Importância do problema

A continuidade de cuidados à criança e adolescente pode ser definida de duas formas: – longitudinal: cuidados primários prestados pelo mesmo profissional; ou – transversal: cuidados hospitalares ou especiais; em qualquer circunstância pressupõe-se articulação e comunicação entre os profissionais envolvidos.

Os cuidados à criança e adolescente devem também ser centrados na família, o que pressupõe parceria com os pais nos cuidados e nas decisões, em ambiente adequado e apoio à mesma, de forma organizada.

Os cuidados continuados e centrados na família permitem cuidados antecipados de promoção da saúde e prevenção da doença mais efectivos e coordenados, permitindo estilos de vida mais adequados, menos comportamentos de risco, melhor cumprimento do programa de vacinação, menor procura de apoio de urgência e maior satisfação da família e dos profissionais.

Em Portugal, os cuidados de saúde primários são prestados no centro de saúde (CS) pelo especialista de medicina geral e familiar e pela enfermeira coordenadora de saúde infantil. Contudo, verificando-se uma percentagem significativa de crianças e adolescentes com vigilância de saúde em regime de pediatra privado, importa salientar que os cuidados hospitalares são prestados quase exclusivamente em hospitais públicos.

Qualquer que seja o sistema, o Boletim de Saúde Infantil (BSI) é o instrumento privilegiado de comunicação, devendo ser preenchido integralmente na saúde e na doença. Nele devem constar registos do peso, comprimento, perímetro cefálico, respectivos percentis e do neurodesenvolvimento. Devem ainda estar referidas as doenças agudas (diagnóstico e terapêutica), detectadas em consulta ou episódio de urgência, seja no centro de saúde, seja no hospital.

Seguimento regular de uma criança saudável

Todas as crianças devem ter um médico assistente, o ”seu médico”, que a criança identifica e conhece pelo nome.

No centro de saúde, o Médico de Família e a Enfermeira de Saúde Infantil são os responsáveis pelo seguimento normal, segundo os parâmetros definidos pela Direcção Geral da Saúde: Saúde Infantil e Juvenil – Programa Tipo de Actuação, actualizado periodicamente (www.dgsaude.pt).

O Programa Nacional de Vacinação, o ensino sobre “alimentação” e “vida saudável”, assim como sobre os “episódios de doença aguda” são da responsabilidade do médico e da enfermeira do CS; por consequência, as consultas devem ser programadas em horários de acordo com as necessidades da população local ou seja, na maioria dos casos, pós-laboral.

Para os CS, a Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente propõe um pediatra consultor, nomeado pelo director do serviço de pediatria da unidade de saúde, através das unidades coordenadoras funcionais (UCF). As suas funções são basicamente a discussão de casos-problema, a referenciação directa e a organização da formação contínua, com periodicidade variável, de uma vez por semana a uma vez por mês, de acordo com a disponibilidade do serviço e a necessidade do CS.

As UCF têm ainda um papel preponderante na divulgação de protocolos de referenciação discutidos e aprovados de forma abrangente.

O pediatra em regime privado é responsável pelo seguimento, pelo ensino, pela assistência aos episódios de doença aguda e pelo aconselhamento das vacinas; a administração destas últimas é da competência do CS. Idealmente, o mesmo CS deve estar organizado de modo a que, em caso de indisponibilidade numa situação de doença aguda, a família possa recorrer ao substituto por ele indicado.

Os cuidados continuados e centrados na família têm uma dimensão especialmente importante nas crianças de famílias com pobreza e exclusão social, ou em situação ilegal (filhos de imigrantes). A integração e a acessibilidade são as características fundamentais dos cuidados básicos de saúde, praticadas no contexto da família e da comunidade.

A lei portuguesa garante o direito aos cuidados de saúde e à educação, facilitando a atribuição de um médico de família. Se apenas forem propiciados cuidados de urgência com diferentes médicos, o diagnóstico e intervenção, por exemplo nos casos de patologia do neurodesenvolvimento e de doença crónica, poderão ficar comprometidos.

