HOSPITALIZAÇÃO DOMICILIÁRIA. NOÇÕES FUNDAMENTAIS

Introdução

Em 1945, Spitz descreveu na criança pequena a chamada síndroma do hospitalismo e estados depressivos, relacionável com a separação da sua mãe e do ambiente da sua família em casa, e mais expressiva no contexto de hospitalizações prolongadas. Tal síndroma consiste essencialmente em manifestações de carência afectiva e em regressão no neurodesenvolvimento.

Em 1951, a Organização Mundial da Saúde publicou uma monografia da autoria de Bowlby, intitulada “Maternal Care and Mental Health”, abordando o problema da carência de cuidados maternos e sua repercussão no desenvolvimento da criança em várias situações (hospitais, creches e outras instituições).

Como conclusão de vários estudos de investigação, o referido autor lembrava aos médicos e outros profissionais de saúde uma noção fundamental: para uma boa saúde mental do lactente e criança pequena é essencial que se estabeleça um vínculo, isto é, uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe (ou seu substituto) conduzindo a satisfação, alegria e bem-estar a todos. Daí, o não ser desejável que em qualquer circunstância a criança se separe da mãe.

Em 1952, Robertson, em colaboração com Bowlby e Rosenbluth, demonstrando em imagens de filme os factos apontados, tentaram sensibilizar a sociedade e os profissionais para um problema que até então não era valorizado.

Posteriormente, em vários países, sobretudo da Europa e América do Norte, começou a esboçar-se uma tomada de consciência do problema, iniciando-se esforços no sentido de modificação das condições de hospitalização das crianças doentes, tornando-as mais adaptadas às suas exigências e necessidades.

Para esta tomada de consciência igualmente terá tido influência – com algum atraso – a Declaração dos Direitos Humanos em 1948, cujo artigo 25º refere o Direito da Criança a Cuidados e Assistência Especiais.

Em Portugal, três instituições foram pioneiras no cabal acolhimento e na aplicação prática de tal filosofia: Instituto de Apoio à Criança (IAC), Instituto Português de Oncologia (IPO) e Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC). De salientar também o papel dinamizador da Sociedade Portuguesa de Pediatria, nomeadamente através da sua Secção de Pediatria Social.

Entretanto, nos EUA, nas décadas de 70-80, surgiu o conceito de Humanização, traduzindo o desenvolvimento duma estratégia ou cultura de cuidados à criança hospitalizada em ligação à mãe e família (acompanhando o doente), tornando também o ambiente hospitalar mais acolhedor com a colaboração de todos os profissionais; trata-se, pois, duma filosofia de prestação de cuidados não reduzida ao tecnicismo. Posteriormente, em 1988, viria a ser publicado um importante documento designado Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas.

Assim, em consonância com o conceito de Humanização, a par de medidas relacionadas com a melhoria da qualidade do atendimento nas diversas instituições, em Portugal e noutros países passou a ser cada vez mais habitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hospitalização.

Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas

Este documento foi elaborado pela EACH (European Association for Child Health), aprovado em Leiden pela Confederação Europeia dos Sindicatos Nacionais e adoptado em Portugal pela Comissão Nacional de Saúde da Criança e Adolescente (CNSCA).

Descrita integralmente no capítulo 4 (Parte 1) desta obra, a referida Carta, passando a ser seguida por todos os profissionais que prestam cuidados hospitalares à criança e ao adolescente, traduz um abrir de portas das unidades de internamento ou de ambulatório às famílias segundo certas regras, as quais passaram a estar incluídas nos manuais de qualidade e segurança consagradas por legislação (DR: Lei 106/2009, 14 de Setembro).

Constando tal Carta de 10 regras, destacam-se três:

  1. As crianças somente serão admitidas para internamento hospitalar se os cuidados de que necessitam não puderem ser propiciados no domicílio ou em regime ambulatório.
  2. Os pacientes, com idade até aos 18 anos, internados em hospital ou unidade de saúde, têm direito ao acompanhamento permanente do pai e da mãe, ou de pessoa que os substitua.
  3. As crianças hospitalizadas devem ser agrupadas de acordo com as idades e separadas dos serviços para adultos.

