o diagnóstico. Todavia, o estudo de pessoas saudáveis para identificar portadores ou como teste preditivo (pré-sintomático ou de susceptibilidade) é competência de médico geneticista de acordo com a legislação e as boas práticas internacionais.

No caso da realização de testes preditivos de doenças genéticas de manifestação tardia, o procedimento clínico deverá realizar-se de acordo com os protocolos existentes, e as melhores práticas.

Privacidade e confidencialidade

A possibilidade de se realizar o estudo directo do material hereditário constitui um avanço científico relevante, mas coloca igualmente novos desafios à sociedade e aos profissionais de saúde. Caso a informação que resulta da realização dos testes se torne acessível a empresas ou instituições de direito privado ou público exteriores ao sistema de saúde, poderão ocorrer situações de discriminação na vida privada, no emprego e no acesso a serviços.

Este risco de violação da privacidade e de discriminação pode reportar-se à própria pessoa, aos familiares e mesmo aos futuros descendentes. Existe assim, o imperativo ético de o Estado e os estabelecimentos de saúde salvaguardarem a informação genética relevante dos doentes, nomeadamente, no acesso, circulação interna e arquivamento nos diferentes formatos. Os procedimentos deverão ser rigorosos de acordo com a legislação em vigor e auditados regularmente.

Realização de testes a crianças e adolescentes

A realização de testes de genética para fins clínicos deve obedecer a um conjunto de regras que tenham em conta o interesse e as vantagens para a criança e jovem da realização dos exames, salvaguardando a sua autonomia e o direito de, na maioridade, tomarem uma decisão informada. Estas balizas foram tidas em conta na elaboração dos diplomas legais e normativos que têm sido incorporados na legislação portuguesa.

Legislação Portuguesa

A lei 12/2005 de 26 de Janeiro sobre informação genética pessoal e de saúde é um documento importante que definiu um conjunto de princípios no âmbito da Genética Humana. Deveriam ser regulamentados alguns artigos no prazo de 180 dias, o que não aconteceu até ao momento, apesar de várias organizações científicas e a Comissão Nacional de Genética terem apresentado ao Ministério da Saúde propostas nesse sentido.

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CONTINUIDADE DE CUIDADOS À CRIANÇA E ADOLESCENTE

Importância do problema

A continuidade de cuidados à criança e adolescente pode ser definida de duas formas: – longitudinal: cuidados primários prestados pelo mesmo profissional; ou – transversal: cuidados hospitalares ou especiais; em qualquer circunstância pressupõe-se articulação e comunicação entre os profissionais envolvidos.

Os cuidados à criança e adolescente devem também ser centrados na família, o que pressupõe parceria com os pais nos cuidados e nas decisões, em ambiente adequado e apoio à mesma, de forma organizada.

Os cuidados continuados e centrados na família permitem cuidados antecipados de promoção da saúde e prevenção da doença mais efectivos e coordenados, permitindo estilos de vida mais adequados, menos comportamentos de risco, melhor cumprimento do programa de vacinação, menor procura de apoio de urgência e maior satisfação da família e dos profissionais.

Em Portugal, os cuidados de saúde primários são prestados no centro de saúde (CS) pelo especialista de medicina geral e familiar e pela enfermeira coordenadora de saúde infantil. Contudo, verificando-se uma percentagem significativa de crianças e adolescentes com vigilância de saúde em regime de pediatra privado, importa salientar que os cuidados hospitalares são prestados quase exclusivamente em hospitais públicos.

Qualquer que seja o sistema, o Boletim de Saúde Infantil (BSI) é o instrumento privilegiado de comunicação, devendo ser preenchido integralmente na saúde e na doença. Nele devem constar registos do peso, comprimento, perímetro cefálico, respectivos percentis e do neurodesenvolvimento. Devem ainda estar referidas as doenças agudas (diagnóstico e terapêutica), detectadas em consulta ou episódio de urgência, seja no centro de saúde, seja no hospital.

Seguimento regular de uma criança saudável

Todas as crianças devem ter um médico assistente, o ”seu médico”, que a criança identifica e conhece pelo nome.

No centro de saúde, o Médico de Família e a Enfermeira de Saúde Infantil são os responsáveis pelo seguimento normal, segundo os parâmetros definidos pela Direcção Geral da Saúde: Saúde Infantil e Juvenil – Programa Tipo de Actuação, actualizado periodicamente (www.dgsaude.pt).

O Programa Nacional de Vacinação, o ensino sobre “alimentação” e “vida saudável”, assim como sobre os “episódios de doença aguda” são da responsabilidade do médico e da enfermeira do CS; por consequência, as consultas devem ser programadas em horários de acordo com as necessidades da população local ou seja, na maioria dos casos, pós-laboral.

Para os CS, a Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente propõe um pediatra consultor, nomeado pelo director do serviço de pediatria da unidade de saúde, através das unidades coordenadoras funcionais (UCF). As suas funções são basicamente a discussão de casos-problema, a referenciação directa e a organização da formação contínua, com periodicidade variável, de uma vez por semana a uma vez por mês, de acordo com a disponibilidade do serviço e a necessidade do CS.

As UCF têm ainda um papel preponderante na divulgação de protocolos de referenciação discutidos e aprovados de forma abrangente.

O pediatra em regime privado é responsável pelo seguimento, pelo ensino, pela assistência aos episódios de doença aguda e pelo aconselhamento das vacinas; a administração destas últimas é da competência do CS. Idealmente, o mesmo CS deve estar organizado de modo a que, em caso de indisponibilidade numa situação de doença aguda, a família possa recorrer ao substituto por ele indicado.

Os cuidados continuados e centrados na família têm uma dimensão especialmente importante nas crianças de famílias com pobreza e exclusão social, ou em situação ilegal (filhos de imigrantes). A integração e a acessibilidade são as características fundamentais dos cuidados básicos de saúde, praticadas no contexto da família e da comunidade.

A lei portuguesa garante o direito aos cuidados de saúde e à educação, facilitando a atribuição de um médico de família. Se apenas forem propiciados cuidados de urgência com diferentes médicos, o diagnóstico e intervenção, por exemplo nos casos de patologia do neurodesenvolvimento e de doença crónica, poderão ficar comprometidos.

Continuidade de cuidados no internamento hospitalar

A continuidade de cuidados implica manter contacto com o médico que presta os cuidados fora do hospital. Se a criança for internada com doença aguda, durante o internamento deve haver contacto com o médico assistente, que conhece a família e em quem os pais confiam.

Na data da alta, deve ser discutido o relatório clínico informativo sobre o episódio de internamento com os pais, e enviada respectiva cópia directamente ao médico assistente, seja do CS, seja privado.

Sempre que possível, deve ainda haver articulação entre a enfermeira do hospital e a coordenadora de saúde infantil do CS.

Criança com doença crónica e/ou necessidades especiais

O seguimento de uma criança/adolescente com doença crónica e/ou necessidades especiais é muito mais do que cumprir prescrições. Envolve uma equipa multidisciplinar: criança-pais-médico do hospital/cuidados primários/especialista-enfermeiro-psicólogo-fisioterapeuta-professor.

Os cuidados, que devem ser partilhados, implicam uma responsabilidade bem definida de cada elemento da equipa.

O médico de família, ou o pediatra assistente, devem ser responsáveis pelas vacinas, alimentação, desenvolvimento e doença aguda. O seguimento por outra especialidade ou área pediátrica deve ser da responsabilidade do médico do hospital ou da instituição.

A equipa hospitalar deve elaborar um plano preciso da terapêutica e seguimento, sendo discutido com a família e com o médico assistente.

Não menos importante é o cuidado na centralização da informação e da orientação. O doente crónico ou com necessidades especiais precisa de um profissional que centralize o processo, de modo a não haver duplicações e perdas para a família, a qual necessita de perceber a quem se dirigir e quais as prioridades para o seu filho.

Cada um dos profissionais de saúde deve constituir-se advogado ou provedor da criança; mas, nos casos de doença crónica, deve existir o “gestor” do doente, a sugerir pela equipa, o que facilita a comunicação com os pais.

A comunicação pode ser facilitada por contacto telefónico ou através do BSI, de modo a que o médico assistente esteja suficientemente informado e possa esclarecer as dúvidas dos pais.

Transição do jovem com deficiência, doença crónica ou necessidades especiais para o médico de adultos

O início da idade adulta determina novas necessidades médicas e pessoais, com cuidados médicos apropriados à idade, mantendo-se os princípios de continuidade e transdisciplinaridade.

A transição efectiva de cuidados para o âmbito da medicina de adultos (aos 18 anos ou, em casos especiais, prolongada até aos 21) é cada vez mais importante, pois cada vez é maior o contingente da população pediátrica com doença crónica (~15-20%) que chega à idade adulta. E, por eventuais limitações funcionais com consequências sociais, emocionais e de comportamento, aquela poderá enfermar de dificuldades.

Tal transição depende da maturidade, independência, capacidade funcional dos cuidados médicos de adultos, e das diferenças entre a medicina pediátrica e a medicina orientada para o adulto, as quais são portadoras de duas culturas distintas.

Poderá haver resistência por parte do adolescente, a qual é devida à percepção de que os cuidados na medicina de adultos são deficitários quanto à preocupação de continuidade e envolvimento da família.

O processo deve ser iniciado ainda antes da adolescência, encorajando as famílias a projectar o futuro do filho. A passagem de testemunho, assim como a combinação e concertação quanto a estratégias e terapêuticas devem ser discutidas com o adolescente e a família.

Os pontos fundamentais são:

  • Identificação da instituição de saúde mais apropriada à situação;
  • Identificação do médico que passa a assumir a responsabilidade, a coordenação e o planeamento;
  • Elaboração de nota de alta ou nota de transição escrita, concisa, contendo informação médica sumária e estratégias combinadas com o jovem e a família.

Em resumo, os cuidados de saúde à criança e ao jovem devem ser especializados, centrados na família, em parceria, com continuidade, e partilhados, qualquer que seja o nível quanto a prestação (primária ou hospitalar), e através de um esforço interdisciplinar coordenado.

A continuidade de cuidados é, pois, um fenómeno multifactorial que resulta da combinação de acesso fácil aos profissionais, desempenho adequado, boa capacidade de comunicação entre a família, os profissionais e as instituições que prestam cuidados, e excelente coordenação entre todos.

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CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM NECESSIDADES ESPECIAIS – ASPECTOS GERAIS DA HABILITAÇÃO E REABILITAÇÃO

Importância do problema

A reabilitação pediátrica é uma valência da especialidade de medicina física e de reabilitação (MFR) ou fisiatria, sendo delimitada no seu universo pelo grupo etário do doente compreendido entre o nascimento até ao final da adolescência. Preocupa-se igualmente com a saúde da grávida, designadamente no que respeita à preparação para o parto, o que está de acordo, numa perspectiva transdisciplinar, com a definição de pediatria, atrás explanada: medicina integral dum grupo atário compreendido entre a concepção e o fim da adolescência.

A reabilitação da criança com deficiência e incapacidade, tarefa complexa congregando uma série de conhecimentos e de meios, desafia a capacidade duma equipa em intervir num ser em processo de desenvolvimento e maturação. Assenta, por um lado, na definição dos conceitos básicos de deficiência, incapacidade e invalidez que englobamos no campo das menos valias e das necessidades especiais, e nos conhecimentos actuais do que se entende por desenvolvimento, desenvolvimento psicomotor, sequência da maturação cerebral e de plasticidade cerebral, a abordar adiante.

A organização interna dum serviço de reabilitação varia de acordo com os objectivos propostos e os métodos utilizados para os alcançar. No Hospital de Dona Estefânia (HDE), o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação estruturou-se funcionalmente em três áreas de atendimento ao encontro da prevalência das patologias das crianças que a ele recorrem, áreas não estanques antes complementares: de reabilitação neurológica, orto-traumatológica e respiratória. Como serviço integrado e concorrendo para a dinâmica hospitalar, está presente em todos os seus núcleos e consultas multidisciplinares, como são exemplo os de spina bIifida e de ventilação. Nesta perspectiva, apoia diariamente todos os doentes assistidos nos respectivos serviços de pediatria médica e de cirurgia pediátrica, nas unidades de queimados, de cuidados intensivos pediátricos e neonatais (UCIP e UCIN) e no serviço de ginecologia e medicina materno-fetal.

Conceitos de deficiência, incapacidade e invalidez

O modelo médico clássico baseia a sua concepção no fluxograma delineado da seguinte forma: etiologia – patologia – sintomatologia. O mesmo procura racionalmente intervir na primeira fase e, quando não o consegue, nas fases seguintes.

A este modelo acrescenta-se, de forma complementar, o conceito de menos valias integrando, tal como se referiu, as noções de deficiência, incapacidade e invalidez definidos pela Organização Mundial de Saúde. Tal constituiu a base da sua intervenção como especialidade.

Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica, susceptível de provocar diminuição de capacidade, pode estar em condições de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais, tendo em conta a idade, o sexo e os factores socioculturais dominantes.

Incapacidade, consequência de deficiência, é a diminuição ou ausência de expressão de qualquer actividade nos limites considerados normais para o ser humano.

