Importância do problema

A Genética Médica representa na Medicina moderna uma das estratégias essenciais para melhorar a saúde das pessoas e das comunidades. Para esta conclusão contribuíram os enormes conhecimentos obtidos nos últimos anos, nomeadamente com a sequenciação do genoma humano e a compreensão de mecanismos pelos quais os produtos dos genes actuam e podem provocar doença nos seres humanos.

O interesse da Genética para os profissionais de saúde abrange áreas como o diagnóstico, a prevenção e o tratamento de síndromas e doenças genéticas. A Biologia Molecular permitiu identificar alterações do genoma humano que viabilizaram o estabelecimento de critérios mais rigorosos de diagnóstico de algumas doenças e explicaram a variabilidade de expressão de outras pelo tipo de mutações encontradas no gene, entre outros aspectos.

Com a excepção das doenças genéticas, que resultam de uma alteração num cromossoma ou da mutação de um gene específico, a maior parte das doenças genéticas resulta da interacção entre a susceptibilidade genética da pessoa e factores ambientais, na generalidade dos casos pouco conhecidos. Muitas destas doenças, como algumas formas de cancro, de doenças cardiovasculares e da diabetes, são verdadeiros problemas de Saúde Pública.

O conhecimento actual é ainda muito limitado quanto à compreensão dos mecanismos da interacção entre os factores genéticos e ambientais que contribuem para a patogenia das doenças genéticas.

A contínua divulgação de novos conhecimentos na literatura científica e na comunicação social, a necessidade de se prestarem os cuidados de saúde na área da genética, de que os indivíduos e famílias carecem, as questões de ética que são colocadas à sociedade com as novas descobertas e inovações, alertam para a necessidade de os médicos, e muito em especial os pediatras, adquirirem novas qualificações nestes temas e procurarem actualizar os seus conhecimentos. As próprias associações científicas estão conscientes desta realidade e têm proposto iniciativas científicas de formação dirigidas aos profissionais.

A Genética Médica tem uma considerável importância em Clínica Pediátrica. Os pediatras, para além de cuidarem de crianças e adolescentes que têm doenças genéticas ou um risco elevado de, mais tarde, virem a expressá-las, estão em estreita ligação com as famílias, já constituídas ou em período de constituição, o que os torna uma fonte de grande credibilidade para informação e aconselhamento genético. O pediatra e o clínico, que prestam assistência a crianças e adolescentes não devem, pois, perder esta oportunidade de comunicação; por outro lado, devem ter uma atitude próactiva na sua intervenção.

Para serem mais eficazes na assistência a crianças e adolescentes, os referidos clínicos devem estar familiarizados com o diagnóstico das doenças genéticas mais frequentes, o aconselhamento genético, e saber orientar os casos mais complexos para serviços especializados. São estes os aspectos a desenvolver nesta parte do livro.

A consulta de Genética

A consulta de Genética é uma consulta médica, pelo que inclui elementos comuns a toda a prática médica em que a história clínica é um elemento essencial.

A história pessoal inclui uma revisão pormenorizada da gravidez, da transição e do percurso na infância, do crescimento, do desenvolvimento psicomotor e sensorial, das complicações médicas, precisando o início das manifestações da doença, os exames complementares e as intervenções clínicas entretanto realizadas. A história familiar deve recolher informação relativa a, pelo menos, três gerações e, nalgumas circunstâncias, torna-se mesmo útil inquirir outros familiares. É necessário inventariar outros casos semelhantes na família, anomalias congénitas, doenças genéticas, atraso mental ou perturbações neurocomportamentais, mortes fetais ou neonatais, ainda que aparentemente não estejam relacionados com o caso índex. Com base nestas informações é construída a árvore genealógica simplificada, que permite identificar rapidamente as relações de parentesco, perspectivar um modo de transmissão e avaliar os riscos genéticos.

