Introdução
A disponibilidade de material biológico de diversas origens (tecidos, sangue, líquido amniótico, células do epitélio bucal, entre outras) e a maior ou menor facilidade em o obter potenciaram o desenvolvimento de diversas técnicas laboratoriais altamente específicas e tendencialmente mais eficazes. Desta forma, tornou-se possível associar alterações genéticas a quadros patológicos, confirmar diagnósticos clínicos e/ou definir estratégias de prevenção e de decisão terapêutica (incluindo as opções reprodutivas e o aconselhamento genético).
A realização de um exame laboratorial do foro genético (teste de genética) necessita apenas de um conjunto de células somáticas nucleadas, pois cada uma delas contém, à partida, a mesma constituição cromossómica da primeira célula embrionária, reflectindo as alterações germinais herdadas ou que surgiram de novo.
A visualização dos cromossomas in vitro tornou-se possível a partir de 1956 quando Tijo e Levan desenvolveram um tipo de coloração do DNA (desoxyribonucleicacid) que evidenciava um conjunto de bandas claras e escuras, formando um padrão característico de cada cromossoma. A padronização das bandas (ou “bandeamento”) dos cromossomas permite o reconhecimento de anomalias estruturais específicas, associadas a determinadas síndromas genéticas. O cariótipo molecular constitui uma ponte poderosa entre a citogenética clássica e a biologia molecular.
Ao nível molecular, desde que Watson e Crick, em 1953, definiram a estrutura química da molécula de ADN, o avanço da genética humana teve dois pontos altos:
- Quando, nos anos 80 do século passado, foi definida e apurada a metodologia de sequenciação do DNA, permitindo conhecer finalmente a sequência de nucleótidos e;
- Com a participação da bioinformática no desenvolvimento de software viabilizando a leitura das sequências de DNA.
Estes dois factos tornaram possível iniciar o Projeto do Genoma Humano, na década de 90, terminando com a descodificação do Genoma em 2003.
Com a automatização crescente e a possibilidade de estudar muitas regiões genómicas ao mesmo tempo, o diagnóstico genético é actualmente muito rápido, específico e eficaz, tornando-se um poderoso instrumento para o diagnóstico clínico.
Por outro lado, a interferência do ambiente, as regiões de susceptibilidade, a noção de que uma patologia pode ser originada por alterações em diferentes genes e que um mesmo gene pode ser responsável por patologias diferentes, consoante o tipo de mutação ocorrida, modificou a forma como a Genética Clínica aborda o aconselhamento genético e incluiu definitivamente a genética molecular como parceiro no diagnóstico final.
Ao nível dos processos metabólicos celulares, o desenvolvimento da bioquímica genética, e a detecção precoce e/ou a acumulação de metabólitos potencialmente patológicos, potenciaram o aparecimento de terapêuticas de substituição que permitam compensar ou retardar o efeito nocivo da alteração metabólica. A complementação dos testes bioquímicos com estudos de genética molecular contribuiu para a multidisciplinaridade da Genética Médica, alargando o conjunto de testes disponíveis, adequando as terapêuticas e aumentando a responsabilidade de se estabelecer um diagnóstico precoce e correcto das doenças hereditárias do metabolismo.
Organização do material genético
A designação material genético diz respeito a toda a informação que um indivíduo contém em cada célula nucleada, podendo dar origem a uma característica, ou condicionar o seu aparecimento e expressão. Cada célula do organismo contém, teoricamente, a mesma informação genética, uma informação que se diz diplóide (ou 2n) e que foi herdada dos seus progenitores – metade (n) de cada um, resultando da fusão dos gâmetas (óvulo e espermatozóide), resultando na formação do embrião, contendo um património genético único para cada indivíduo.
Genes e genoma
Os genes são as unidades básicas da informação genética de um indivíduo. Correspondem aos segmentos da molécula de DNA (ou ADN, ácido desoxirribonucleico, em português), que contêm a informação necessária para a produção duma proteína ou dum polipéptido, contribuindo para a formação de uma característica.