Invalidez, consequência das anteriores, traduz a impossibilidade de realização duma tarefa normal, com prejuízo laboral ou social e limitando a integração plena da pessoa doente.

Vejamos o seguinte exemplo: criança com spina bifida – nível L4/L5 – (doença). Tem perda funcional (deficiência) traduzida na diminuição de força muscular, nas alterações sensitivas dos membros inferiores e nas alterações esfincterianas. Existe incapacidade de marcha autónoma, necessitando de auxiliares, ortóteses ou cadeira de rodas, e incapacidade de esvaziamento/retenção urinária, necessitando de algaliação intermitente e dispositivos colectores de urina. Manifesta a invalidez (desvantagem) por não poder participar em todas as actividades próprias para o seu grupo etário (poderá participar em algumas delas com algum tipo de adaptação). A médio prazo necessitará de apoios educativos especiais e a longo prazo, na previsível relativa invalidez profissional; e poderá vir a necessitar de algum tipo de adaptação pessoal ou do local de trabalho para o desempenho de actividades laborais, tendo em vista a auto-suficiência.

Neurodesenvolvimento, habilitação e reabilitação

O desenvolvimento pode ser definido como o processo maturativo das estruturas e das funções da criança, que leva à aquisição e aperfeiçoamento das suas capacidades. Obedece a uma determinada sequência, com padrões de evolução variáveis e individuais. É, portanto, o resultado duma interacção adaptativa em relação ao meio ambiente e influenciada por factores intrínsecos (genéticos) e extrínsecos (ambienciais) (consultar Parte V).

Considera-se haver um atraso de neurodesenvolvimento quando a criança não realiza as tarefas que lhe são propostas e sempre aferidas à idade pelas escalas de neurodesenvolvimento. Quando o referido atraso é primário, isto é, a criança não atingiu os padrões do desenvolvimento normais para a idade, a intervenção, mais do que uma reabilitação, traduz-se numa habilitação, fornecendo à criança os meios e as ajudas técnicas necessárias à aquisição da função, isto é, mediante a aquisição de experiências. Se, por outro lado, o atraso é secundário, provocado por doença ou noxa de que resultou paragem ou regressão dos padrões de desenvolvimento da criança, a intervenção terapêutica corresponderá, então, a reabilitação.

Abordagem da criança com deficiência e incapacidade

A abordagem da reabilitação da criança com deficiência e incapacidade é feita duma forma estruturada com o objectivo de obter o diagnóstico etiológico (doença), diagnóstico funcional (deficiência, incapacidade e invalidez) e caracterização da matriz relacional (afectividade, socialização e escolarização).

No âmbito da história clínica, a anamnese será colhida à criança ou seus acompanhantes. É fundamental uma minúcia relativamente a antecedentes pessoais (AP), familiares (AF) e história sócio-familiar. Nos AP ressaltam a história pregressa da gravidez, do parto, do período neonatal, do neurodesenvolvimento (psicomotor-sensorial e de doenças anteriores). Nos AF salientam-se a existência de consanguinidade, de doenças com carácter heredofamiliar e de situações de deficiência e/ou incapacidade.

Na colheita da anamnese sócio-familiar dimensiona-se toda a envolvência da criança, permitindo enquadrar a dinâmica do núcleo familiar, como funciona, como nele se reflecte a deficiência da criança e a capacidade em prestar a assistência, e o apoio de que esta vai necessitar.

Na perspectiva do diagnóstico funcional deve inquirir-se sobre: independência e dependência da criança; de que tipo de ajuda, técnica ou de terceira pessoa necessita para realização das actividades de relação ou de vida diária como: comunicação, alimentação, higiene, limpeza e arranjo pessoal, vestir, descanso nocturno, transferências e mobilidade. É importante saber quem habitualmente presta essa ajuda e disponibilidade (elemento chave).

Na realização do exame objectivo a reabilitação partilha com as demais áreas médicas os princípios do exame físico geral com o registo sistemático e comparado dos índices antropométricos: peso, comprimento e perímetro cefálico para além da observação somática. O exame neurológico avalia de forma sistematizada os padrões de vigília, lucidez, comunicação, colaboração, traduzidas pelo interesse e interacção da criança com o meio, as motilidades global e fina, a força muscular (exame muscular duma forma analítica ou global), a coordenação, o tono muscular, os reflexos osteotendinosos e outros, pesquisa dos diversos padrões de sensibilidade, pares cranianos e presença de movimentos anormais.

Especial importância deve ser prestada à avaliação sensorial. Devem ser pesquisadas anomalias da visão, audição e função de integração das sensibilidades (agnosias). No caso de dúvida será pedida a colaboração das respectivas especialidades para caracterização qualitativa e quantitativa das anomalias. Quando presentes, as anomalias sensoriais podem ser, elas próprias, a deficiência, e necessitar de correcção adequada. Quando associadas a outras deficiências (sindromáticas), a sua não correcção pode prejudicar o sucesso do tratamento.

Especial atenção deve também ser prestada à avaliação do desenvolvimento psicomotor e do nível cognitivo relacionado com a idade cronológica (Escalas de desenvolvimento de Mary Sheridan, de desenvolvimento mental de Ruth Griffiths e outras).

No exame ósteo – músculo – articular são registadas as malformações e deformações ósseas e articulares e procede-se ao registo quantificado das limitações articulares (exame articular). Na avaliação do movimento, motricidade fina e grosseira, há que registar sincinésias, compensações, movimentos involuntários, com o registo das alterações do tono muscular.

O exame funcional avalia as consequências da deficiência e incapacidade nas tarefas básicas, actividades de vida diária e na vida relacional da criança. A criança é observada a executar as diversas tarefas de vida diária na vertente lúdica. Ao efectuar o gesto, avalia-se a lateralidade, a sua definição, a coordenação óculo-motora, o tempo de atenção útil e outros parâmetros. A criança finge beber um copo de água, lavar os dentes, pentear, vestir, dar pontapés, etc.. As capacidades de transferência, marcha ou locomoção deverão ser avaliadas na sua eficiência, procurando caracterizar o gasto energético que lhes está associado.

Há uma série de escalas que tentam quantificar o estado funcional do paciente, mais fáceis de utilizar umas que outras. As mais utilizadas são as Growing Skills e Gross Motor Function Scale. São úteis na monitorização dos progressos da reabilitação do doente, podendo servir como meio de troca de informações e experiências entre centros e escolas de reabilitação.

Após a anamnese e o exame objectivo é formulado o diagnóstico etiológico provisório, (podendo exigir-se a realização de exames complementares para a sua validação), o diagnóstico funcional e o prognóstico.

Os diagnósticos etiológicos e, sobretudo, o funcional, sustentarão o estabelecimento do plano de reabilitação e as respectivas orientações terapêuticas nas áreas funcionais de fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. Este plano terapêutico deverá ser ajustado à criança, às suas múltiplas condicionantes e orientado para a resolução dos seus problemas. Estes serão hierarquizados e reavaliados ao longo do tempo, abrangendo as vertentes pessoal, familiar e escolar.

Tal programa pode passar pela aplicação de agentes físicos (situação menos frequente na criança que no adolescente e no adulto), pela aplicação de técnicas de propriocepção (usando o frio e massagem), por técnicas normalizadoras do tono muscular e estimulação do desenvolvimento, de que são exemplo os métodos de Bobath e de Votja. Podem usar-se métodos de fortalecimento muscular e diferentes técnicas de cinesiterapia e posicionamento.

plano terapêutico pode passar, igualmente, pela prescrição de próteses, ortóteses e ajudas técnicas, incluindo as decorrentes das novas tecnologias destinadas a compensar a deficiência da criança ou atenuar-lhe as consequências, e permitindo-lhe o exercício das actividades de vida diária e a integração na vida escolar, social e profissional. É o caso das crianças com deficiência motora determinada por amputação, sequela de poliomielite, traumatismo vértebro-medular ou paralisia cerebral, necessitando de ajudas na função de locomoção. Expressa-se a ajuda na prótese, no aparelho curto ou longo para o membro inferior, em auxiliares de marcha, ou na cadeira de rodas com adaptação individual. É o caso ainda das crianças com disfunção auditiva e da linguagem, com atraso escolar e lentidão na aquisição da leitura ou escrita e a quem os meios aumentativos ou alternativos de comunicação serão indispensáveis. Na criança com desvantagem associada a deficiência visual, a ajuda técnica pode passar pelo computador com visor adaptado à ambliopia e com reforço simbólico de linguagem Braille. O estudo da necessidade e adequação das diversas ajudas técnicas às deficiências da criança pode ser efectuado num serviço de reabilitação que tenha desenvolvido experiência neste campo.

Porém, há situações específicas e complexas que exigem a aplicação de ajudas técnicas inovadoras ou decorrentes das novas tecnologias. Em tais situações justifica-se o recurso a instituições externas como o Centro de Análise e Processamento de Sinais do Instituto Superior Técnico, a Unidade de Missão e Inovação de Conhecimento, e a Unidade de Técnicas Alternativas e Aumentativas de Comunicação.

Os resultados da intervenção terapêutica deverão ser reavaliados periodicamente, podendo aproveitar-se para tal as idades-chave do desenvolvimento da criança. Poderá haver necessidade de reformulação do plano terapêutico e dos objectivos inicialmente propostos de acordo com a evolução da situação clínica. Toda a intervenção será prioritariamente orientada para a resolução dos problemas da criança e da família.

Com base na experiência do Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Hospital Dona Estefânia – Lisboa são abordados, noutros capítulos, aspectos específicos da reabilitação e habilitação, de modo integrado, a saber:

  • Reabilitação respiratória;
  • Reabilitação na linguagem ou “habilitação na criança com dificuldades na comunicação” ;
  • Reabilitação neurológica
    • Sequelas de prematuridade
    • Habilitação para a marcha e ajudas técnicas na criança com spina bifida;
  • Reabilitação ortopédica;
  • Reabilitação do doente com sequelas de queimaduras.

BIBLIOGRAFIA

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ASPECTOS DO SERVIÇO DE PATOLOGIA CLÍNICA NUM HOSPITAL PEDIÁTRICO

Objectivo do Serviço de Patologia Clínica

Um Serviço de Patologia Clínica (SPC) tem por objectivo principal apoiar os serviços clínicos de modo a possibilitar, mediante exames complementares laboratoriais, o diagnóstico e o tratamento dos doentes assistidos.

Idealmente deve estar disponível 24 horas por dia, proporcionando informação correcta e em tempo real.

Nesta perspectiva, o SPC do HDE engloba essencialmente as seguintes actividades:

  1. Colheita de produtos biológicos;
  2. Execução dos exames analíticos diversos, incluindo farmacocinética e farmacodinâmica das drogas terapêuticas, técnicas de biologia molecular para o diagnóstico de doenças infecciosas, etc.;
  3. Relatório e validação dos resultados obtidos;
  4. Diálogo com os clínicos na selecção do tipo de exames analíticos mais indicados de acordo com as hipóteses de diagnóstico do doente, proporcionando apoio na interpretação dos resultados;
  5. Apoio às comissões técnicas, designadamente comissão de controlo de infecção hospitalar através de estudos epidemiológicos;
  6. Ensino pré e pós-graduado, e investigação.

O SPC constitui uma área de fronteira interpretativa com a actividade assistencial prestada ao nível dos serviços de urgência, de ambulatório e de internamento. O mesmo tem, pois, uma missão particular pelo facto de o seu modo de funcionamento poder influenciar a evolução de inúmeras situações clínicas em função da rapidez e qualidade dos resultados; tal influência, para além doutros factores, poderá traduzir-se, por exemplo, na estadia média e tempo de permanência dos doentes nas diversas áreas assistenciais, proporcionando melhor desempenho dos restantes serviços, com consequências médicas, económicas, individuais e sociais.

Para a obtenção de bons resultados torna-se, pois, fundamental que exista uma capacidade de actuação de elevado nível técnico, de actualização de equipamentos e de métodos, assim como pessoal diferenciado.

Organograma

Para a prossecução dos objectivos, o SPC, com uma direcção clínica integrando médicos patologistas clínicos e diversos técnicos diferenciados, auxiliares e pessoal auxiliar, compreende as seguintes Secções subdivididas em Áreas de Diferenciação:

  • Secção de Hematologia (Imunofenotipagem, Hemostase, Biologia Molecular);
  • Secção de Química Clínica (Endocrinologia, Oncologia, Marcadores Ósseos, Diagnóstico Pré-natal, Infertilidade, Biologia Molecular);
  • Secção de Microbiologia (Parasitologia, Micologia, Virologia, Biologia Molecular);
  • Secção de Imunologia (Imunoalergologia, Imunoquímica, Doenças Autoimunes, Serologia de Infecções Víricas e Bacterianas, Biologia Molecular.

Colheita de produtos biológicos

Num hospital pediátrico/HAPD são prestados cuidados a uma população de doentes, desde recém-nascidos de muito baixo peso (inferior a 1.500 gramas), a crianças em todos os estádios de desenvolvimento, incluindo adolescentes, a adultos jovens (na área de medicina materno-fetal).

Num laboratório que dá apoio a esta população, é da maior importância a colheita correcta das amostras, a selecção de equipamentos e de métodos que requerem pequenos volumes de amostra (micrométodos).