O exame clínico é fundamental para o diagnóstico, interessando quer a percepção global (a impressão diagnóstica) e o apelo à memória de casos semelhantes, quer a avaliação e registo das particularidades do fenótipo. Estas características são mais tarde estudadas com pormenor, e comparadas com bases de dados de imagens, programas informáticos de diagnóstico de síndromas e a revisão da literatura científica. A orientação e a sequência do exame dependem, também, de um diagnóstico clínico prévio. Os elementos mais significativos devem ser sempre registados sob a forma de imagem.

A proposta de exames complementares decorre das hipóteses diagnósticas formuladas e a sua realização deve ser criteriosa e económica, tendo em conta os critérios que permitem o diagnóstico da doença (os elementos necessários para a “definição de caso”). Poderá recorrer-se a diferentes tipos de estudos, mas o diagnóstico não segue uma “cartilha”. Sempre que é exequível determinado teste genético com utilidade clínica, o mesmo deverá realizar-se por ser importante para o doente ter o diagnóstico, o que tem implicações a outros níveis como o aconselhamento genético, o plano de cuidados ou o projecto de vida.

A principal responsabilidade do médico geneticista é assegurar aos indivíduos e familiares de risco genético, informação científica correcta, transmitida de forma adequada e apropriada, sobre a natureza genética da patologia, as técnicas que permitem obter o diagnóstico e o risco genético para a descendência. Nesta perspectiva, para as doenças genéticas o risco corresponde à probabilidade de um descendente ou familiar nascer com uma doença genética particular.

O aconselhamento genético é um processo de comunicação em que são discutidos riscos genéticos, opções reprodutivas e apoio à família e suporte comunitário. É um acto médico que tem três dimensões principais: realizar ou confirmar o diagnóstico de uma doença genética, avaliar o risco genético de recorrência e apoiar o casal nas suas opções reprodutivas. Por definição não directivo, processa-se em termos de respeito pela autonomia e dignidade da pessoa. Porém, o papel do médico não pode ser passivo, nem neutro ou indiferente, quando participa no processo de tomada de decisão pelo casal.

Indicação para consulta de Genética

Considera-se que os indivíduos com doença genética ou de risco genético elevado, e os seus familiares, deverão ter acesso a uma consulta de Genética Médica ao longo do seu ciclo de vida. Porém, como os recursos actualmente existentes são escassos, considera-se que as principais indicações para o acesso são as seguintes:

  1. Indivíduo com suspeita de doença genética ou anomalias congénitas múltiplas;
  2. Indivíduo com défice cognitivo ou perturbação neurocomportamental, com ou sem dismorfias;
  3. Indivíduo com risco genético elevado pela história familiar;
  4. Progenitores de feto cuja gravidez foi medicamente interrompida (IMG), ou criança falecida com suspeita de doença genética;
  5. Grávida de risco genético ou com diagnóstico de anomalia embrionária ou fetal;
  6. Mulher com abortos recorrentes;
  7. Casal com patologia da reprodução.

Árvore genealógica

Ao longo dos anos foram-se uniformizando os símbolos utilizados para construir uma árvore genealógica, seja no âmbito da consulta de Genética, seja da comunicação científica. Os símbolos que são usados com maior frequência, encontram-se descritos no Quadro 1.

A árvore genealógica é geralmente representada em três gerações, embora nalgumas famílias seja conveniente ser mais abrangente quando existirem vários indivíduos afectados ou consanguinidade.

Deve ser construída de maneira simples e revelar o máximo de informação possível, tendo em conta a doença particular em estudo. É necessário incluir os dois lados da família e indicar na árvore o caso índex e os laços de parentesco.

Na árvore genealógica as gerações são representadas em números romanos e da vertical para a horizontal (I, II, III, etc.). Os indivíduos da mesma geração são representados por numeração árabe, da esquerda para a direita, geralmente no lado direito do símbolo a que se refere.