Na célula, o DNA localiza-se em duas estruturas próprias: o núcleo, onde se encontra a maior parte do DNA dito nuclear; e as mitocôndrias, organitos responsáveis pelos processos energéticos, onde se localiza o DNA dito mitocondrial (DNAmt). A informação genética individual contida nos genes nucleares e nos genes mitocondriais designa-se por genoma.
A molécula de DNA é constituída por sequências de nucleótidos (também designados por bases), havendo 4 diferentes, simbolizadas por letras do alfabeto – Adenina (A), Timina (T), Citosina (C) e Guanina (G) – que se dispõem numa cadeia dupla emparelhada e enrolada helicoidalmente, falando-se frequentemente em “pares de bases”. As referidas letras (do “alfabeto genético”) organizam-se em sequências mais ou menos longas, seguindo um código com significado para o organismo.
Cada gene pode ter entre centenas de nucleótidos (como é o caso do gene da insulina, codificada por uma sequência de cerca de 1.500 pares de bases, que dá origem a uma proteína de 110 aminoácidos) a milhões, (como é o caso do gene da distrofina, que se estende por cerca de 2,2 milhões de pares de bases e dá origem a uma proteína de 3.700 aminoácidos).
Cada gene está localizado num ponto definido (locus) de um dado cromossoma. Os genes nucleares distribuem-se ao longo da cadeia de DNA, intercalados por sequências de nucleótidos, muitas vezes repetitivas, cujo significado e relevância biológica ainda se desconhece em grande parte.
Há uma associação directa entre a localização de um gene no DNA e a sua posição no cromossoma, resultando numa ordenação própria que é similar em ambos os cromossomas homólogos (de origem materna e de origem paterna), permitindo um emparelhamento perfeito aquando da divisão celular.
O código genético inclui programas que determinam a leitura dos genes, de forma sequencial ou alternada, consoante a situação metabólica e/ou estádio do desenvolvimento do indivíduo.
O DNA nuclear contém cerca de seis mil milhões de pares de nucleótidos. Estima-se que existam cerca de 20.000 genes diferentes, correspondendo a pouco mais de 5% do genoma e contendo as instruções de produção das proteínas que formam as células, tecidos e órgãos do organismo.
O resto das sequências que compõem o DNA denomina-se DNA não codificante. Embora as respectivas sequências não codifiquem proteínas, estas sequências contêm regiões com funções muito importantes, nomeadamente na regulação e controlo da actividade dos genes, activação e inactivação dos programas celulares, realização de diversas tarefas celulares, como o emparelhamento dos cromossomas, a duplicação do material genético, a manutenção dos telómeros (estruturas com propriedades especiais ocupando a extremidade livre de um cromossoma), entre outras.
O DNA mitocondrial (DNAmt), de menor dimensão e com características diferentes, é constituído por 16.570 nucleótidos a que correspondem 37 genes que ocupam 93% da molécula.
As mitocôndrias são organitos intracitoplasmáticos cuja principal função é a produção da energia necessária à célula através de um processo denominado fosforilação oxidativa. Essa energia fica retida em moléculas de adenosina trifosfato (ATP) que podem ser utilizadas nos diversos processos metabólicos da célula. Estima-se que as mitocôndrias sejam responsáveis pela produção de mais de 90% do ATP necessário para cada indivíduo. As mitocôndrias também estão envolvidas noutras vias metabólicas como a biossíntese de pirimidinas, do colesterol e dos neurotransmissores.
O DNA mitocondrial (DNAmt) é uma molécula circular, semelhante à dos plasmídeos bacterianos. O genoma mitocondrial e o nuclear comunicam entre si, numa interacção permanente, sendo o DNA nuclear o responsável pela codificação da maioria das proteínas necessárias à mitocôndria.