Torna-se ainda fundamental que o clínico tenha conhecimento dos valores de referência adoptados por grupo etário e sexo. Os equipamentos modernos permitem utilizar pequenos volumes de amostra, aspecto de grande importância num laboratório pediátrico.

Para facilitar a colheita de sangue venoso, actualmente, nalguns centros, existem aparelhos de transiluminação utilizando luz de comprimento de onda próximo do da radiação infravermelha (entre 700 e 1.000 nm) com ampliação de imagem das veias, observada em cinescópio de TV.

Transporte das amostras

Como regra geral há que ter em conta que todas as amostras devem ser transportadas ao laboratório imediatamente após a colheita. É de grande importância para alguns parâmetros (como pH, gases no sangue e amónia), que os respectivos tubos com sangue sejam transportados em recipiente com gelo.

A existência de normas de actuação no SPC, incluindo o desenho de fluxos de trabalho em colaboração com os clínicos, possibilita a melhoria da qualidade com menos custos.

Normas de higiene e protecção

Integrando este livro tópicos sobre clínica pediátrica, e uma vez que está previsto o estágio de estudantes e de clínicos no laboratório, optou-se por seleccionar algumas normas de higiene e protecção adoptadas no SPC do HDE, as quais têm a ver com o “saber estar” no ambiente de laboratório.

Higiene pessoal

Em todas as zonas de trabalho onde se verifique risco de contaminação por agentes biológicos:

  • Deve praticar-se a mais rigorosa higiene no trabalho (prioridade para a lavagem das mãos);
  • Não deve ser permitido comer, beber ou fumar;
  • Devem estar devidamente cobertas e protegidas as feridas ou outras lesões cutâneas;
  • Deve evitar-se tocar com as mãos nos olhos, nariz ou boca, enquanto se trabalha.

Cuidados na recolha, manipulação e tratamento de produtos biológicos

  • Devem estar definidos os processos para a recolha, manipulação e tratamento de amostras de origem humana e animal;
  • Não deve ser permitida a pipetagem à boca, substituindo-a por processos automáticos ou manuais;
  • Os procedimentos técnicos devem ser executados de modo a evitar a formação de aerossóis ou gotículas. Sempre que seja possível a formação de aerossóis, devem ser usados meios de protecção ocular e respiratória, ou trabalhar as amostras em câmara de segurança;
  • Deve evitar-se flamejar as ansas; utilizar, de preferência, ansas de uso único ou micro-incineradores;
  • O material lascado ou partido deve ser eliminado com segurança;
  • Os frascos e ampolas de vidro devem ser manipulados com cuidado para não derramar o seu conteúdo e/ou não provocar aerossóis; utilizar, de preferência, tubos e frascos com tampa roscada;
  • O uso de agulhas deve ser evitado, quando possível;
  • As agulhas não devem ser recapsuladas;
  • As agulhas devem ser colocadas em contentores para corto-perfurantes, sem ultrapassar 3/4 da capacidade dos mesmos.

Atitudes em caso de acidente

  • As picadas ou cortes ocorridos durante o trabalho devem ser imediatamente tratados. Devem ser deixados sangrar (mas não chupar!) e lavados com água corrente, sem serem esfregados;
  • Se as mucosas dos olhos, nariz ou boca forem atingidas por salpicos, devem ser muito bem lavadas com água corrente; deve existir um espelho por cima do lavatório para facilitar o “auto-tratamento” dos salpicos;
  • Em caso de perfuração ou ruptura das luvas, estas devem ser removidas; em seguida deve lavar-se as mãos antes de calçar novas luvas;
  • Qualquer acidente ou incidente que possa ter provocado a disseminação de um agente biológico susceptível de causar uma infecção e/ou doença no homem, deve ser imediatamente comunicado ao responsável pela segurança. Deve ser dado conhecimento do facto a todos os trabalhadores, assim como das medidas tomadas ou a tomar a fim de solucionar a situação.

Equipamento protector

Estão incluídos nesta categoria as batas, os aventais impermeáveis, as luvas, os óculos e as máscaras.

  • É obrigatório o uso de bata para uso exclusivo nas áreas de trabalho; por isso, a mesma não deve ser usada em locais fora do laboratório (secretárias, biblioteca, cantinas, salas de convívio, etc.);
  • A bata deve fechar atrás, e deve ter mangas compridas e punhos apertados;
  • O vestuário de protecção não deve ser arrumado no mesmo cacifo que o vestuário pessoal;
  • Deve haver cabides para pendurar as batas “em uso”, situados perto da saída da sala de trabalho;
  • Todo o vestuário utilizado no laboratório deve ser enviado para a lavandaria como roupa contaminada;
  • O vestuário protector existente deve ser suficiente para assegurar a mudança regular (pelo menos duas vezes por semana ou diariamente e, ainda, para uso de visitantes ocasionais);
  • Deve haver número suficiente de protectores para os olhos (preferencialmente na forma de visor);
  • Todo o vestuário contaminado por agentes biológicos no decurso do trabalho deve ser mudado imediatamente e descontaminado por métodos apropriados antes de ser enviado para a lavandaria.

Descontaminação e limpeza

  • O plano geral de limpeza para todo o laboratório deve ser compatível com o horário de laboração do mesmo, e feito de acordo com a coordenadora do serviço;
  • Os pavimentos, as bancadas e outras superfícies de trabalho devem ser limpos no fim do dia;
  • Devem ser limpos periodicamente os tectos e as paredes, assim como as janelas e fontes de luz artificial, de acordo com o programa anual de limpeza;
  • Qualquer área de contaminação acidental com sangue ou líquidos orgânicos, culturas bacteriológicas, etc., deve ser coberta com toalhetes de papel ou tecido, e sobre eles verter hipoclorito de sódio a 1%, deixando actuar durante 30 minutos; após este tempo, limpar as superfícies sujas;
  • O material de uso único deve ser colocado em contentores apropriados, hermeticamente fechados, para ser eliminado; ou, se tal não for possível, deve ser descontaminado previamente;
  • O material para reutilização deve ser descontaminado por autoclavagem.

BIBLIOGRAFIA

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A IMAGIOLOGIA EM CLÍNICA PEDIÁTRICA

Importância do problema

A Imagiologia constitui hoje uma matéria vastíssima assumindo um papel progressivamente crescente na avaliação diagnóstica, compreensão, tratamento e seguimento das doenças da idade pediátrica.

O explosivo desenvolvimento tecnológico dos últimos 40 anos, com reflexo na variedade das técnicas de imagem hoje postas à disposição do imagiologista, tem determinado que este especialista esteja cada vez mais envolvido na selecção e adequada sequência dos exames a realizar.

As vantagens e limites desses estudos, e também o seu custo, devem ser criteriosamente ponderados face às situações em avaliação, tendo sempre como pano de fundo o grupo etário em apreço que impõe redobrada atenção no reconhecido efeito nocivo da radiação X, no eventual risco da sedação e da anestesia, na possível alergia aos produtos de contraste iodados, sem esquecer a possibilidade de trauma físico e psicológico.

Para rendibilizar vantagens e diminuir riscos, o exame imagiológico deverá estar orientado para o problema clínico específico da criança em estudo; e, para essa selecção, a anamenese, o exame físico, os dados laboratoriais e as considerações diagnósticas assumem um interesse frequentemente decisivo, pelo que a discussão partilhada entre o clínico e o imagiologista constitui factor indispensável para assegurar melhor qualidade nos cuidados de saúde em Clínica Pediátrica. De referir que a utilização de equipamentos topo de gama é também determinante para o rigor do citado exame.

Os estudos radiológicos clássicos tiveram particular impulso com a digitalização, permitindo menor dose de radiação, melhor resolução e qualidade da imagem e a possibilidade de armazenamento electrónico.

Embora ainda hoje sejam os de maior utilização em Pediatria (mais de 70% dos exames), decidiu-se neste capítulo abordar aspectos essenciais das técnicas de imagem mais modernas em utilização corrente na investigação imagiológica: (a ecografia, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética) relacionados com as suas aplicações preferenciais em diferentes órgãos e sistemas e com as respectivas virtualidades e limitações.

Ecografia

A ecografia merece um lugar de destaque num serviço de imagiologia pediátrica. Constitui técnica de primeira linha em muitas situações e frequentemente a única a empregar face ao seu valor informativo.

Tornou-se um método de diagnóstico por imagem particularmente atractivo por não utilizar radiação ionizante, não ter efeitos biológicos comprovados, ter um preço acessível, captar imagens em tempo real, multiplanares, não necessitar de grande colaboração por parte do examinado e proporcionar uma excelente resolução de imagem na criança, devido à pequena quantidade de gordura corporal e à sua parede de espessura reduzida. O exame deve ser rápido, em ambiente calmo e agradável, proporcionando a melhor colaboração.

Os avanços tecnológicos dos novos equipamentos de ecografia permitem, cada vez mais, maior número de aplicações incluindo apoio imagiológico em tempo real para a realização de biópsias, aspiração e drenagem de colecções. No entanto, estruturas como o ar, o osso, o metal, perturbam a propagação da onda acústica e impossibilitam a avaliação de órgãos subjacentes limitando a avaliação ecográfica em determinadas áreas como no crânio, em certos territórios do pescoço e no tórax.

Indicam-se as principais patologias para cujo diagnóstico a ecografia contribui:

  • Na cabeça, o exame transfontanelar no recém-nascido (RN) pré-termo tem como principais indicações a detecção e estudo evolutivo de hemorragia intracerebral e de leucomalácia periventricular; a ecografia transfontanelar permite também o estudo inicial de anomalias congénitas e hidrocefalia;
  • A ecografia permite uma avaliação anatómica da medula no lactente até aos três meses de idade, antes de os arcos vertebrais completarem a ossificação. A principal indicação para a realização deste exame é a suspeita de disrafismo oculto;
  • No pescoço, a ecografia é utilizada para estudo morfológico da tiroideia, das glândulas salivares, timo, para diagnóstico de certas massas cervicais, tais como quisto do canal tiroglosso, anomalias dos arcos branquiais, torcicolo congénito, adenopatias e linfangioma quístico;
  • No tórax, o estudo cardíaco constitui a principal indicação ecográfica, sendo, neste domínio, da competência da cardiologia. A ecografia constitui também um importante método imagiológico coadjuvante da radiografia do tórax na avaliação de lesões do parênquima pulmonar (consolidações, atelectasias, abcessos, áreas de necrose e liquefacção), da pleura (derrames, tumores), do mediastino (massas, posicionamento de cateteres), parede torácica e diafragma (hérnias, eventração, parésia);
  • No abdómen a ecografia é primeiro exame imagiológico a realizar no estudo morfológico do fígado, sistema hepatobiliar, pâncreas, baço e rins. Detecta anomalias congénitas e adquiridas como sejam as inflamátorias/infecciosas, infiltrativas e tumorais;

FIGURA 1. Estenose hipertrófica do piloro. Ecografia evidenciando canal pilórico alongado e aumento de espessura da parede

FIGURA 2. Invaginação intestinal ileo-cólica. Corte transversal ecográfico

  • No estudo do tubo digestivo tem particular interesse no diagnóstico de estenose hipertrófica do piloro (Fig. 1), (dispensando outros métodos de diagnóstico), na invaginação intestinal (Fig. 2) permitindo seguir a desinvaginação, quer por clister hidrostático, quer por método pneumático; esta particularidade poupa a criança a radiação desnecessária induzida pelos métodos convencionais. Actualmente é um exame de referência na suspeita de apendicite, na má rotação intestinal, na enterocolite necrosante, na duplicação entérica, espessamentos e infiltrações da parede intestinal, anomalias anorrectais, quistos abdominais, na doença inflamatória do intestino como a doença de Crohn, e na exploração de situações de traumatismo abdominal, particularmente nas lesões de órgãos sólidos. No estudo do abdómen também detecta quistos, tumores sólidos e adenomegalias;
  • No aparelho urinário: demonstração de anomalias do tracto superior (agenesia renal, anomalias de posição, bifidez, duplicidade), nas anomalias do tracto inferior, do uréter distal (megauréter primário, uréter ectópico, ureterocele), da bexiga (anomalias do úraco, duplicação da bexiga, divertículos), da cloaca, da uretra (válvulas da uretra posterior). Permite o estudo evolutivo de anomalias já detectadas nos estudos ecográficos pré-natais (dilatação da árvore excretora renal, displasia multiquística, etc.) (Fig. 3). Na infecção urinária comprovada: para detecção de anomalias morfológicas do aparelho urinário, litíase, lesões directas do parênquima renal, nefronia lobar, abcessos. A ecografia renal é ainda informativa nas seguintes situações: pielonefrite, lesões focais, doenças quísticas dos rins, abcessos, tumores renais (com especial destaque se existir suspeita do tumor de Wilms), traumatismos, e hipertensão arterial;
  • As glândulas suprarrenais são bem visíveis no RN, tornando-se de difícil caracterização por ecografia a partir de um mês de idade. A ecografia pode demonstrar sinais de hemorragia, abcessos, quistos e tumores sólidos como o neuroblastoma;
  • No aparelho genital feminino, a ecografia permite caracterizar a morfologia do útero e dos ovários, detectar anomalias congénitas, alterações do desenvolvimento (em particular relacionadas com a puberdade), patologia tumoral, infecciosa, isquémica (torção do ovário);

FIGURA 3. Hidronefrose. Corte sagital ecográfico pré-natal

  • Nos órgãos genitais masculinos, a ecografia é o método de escolha para examinar o escroto e os testículos, alterações congénitas, escroto agudo, tumores testiculares e extra-testiculares;
  • No sistema músculo-esquelético a ecografia é indicada para detectar displasia da anca, sendo considerada o exame de primeira linha antes da ossificação dos núcleos epifisários femorais. No serviço de urgência é frequentemente requerida para o diagnóstico de sinovite transitória da anca e lesões traumáticas dos tecidos moles. A ecografia também contribui para o diagnóstico de patologia inflamatória/infecciosa e tumoral dos tecidos moles;
  • A osteossonografia é uma modalidade de ecografia utilizando o método chamado amplitude – dependent speed of sound com interesse na avaliação das propriedades mecânicas do esqueleto, mas não permitindo quantificar a massa óssea nem a densidade mineral óssea, com pouco desenvolvimento em idade pediátrica. Não sendo habitualmente utilizada na prática clínica, as técnicas mais utilizadas são a osteodensitometria bifotónica com raio x (DEXA) e a tomodensitometria quantitativa (QCT). Existem, contudo, trabalhos científicos sobre a avaliação da mineralização óssea, desde o RN pré-termo ao adolescente.