No âmbito da organização e prestação dos cuidados especializados na idade pediátrica, importa uma referência especial a duas modalidades assistenciais seguindo os princípios da Humanização e da Qualidade: trata-se efectivamente de dois conceitos que permitem maior proximidade às famílias e melhor gestão de vagas de camas hospitalares: hospital de dia pediátrico e hospitalização domiciliária pediátrica, discriminados a seguir.

# Hospital de dia pediátrico – principais características (ver caixa):

    1. Estrutura organizacional integrada num Serviço de Pediatria, com espaço físico e meios técnicos próprios, integrando recursos humanos qualificados;
    2. Prestação de cuidados de saúde de modo programado em regime ambulatório (em alternativa ao internamento) a doentes com < 18 anos;
    3. Estadia de duração < 12 horas, fora do período nocturno.

 

A propósito desta modalidade, importa realçar o seguinte:

  • Papel especialmente relevante no contexto de doença crónica (situação surgindo com uma prevalência de cerca de 20% da população até aos 18 anos de idade);
  • Conquanto o título (hospital…) Possa gerar confusão, trata-se duma modalidade, considerada de ambulatório.

# Hospitalização domiciliária pediátrica (HDP).
Este último tópico, que na área pediátrica e no nosso País inicia os primeiros “passos”, constitui o objectivo principal deste capítulo.

Conceito de hospitalização domiciliária

Como facto histórico, importa referir que o conceito de “hospital em casa” surgiu pela primeira vez em 1947, nos Estados Unidos da América do Norte/EUA, com uma prática de cuidados médicos assistenciais em adultos designada por Home Care.

Ao tempo, com tal prática, tentava-se reduzir a taxa ocupacional dos hospitais, ao mesmo tempo que se criava um ambiente mais “humanizado”, próximo das famílias. Cerca de uma década depois, o modelo começou a ser praticado na Europa, mais propriamente, em França.

Trata-se, pois, dum modelo de prestação de cuidados em casa, dirigido a pacientes com doença aguda ou crónica, incluindo patologia complexa.

Constituindo uma alternativa ao internamento hospitalar convencional sob a responsabilidade duma equipa de saúde coordenada por médico, em ligação a serviço hospitalar clássico, para a referida hospitalização domiciliária é exigida a obediência a um conjunto de critérios clínicos, geográficos e sociais (incluindo acordo com o paciente ou familiar)

Numa perspectiva de visão holística do doente e considerando a pediatria como uma medicina integral de grupo etário, os princípios gerais enunciados deste modelo aplicam-se à idade pediátrica (< 18 anos), período da vida em que a doença crónica surge com uma prevalência relevante, atrás referida.

Objectivos da hospitalização domiciliária pediátrica (HDP)

Sistematizam-se os principais objectivos:

  • Promover o bem-estar do doente e a sua recuperação, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida de todo o agregado familiar;
  • Encurtar o tempo de hospitalização e evitar internamentos frequentes, desnecessários, rendibilizando recursos;
  • Estabelecer a comunicação entre os diversos níveis de cuidados, actuando em rede e promovendo a continuidade assistencial;
  • Valorizar o conceito de cuidados de saúde centrados na família e a prática da educação para a saúde.

Vantagens

Como principais vantagens, citam-se:

  • Favorecer o neurodesenvolvimento, diminuindo o risco de hospitalismo;
  • Diminuir o risco de infecções associadas aos cuidados de saúde;
  • Diminuir os custos familiares (por ex., com deslocações, alimentação, absentismo laboral, etc.;
  • Promover o trabalho em equipa, com a participação da família, assessorando a equipa de saúde.

Requisitos exigidos

Eis os requisitos obrigatórios:

  • A aceitação por parte da família desta modalidade de cuidados, a qual deve ser voluntária, não imposta;
  • Estabilidade clínica do paciente, não se prevendo agravamento a curto prazo, exceptuando situações assistidas no regime de cuidados paliativos;
  • Garantia da família quanto à assunção de responsabilidade e de disponibilidade permanente quanto a contacto telefónico ou através doutros meios de comunicação mais sofisticados;
  • Ambiente doméstico com condições logísticas e sanitárias garantindo segurança.

