Importância do problema

A reabilitação pediátrica é uma valência da especialidade de medicina física e de reabilitação (MFR) ou fisiatria, sendo delimitada no seu universo pelo grupo etário do doente compreendido entre o nascimento até ao final da adolescência. Preocupa-se igualmente com a saúde da grávida, designadamente no que respeita à preparação para o parto, o que está de acordo, numa perspectiva transdisciplinar, com a definição de pediatria, atrás explanada: medicina integral dum grupo atário compreendido entre a concepção e o fim da adolescência.

A reabilitação da criança com deficiência e incapacidade, tarefa complexa congregando uma série de conhecimentos e de meios, desafia a capacidade duma equipa em intervir num ser em processo de desenvolvimento e maturação. Assenta, por um lado, na definição dos conceitos básicos de deficiência, incapacidade e invalidez que englobamos no campo das menos valias e das necessidades especiais, e nos conhecimentos actuais do que se entende por desenvolvimento, desenvolvimento psicomotor, sequência da maturação cerebral e de plasticidade cerebral, a abordar adiante.

A organização interna dum serviço de reabilitação varia de acordo com os objectivos propostos e os métodos utilizados para os alcançar. No Hospital de Dona Estefânia (HDE), o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação estruturou-se funcionalmente em três áreas de atendimento ao encontro da prevalência das patologias das crianças que a ele recorrem, áreas não estanques antes complementares: de reabilitação neurológica, orto-traumatológica e respiratória. Como serviço integrado e concorrendo para a dinâmica hospitalar, está presente em todos os seus núcleos e consultas multidisciplinares, como são exemplo os de spina bIifida e de ventilação. Nesta perspectiva, apoia diariamente todos os doentes assistidos nos respectivos serviços de pediatria médica e de cirurgia pediátrica, nas unidades de queimados, de cuidados intensivos pediátricos e neonatais (UCIP e UCIN) e no serviço de ginecologia e medicina materno-fetal.

Conceitos de deficiência, incapacidade e invalidez

O modelo médico clássico baseia a sua concepção no fluxograma delineado da seguinte forma: etiologia – patologia – sintomatologia. O mesmo procura racionalmente intervir na primeira fase e, quando não o consegue, nas fases seguintes.

A este modelo acrescenta-se, de forma complementar, o conceito de menos valias integrando, tal como se referiu, as noções de deficiência, incapacidade e invalidez definidos pela Organização Mundial de Saúde. Tal constituiu a base da sua intervenção como especialidade.

Considera-se pessoa com deficiência aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congénita ou adquirida, de estrutura ou função psicológica, intelectual, fisiológica ou anatómica, susceptível de provocar diminuição de capacidade, pode estar em condições de desvantagem para o exercício de actividades consideradas normais, tendo em conta a idade, o sexo e os factores socioculturais dominantes.

Incapacidade, consequência de deficiência, é a diminuição ou ausência de expressão de qualquer actividade nos limites considerados normais para o ser humano.

Invalidez, consequência das anteriores, traduz a impossibilidade de realização duma tarefa normal, com prejuízo laboral ou social e limitando a integração plena da pessoa doente.

Vejamos o seguinte exemplo: criança com spina bifida – nível L4/L5 – (doença). Tem perda funcional (deficiência) traduzida na diminuição de força muscular, nas alterações sensitivas dos membros inferiores e nas alterações esfincterianas. Existe incapacidade de marcha autónoma, necessitando de auxiliares, ortóteses ou cadeira de rodas, e incapacidade de esvaziamento/retenção urinária, necessitando de algaliação intermitente e dispositivos colectores de urina. Manifesta a invalidez (desvantagem) por não poder participar em todas as actividades próprias para o seu grupo etário (poderá participar em algumas delas com algum tipo de adaptação). A médio prazo necessitará de apoios educativos especiais e a longo prazo, na previsível relativa invalidez profissional; e poderá vir a necessitar de algum tipo de adaptação pessoal ou do local de trabalho para o desempenho de actividades laborais, tendo em vista a auto-suficiência.

Neurodesenvolvimento, habilitação e reabilitação

O desenvolvimento pode ser definido como o processo maturativo das estruturas e das funções da criança, que leva à aquisição e aperfeiçoamento das suas capacidades. Obedece a uma determinada sequência, com padrões de evolução variáveis e individuais. É, portanto, o resultado duma interacção adaptativa em relação ao meio ambiente e influenciada por factores intrínsecos (genéticos) e extrínsecos (ambienciais) (consultar Parte V).