Ecografia Doppler

A ecografia Doppler (eco-doppler) actualmente não deve ser dissociada da ecografia, pois o estudo doppler pode acrescentar em todas as áreas estudadas e apontadas anteriormente mais dados semiológicos, designadamente possibilitando de forma rápida informar se existe vascularização e caracterizá-la. Sendo a patologia vascular periférica menos frequente que no adulto, o eco-doppler é mais requisitado na suspeita de complicações de cateterismos.

No RN o eco-doppler é solicitado no estudo transfontanelar para avaliar a vascularização cerebral arterial e venosa, verificar se determinada estrutura corresponde a vaso, e para apreciar o efeito da hidrocefalia na circulação cerebral. É requerido principalmente: na pesquisa de trombo após cateterismo dos vasos umbilicais, devido à elevada incidência de trombo aórtico nestes doentes; e na suspeita de trombose da veia renal em crianças com problemas perinatais graves apresentando massa abdominal, hematúria e hipertensão arterial transitória.

Nos exames programados, tem um papel indiscutível na avaliação dos transplantes renal e hepático. Nas crianças com hepatopatia crónica possibilita a detecção de hipertensão portal, demonstra alterações do calibre e do fluxo de veias esplâncnicas, a presença de circulação venosa colateral (shunts espontâneos porta-sistémicos, salientando-se as varizes esofágicas).

Este exame constitui ainda um bom indicador da permeabilidade dos vasos renais arteriais e venosos e da vascularização do parênquima renal. Entre outras situações, permite identificar sinais de necrose tubular aguda, pielonefrite aguda e obstrução aguda do uréter.

Na patologia tumoral, o exame por eco-doppler pode realçar a hipervascularização de determinados tumores como o hemangioendotelioma hepático. De referir, no entanto, que não permite o diagnóstico diferencial entre tumor benigno ou maligno. Por outro lado, permite avaliar o estádio evolutivo de alguns tumores ao demonstrar a invasão vascular; é o caso do tumor de Wilms que pode originar trombose da veia renal e da veia cava inferior.

No serviço de urgência o eco-doppler tem aplicações importantes na avaliação do traumatismo abdominal fechado, no abdómen agudo, na pielonefrite aguda e no escroto agudo (diagnóstico diferencial entre torção testicular e orquiepididimite).

Tomografia computadorizada

A tomografia computadorizada (TC) utiliza radiação X; a mesma veio modificar a investigação imagiológica em múltiplas situações patológicas em Pediatria, independentemente da menor aplicação e desenvolvimento em relação ao verificado no estudo do adulto, tendo em conta aspectos específicos do grupo etário em estudo: menor quantidade de gordura, maior radiossensibilidade, estruturas anatómicas mais finas e dificuldades de mobilização, necessidade frequente de administração endovenosa de contraste e de sedação/anestesia.

Contudo, a reconhecida resolução espacial, o pormenor anatómico e capacidade de avaliação tecidual proporcionadas pelos cortes seccionais da TC, a utilização de cortes de espessuras de 1-2 mm (alta resolução), a possibilidade de se proceder a reconstruções bi e tridimensionais, tornaram-na uma técnica de imagem muito importante e, por vezes, indispensável para aplicação em patologia neurológica, na doença neoplásica, na criança politraumatizada, e para visualização de estruturas aéreas, ósseas e vasculares, apenas para citar alguns exemplos. Em casos seleccionados, a TC pode também orientar a realização de biópsias ou drenagens.

Os últimos avanços em TC, nomeadamente no final da década de 90 com aquisição volumétrica na utilização helicoidal (espiral) e, nos anos mais recentes, através do emprego da tecnologia de multidetectores, embora à custa de maior dose de radiação, vieram encurtar de forma significativa o tempo de aquisição das imagens, diminuindo o número de sedações/anestesias.

Por outro lado, aumentaram a capacidade de detecção de pequenas lesões, melhoraram a apreciação nos estudos após administração de contraste endovenoso e permitiram reconstruções bi e tridimensionais de grande qualidade, aspectos com particular interesse em patologia das vias aéreas, óssea, vascular, e em endoscopia virtual.

  • No estudo do pescoço tem sobretudo interesse na suspeita de abcesso retrofaríngeo, no estadiamento da doença linfoproliferativa, distinção de lesão supurada ou não supurada, na avaliação morfológica de massas, quer para definir ponto de partida, quer para avaliar a extensão e repercussão das mesmas sobre estruturas adjacentes;
  • No tórax, a TC é o método de imagem preferencial para lesões ocupantes do espaço no mediastino, ou de anomalias ou alargamentos mediastínicos suspeitos na radiografia do tórax (Fig. 4).
A
B

FIGURA 4. Teratoma quístico maduro do mediastino. Radiografia do Tórax (A) e TC após contraste (B)

Em relação ao parênquima pulmonar tem particular indicação na doença metastática, na definição anatómica de lesões complexas, eventualmente congénitas com ou sem vascularização normal, na caracterização da doença pulmonar difusa e das vias aéreas centrais e periféricas, assim como na investigação de lesões focais, em particular para esclarecer a relação de um nódulo ou massa com a pleura e diafragma.

Quer em relação ao mediastino, quer ao parênquima, a TC está indicada na avaliação do doente politraumatizado estável com lesão torácica.

Cabe referir ainda que se trata dum método auxiliar importante na distinção entre processo pleural e parenquimatoso em localização periférica, e para investigar lesões da parede torácica.

  • Na patologia do fígado e vias biliares são particularmente úteis os estudos com administração endovenosa de contraste e com aquisição rápida dos cortes, na distinção entre parênquima hepático normal e anormal; assim, permite detectar e caracterizar tumores primitivos, metástases e abcessos. Tem indicação na doença vascular e em patologia traumática. Revela-se ainda auxiliar importante na avaliação pré e pós-transplante hepático e na investigação de dilatações das vias biliares;
  • No estudo do baço e do pâncreas, as lesões de etiologia infecciosa, tumoral e traumática constituem as principais indicações para o emprego da TC, permitindo detectar pequenos nódulos e anomalias vasculares nos estudos contrastados com aquisição rápida dos cortes;
  • No tubo digestivo a TC está reservada, sobretudo, para apreciação de processos com envolvimento extraluminal da parede, no compromisso traumático, esclarecimento de alterações suspeitas com outras técnicas de imagem, no seguimento de lesões tumorais e na avaliação de extensão e complicações da doença inflamatória intestinal;
  • A TC contribui para a caracterização do envolvimento peritoneal na ascite, nos abcessos ou na doença neoplásica predominantemente secundária;
  • No rim, as principais indicações para a realização de estudos por TC são a determinação com maior rigor do ponto de partida e caracterização morfológica das massas detectadas em estudo ecográfico prévio e, também, a avaliação de extensão do traumatismo renal.

Assume particular relevo para determinar os estádios evolutivos do tumor de Wilms (Fig. 5) e, designadamente os limites da lesão, com ou sem invasão capsular, a relação da massa com órgãos adjacentes e estruturas vasculares, a apreciação do rim contralateral e eventual envolvimento ganglionar.

Tem ainda indicação na doença do parênquima renal de natureza inflamatória/infecciosa, na uropatia obstrutiva e em anomalias congénitas e vasculares.

  • Na investigação imagiológica retroperitoneal tem papel importante na avaliação evolutiva do neuroblastoma, com implicações importantes no planeamento terapêutico. A TC tem igualmente indicação para avaliar o compromisso adenopático retroperitoneal, quer em relação a patologia tumoral loco-regional, linfoma ou neoplasias com outra localização primária, quer em relação a anomalias vasculares ou alteração dos tecidos moles retroperitoneais;
  • Na cavidade pélvica a TC tem particular interesse na avaliação dos estádios evolutivos de doença maligna com ponto de partida ginecológico e na caracterização de massas complexas;
  • No sistema músculo-esquelético saliente-se a aplicação da TC em problemas ortopédicos seleccionados, nas anomalias congénitas ou de desenvolvimento ósseo (Fig. 6) de que são exemplo a displasia das ancas, sobretudo aquelas com reduções instáveis, na ante e retroversão do colo do fémur e nas sinostoses társicas. É igualmente importante em patologia traumática, no estudo de fracturas em áreas anatómicas complexas e na avaliação de complicações pós-traumáticas, nomeadamente de natureza infecciosa. Desempenha finalmente papel de relevo na apreciação da doença neoplásica óssea e das partes moles.
  • No diagnóstico neurorradiológico com o advento da ressonância magnética tem-se vindo a verificar um crescente declínio do papel da tomografia computadorizada, fundamentalmente na avaliação do sistema nervoso central. No entanto, a TC (ou TAC) continua a ser a técnica de eleição de abordagem neurorradiológica em situações de urgência/emergência.

FIGURA 5. Tumor de Wilms do rim esquerdo. TC após contraste endovenoso

FIGURA 6. Deformação de Sprengel à direita. Reconstrução tridimensional. Vista posterior. (consultar glossário geral)

Sem se pretender ser exaustivo ou estabelecer algoritmos de decisão clínico-imagiológica, é relativamente consensual que a TC continua a ser o exame de primeira intenção na investigação imagiológica nas seguintes circunstâncias:

  • Traumatismo crânio-encefálico acidental;
  • Traumatismo crânio-encefálico não acidental (criança sujeita a maus tratos) para detecção, para além de lesões intracranianas, de fracturas múltiplas da calote e/ou base do crânio;
  • Traumatismo vértebro-medular determinando o segmento do ráquis a ser estudado. De salientar a enorme limitação da TC no diagnóstico e avaliação da extensão da contusão medular ainda que com componente hemorrágico, bem como dos hematomas extra-axiais (hemorragia subaracnoideia, hematoma epidural e subdural);
  • Traumatismo facial e/ou da órbita bem como do osso temporal;
  • Na suspeita de corpo estranho intra-orbitário;
  • Na criança com sinais e sintomas de disfunção aguda encefálica, em particular se coexistir alteração do estado de consciência;
  • Na suspeita clínica de hemorragia subaracnoideia ou de hematoma cerebral;
  • Na avaliação de hidrocefalia com antecedentes de derivação;
  • Na avaliação das cavidades naso-sinusais, nomeadamente na sinusopatia inflamatória aguda recorrente ou crónica persistente, para detecção de alterações estruturais esqueléticas ou outras que expliquem o quadro patológico, assim como para detecção de consequentes lesões secundárias. Igualmente, nas complicações da sinusite aguda e na avaliação das consequências da extensão do processo infeccioso à face, à órbita e ao endocrânio;
  • Na suspeita clínica de atrésia uni ou bilateral dos coanos;
  • No estudo do osso temporal na suspeita clínica de anomalia de desenvolvimento, de colesteatoma congénito ou adquirido, ou de lesão tumoral (com excepção da lesão retrococlear), nos processos inflamatórios recorrentes e avaliação pós-cirurgia, e ainda nas complicações por extensão endocraniana ou loco-regional, incluindo região cervical em casos de otite média/otomastoidite aguda;
  • Na avaliação crânio-facial, fundamentalmente órbita e base do crânio, na craniossinostose e nas displasias ósseas (por ex. osteopetrose);
  • Nas anomalias congénitas crânio-faciais, da charneira crânio-vertebral e do ráquis.

Em clínica pediátrica e perante um quadro fortemente sugestivo de lesão encefálica vascular, tumoral ou infecciosa há quem defenda, como exame prioritário a efectuar, a ressonância magnética pelo seu maior rigor diagnóstico e topográfico.

Actualmente a TC é, cada vez mais, encarada como exame complementar da ressonância magnética no estudo da lesão tumoral ou infecciosa do crânio e coluna vertebral indiciada por outras técnicas diagnósticas, tais como a radiologia convencional ou a cintigrafia. A excepção é o osteoma osteoide.