Cromossomas
Os cromossomas correspondem a moléculas de DNA que se formam durante o ciclo celular, quando a célula se divide. É a forma de organizar o DNA, através de múltiplos enrolamentos altamente controlados, envolvendo as histonas, proteínas nucleares com características específicas, que formam arranjos geométricos específicos, recorrendo ao enrolamento e superenrolamento helicoidal da cadeia. Este processo permite, entre outras situações, que o DNA esteja acessível, em particular as regiões importantes para o emparelhamento dos cromossomas homólogos e para a transcrição do RNAm.
É possível visualizar os cromossomas em laboratório, permitindo verificar se a sua estrutura está intacta ou sofreu alterações que possam ser responsáveis por patologias genéticas.
Na preparação laboratorial, os cromossomas apresentam um aspecto linear, sendo constituídos por dois braços unidos por uma zona de constrição, o centrómero. O braço curto é designado por p (petit), e o braço longo designado por q (letra que se segue no alfabeto à letra p, ou proveniente da palavra queue, que significa fila ou cauda em inglês).
Cada cromossoma tem um tamanho próprio e um conjunto específico de genes. Por exemplo, o cromossoma 1 é dos maiores; contém cerca de 246 milhões de pares de bases, o que representa 8% do DNA nuclear. Neste cromossoma existirão 2.100 a 2.600 genes.
As regiões terminais de ambos os braços dos cromossomas correspondem aos telómeros, que têm funções específicas na replicação e manutenção do cromossoma.
Os cromossomas distinguem-se pelo seu tamanho, posição do centrómero e padrão de bandas, quando corados em laboratório. O centrómero pode estar posicionado no centro (e o cromossoma designa-se metacêntrico), afastado do centro (submetacêntrico) ou próximo de uma das extremidades (acrocêntrico).
Actualmente, com as técnicas de coloração e bandeamento existentes, é possível obter um padrão de bandas específico para cada cromossoma, permitindo verificar se a sua estrutura está intacta ou sofreu alterações que possam ser responsáveis por patologias de origem genética. Por outro lado, com a descodificação do genoma humano tornou-se possível associar os genes a cada banda representada no cariótipo, o que constitui um instrumento muito útil na compreensão das anomalias cromossómicas e suas implicações para o indivíduo.
Cada espécie tem um total de cromossomas característico. A espécie humana tem 46, que se organizam em 23 pares, dos quais 22 autossomas homólogos ou autossomas, e um par de cromossomas sexuais, denominados de X e Y.
Recorda-se, a propósito, que:
- Cromossomas homólogos ou autossomas são os dois cromossomas reunidos num par, de estrutura fundamental idêntica e, cada um deles, proveniente de um dos genitores;
- Os cromossomas sexuais, por vezes designados de gonossomas, correspondem aos cromossomas X e Y, e definem o género do indivíduo consoante se organizam num par XX (género feminino), ou XY (género masculino);
- Alelos são cada um de dois genes que ocupam pontos idênticos (locus) nos cromossomas homólogos. A excepção surge nos cromossomas sexuais onde, no caso do indivíduo do sexo masculino, apenas apresenta um alelo para cada gene do cromossoma X e um alelo para cada gene do cromossoma Y.
Os autossomas foram numerados pelo tamanho, do maior para o menor, de 1 a 22, sendo o 23º par correspondente aos comossomas sexuais.
Ao conjunto e organização dos cromossomas em pares designa-se por cariótipo ou carta cromossómica. A constituição cromossómica humana representa-se pelos caracteres 46, XX ou 46, XY, consoante se trata de um indivíduo do género feminino ou masculino, respectivamente.
Quando a célula inicia a divisão celular, os cromossomas homólogos emparelham-se. Na formação das células germinais, durante a divisão celular pode ocorrer recombinação genética ou crossing over, que permite a troca de material cromossómico entre cromossomas homólogos.