Considera-se haver um atraso de neurodesenvolvimento quando a criança não realiza as tarefas que lhe são propostas e sempre aferidas à idade pelas escalas de neurodesenvolvimento. Quando o referido atraso é primário, isto é, a criança não atingiu os padrões do desenvolvimento normais para a idade, a intervenção, mais do que uma reabilitação, traduz-se numa habilitação, fornecendo à criança os meios e as ajudas técnicas necessárias à aquisição da função, isto é, mediante a aquisição de experiências. Se, por outro lado, o atraso é secundário, provocado por doença ou noxa de que resultou paragem ou regressão dos padrões de desenvolvimento da criança, a intervenção terapêutica corresponderá, então, a reabilitação.

Abordagem da criança com deficiência e incapacidade

A abordagem da reabilitação da criança com deficiência e incapacidade é feita duma forma estruturada com o objectivo de obter o diagnóstico etiológico (doença), diagnóstico funcional (deficiência, incapacidade e invalidez) e caracterização da matriz relacional (afectividade, socialização e escolarização).

No âmbito da história clínica, a anamnese será colhida à criança ou seus acompanhantes. É fundamental uma minúcia relativamente a antecedentes pessoais (AP), familiares (AF) e história sócio-familiar. Nos AP ressaltam a história pregressa da gravidez, do parto, do período neonatal, do neurodesenvolvimento (psicomotor-sensorial e de doenças anteriores). Nos AF salientam-se a existência de consanguinidade, de doenças com carácter heredofamiliar e de situações de deficiência e/ou incapacidade.

Na colheita da anamnese sócio-familiar dimensiona-se toda a envolvência da criança, permitindo enquadrar a dinâmica do núcleo familiar, como funciona, como nele se reflecte a deficiência da criança e a capacidade em prestar a assistência, e o apoio de que esta vai necessitar.

Na perspectiva do diagnóstico funcional deve inquirir-se sobre: independência e dependência da criança; de que tipo de ajuda, técnica ou de terceira pessoa necessita para realização das actividades de relação ou de vida diária como: comunicação, alimentação, higiene, limpeza e arranjo pessoal, vestir, descanso nocturno, transferências e mobilidade. É importante saber quem habitualmente presta essa ajuda e disponibilidade (elemento chave).

Na realização do exame objectivo a reabilitação partilha com as demais áreas médicas os princípios do exame físico geral com o registo sistemático e comparado dos índices antropométricos: peso, comprimento e perímetro cefálico para além da observação somática. O exame neurológico avalia de forma sistematizada os padrões de vigília, lucidez, comunicação, colaboração, traduzidas pelo interesse e interacção da criança com o meio, as motilidades global e fina, a força muscular (exame muscular duma forma analítica ou global), a coordenação, o tono muscular, os reflexos osteotendinosos e outros, pesquisa dos diversos padrões de sensibilidade, pares cranianos e presença de movimentos anormais.

Especial importância deve ser prestada à avaliação sensorial. Devem ser pesquisadas anomalias da visão, audição e função de integração das sensibilidades (agnosias). No caso de dúvida será pedida a colaboração das respectivas especialidades para caracterização qualitativa e quantitativa das anomalias. Quando presentes, as anomalias sensoriais podem ser, elas próprias, a deficiência, e necessitar de correcção adequada. Quando associadas a outras deficiências (sindromáticas), a sua não correcção pode prejudicar o sucesso do tratamento.

Especial atenção deve também ser prestada à avaliação do desenvolvimento psicomotor e do nível cognitivo relacionado com a idade cronológica (Escalas de desenvolvimento de Mary Sheridan, de desenvolvimento mental de Ruth Griffiths e outras).

No exame ósteo – músculo – articular são registadas as malformações e deformações ósseas e articulares e procede-se ao registo quantificado das limitações articulares (exame articular). Na avaliação do movimento, motricidade fina e grosseira, há que registar sincinésias, compensações, movimentos involuntários, com o registo das alterações do tono muscular.