A TC não é, seguramente, o exame a efectuar na suspeita de lesão medular ou de anomalia malformativa da medula e/ou da cauda, não sendo também o estudo elegível do eixo hipotálamo-hipofisário, da doença neurodegenerativa ou metabólica, nem da suspeita de trombose venosa a não ser que se realize angio-TC.

Ainda a salientar a supremacia da TC em relação à RM no diagnóstico da calcificação encefálica.

Em clínica pediátrica haverá que relembrar a pertinência da dose cumulativa de radiação ionizante decorrente de estudos comparativos e/ou evolutivos, e a importância de se estabelecerem protocolos utilizando-se alternativamente as técnicas imagiológicas disponíveis.

No recém-nascido a TC é um exame que, se possível, se deve evitar.

A tomografia com emissão de positrões (PET/TC) é uma modalidade sofisticada de TC, com interesse para diagnosticar e monitorizar situações de cancro com diversas localizações.

Ressonância magnética

A introdução clínica das técnicas de ressonância magnética (RM) representou novo e importante avanço qualitativo no diagnóstico pela imagem, obtida cada vez com maior acuidade. Hoje em dia, na clínica pediátrica a RM é indiscutivelmente a técnica imagiológica de excelência com maior potencialidade diagnóstica na avaliação crânio-encefálica, vértebro-medular e sistema músculo-esquelético, em particular. Nos outros compartimentos anatómicos a sua aplicabilidade não está tão difundida.

No estudo do corpo, as principais dificuldades provêm dos artefactos relacionados com as pulsações cardíacas, os movimentos respiratórios e o peritaltismo intestinal.

O funcionamento de um equipamento de RM e a formação da imagem são processos altamente complexos. Pode explicar-se sumariamente que a informação (sinal) necessária para a construção da imagem se obtém pela interacção de campos magnéticos com o campo magnético intrínseco dos átomos de hidrogénio que se encontram largamente distribuídos no corpo humano.

Não cabendo nos objectivos deste livro uma descrição dos fundamentos tecnológicos da RM, os quais estão acessíveis na bibliografia inclusa, para compreensão do leitor descreve-se o significado dalguns termos:

  • T1 – Tempo de relaxação longitudinal
  • T2 – Tempo de relaxação transversal
  • DP – Nº de protões de hidrogénio num tecido
  • ADC – Apparent Diffusion Coeficient ou Coeficiente de difusão aparente

As imagens podem ser ponderadas em T1, densidade protónica (DP) e T2. As ponderações DP e T2 têm maior acuidade na detecção da alteração tecidual, e o T1 maior rigor anátomo-morfológico.

A RM tem como principal vantagem neste grupo etário a não utilização de radiação ionizante, embora sejam conhecidos efeitos biológicos condicionados pelo potente campo magnético estático e pela radiofrequência; até à data não se demonstrou que tivessem significativa relevância clínica. A referida técnica apresenta, como atributos de supremacia em relação às outras tecnologias: a sua óptima resolução de contraste e resolução espacial que possibilita uma excelente diferenciação dos tecidos, nomeadamente na identificação da anormalidade tecidual; o seu rigor na localização anatómica e na relação topográfica lesional, consequência da aquisição de imagens em diferentes planos ortogonais; e a ausência de regiões anatómicas “cegas”.

De destacar as suas enormes potencialidades traduzidas, nomeadamente, pela possibilidade de estudos dinâmicos, de aquisição volumétrica com reconstrução tridimensional, de angio-RM arterial e venosa, de avaliação quantitativa do fluxo do líquor, de espectroscopia, de estudos de perfusão e de urografia.

A sua informação diagnóstica é somente inferior à TC na avaliação das seguintes situações: anomalias do crânio, da face incluindo órbita, e do ráquis; na lesão predominatemente osteocondensante do osso ou respeitante essencialmente à cortical óssea; na lesão esquelética com fractura; na avaliação do canal auditivo externo e ouvido médio; na avaliação pré-cirúrgica para cirurgia endoscópica naso-sinusal; no diagnóstico diferencial entre calcificação tecidual e depósitos de outras substâncias paramagnéticas tais como hemossiderina ou ferritina; e no diagnóstico, no período agudo, da hemorragia subaracnoideia.

Como desvantagens há a salientar, entre outras: o estudo é prolongado, o que obriga a sedação profunda ou anestesia na criança não colaborante, ou com claustrofobia (explicável pelo tipo de aparelhagem); não poder ser realizada em doentes portadores de estimuladores eléctricos ou de bombas infusoras, com próteses ou implantes metálicos, com “clips” vasculares ou outro material com conteúdo ferromagnético; ou ainda em doentes com certos tipos de adesivos para administração cutânea de terapêutica, podendo induzir queimaduras.

Uma vez que as consequências de não se respeitarem as regras de segurança são sempre graves, podendo inclusivamente conduzir à morte, deve ter-se sempre presente a noção de possíveis contra-indicações optando, em caso de dúvida, por outra técnica de imagem.

A difusão associada ao mapa de ADC permite diagnosticar as situações em que ocorre restrição da mobilidade da molécula de água, como seja no edema citotóxico da lesão vascular isquémica aguda, no abcesso cerebral, e nalgumas doenças metabólicas que cursam com edema da mielina. Há indicação para administração endovenosa de produto de contraste paramagnético na lesão tumoral, infecciosa e para-infecciosa, nalgumas doenças neurodegenerativas como na doença de Alexander, na adrenoleucodistrofia e na esclerose múltipla; e igualmente sempre que se coloquem dúvidas de diagnóstico diferencial.

No recém-nascido com quadro de encefalopatia aguda é um exame de segunda intenção, geralmente quando os achados ecográficos são discrepantes com a clínica ou suscitam dúvidas diagnósticas.

Ainda neste grupo etário, a RM é útil na avaliação da encefalopatia hipóxico-isquémica, do acidente vascular cerebral e das lesões da prematuridade, nomeadamente da leucomalácia periventricular quística e difusa, tendo não só um papel diagnóstico, mas também prognóstico.

De salientar que na suspeita de lesão intra-raquidiana a RM é o exame com maior sensibilidade diagnóstica, nomeadamente na avaliação da medula; de destacar ainda a elevada especificidade da RM no diagnóstico do hematoma subagudo e na trombose venosa aguda e subaguda.

A
B

FIGURA 7. Malformação aneurismática da ampola de Galeno. (A) Angio-RM, axial. “Fístulas” artério-venosas na parede anterior da veia prosencefálica marcadamente dilatada, tendo como principais pedículos arteriais nutritivos as artérias pericalosas e corodeias. (B) Angio-RM venosa, para-sagital. Proeminente dilatação da tórcula, dos seios laterais e da veia prosencefálica (veia embrionária). Marcada hipoplasia do seio longitudinal superior

A RM está indicada como estudo complementar da TC, ou como primeira abordagem imagiológica, na criança com manifestações clínicas sugestivas de:

  • Doença vascular isquémica ou hemorrágica de etiologia arterial ou venosa, chamando-se a atenção para a importância da angio-RM (Fig. 7) como primeira abordagem não invasiva dos vasos cervicais e endocranianos;
  • Tumor intracraniano;
  • Encefalite;
  • Infecção bacteriana ou fúngica (granuloma; cerebrite ou abcesso; ventriculite; empiema sub ou epidural);
  • Encefalomielite aguda disseminada;
  • Anomalia malformativa encefálica;
  • Facomatoses;
  • Hipomielinização, atraso de mielinização;
  • Esclerose múltipla (Fig. 8);
A
B

FIGURA 8. Imagens de RM na Esclerose Múltipla. A) T2 axial. Múltiplas lesões redondas e ovóides com hipersinal localizadas na substância branca profunda e subcortical. B) T2 para sagital. Múltiplas lesões redondas ou ovóides localizadas na substância branca profunda e subcortical com expressão infra e supratentorial

  • Doença metabólica ou neurodegenerativa;
  • Disfunção do eixo hipótalamo-hipofisário;
  • Complicação de meningite;
  • Hidrocefalia;
  • Lesão expansiva intra-orbitária e estudo das vias ópticas;
  • Complicação endocraniana da otite média/otomastoidite e da sinusite;
  • Lesão medular traumática, infecciosa ou tumoral;
  • Disrafismo incluindo estudo da medula, cauda equina e charneira crânio-vertebral;
  • Tumor vertebral ou paravertebral;
  • Espondilodiscite (Fig. 9).

De destacar ainda a importância da RM nas seguintes situações:

  • Estudo evolutivo da lesão tumoral para avaliação de eficácia terapêutica, na detecção precoce de recidiva e na deteção de metástases ao longo do neuro-eixo, como por exemplo no meduloblastoma;
  • Avaliação pós-cirúrgica da anomalia malformativa;
  • Avaliação das lesões sequelares de traumatismo crânio-encefálico ou vértebro-medular, de hipóxia-isquémia neonatal, de prematuridade, de lesão vascular ou infecciosa;
  • Criança com infecção por VIH (vírus da imunodeficiência humana) com sinais focais ou deterioração cognitiva;
  • Detecção de lesões estruturais subjacentes a certas formas de epilepsia.

FIGURA 9. Imagem de RM na Espondilodiscite. FSE T2 sagital. Marcada redução da altura do espaço inter-somático D12/L1 traduzindo destruição discal associada a erosão dos planaltos vertebrais. Lesão hiper-intensa envolvendo focalmente ambos os corpos vertebrais e o disco intervertebral em relação com colecção abcedada. Pequeno abcesso pré-vertebral

Por fim, refere-se particular interesse da RM nas seguintes situações:

  • Investigação de massas cervicais com suspeita de extensão intra-raquidiana;
  • Patologia cardíaca congénita e vascular torácica;
  • Massas mediastínicas;
  • Sequestro pulmonar;
  • Patologia infecciosa e tumoral da parede torácica;
  • Doenças do tubo digestivo, incluindo doença inflamatória intestinal, do pâncreas e atrésia anorrectal (entero-RM);
  • Patologia das vias biliares (colangio-RM) e pâncreas;
  • Neoplasias abdominais e retroperitoneais;
  • Avaliação hepática prévia ao transplante ou a shunts vasculares;
  • Anomalias vasculares abdominais;
  • Anomalias congénitas pélvicas, nomeadamente em alterações ginecológicas suspeitas através de avaliação ecográfica;
  • Urografia por RM (sem contraste, apenas com hidratação e sequências hidrográficas permitindo uma avaliação morfológica do rim, da árvore excretora e bexiga e urografia excretora após injecção de gadolíneo permitindo avaliar também a função renal);
  • Criptorquidia, para detecção de eventual testículo;
  • Tumores pélvicos com a finalidade de detectar invasão dos tecidos moles, alterações medulares e extensão de massas pré-sagradas;
  • Lesão infecciosa e tumoral, sobretudo óssea e das partes moles;
  • Lesões isquémicas do osso;
  • Traumatismo articular (com lesão ligamentar, capsular e da fise);
  • Patologia músculo-esquelética:
    • Lesões infecciosas e tumorais para demonstração precisa do envolvimento endo e exo ósseo;
    • Artrites inflamatórias, permitindo uma boa definição dos tecidos envolvidos, sinovial, cartilagem, medula óssea, e de derrame.

Sublinha-se a supremacia do método na avaliação comparada com a TC em processos patológicos, nomeadamente tumorais, quando a administração de contraste iodado está contra-indicada.

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ASPECTOS METODOLÓGICOS DA ABORDAGEM DE CASOS CLÍNICOS

«The proper exercise of the five senses is often far more valuable in diagnosis than a handful of laboratory reports and radiographs»

L Norrlin,1960

Importância do problema

Numa perspectiva prática, como introdução à abordagem dos casos clínicos, será pertinente veicular algumas ideias-chave relacionadas com a Semiologia, classicamente definida como o estudo dos métodos de colheita dos sintomas e sinais de doença, de lesão de órgão ou de perturbação de função.

Aquela integra duas partes: 1) a Semiotécnica ou técnica da pesquisa dos sintomas e sinais (considerada a «arte» de abordar o doente ou pessoa); e 2) a Clínica Propedêutica (a ciência da introdução à observação clínica, ao raciocínio crítico e à síntese), através da qual se integram os elementos obtidos pela Semiotécnica para se chegar ao diagnóstico e deduzir o prognóstico.

O processo de integração dos dados colhidos deve fazer-se numa sequência lógica, por fases, em crescendo; 1) anamnese; 2) exame objectivo; 3) síntese dos dados colhidos pela anamnese e pelo exame objectivo, com formulação justificada de hipóteses de diagnóstico, ponderando sempre devidamente os dados que as favorecem, assim como os dados que as contrariam; 4) solicitação de exames complementares indispensáveis segundo uma escala de prioridades e sempre em concordância com as hipóteses formuladas, para as confirmar ou excluir; 5) diagnóstico definitivo; 6) actuação, incluindo terapêutica e os cuidados gerais a prestar; 7) prognóstico.