Quando ocorre uma alteração na constituição (nº de cromossomas) e/ou na estrutura cromossómica, o cariótipo surge alterado. A notação do cariótipo reflecte a anomalia ocorrida. As alterações podem implicar perda e/ou ganho de material, parcial ou total, ou a deslocação de um cromossoma (ou parte dele) para outra região, formando uma estrutura diferente. Por exemplo:
- A síndroma de Down designa-se por 47, XX+21, ou 47, XY+21, reflectindo a existência de um cromossoma 21 extra;
- Um cariótipo 46, XX, 5p- representa um indivíduo do sexo feminino onde ocorreu a perda do braço curto do cromossoma 5; mas se for referida a banda cromossómica delecionada, por exemplo, se a notação incluir 46, XX del5p(14.3), significa que a banda terminal do cromossoma 5, identificada como 14.3 no padrão de coloração, foi eliminada, perdendo-se esse material genético. Normalmente, a primeira situação (5p-, deleção do braço curto do cromossoma 5) é associada à situação rara síndroma do Cri-du-Chat, enquanto a perda de uma ou mais bandas dessa região condicionam fenótipos de severidades variáveis, conforme o nº de genes que deixou de existir, podendo coincidir com parte da sintomatologia da síndroma do Cri-du-Chat;
- Se a notação for 46, XY, der (14)t(14,21), significa que se trata de um indivíduo do sexo masculino que apresenta apenas um cromossoma 14 livre e um cromossoma derivado (der) resultante da translocação (t) do outro cromossoma 14 com o 21 (os dois cromossomas ligam-se pelo centrómero formando uma entidade diferente). Como resultado, o indivíduo tem material adicional do cromossoma 21 (dois cromossomas 21 livres e um terceiro translocado com o 14). Aparentemente a informação genética do cromossoma 14 poderá estar presente na totalidade, distribuída pelo cromossoma 14 livre e pelo 14 translocado. O resultado será, provavelmente, um fenótipo de síndroma de Down (ver Glossário – Translocação).
Mutações
O DNA pode sofrer alterações na sequência de nucleótidos, (as chamadas mutações), que se podem traduzir ou não por doença e transmitir à descendência.
As mutações podem ocorrer em qualquer parte do genoma, mas tornam-se relevantes em termos clínicos quando afectam regiões dos genes que codificam proteínas ou que modulam a sua expressão.
As alterações na região de codificação dos genes, os exões, podem alterar de forma directa a sequência de nucleótidos e modificar a grelha de leitura (frameshift), resultando na alteração da cadeia de aminoácidos traduzida e da respectiva proteína, a qual pode ser inexistente, truncada ou ter configuração anómala.
As principais mutações são a deleção, a inserção, e a substituição de nucleótidos na molécula de DNA. Fala-se em mutação silenciosa se a alteração do nucleótido permitir codificar o mesmo aminoácido, mutação missense, se resultar num aminoácido diferente e mutação nonsense, quando o tripleto mutado origina um codão STOP.
São conhecidas dezenas de mutações pontuais e inúmeros rearranjos associados a uma grande variedade de doenças e vias metabólicas.
Se a mutação afectar os intrões, regiões não codificantes do gene, pode ter consequências para a expressão do gene. O tipo mais conhecido de mutações intrónicas são as mutações de splicing, que alteram o ponto de ligação exão/intrão, dando origem a uma sequência de RNAm diferente, resultando eventualmente na expressão de uma proteína anormal, truncada ou disfuncional.
As mutações também podem ocorrer fora das sequências génicas, nos cerca de 95% de DNA não codificante. No entanto, se a mutação ocorrer em regiões de controlo dos genes, como as zonas de regulação e os centros de imprinting (ver Glossário), poderá também ter consequências biológicas e até o aparecimento de doenças genéticas.
Certas regiões genómicas apresentam uma sequência de nucleótidos que a torna muito mais susceptível a variações (ocorrência de deleções/inserções de nucleótidos), constituindo as regiões “hipervariáveis” do genoma. Algumas destas regiões podem conferir instabilidade à molécula de DNA, tornando-se, de divisão para divisão, cada vez mais instável. Os mecanismos moleculares de instabilidade do DNA estão na origem de algumas doenças genéticas, como a síndroma do X-frágil, diversas ataxias espinais cerebelosas (como a Doença de Machado-Joseph). Quando essas sequências hipervariáveis se encontram na vizinhança de regiões de controlo génico, pode resultar numa taxa de ocorrência de mutações patológicas elevada.