O exame funcional avalia as consequências da deficiência e incapacidade nas tarefas básicas, actividades de vida diária e na vida relacional da criança. A criança é observada a executar as diversas tarefas de vida diária na vertente lúdica. Ao efectuar o gesto, avalia-se a lateralidade, a sua definição, a coordenação óculo-motora, o tempo de atenção útil e outros parâmetros. A criança finge beber um copo de água, lavar os dentes, pentear, vestir, dar pontapés, etc.. As capacidades de transferência, marcha ou locomoção deverão ser avaliadas na sua eficiência, procurando caracterizar o gasto energético que lhes está associado.

Há uma série de escalas que tentam quantificar o estado funcional do paciente, mais fáceis de utilizar umas que outras. As mais utilizadas são as Growing Skills e Gross Motor Function Scale. São úteis na monitorização dos progressos da reabilitação do doente, podendo servir como meio de troca de informações e experiências entre centros e escolas de reabilitação.

Após a anamnese e o exame objectivo é formulado o diagnóstico etiológico provisório, (podendo exigir-se a realização de exames complementares para a sua validação), o diagnóstico funcional e o prognóstico.

Os diagnósticos etiológicos e, sobretudo, o funcional, sustentarão o estabelecimento do plano de reabilitação e as respectivas orientações terapêuticas nas áreas funcionais de fisioterapia, terapia ocupacional e terapia da fala. Este plano terapêutico deverá ser ajustado à criança, às suas múltiplas condicionantes e orientado para a resolução dos seus problemas. Estes serão hierarquizados e reavaliados ao longo do tempo, abrangendo as vertentes pessoal, familiar e escolar.

Tal programa pode passar pela aplicação de agentes físicos (situação menos frequente na criança que no adolescente e no adulto), pela aplicação de técnicas de propriocepção (usando o frio e massagem), por técnicas normalizadoras do tono muscular e estimulação do desenvolvimento, de que são exemplo os métodos de Bobath e de Votja. Podem usar-se métodos de fortalecimento muscular e diferentes técnicas de cinesiterapia e posicionamento.

plano terapêutico pode passar, igualmente, pela prescrição de próteses, ortóteses e ajudas técnicas, incluindo as decorrentes das novas tecnologias destinadas a compensar a deficiência da criança ou atenuar-lhe as consequências, e permitindo-lhe o exercício das actividades de vida diária e a integração na vida escolar, social e profissional. É o caso das crianças com deficiência motora determinada por amputação, sequela de poliomielite, traumatismo vértebro-medular ou paralisia cerebral, necessitando de ajudas na função de locomoção. Expressa-se a ajuda na prótese, no aparelho curto ou longo para o membro inferior, em auxiliares de marcha, ou na cadeira de rodas com adaptação individual. É o caso ainda das crianças com disfunção auditiva e da linguagem, com atraso escolar e lentidão na aquisição da leitura ou escrita e a quem os meios aumentativos ou alternativos de comunicação serão indispensáveis. Na criança com desvantagem associada a deficiência visual, a ajuda técnica pode passar pelo computador com visor adaptado à ambliopia e com reforço simbólico de linguagem Braille. O estudo da necessidade e adequação das diversas ajudas técnicas às deficiências da criança pode ser efectuado num serviço de reabilitação que tenha desenvolvido experiência neste campo.

Porém, há situações específicas e complexas que exigem a aplicação de ajudas técnicas inovadoras ou decorrentes das novas tecnologias. Em tais situações justifica-se o recurso a instituições externas como o Centro de Análise e Processamento de Sinais do Instituto Superior Técnico, a Unidade de Missão e Inovação de Conhecimento, e a Unidade de Técnicas Alternativas e Aumentativas de Comunicação.

Os resultados da intervenção terapêutica deverão ser reavaliados periodicamente, podendo aproveitar-se para tal as idades-chave do desenvolvimento da criança. Poderá haver necessidade de reformulação do plano terapêutico e dos objectivos inicialmente propostos de acordo com a evolução da situação clínica. Toda a intervenção será prioritariamente orientada para a resolução dos problemas da criança e da família.

Com base na experiência do Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Hospital Dona Estefânia – Lisboa são abordados, noutros capítulos, aspectos específicos da reabilitação e habilitação, de modo integrado, a saber:

  • Reabilitação respiratória;
  • Reabilitação na linguagem ou “habilitação na criança com dificuldades na comunicação” ;
  • Reabilitação neurológica
    • Sequelas de prematuridade
    • Habilitação para a marcha e ajudas técnicas na criança com spina bifida;
  • Reabilitação ortopédica;
  • Reabilitação do doente com sequelas de queimaduras.

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