Embora, segundo o conceito expresso, todas as fases devam ser seguidas, sem qualquer omissão ou «hiato», poderá haver situações clínicas em que, dado o peso da anamnese e do exame objectivo é dispensada a realização de exames complementares, para se atingir o diagnóstico definitivo; e outras, pelo contrário, em que o diagnóstico definitivo somente poderá ser estabelecido post-mortem ou com exames inacessíveis ao clínico em determinado contexto.

O objectivo deste capítulo é analisar e discutir sucintamente algumas tendências manifestadas pelos estudantes de medicina e médicos em formação pós-graduada (internos) durante os estágios de prática clínica, as quais, contrariando os princípios atrás expostos, poderão ser consideradas erros metodológicos na abordagem dos casos clínicos com eventuais repercussões negativas na qualidade assistencial.

Exemplos

  1. Em relação à metodologia da abordagem dos casos clínicos na área de internamento (ou ambulatório) tem-se comprovado que nem sempre é aplicado o esquema sequencial «em crescendo» atrás referido. Com efeito, no âmbito da apresentação dos casos, verifica-se muitas vezes a tendência para não explicitar, de modo fundamentado, as hipóteses de diagnóstico e/ou lista de problemas nos registos clínicos, sendo frequente, ao ser descrito o caso (oralmente ou por escrito) a “passagem” da anamnese e do exame objectivo para a solicitação dum conjunto de exames complementares, por vezes com uma lista excessiva, sem prioridades, e desajustada ao caso real. Quantas vezes, somente após a verificação de dados muito notórios colhidos pelo exame objectivo (por exemplo, icterícia, dispneia ou palidez acentuadas) se vai aprofundar a anamnese? Quantas vezes se solicita uma ecografia abdominal ou outro exame complementar sem prévia e minuciosa palpação do abdómen e sem justificar o pedido? Quantas vezes se procede a pedidos de exames sem definir uma estratégia de prioridades, envolvendo riscos vários e “agressividade” (por exemplo exames radiológicos excessivos, ou ausência de programação visando reduzir ao mínimo o número de colheitas de sangue e outros produtos biológicos) com possíveis repercussões no tempo médio de internamento, nos custos e no número de consultas?
  2. Outro exemplo diz respeito à criança em estado crítico internada em unidade de cuidados intensivos, submetida a terapia complexa e assistida por aparelhagem sofisticada. Nesta circunstância, como se depreende, a criança terá que ser manuseada com extrema cautela, pois a mesma está «submersa» em aparelhos. Face à imensidão de dados fornecidos pelos diversos tipos de monitorização biofísica e bioquímica, uma tendência, nestes casos, é minimizar certos passos fundamentais do exame objectivo, sem tirar partido de certas regras da semiologia clássica aplicável aos casos especiais dos doentes em cuidados intensivos.
  3. É também frequente assistir-se ao início do relato formal do caso começando pelo fim (por exemplo, descrição dos resultados analíticos, imagiológicos, ou dos dados fornecidos pelos monitores), antes de se dar a conhecer os eventos clínicos das últimas horas assim como os dados fornecidos pela observação convencional exequível com instrumentos clássicos que, mesmo neste contexto, continuam a ter o seu papel. A este propósito valerá a pena citar uma autoridade em intensivismo, Swyer, afirmando que a monitorização humana em unidades de cuidados especiais e intensivos é tão importante como as monitorizações biofísica e bioquímica.

Análise crítica

Tendo como base o conceito actual da Pediatria, não como especialidade, mas como Medicina integral de uma época da vida que se inicia com a fecundação e se conclui com o fim da adolescência, Ballabriga chamou a atenção para o risco da perda da unidade da Pediatria com a multiplicação das especialidades pediátricas (áreas específicas cujo desempenho implica a aplicação de determinadas técnicas). Este panorama é susceptível de gerar, segundo o autor, a chamada síndroma do super especialista, traduzida pela tendência de transferir a prática de tecnicismo exagerado para o período de formação básica do clínico geral ou pediatra geral, o que constitui uma perversão do respectivo processo educativo.

A este propósito, Charney afirmou que, se não proporcionarmos aos internos em formação as oportunidades para a concretização de determinados objectivos (os quais podem ser sintetizados no saber, no saber estar, no saber fazer com justificação, no saber comunicar e no saber investigar), e não promovermos o desenvolvimento de qualidades essenciais de perspicácia, de rigor e de sentido crítico, estaremos a criar-lhes frustrações, podendo os respectivos formadores ser culpados de negligência educativa.

A elaboração da história clínica em moldes clássicos, quer na versão de relatório escrito, quer na de exposição oral, constitui uma modalidade ímpar de treino clínico, sendo fundamental para o desempenho profissional futuro, pois permite a abordagem global de cada caso – problema; por outro lado, dá resposta a grande número de objectivos educativos no âmbito da formação do interno.

As tendências manifestadas, por vezes pelos internos através dos exemplos relatados, correspondendo a aparentes desvios da metodologia clássica de abordagem de casos clínicos, são decorrentes duma experiência pessoal e institucional, não devendo ser consideradas, por isso, representativas do panorama nacional.

Poderão ser apontadas várias explicações para as mesmas. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da tecnologia que, pelo rigoroso manancial de informação proporcionada em tempo real, leva à tentação de o clínico subvalorizar a semiologia clássica, condicionando menor investimento na metodologia do «crescendo» atrás referida. Fala-se hoje, inclusivamente, numa cultura da tecnologia pela tecnologia, para utilizar a terminologia de KelIy o qual afirma que a tecnologia tomou conta da cultura.

Mesmo que se invoque o enorme potencial dos exames complementares como meio de prevenir a chamada má-prática clínica por omissão de determinadas atitudes no acto médico, neste campo os formadores têm uma grande responsabilidade no sentido de educarem os seus estagiários a raciocinar em termos de custo-eficácia e a estabelecer prioridades quanto aos exames complementares a solicitar, sempre em obediência à anamnese, ao exame objectivo e às hipóteses de diagnóstico formuladas, numa atitude permanente de humanização. Aliás, esta noção de necessidade de procedimento metódico e correcto, com uma boa relação custo-eficácia, está implícita numa frase de Oski, traduzindo o grande saber, o bom senso, a ironia e o espírito crítico que caracterizavam este mestre: «Before ordering a test, decide what you will do if it is positive or negative. If both answers are the same, don’t do the test».

Outras explicações estarão relacionadas com a deficiente preparação durante o período de ensino pré-graduado e com a abolição da clássica prova clínica (quer na versão de relatório escrito, quer na versão de desempenho «ao vivo» com exposição oral perante o júri) da maioria dos concursos da carreira hospitalar. Tais provas constituíam, de facto, um forte estímulo, quer para os formadores, quer para os estagiários, e permitiam, por outro lado, uma selecção mais rigorosa de competências e de vocações.

Estratégia

Entre várias estratégias de abordagem e registo de dados de casos clínicos, cabe salientar uma modalidade baseada na orientação por problemas, conhecida pela sigla SOAP com o seguinte significado.

S = subjectivo (registo de sinais, sintomas, ocorrências, eventos);
O = objectivo (registo de dados objectivos comprovados através do exame físico ou de exames complementares realizados com justificação);
A = avaliação (registo dos dados disponíveis com interpretação – por ex. esplenomegália porquê?; anemia porquê?; sopro cardíaco porquê?; diarreia porquê?; rectorragias porquê?);
P = plano (registo do plano de actuação incluindo neste conceito, não só a terapêutica e esquema nutricional, como os cuidados a prestar em geral, e eventuais novos exames complementares), sempre em função dos dados disponíveis, da lista de problemas e da actualização do diagnóstico.

Esta estratégia, de acordo com a nossa experiência, tem diversas vantagens: obedece ao princípio do “crescendo” atrás referido, contribui para a prática do raciocínio clínico, cria hábitos de registo mais rigorosos facilitando o processo de comunicação e as tarefas do interno, quer nas apresentações em reuniões de discussão de casos, quer na visita clínica.

A prática destes gestos no dia-a-dia sob a orientação do sénior-tutor, facilitam a aquisição de competência clínica, em obediência aos princípios fundamentais da antiquíssima tradição Hipocrática, os quais podem ser sintetizados no Quadro 1.

Lá diz o ditado: «Oiço e esqueço; vejo e lembro-me; faço e compreendo».

QUADRO 1 – Competência clínica e pressupostos

Em suma, se no quotidiano da enfermaria ou ambulatório, junto dos internos, se investir na abordagem correcta dos casos clínicos, estar-se-á a contribuir para a formação de médicos competentes, o que se traduzirá num serviço a prestar à comunidade de melhor qualidade e mais humanizado.

Competência clínicaPressupostos/condições indispensáveis
Colheita da história clínicaFormação básica/
Aquisição de conhecimentos
Exame físico/observaçãoFormação básica/
Aquisição de conhecimentos
DiagnósticoLógica indutiva/Raciocínio hipotético-dedutivo
Actuação/tratamentoAquisição de atitudes
PrognósticoExperiência

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CLÍNICA PEDIÁTRICA HOSPITALAR

As particularidades da idade pediátrica

As crianças não são adultos pequenos a quem se administram pequenas doses de medicamentos; são, pelo contrário, seres em constante evolução, com características peculiares. Com efeito:

  1. A sua fisiologia difere da dos adultos e altera-se à medida que crescem e se desenvolvem, o que implica maior vulnerabilidade na doença e face ao estresse;
  2. As mesmas podem ser afectadas por um espectro de doenças diferente do dos adultos, com especial realce para as doenças congénitas e hereditárias;
  3. A sua capacidade de compreensão relativamente ao corpo, à doença e à morte é diversa da dos adultos, evoluindo ao longo do tempo;
  4. Utilizam os serviços de saúde geralmente acompanhados pela mãe ou outro adulto responsável que tem as suas próprias necessidades e direitos, como o de ser informado e tomar parte em decisões; destas circunstâncias decorre um estatuto legal diverso do do adulto;
  5. São fortemente influenciadas pelo ambiente ou sistema envolvente em que crescem e se desenvolvem (família, escola, grupos de amigos e a comunidade em geral);
  6. Sendo afectadas pelas doenças que também surgem na idade adulta (por exemplo mucoviscidose, drepanocitose), adultos e crianças não constituem populações comparáveis, pois em idade pediátrica existe risco mais elevado de mortalidade.

Em sintonia com o conceito global de Pediatria, a Convenção dos Direitos da Criança ratificada por todos os órgãos de soberania portugueses (1990), considera “Criança” “todo o ser humano até aos 18 anos”. A adolescência está, pois, incluída neste conceito, sendo reconhecida como uma fase da vida com necessidades e características específicas. Considerou-se arbitrariamente o fim da adolescência aquele limite de idade por razões de ordem organizativa assistencial.

Dado que cada vez mais adolescentes atingem a idade adulta com patologias até há pouco quase desconhecidas da prática da medicina do adulto, nalgumas situações específicas, a idade de 21 anos é usada como limite para o atendimento nas instituições pediátricas.

Com efeito, o processo de transição de um adolescente com doença crónica grave para os hospitais ou serviços de adultos é difícil, por vezes dramático, pela perda de acesso aos cuidados tradicionalmente mais personalizados nos serviços ou hospitais pediátricos. De facto, tais doentes estão muitas vezes ainda dependentes da família e do perfil assistencial anterior.

O ambiente pediátrico necessário

Dois modelos de prestação de cuidados pediátricos hospitalares do nível mais diferenciado se confrontam: 1) o modelo de hospital geral (prestando cuidados a todos os grupos etários), integrando serviço de pediatria; 2) o modelo de hospital pediátrico autónomo, embora integrado numa área com outras instituições ligadas à prestação de cuidados ou campus sanitário.

As experiências vividas na infância e juventude têm um impacte crucial na vida de cada indivíduo; por isso, os contactos com os serviços de saúde em tal período da vida influenciam significativamente as atitudes futuras do mesmo em relação a esses serviços.

Não dependendo a saúde apenas da prestação de cuidados, mas também do ambiente social, biofísico e ecológico, e estando estabelecido que os estímulos lúdicos, afectivos e emocionais são factores determinantes no processo terapêutico, assume a maior importância a criação do chamado ambiente pediátrico. Aliás, a criação de tal ambiente está implícita na Declaração dos Direitos da Criança Hospitalizada.

Assim, ao tipo convencional de cuidados humanizados de qualidade a cargo de profissionais especialmente preparados, o ambiente pediátrico associa: equipamentos e metodologias adaptados à condição e estádios de desenvolvimento da criança e maturidade do adolescente (por exemplo, móveis, equipamento lúdico, música, participação de artistas/palhaços, espaços apropriados com envolvência segura e integralmente reservados aos jovens utilizadores, como ludotecas, etc.).

Estas especificidades são cruciais para a garantia da excelência da prática pediátrica hospitalar centrada na criança e na família. Estando mais intrinsecamente ligadas à própria natureza dos hospitais pediátricos onde a sua exequibilidade é mais fácil, elas são também desejáveis e possíveis nos serviços de pediatria de hospitais gerais (idealmente separados dos serviços de adultos).