Actualmente, as mutações também estão a ser estudadas a nível do RNAm, permitindo uma informação mais direta sobre a expressão das proteínas nos diferentes tecidos e as consequências patológicas que as mutações possam ter.
A taxa de mutação do DNAmt é maior comparativamente ao DNA nuclear. No entanto, como cada célula contém um número variável de mitocôndrias, o resultado dessas mutações é heterogéneo.
A mutação patológica que ocorre nas células germinais, óvulos e espermatozóides, é transmitida à descendência, constituindo a base da doença genética hereditária.
Se as alterações ocorrerem nas células somáticas, como é o caso do cancro, podem afectar apenas as células filhas nesse tecido e não são hereditárias (ver Glossário).
Testes de genética
Os testes de genética podem agrupar-se, numa perspectiva laboratorial, em três grupos: citogenética, genética molecular e bioquímica genética. As suas principais indicações foram abordadas no capítulo anterior.
Citogenética
A citogenética engloba um conjunto de técnicas que permite visualizar o DNA contido nos cromossomas o que, para além de se traduzir num conhecimento sobre a ocorrência de alterações na molécula nucleotídica, dá indicações sobre o tipo de alterações, a fase do ciclo celular em que terá acontecido, e o potencial de consequências resultantes para o indivíduo em estudo, incluindo as opções reprodutivas dos seus progenitores ou dele próprio, quando for o caso. De entre as principais técnicas destaca-se o cariótipo, a hibridação in situ e o array CGH.
Cariótipo
Como foi referido antes, é possível visualizar os cromossomas em laboratório. O estudo e a organização dos cromossomas em pares homólogos designam-se por cariótipo.
A visualização dos cromossomas in vitro surge após um período de cultura celular, em que é sincronizada a divisão das células em estudo, sendo interrompido o processo no momento em que os cromossomas estão formados, e seguindo-se um procedimento de coloração que “pinta” cada cromossoma com um padrão próprio de bandas escuras e claras.
Esta técnica permite detectar a ocorrência de anomalias cromossómicas (estruturais e/ou numéricas) associáveis a patologias genéticas como a trissomia 21, mesmo em contexto de diagnóstico pré-natal (DPN).
As alterações numéricas entram no grupo das aneuploidias, onde o material de um (ou mais) cromossoma inteiro pode estar adicionado ou ter sofrido deleção, designando-se por trissomia ou monossomia, respectivamente. As alterações estruturais podem apresentar diferentes aspectos, desde deleções parciais de material cromossómico, a troca de material entre cromossomas, a inversão da localização de parte do cromossoma, entre outras.
Actualmente, as técnicas de “bandeamento” de alta resolução permitem visualizar entre 400 e 550 bandas distribuídas pelos 23 pares de cromossomas. Esta resolução não permite identificar alterações com tamanhos inferiores ao milhão de pares de bases.
O cariótipo pode realizar-se a partir de vários tecidos como o sangue, pele, medula óssea e líquido amniótico e vilosidades coriónicas no período pré-natal. Podem ser identificados vários tipos de alterações como aneuploidias, deleções e duplicações parciais, rearranjos equilibrados ou desequilibrados e, até, identificar a presença de fracturas cromossómicas, características de patologias como a anemia de Fanconi e outras doenças hematológicas.
FISH – hibridação com sondas específicas fluorescentes
A associação de algumas doenças genéticas à ocorrência de microdeleções cromossómicas tem sido explorada através de técnicas FISH (fluorescence in situ hybridization).
Nesta tecnologia são usadas sondas contendo um marcador fluorescente. Quando as sondas entram em contacto com o DNA ligam-se à região para a qual têm afinidade, permitindo garantir que essa região está presente. Quando o sinal está ausente ou aparece em número diferente do esperado, é possível associar esse achado a uma patologia (dois sinais fluorescentes para sondas de cromossomas autossómicos e 1 ou 2 sinais para os cromossomas sexuais, consoante se trata do cromossoma X ou Y, considerando os dois géneros, masculino e feminino, respectivamente).