A árvore genealógica pode ser elaborada durante a consulta a partir da informação que o doente faculta, o que permite desde logo ter uma compreensão global dos dados relevantes da família. Quando existem relações mais complexas, ou vários casos de consanguinidade, podem ser registados sequencialmente os dados essenciais de cada membro da família e, posteriormente, construir-se a árvore genealógica.

QUADRO 1 – Árvore genealógica: simbologia utilizada

SimbologiaSignificado
Homem
Mulher
Casamento
Pais e filhos
Gémeos dizigóticos
Gémeos monozigóticos
Sexo indeterminado
Indivíduos afectados
Número de crianças de sexo determinado e indeterminado
Condutora (doenças recessivas ligadas ao X)
Morto
Caso index
Aborto ou feto-morto de sexo indeterminado
Casamento consanguíneo

Os testes de Genética

Os testes de genética têm por objectivo realizar o diagnóstico de doenças genéticas ou identificar pessoas de risco elevado. A realização dos testes de genética processa-se com recurso a várias tecnologias laboratoriais de acordo com procedimentos técnicos normalizados e normas éticas e de segurança que garantam a qualidade dos cuidados.

Indicações

As principais indicações para realizar testes de genética na prática clínica, são:

  1. Confirmação do diagnóstico de uma doença genética;
  2. Identificação do estado de portador de uma doença genética numa pessoa saudável, mas em risco pela história familiar;
  3. Estudo na fase pré-sintomática de indivíduos de risco elevado pela história familiar, em doenças genéticas de manifestação tardia;
  4. Rastreio e diagnóstico neonatal, particularmente para doenças genéticas que necessitam de terapêutica precoce (por exemplo a fenilcetonúria);
  5. Diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético pré-implantação (DGPI);
  6. Estudos de farmacogenética.

Para se obter o diagnóstico, por vezes é necessário realizar vários testes de acordo com o critério clínico e uma estratégia, considerando os recursos disponíveis e o estado da arte. A certeza do diagnóstico é essencial em Genética, pois o médico assume as consequências do diagnóstico em termos de aconselhamento genético e reprodutivo. Colocar um diagnóstico implica que o doente preencha os critérios obrigatórios da “definição de caso”, o que nem sempre é possível com as tecnologias actualmente existentes. Em genética molecular, muitas vezes são identificadas mutações ou variantes ainda não descritas e cujo significado patológico não pode ser garantido, mesmo com recurso a tecnologias informáticas que simulam o efeito previsível que terá na configuração da proteína. Na neurofibromatose tipo 1 e na síndroma de Marfan, por exemplo, o diagnóstico é clínico/laboratorial, de acordo com critérios de consenso definidos por peritos. Nestas situações, a realização de testes de genética molecular não é obrigatória, apenas quando têm utilidade clínica, por exemplo para fins de reprodução.

Vantagens

Os testes genéticos constituem, em muitos casos, o único método que permite obter um diagnóstico correcto para algumas doenças complexas. Mas, pelas suas particularidades, é necessário saber usar este instrumento de diagnóstico de forma adequada.

Para o pediatra e o clínico geral, o diagnóstico correcto tem a vantagem para estabelecer um programa mais personalizado de cuidados de saúde que tenha em conta a história natural da doença, prever o recurso a outras formas de apoios como terapias, ou antecipar mudanças de comportamentos e estilos de vida.

Nas doenças genéticas de manifestação tardia, como a doença de Machado-Joseph ou a paramiloidose familiar, o resultado do teste pré-sintomático assegura ao indivíduo a oportunidade para perspectivar a sua vida profissional e reprodutiva, quer seja afectado ou não, o que é muito relevante para o seu projecto de vida.