O ambiente pediátrico pressupõe garantia prévia de qualidade assistencial; tratando-se de instituições com cuidados de alta diferenciação, quer se trate de hospital pediátrico, quer de serviço de pediatria integrado em hospital geral, torna-se fundamental que sejam propiciadas todas as valências compatíveis com tal nível de cuidados.

O Hospital de Dona Estefânia – Aspectos históricos, organizativos e demográficos

O Hospital de Dona Estefânia (HDE), integrado no Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC), foi sede da primeira escola pediátrica no nosso país e o primeiro hospital construído de raiz em Portugal pela mão do arquitecto britânico Humbert (como foi referido, inaugurado em 1877 com a placa identificativa da Pedra de Armas Reais de Dom Pedro e Dona Estefânia – HRE).

Em 1969, com a integração da Maternidade Magalhães Coutinho, concretizou-se a sua transformação em hospital materno-infantil médico-cirúrgico. Por ocasião da entrada em funcionamento na área da grande Lisboa dum novo hospital com maternidade (Hospital Fernando da Fonseca/Amadora-Sintra), entre 1996 e 2001 o HDE funcionou sem maternidade até 2001, ano em que foi inaugurada no edifício Dom Pedro V do mesmo uma moderna maternidade dando assistência a situações de alto risco com ligação directa ao edifício principal na sequência de obras de requalificação levadas a cabo no referido pavilhão.

Esta nova maternidade, colaborando com a Maternidade Alfredo da Costa (MAC), e admitindo grávidas de alto risco devidamente referenciadas, viria a fechar as suas portas em 2014 no meio de grande controvérsia, passando os partos a ser realizados na MAC, entretanto integrada no CHLC.

Na década de 80 teve início no HDE o intensivismo neonatal e pediátrico e, em 1992, aquele recebeu o antigo Serviço de Saúde Mental Infantil de Lisboa, integrando hoje o novo Departamento de Pedopsiquiatria.

Na sequência do forte impulso reformista iniciado nos anos 60 acompanhado de obras de remodelação arquitectónica e de ampliação, surgiu um primeiro ciclo de diferenciação com a criação das unidades de Hematologia, de Endocrinologia, de Gastrenterologia, de Pneumologia, e de Nefrologia. No âmbito da Cirurgia Pediátrica outras áreas subespecializadas também foram surgindo, tais como a Cirurgia Neonatal, Nefro-urologia, Ortopedia, Patologia Clínica, Fisiatria, Imagiologia, etc..

É já no contexto de um segundo ciclo de inovação nas décadas de 80-90 que se inscreve a criação e consolidação de outras áreas devotadas à criança e adolescente, salientando-se as seguintes: Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Estomatologia, Neurocirurgia, Cirurgia Oncológica, Cirurgia Endoscópica, Cirurgia em Ambulatório, Implantes Cocleares, Reumatologia, Ortotraumatologia, o Isolamento de Alta Infecciosidade (unidade de referência pediátrica no sul do País), Imunoalergologia, Função Respiratória desde o período de recém-nascido, Ventilação Crónica Domiciliária, Rastreio Auditivo Universal ao RN, Doenças Metabólicas, Medicina do Viajante, etc..

O HDE tem um corpo de cerca de 1.500 funcionários dos quais, aproximadamente, 400 são efermeiros, 250 são médicos distribuídos por 20 especialidades médicas e cirúrgicas que, por sua vez, se diferenciam em subespecialidades e competências. A Pediatria Médica constitui o maior contingente com cerca de 75 especialistas, dos quais 25% estão dedicados ao intensivismo neonatal e pediátrico, com equipas independentes.

Trata-se de um hospital de média dimensão com uma lotação de cerca de 180 camas para a idade pediátrica, incluindo as atribuídas a UCIN, UCIP, Pedopsiquiatria e Cirurgia Pediátrica.

Os recursos assistenciais do hospital integram áreas departamentais, serviços, unidades funcionais e núcleos técnicos sob responsabilidade de um corpo clínico hierarquizado (diretores, chefes de serviço, coordenadores e outros responsáveis). Prestando o HDE o nível mais elevado de cuidados à comunidade, a vertente de assistência está implicitamente ligada às vertentes de ensino pré e pós-graduado, e de investigação.

Trata-se dum modelo transversal de cuidados em obediência a uma filosofia de abordagem multidisciplinar e multiprofissional coordenada, centrada nas necessidades e expectativas do doente/família e na garantia de continuidade dos cuidados prestados a cada criança e adolescente.

No âmbito da humanização cabe salientar um conjunto de actividades específicas muitas delas desenvolvidas com o apoio em mecenato, tais como: Núcleo contra a Dor, Núcleo de Apoio à Criança e Família, Unidade de Apoio Domiciliário, humanização dos espaços através de pinturas de parede em todo o hospital (programa internacional “Paint a Smile”), Apoio de alojamento a famílias de crianças deslocadas com doença crónica e tratamento prolongado (Casa Ronald Mac Donald – a primeira em Portugal), a integração e socialização de crianças doentes particularmente carenciadas (parceria com a Fundação Gil), a valorização dos tempos lúdicos na vida da criança internada (Programa “Nariz vermelho – Palhaços no Hospital”, Programas “Música no Hospital”, Programa lúdico mensal “A hora do conto” do “Rotary Club”, Serviço de Educadoras de Infância, Ludoteca Lyon’s), a informação geral à comunidade (sítio na Internet), o apoio humano e espiritual (Serviço de Voluntariado, Serviço Religioso), a atenção às expectativas e necessidades especiais das famílias (Gabinete do Utente, Serviço Social) e à suas necessidades de comunicação (Gabinete de Comunicação), campos de férias para crianças diabéticas e asmáticas, etc..

Quanto à valência da formação salienta-se: o Ensino Universitário da Pediatria (4º, 5.° e 6.° anos do Mestrado Integrado em Medicina) em ligação à Faculdade de Ciências Médicas (FCM)/Nova Medical School (NMS) da Universidade Nova de Lisboa (UNL); a valência de formação pré-graduada engloba o Centro Universitário, com biblioteca própria, e o Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria-CSTP.

No que respeita à valência de formação pós-graduada, importa salientar: o Centro de Formação pós-graduada multiprofissional (designadamente cursos anuais para internos sob a égide da Direcção do Internato Médico); a Biblioteca do HDE englobando Biblioteca – on-line; o Núcleo Iconográfico (acervo de milhares de imagens fotográficas de patologia assistida no HDE, as quais são classificadas e organizadas permitindo a sua utilização no ensino pré e pós-graduado); o Gabinete de Telemedicina; o Centro de Treino em Cirurgia Endoscópica; Programa de intercâmbio de estudantes de medicina estrangeiros, etc..

No âmbito da investigação salienta-se: o Centro de Investigação integrando parceria hospital-faculdade; a publicação (acompanhada de evento científico anual) do chamado Anuário do HDE contemplando todos os estudos realizados no HDE com atribuição de prémios segundo regulamento; área de investigação opcional aberta a estudantes de medicina da FCM/NMS/UNL e outras universidades, etc..

A área de governação clínica (clinical governance) segue uma orientação baseada em determinados vectores tais como: a melhor evidência científica disponível para o desenvolvimento de políticas de intervenção e recomendações de boas práticas sob forma de Normas de Orientação Clínica; a realização de auditorias clínicas sistemáticas por pares; e a avaliação e redução do risco profissional e dos doentes.

O Arquivo Clínico é centralizado, dispondo de uma zona específica de alta segurança para processos que a requeiram; com a informatização de todos os serviços do HDE é utilizado o processo clínico informatizado.

O HDE desenvolve um Programa de Melhoria Contínua de Qualidade organizacional cuja avaliação externa lhe conferiu a acreditação internacional (Fig. 1) de qualidade global (Health Quality Service/Instituto da Qualidade em Saúde).

FIGURA 1. Hospital com Acreditação Internacional/HQS

A instituição privilegia formas actuantes de convivência com a comunidade, designadamente a unidade coordenadora funcional, os centros de saúde, serviços de segurança social, autarquias locais, instituições académicas, escolas de formação profissional, instituições particulares de solidariedade social, associações de doentes, entidades nacionais e internacionais de interesse público, mecenas e instituições beneméritas privadas. A qualidade das parcerias estabelecidas com este último sector conferiu ao Hospital o prémio “Hospital do Futuro – 2005”.

O Quadro 1 resume alguns aspectos demográficos (valores médios referentes a 2015).

QUADRO 1 – Aspectos demográficos do HDE (2015)

Anos 20142015201620172018
Internamento4.4194.2444.3414.3444.110
Lotação131125123126124
Internamento
Demora Média (dias)
7,97,98,469,029,5
Taxa de Ocupação (%)73,572,779,682,184,2
Intervenções Cirúrgicas4.3263.9113.5783.5553.264
Cirurgias em Regime Ambulatório1.7341.4081.1291.070887
Hospital de Dia (sessões)4.4314.9285.1725.2894.284
Episódios de Urgência76.48275.01878.38574.08674.773
Consultas Externas117.320120.036109.201109.034108.189

A clínica pediátrica hospitalar no futuro

Se, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), os sistemas de saúde e as instituições que prestam cuidados à criança e adolescente forem centrados no “melhor interesse” destes cidadãos, os países e os profissionais devem preparar-se para os desafios que se esperam no futuro em diversas vertentes:

Demográfica

Haverá que encarar as consequências das alterações demográficas tendo em conta a redução continuada da natalidade e fecundidade, a idade mais tardia da mulher no primeiro parto e as novas formas de organização familiar; aumentarão as tensões para a adopção de políticas migratórias mais liberais com risco de alargamento de bolsas de exclusão e de degradação das respectivas condições de saúde.

Técnico-profissional

A prática clínica respeitará cada vez mais as recomendações emanadas de comissões de peritos e de sociedades científicas; crescerá a exigência social e institucional sobre a qualidade e diferenciação dos profissionais. A certificação regular das competências profissionais e a presença assídua de advogados na relação médico-doente e instituição-doente serão provavelmente realidades muito próximas.

Formativa

Será em breve realidade o ensino com recurso aos simuladores médico-cirúrgicos e à endonavegação virtual; a especialização será apenas uma parte do processo de formação e a educação médica contínua ganhará decisiva importância nos processos de manutenção e actualização das competências; os especialistas generalistas, como por exemplo os pediatras, incluirão cada vez mais competências tecnológicas na sua formação e desempenho.

Inovação tecnológica

Num contexto de contínua explosão tecnológica será dada especial atenção às áreas de grande potencial e rápido desenvolvimento como a investigação genómica, a neuropsicobiologia e a biologia molecular; transplantações e terapêutica com linhas celulares estaminais; surgirão novos veículos terapêuticos a nível celular; crescerão exponencialmente os meios de diagnóstico e intervenção pela imagem; estarão disponíveis novas técnicas anestésicas e equipamentos de ventilação inteligentes; continuarão os problemas de resistência aos antimicrobianos e de infecção nosocomial; a prevenção das doenças pediátricas com repercussão no adulto e a pediatria preditiva constituirão áreas de forte investigação e desenvolvimento; a robótica tenderá a revolucionar as metodologias de treino técnico e autoformação; a globalização da informação científica, a comunicação em telemedicina e teleconsulta irão trazer novos desafios ao nível da segurança de dados informáticos dos doentes e da deontologia médica; e o nível de aceitação dos riscos iatrogénicos e o avanço nos suportes de vida levarão a novos dilemas éticos e de responsabilidade médica e institucional.

Sistema de saúde

Haverá maior desenvolvimento das redes nacionais e internacionais de referenciação de doentes; desenvolver-se-á o transporte pediátrico e a rede de trauma; generalizar-se-á o uso de sistemas e índices de monitorização clínica para comparação de centros diferenciados; crescerá a diversidade e diferenciação dos profissionais que participam nos cuidados à criança; o financiamento hospitalar estará em progressiva correspondência com a produção de actos facturáveis; e aumentará a pressão de aliciamento das entidades privadas sobre os técnicos formados nos serviços públicos.

Filosofia e estrutura dos hospitais

O hospital irá integrar-se em redes e ele próprio funcionará com redes baseadas nas suas especialidades; a maior proporção de doentes crónicos levará à necessidade de substituir encontros técnicos com especialistas durante episódios de doença por programas de relacionamento consistentes e duradouros; ampliação das áreas de hospital de dia, ambulatório e cirurgia do ambulatório; a par da redução das áreas de internamento os novos hospitais não serão como os grandes edifícios dos anos 60-70 e irão adoptar dimensões geríveis e rendíveis com arquitecturas seguras, em especial para doentes com limitações de mobilidade; as áreas de medicina materno-fetal e obstétricas serão programadas para uma carga anual ideal entre 1.500 e 3.000 partos; cada vez mais os equilíbrios entre volume do edifício, a facilidade de acesso, a relação com a cidade em que se implanta o hospital e o conhecimento das necessidades das crianças condicionarão a concepção arquitectónica; a importância de um ambiente adequado à criança; sendo a habitual atmosfera familiar (homelike) e a privacidade factores terapêuticos importantes, os arquitectos e engenheiros hospitalares tomá-los-ão em conta nos novos projectos de construção e reabilitação dos hospitais pediátricos; crescerá o conceito de “hospital verde” tirando o máximo partido das fontes energéticas naturais; será concretizada uma significativa redução do uso de papel e uma menor produção de resíduos com importantes repercussões sobre as formas de registo clínico, o acesso a dados do doente e a informação médica em geral.