São exemplos a síndroma de Prader-Willi (15q11.2-q13) e a síndroma de Williams (7q11.23), patologias em que pode ocorrer microdeleção das regiões assinaladas nos cariótipos – bandas q11.2 a q13 do cromossoma 15 no caso da síndroma de Prader Willi, e banda q11.23 do cromossoma 7, no caso da síndroma de Williams. Estas deleções normalmente não são detectáveis pela citogenética clássica.
Esta metodologia também pode ser útil para identificar aneuploidias de forma rápida (como a trissomia 21, 18 ou 13, ou até a monossomia do X na síndroma de Turner), permitindo também posicionar os rearranjos cromossómicos, localizando os pontos de quebra e os diferentes cromossomas envolvidos na translocação. A identificação de microdeleções subteloméricas pode apoiar diagnósticos complexos de atraso do neurodesenvolvimento e insuficiência intelectual. Nem sempre a microdeleção explica a totalidade dos casos, podendo-se complementar com outras técnicas moleculares.
Cariótipo molecular – Array CGH
Recentemente foi desenvolvida a tecnologia de cariótipo molecular, ou Array CGH (Comparative Genomic Hybridization) que permite efectuar um rastreio do genoma com intervalos de resolução de 1.000 a 5.000 pares de bases ou menos, consoante a região analisada.
O array CGH traduz-se num “varrimento” do genoma, podendo detectar alterações genéticas em todos os cromossomas em simultâneo, sem necessidade de um passo prévio de cultura celular. Utiliza milhares de oligonucleotídeos (sondas de DNA) específicos, identifica diferentes tipos de regiões, associadas ou não a patologia genética, cobrindo o genoma de forma a identificar também a ocorrência de ganhos ou perdas (duplicações ou deleções, por exemplo) de material genético, bem como perdas de heterozigotia.
Possui sensibilidade e especificidade significativamente maiores do que os exames de citogenética (cariótipo e FISH).
Existem diferentes tipos de array, conforme o nível de resolução que se pretende ter – o array CGH 60K utiliza 60.000 sondas espalhadas pelo DNA, o array CGH 750K envolve cerca de 750.000 sondas e o array CGH-HD pode ir até ao 2,8 milhões de sondas. As alterações identificadas podem ser correlacionadas com diversas patologias, ou até identificar novas regiões patológicas, que contribuam para o diagnóstico do doente.
A recomendação para a realização deste tipo de teste genético é cada vez mais alargada, estando este exame complementar actualmente incluído no estudo de doentes complexos portadores de síndromas com multideficiência, atrasos de neurodesenvolvimento, anomalias da diferenciação sexual, como ambiguidade genital, patologias comportamentais incluindo o autismo e os défices de aprendizagem, entre outros.
Como consequência do grande aumento da resolução e capacidade de detecção de alterações nucleotídicas, surgem as regiões de significado incerto (VOUS – variants of unknown significance), que representam um dos maiores desafios da genética molecular actual, pela dificuldade em atribuir ou excluir um significado claro no contexto da patologia.
Genética molecular
Do ponto de vista laboratorial, o avanço da genética molecular apostou na criação de metodologias que permitissem identificar os nucleótidos que constituem os genes e/ou as regiões adjacentes. O método de sequenciação de Sanger permitiu conhecer, a partir dos anos 80, a sequência de nucleótidos existente num fragmento de DNA, e a sua associação a técnicas de amplificação da cadeia de DNA, por reacção de polimerização (PCR, polymerase chain reaction), está na base de todas as tecnologias moleculares atualmente utilizadas.
Com o Projeto do Genoma Humano iniciou-se uma nova era em que são valorizados os mecanismos molecular e celular da patologia, assim como a regulação de todos os passos que vão desde a sequência de nucleótidos do gene até à expressão da característica final.