Continuidade de cuidados no internamento hospitalar

A continuidade de cuidados implica manter contacto com o médico que presta os cuidados fora do hospital. Se a criança for internada com doença aguda, durante o internamento deve haver contacto com o médico assistente, que conhece a família e em quem os pais confiam.

Na data da alta, deve ser discutido o relatório clínico informativo sobre o episódio de internamento com os pais, e enviada respectiva cópia directamente ao médico assistente, seja do CS, seja privado.

Sempre que possível, deve ainda haver articulação entre a enfermeira do hospital e a coordenadora de saúde infantil do CS.

Criança com doença crónica e/ou necessidades especiais

O seguimento de uma criança/adolescente com doença crónica e/ou necessidades especiais é muito mais do que cumprir prescrições. Envolve uma equipa multidisciplinar: criança-pais-médico do hospital/cuidados primários/especialista-enfermeiro-psicólogo-fisioterapeuta-professor.

Os cuidados, que devem ser partilhados, implicam uma responsabilidade bem definida de cada elemento da equipa.

O médico de família, ou o pediatra assistente, devem ser responsáveis pelas vacinas, alimentação, desenvolvimento e doença aguda. O seguimento por outra especialidade ou área pediátrica deve ser da responsabilidade do médico do hospital ou da instituição.

A equipa hospitalar deve elaborar um plano preciso da terapêutica e seguimento, sendo discutido com a família e com o médico assistente.

Não menos importante é o cuidado na centralização da informação e da orientação. O doente crónico ou com necessidades especiais precisa de um profissional que centralize o processo, de modo a não haver duplicações e perdas para a família, a qual necessita de perceber a quem se dirigir e quais as prioridades para o seu filho.

Cada um dos profissionais de saúde deve constituir-se advogado ou provedor da criança; mas, nos casos de doença crónica, deve existir o “gestor” do doente, a sugerir pela equipa, o que facilita a comunicação com os pais.

A comunicação pode ser facilitada por contacto telefónico ou através do BSI, de modo a que o médico assistente esteja suficientemente informado e possa esclarecer as dúvidas dos pais.

Transição do jovem com deficiência, doença crónica ou necessidades especiais para o médico de adultos

O início da idade adulta determina novas necessidades médicas e pessoais, com cuidados médicos apropriados à idade, mantendo-se os princípios de continuidade e transdisciplinaridade.

A transição efectiva de cuidados para o âmbito da medicina de adultos (aos 18 anos ou, em casos especiais, prolongada até aos 21) é cada vez mais importante, pois cada vez é maior o contingente da população pediátrica com doença crónica (~15-20%) que chega à idade adulta. E, por eventuais limitações funcionais com consequências sociais, emocionais e de comportamento, aquela poderá enfermar de dificuldades.

Tal transição depende da maturidade, independência, capacidade funcional dos cuidados médicos de adultos, e das diferenças entre a medicina pediátrica e a medicina orientada para o adulto, as quais são portadoras de duas culturas distintas.

Poderá haver resistência por parte do adolescente, a qual é devida à percepção de que os cuidados na medicina de adultos são deficitários quanto à preocupação de continuidade e envolvimento da família.

O processo deve ser iniciado ainda antes da adolescência, encorajando as famílias a projectar o futuro do filho. A passagem de testemunho, assim como a combinação e concertação quanto a estratégias e terapêuticas devem ser discutidas com o adolescente e a família.

Os pontos fundamentais são:

  • Identificação da instituição de saúde mais apropriada à situação;
  • Identificação do médico que passa a assumir a responsabilidade, a coordenação e o planeamento;
  • Elaboração de nota de alta ou nota de transição escrita, concisa, contendo informação médica sumária e estratégias combinadas com o jovem e a família.

Em resumo, os cuidados de saúde à criança e ao jovem devem ser especializados, centrados na família, em parceria, com continuidade, e partilhados, qualquer que seja o nível quanto a prestação (primária ou hospitalar), e através de um esforço interdisciplinar coordenado.

A continuidade de cuidados é, pois, um fenómeno multifactorial que resulta da combinação de acesso fácil aos profissionais, desempenho adequado, boa capacidade de comunicação entre a família, os profissionais e as instituições que prestam cuidados, e excelente coordenação entre todos.

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