Prestação de cuidados e governação clínica

O internamento será quase residual e apenas para os casos muito complexos; será impulsionada a figura do médico ou enfermeiro gestor do doente crónico; a informatização dos dados clínicos e a prescrição por computador serão regra; a efectivação de programas específicos de transição dos adolescentes para unidades de adultos será inevitável; o controlo da qualidade passará da apreciação entre pares para a análise de resultados.

Exigência institucional e expectativas da comunidade

O padrão de qualidade a adoptar será fortemente influenciado pela interpretação da utilidade dos cuidados prestados às famílias que acedem ao hospital; com o desenvolvimento dos sistemas de qualidade organizativa e de prevenção de riscos, a meta de excelência clínica será a prioridade entre os objectivos da prestação de cuidados numa perspectiva de forte regulação económica e financeira, e de influência crescente dos operadores privados.

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INVESTIGAÇÃO E CLÍNICA PEDIÁTRICA

O conceito de Investigação em Saúde

Investigação científica no sentido lato pode definir-se como o processo racional que procura comprender e desvendar o mundo, contribuindo para ampliar os nossos conhecimentos. No sentido estrito, a definição integra duas modalidades:

  1. a chamada investigação básica (fundamental ou experimental) debruçando-se sobre os problemas biológicos e levada a efeito em laboratórios com características diversas;
  2. a investigação clínica ou aplicada, com um espectro alargado de valências:
    1. orientada para doentes ou para indivíduos saudáveis de modo interactivo, designadamente estudando amostras de fluidos, tecidos ou fenómenos cognitivos, intervenções terapêuticas, ou realizando ensaios clínicos ou ainda, avaliando novas tecnologias, etc.;
    2. sobre estudos epidemiológicos e comportamentais; c) sobre serviços de saúde e resultados obtidos.

Valerá a pena, para a compreensão do âmbito de tal conceito, uma referência a Claude Bernard, enquadrando a sua citação no tempo em que viveu – o século XIX: O importante é mudar as ideias à medida que a ciência progride”.

Das atribuições gerais das instituições de saúde e, designadamente dos hospitais ligados ou não às universidades, em função do grau de diferenciação, fazem parte, para além da valência prioritária do serviço assistencial à comunidade, as do ensino e da investigação.

Como corolário, caberá dizer que o desenvolvimento devidamente estruturado da vertente de investigação numa instituição de saúde, traz seus dividendos a curto, médio e longo prazo pelo impacte muito positivo daquela na assistência e na qualidade de serviços a prestar à comunidade. De facto, na sua essência, investigar, consiste em verificar prospectivamente uma hipótese, em “resolver problemas“ procurando soluções face a questões que são previamente formuladas, na previsão de mudança de atitudes aplicáveis no futuro a pessoas sãs ou doentes.

Reportando-nos a 1979, será pertinente recordar James Wyngaarden que chamou a atenção para a importância da transposição das descobertas biomédicas para a “cabeceira do doente”, o que originou o conceito de investigação de translação (translational research), consubstanciando a aplicação dos avanços de cariz fundamental na prática médica.

Neste contexto, será de admitir o interesse em as referidas instituições de saúde criarem, manterem e desenvolverem elos fortes de ligação com outras instituições de saúde e com centros ou institutos de investigação de créditos formados.

Ou seja, intensificando tal ligação, criam-se condições de parceria e sinergias tendo em conta, por um lado, o potencial da “base de dados clínicos ou de material humano de doentes”, das instituições de saúde e, por outro, as potencialidades dos institutos universitários ou laboratórios de investigação experimental relacionados com as ciências básicas (biostatística, epidemiologia, etc.).

O impacte da investigação na clínica

Analisado o âmbito da investigação clínica, pode deduzir-se que a dinâmica de crescimento de tal vertente, como resultado de parcerias, facilita o intercâmbio científico com instituições congéneres nacionais e internacionais aplicando diversas estratégias; estas passam necessariamente pela criação de “redes de investigação” viabilizando, nomeadamente, a concretização de estudos cooperativos e prospectivos, divulgação e partilha de resultados em eventos científicos, e em publicações nacionais e internacionais.

Por outro lado, tal dinâmica facilita o estímulo duma nova geração de médicos e de investigadores com interesse pela saúde infantil, e a descoberta de vocações para as diversas vertentes da investigação, no pressuposto de as medidas a levar a cabo serem acompanhadas de incentivos e de estratégias de acompanhamento dos mesmos pela instituição de que dependem.

Diversos argumentos justificam o interesse da investigação aplicada nas práticas assistenciais; eis alguns: a) a investigação clínica é um processo de resolução de problemas com uma aplicação em vista (por exemplo, estudo da melhor relação custo-efectividade de determinada terapêutica ou de determinado exame complementar de diagnóstico); b) a investigação clínica contribui para a formação do espírito crítico com implicações na prática clínica; c) a investigação clínica promove o treino na recolha e valorização das informações conducentes à decisão clínica; d) a investigação clínica promove o desenvolvimento do espírito de sistematização do conhecimento.

Torna-se evidente que as questões cruciais que decorrem destas noções são justamente a definição dos problemas a investigar (a resolver) implicando cooperação entre clínicos e gestores institucionais, motivando estes últimos para tal questão.

O panorama actual da investigação no País

Dados do Observatoire des Sciences et des Technologies em Paris, comparando as contribuições científicas relativas a diferentes países europeus concluem que a União Europeia contribui com cerca de 30% da produção científica no mundo. Para esta parcela, Portugal contribuía até 1990 com 0,1% em comparação com a Grécia, (0,4%), com a Espanha (1,9%) e com a Bélgica (0,8%).

Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas a um terço da produção científica irlandesa e 1/10 da espanhola. A distância para a Espanha reduziu-se para 1/5, devendo contudo ter-se em conta que a população é quatro vezes maior. Entre 1990 e 2006, as Ciências (Química, Física, Medicina, Biologia, Engenharias, entre outras) produziram 55.573 publicações.

De acordo com dados do INE (2008) registaram-se progressos assinaláveis no nosso país entre 2000 e 2007. Sem ser especificada a fracção que cabe às ciência básicas biomédicas versus medicina clínica em geral, e pediatria em especial, no referido período (8 anos) o crescimento da produção científica foi 91,5%.

Os artigos e outros escritos dos portugueses, referidos pelo Science Citation Index (SCI), colocaram, pela primeira vez o nosso país à frente da Irlanda.

Portugal (seria injusto não o afirmar) congrega alguns centros de investigação de excelência reconhecidos internacionalmente, embora com nítido predomínio na área das ciências básicas. Alguns atribuem este panorama à ausência de uma cultura para investigar, quer nas universidades, quer nos hospitais. Para tal contribuirá, seguramente, a falta de incentivos em termos de progressão de carreira hospitalar – profissional, quer para os médicos diferenciados que ascendem na carreira, quer para os jovens médicos na pós-graduação para obtenção do título de pediatra. Bastará, para demonstrar tal afirmação, citar a desvalorização das actividades de investigação nos concursos da carreira hospitalar (para consultor ou para chefe de serviço) em que a publicação de estudos é muito fracamente cotada. E qual o futuro, se as carreiras estão em vias de extinção?

Outros factores, que podem explicar o panorama descrito, têm sido apontados: falta de tempo devido à pressão das funções assistenciais, falta de meios logísticos de apoio, falta de plano cooperativo para a resolução dos problemas assistenciais, indefinição de objectivos das Administrações hospitalares na vertente de investigação, havendo apenas preocupação com os objectivos quanto à prestação de cuidados mensuráveis, défice de formação desde o curso universitário, etc..

Surge, assim, certa desmotivação por se admitir – de acordo com o espírito da legislação – que “investigar não é importante para o desempenho profissional”.

O contexto actual é, pois, o de perda de oportunidades por quem é subalterno, tem interesse, mas não tem incentivos nem condições para ser estimulado. Esta questão tem a ver, aliás, com a importância do fomento de tal “cultura para a investigação” por parte de quem é orientador de formação de médicos em fase de pós-graduação.

Goldstein e Brown (investigadores galardoados com prémio Nobel em 1997) traduziram este panorama de dificuldade ou de desmotivação para a investigação apelidando-o de “síndroma”- PAIDS ou “Paralyzed Academic Investigator´s Disease Syndrome”.

Embora o programa de formação do internato de formação específica de pediatria contemple (modestamente) uma valência de investigação, o resultado final será muito precário, na medida em que a valência não é obrigatória. Para reverter a situação, torna-se fundamental estimular os jovens internos, – eles são o nosso futuro – criando uma valência obrigatória (de três meses no mínimo) durante o internato, fomentando a participação daqueles em actividades concretas em centros idóneos de investigação.

Infelizmente, no quadro das administrações de instituições específicas, hospitalares ou não, não está previsto que os responsáveis pelos serviços integrem nos respectivos planos de actividades um programa anual de investigação, nem está previsto, pela legislação actual, qualquer financiamento para esta valência.

Cabe salientar, no entanto, alguns sinais positivos de mudança dos últimos anos quanto a incentivos para a investigação clínica (bolsas de estudo para centros internacionais, prémios, etc.), por iniciativa, principalmente, da Sociedade Portuguesa de Pediatria e suas Secções, e das Universidades. Constitui sinal positivo nas instituições ligadas ao Ministério da Saúde a criação nos últimos anos de Centros de Investigação; o Hospital de Dona Estefânia, onde o autor deste capítulo sempre trabalhou, é um dos exemplos que se têm multiplicado.

No âmbito da clínica pediátrica hospitalar e da medicina familiar, aos orientadores de formação e directores cabe grande responsabilidade na génese da mudança e no estímulo dos internos no sentido de aproveitamento de oportunidades para candidaturas a bolsas para projectos de investigação, designadamente sob os auspícios de fundações com esta vocação (Gulbenkian, Champalimaud, FCT, etc.).

Modelos estratégicos para incentivar a investigação

Tendo em conta as ideias atrás explanadas, para incentivar a investigação no âmbito das instituições de saúde, torna-se fundamental estabelecer uma filosofia assente em determinadas linhas estruturais:

  1. A investigação aplicada é cada vez mais biomédica envolvendo, para além dos médicos, outros profissionais/investigadores como biólogos, farmacêuticos, bioquímicos, biofísicos, geneticistas, especialistas em epidemiologia e biostatística, matemáticos, etc.;
  2. A investigação biomédica deve ser centrada na interdisciplinaridade entre as chamadas disciplinas básicas e disciplinas clínicas, designações que hoje se podem considerar ultrapassadas pois a ”interpenetração mútua” é cada vez maior;
  3. A investigação clínica somente se torna rendível em termos de aquisição de “dimensão ou massa crítica” se forem criados grupos inter-instituições e um sistema funcional de “rede” interligada;
  4. Para além do aspecto quantitativo que decorre da associação de pequenos grupos inter-institucionais, é necessário que entre os mesmos existam afinidades, lealdade, capacidade de integração e projectos bem delineados;
  5. Necessidade de apoio oficial e de mobilização de fundos monetários nacionais e no estrangeiro para garantir o funcionamento do “sistema”;
  6. Ao nível de cada instituição ou grupo de instituições haverá que criar “centros” funcionais a regulamentar (com médicos/investigadores), com um coordenador responsável, que garantam a logística de promoção, dinamização e coordenação das actividades de investigação e o compromisso de “ligação à rede” de outros centros nacionais e internacionais.

Para a concretização dos princípios atrás referidos, ao nível das instituições de saúde é necessário o compromisso da tutela e de determinados organismos para a adopção de determinadas medidas:

  1. Informatização dos serviços clínicos com criação de “base de dados”;
  2. Possibilidade de consultadoria estatística e de “software”;
  3. Criação de prémios e de bolsas para jovens investigadores;
  4. Maior valorização das actividades de investigação na avaliação curricular dos concursos ou contratações;
  5. Maior envolvimento das sociedades científicas, nomeadamente na organização de redes, na mobilização de fundos e na definição de prioridades;
  6. Maior envolvimento das universidades, das administrações hospitalares, e das direcções dos serviços hospitalares na formação em investigação e no apoio à investigação clínica, estabelecendo parcerias com as empresas da indústria farmacêutica segundo princípios ético;
  7. Necessidade de maior parcela do Produto Interno Bruto (PIB) devotado à investigação;
  8. Necessidade de sistema de avaliação externa das actividades por peritos de idoneidade comprovada, nacionais e internacionais;
  9. Continuação da abertura de concursos orientados para a área clínica da investigação em Saúde.

Seria injusto não reconhecer o papel que a Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Ordem dos Médicos têm tido na formação em investigação e na criação de bolsas e prémios para os médicos e médicos pediatras interessados em progredir na investigação. Reitera-se que a maior vulnerabilidade recai, de facto, nas próprias instituições de saúde, verificando-se défice de sensibilização para tal problemática: são definidos, em geral, objectivos em termos de resultados assistencias sem estabelecer objectivos no âmbito da investigação. A mudança é, pois, necessária.

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