A sequenciação é o método de estudo mais utilizado para o diagnóstico das patologias mendelianas, normalmente monogénicas, como são os casos da fibrose quística, da distrofia muscular de Duchenne e da síndroma de Marfan, permitindo a confirmação do diagnóstico clínico. Uma mutação num gene pode ser responsável pelo aparecimento de uma doença, mas, consoante a localização e o tipo de mutação, pode dar origem a variantes fenotípicas da mesma patologia ou mesmo a patologias diferentes. De igual forma, uma mesma patologia pode ser originada por mutações em diferentes genes, representando por vezes algumas variações (heterogeneidade) na forma como a patologia se manifesta, quando se manifesta ou até como evolui, ao longo do ciclo de vida.
Por exemplo, na drepanocitose (gene HBB) uma única mutação pode ser responsável pela ocorrência da doença, interferindo com o quadro de leitura da sequência de bases, traduzindo um aminoácido diferente. Já na fibrose quística foram descritas centenas de mutações diferentes no gene CFTR que se manifestam de forma clinicamente variável, mostrando a importância dos estudos de correlação entre o genótipo e o fenótipo. Na síndroma de Marfan, o gene FBN1 está claramente associado à forma clássica desta síndroma (identificadas mutações em 70 a 93% dos casos), mas outros dois genes – o TBFBR1 e o TBFBR2 – correspondem a fenótipos semelhantes, associando adicionalmente aneurisma da aorta, pectus excavatum ou ectopia do cristalino.
Foram também identificados genes de susceptibilidade implicados na etiologia de doenças multifactoriais como o cancro e doenças degenerativas do adulto cuja valorização para a prática clínica deve ser feita caso a caso.
Em termos tecnológicos, a informatização e automatização de procedimentos, o aumento da especificidade, a rapidez e diminuição do tamanho dos equipamentos de sequenciação, possibilitaram o estudo simultâneo de imensas (milhares) regiões genómicas, apostando na resposta em tempo útil. Neste campo, sempre baseado no conceito da sequenciação, destacam-se as tecnologias de:
- NGS (next generation sequencing) que possibilita a sequenciação de vários genes em simultâneo, com interesse para a patologia em estudo. Permite a criação de painéis de genes e regiões genómicas associadas a fenótipos patológicos e não apenas a uma patologia, como ataxias, cancro, cardiopatias, patologias da visão, etc.;
- WES (whole exome sequencing), que pode ser o exoma clínico, envolvendo a sequenciação de todas as regiões genómicas contendo sequências codificantes (a maior parte dos exões existentes em cerca de 4.800 genes) ou o exoma alargado, que inclui tudo o que já foi reportado no OMIM com interesse para a patologia genética. Numa perspectiva futura será possível sequenciar o genoma (WGS – whole genome sequencing), indo para além das sequências exómicas (codificantes) e considerando outras regiões com potencial de interferência na patologia, como as zonas de metilação, de imprinting e de marcação epigenética.
O MLPA (multiplex ligation-dependent probe amplification), surge como tecnologia complementar, usando um método semiquantitativo que detecta grandes deleções ou duplicações, ou identifica sequências de 60 nucleótidos que sofreram deleção ou amplificadas (num único exão ou intrão, e/ou apanhando regiões de regulação do gene).
Por fim, uma referência ao GWAS (genome-wide association study), metodologia que explora as relações entre as variantes genéticas comuns (SNP – single nucleotide polymorphism) ao longo de todo o genoma e a predisposição à doença, com o objectivo de identificar regiões de susceptibilidade. São comparadas amostras de doentes com controlos normais e procura-se perceber se as variantes identificadas nos doentes podem ser, de alguma forma, associadas à patologia. Esta metodologia tem permitido identificar novos loci de susceptibilidade e compreender melhor a complexidade das relações entre a componente genética e a heterogeneidade fenotípica.
O estudo da susceptibilidade genética tem implicações práticas importantes no desenvolvimento de fármacos adaptados às alterações individuais e na escolha de medicamentos a aplicar de modo dirigido ou específico, em cada caso. Trata-se, pois, do desenvolvimento de áreas emergentes da ciência, tais como a farmacogenética e a medicina de precisão.