Limitações

A utilização de testes de genética também tem limitações importantes que o médico deve conhecer e ter bem presentes na prática clínica. Por outro lado, com a inovação constante nesta área, estão disponíveis continuamente novos testes cuja utilidade clínica e custo/benefício não é evidente, pelo que o seu uso sem critério pode aumentar os custos de forma significativa sem ganhos para o doente. Algumas das limitações são:

  1. Não permitem confirmar o diagnóstico de certeza em todas as doenças;
  2. Alguns genes são demasiado extensos para serem estudados na totalidade, pelo que a pesquisa de mutações se limita a alguns exões ou a algumas mutações específicas;
  3. Nem sempre a presença de uma mutação significa que a doença se venha a manifestar, por penetrância incompleta;
  4. O significado patológico de algumas mutações não é conhecido e nem sempre são responsáveis pela doença;
  5. A identificação de uma alteração genética implicada na predisposição, por exemplo nos genes BRCA1 BRCA2 relacionados com o cancro da mama e do ovário, aumenta o risco do indivíduo, mas não significa que o indivíduo venha a ter essa doença; e o inverso também é verdade, por estarem implicadas na etiologia diversas vias fisiopatológicas;
  6. O impacte do teste genético nem sempre se traduz por benefícios, antes por discriminação social por motivos genéticos, e nem sempre se traduz por alteração de comportamentos ou mais protecção da saúde por parte do doente (ver Glossário).

Contexto de realização dos testes

Deve ser assegurado um conjunto de critérios para que os testes de genética se realizem de forma correcta, que tenha em conta uma avaliação clínica criteriosa e o diagnóstico diferencial. O aconselhamento genético prévio é essencial e o médico deve explicar ao doente o tipo de exame que irá realizar, as limitações dos resultados e os benefícios esperados. Esta intervenção, a base do consentimento livre e esclarecido, é sempre necessária de modo a assegurar o respeito pela personalidade, dignidade, direitos e superiores interesses da pessoa. A finalidade dos exames tem importância em termos de prescrição. Em contexto hospitalar, os médicos podem e devem prescrever os testes de genética que são necessários para o diagnóstico. Todavia, o estudo de pessoas saudáveis para identificar portadores ou como teste preditivo (pré-sintomático ou de susceptibilidade) é competência de médico geneticista de acordo com a legislação e as boas práticas internacionais.

No caso da realização de testes preditivos de doenças genéticas de manifestação tardia, o procedimento clínico deverá realizar-se de acordo com os protocolos existentes, e as melhores práticas.

Privacidade e confidencialidade

A possibilidade de se realizar o estudo directo do material hereditário constitui um avanço científico relevante, mas coloca igualmente novos desafios à sociedade e aos profissionais de saúde. Caso a informação que resulta da realização dos testes se torne acessível a empresas ou instituições de direito privado ou público exteriores ao sistema de saúde, poderão ocorrer situações de discriminação na vida privada, no emprego e no acesso a serviços.

Este risco de violação da privacidade e de discriminação pode reportar-se à própria pessoa, aos familiares e mesmo aos futuros descendentes. Existe assim, o imperativo ético de o Estado e os estabelecimentos de saúde salvaguardarem a informação genética relevante dos doentes, nomeadamente, no acesso, circulação interna e arquivamento nos diferentes formatos. Os procedimentos deverão ser rigorosos de acordo com a legislação em vigor e auditados regularmente.

Realização de testes a crianças e adolescentes

A realização de testes de genética para fins clínicos deve obedecer a um conjunto de regras que tenham em conta o interesse e as vantagens para a criança e jovem da realização dos exames, salvaguardando a sua autonomia e o direito de, na maioridade, tomarem uma decisão informada. Estas balizas foram tidas em conta na elaboração dos diplomas legais e normativos que têm sido incorporados na legislação portuguesa.

Legislação Portuguesa

A lei 12/2005 de 26 de Janeiro sobre informação genética pessoal e de saúde é um documento importante que definiu um conjunto de princípios no âmbito da Genética Humana. Deveriam ser regulamentados alguns artigos no prazo de 180 dias, o que não aconteceu até ao momento, apesar de várias organizações científicas e a Comissão Nacional de Genética terem apresentado ao Ministério da Saúde propostas nesse sentido.

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