Bioquímica genética
Nos organismos vivos, os processos biológicos ocorrem por etapas, libertando e/ou consumindo pequenas quantidades de energia, criando passos intermédios do metabolismo celular, através de vias metabólicas, de construção, de destruição, de manutenção, ou até, de regulação de concentrações.
Quando ocorrem erros ou anomalias nos mecanismos dos referidos processos surge certo tipo de patologias – as doenças hereditárias do metabolismo.
Tais erros (abordados noutra parte deste livro dedicada a Doenças Hereditárias do Metabolismo/DHM) podem ser agrupados de acordo com o organelo afectado (lisossoma, mitocôndria, peroxissoma), ou a via metabólica alterada (por exemplo as dos aminoácidos, ácidos orgânicos, hidratos de carbono, etc.).
Técnicas analíticas como a espectrometria de massa, os doseamentos bioquímicos de um leque muito alargado de metabólitos e a enzimologia, permitem o diagnóstico de mais de 400 DHM e constituem a base da Bioquímica Genética.
Uma das aplicações é o rastreio metabólico neonatal, permitindo a detecção de defeitos metabólicos antes que os seus efeitos patológicos se instalem. Os primeiros testes incidiram sobre o hipotiroidismo e a fenilcetonúria; actualmente o rastreio foi alargado a um leque muito variado de patologia.
Quando o gene da patologia já foi identificado, estes testes são complementados com a genética molecular, permitindo o diagnóstico de portadores e o diagnóstico pré-natal.
Existem outras situações em que o teste bioquímico constitui a primeira abordagem com vista ao esclarecimento do diagnóstico (por ex. doseamento do factor VIII na Hemofilia A e electroforese das hemoglobinas com quantificação das hemoglobinas A2 e F nas talassémias). Estes testes são utilizados nas etapas iniciais do diagnóstico, seguidos pela realização de testes de genética molecular.
Os tecidos biológicos em que se realizam os exames de bioquímica variam de teste para teste e estão padronizados. Para cada caso é desejável contactar previamente o laboratório que irá realizar o exame para confirmar aspectos como as condições da colheita, o acondicionamento, a temperatura e o tempo do transporte até ao laboratório.
Implicações clínicas
A escolha e realização de um teste genético deve prender-se fundamentalmente com a utilidade do mesmo em função do contexto clínico de cada caso, respeitando os princípios éticos estabelecidos.
Por exemplo, em contexto de diagnóstico pré-natal, o teste escolhido, para além de poder responder às questões que se colocam (existência de anomalias cromossómicas, de mutações familiares específicas, ou ainda de variantes genómicas com significado patológico) deve respeitar os tempos da gravidez, cumprindo todos os enquadramentos legais.
No caso do DPI (diagnóstico pré-implantatório), um dos passos limitantes é a disponibilidade de material biológico (à partida pouco mais que algumas células), o que condiciona a metodologia a utilizar.
No caso das DHM não identificadas pelo rastreio neonatal, é o factor tempo que mais se considera para se poder identificar a patologia metabólica, já que a acumulação anormal de certos metabólitos terá consequências irreversíveis para o desenvolvimento da criança. Assim, a escolha da tecnologia terá que considerar a rapidez da resposta, por vezes em detrimento da maior especificidade.
Já na identificação de variantes de susceptibilidade genética em situações de decisão terapêutica, como sucede na resposta a certo tipo de fármacos (em cardiopatias, em neoplasias, na patologia mental, por exemplo), embora o factor tempo seja fundamental, é a especificidade da resposta que importa, sob pena de a terapêutica iniciada não actuar ou ter um efeito adverso.
Todos estes factores reforçam a importância do teste genético no diagnóstico e na decisão terapêutica. O diálogo entre o clínico e o especialista do laboratório de genética é fundamental, constituindo um exemplo de multidisciplinaridade, reprodutível em qualquer especialidade clínica.
Por fim, salienta-se que a opção por tecnologias que apresentem variantes de significado incerto obrigam a grande ponderação.