Tipologia dos pacientes com indicação para HDP

É a seguinte:

  • Doentes crónicos complexos, com falência de um ou mais órgãos (por ex. encefalopatias, cardiopatias, displasia broncopulmonar grave, síndromas polimalformativas, doenças do foro oncológico, etc.);
  • Doentes submetidos a antibioticoterapia endovenosa, quer em situações crónicas, quer agudas (por ex. infecções das partes moles, osteomielites, celulites orbitárias, endocardites, empiemas, infecção por cateter, etc.);
  • Doentes crónicos do foro respiratório dependentes da ventilação e/ou da oxigenoterapia, com ou sem traqueostomia;
  • Doentes assistidos no regime de cuidados paliativos; sobre esta modalidade, sugere-se ao leitor a consulta de capítulos próprios nas partes I e XXXI;
  • Recém-nascidos pré-termo pesando entre 1.600 gramas e 2.000 gramas, com alta hospitalar precoce;
  • Necessidade de nutrição enteral ou parenteral;
  • Necessidade de quimioterapia;
  • Necessidade de transfusão de componentes hemáticos;
  • Status pós-operatório de situações obrigando a vigilância contínua e a cuidados prolongados.

Equipa assistencial

A equipa de saúde da HDP (médica e de enfermagem), conduzida por um chefe, conta com o apoio de pessoal administrativo (fundamental para a gestão das admissões e de certa burocracia como a organização de processos e de relatórios clínicos), assim como de elementos da família e de auxiliares de acção médica. Em situações especiais, como no âmbito dos cuidados paliativos, prevê-se a colaboração de psicólogo.

No que respeita ao perfil dos elementos médicos e de enfermagem, são salientados dois tipos de pressupostos:

  • Experiência clínica abrangendo o amplo grupo etário pediátrico, desde o período neonatal até ao fim da adolescência ( 0 à < 18 anos);
  • Competência técnica no que respeita, designadamente, a ventilação mecânica, oxigenoterapia, nutrição enteral e parenteral, cateterismo central, canalização de veias periféricas, diálise peritoneal, transfusões, estomas, etc..

Aspectos organizativos

Seguidamente são sistematizadas de modo sucinto as principais características do funcionamento e manutenção da HDP.

Origem dos doentes: diversas dependências do hospital, desde cuidados intensivos, urgência, serviço hospitalar, hospital de dia, consulta externa, etc., até mesmo do próprio domicílio nos casos de anterior período de HDP.

Responsabilidade pela admissão em HDP: o médico hospitalar, assistente do paciente em causa, propondo à família e/ou paciente (tratando-se de adolescente) a modalidade assistencial de HDP. Nesta fase, é avaliada a eventual necessidade de dispositivos ou equipamento específico em função da patologia em causa (por ex. nebulizadores, bombas de perfusão, equipamento para oxigenoterapia em alto débito, etc.).

Área geográfica (distância entre local do hospital e local do domicílio): no caso de o doente com a indicação para HDP necessitar de transferência por qualquer razão do foro médico, importa que o tempo da transferência não seja superior a 20-30 minutos.

Formação teórico-prática dos elementos da família que autorizaram e assumiram a responsabilidade de colaboração na HDP; tal formação, na vertente teórica, poderá concretizar-se, por ex., através de material didáctico em papel, vídeo, DVD, etc. sobre problemas de saúde em geral; na vertente prática, cita-se como exemplo o tema sobre reanimação cardiorrespiratória, empregando modelos/ manequins de simulação, etc..

Garantia de meio de transporte para deslocação dos elementos da equipa ao domicílio: táxi, veículo próprio, etc..

Horário de trabalho: em condições ideais, a unidade de HDP presta assistência continuada 24 horas/dia, 365 dias/ano; contudo, por carência de recursos, tal não sendo possível, a alternativa é garantir a assistência entre 8-12 horas/dia, muitas vezes apenas nos dias úteis, gerindo o tempo e a periodicidade das visitas em função da patologia e do estado clínico. Fora do dito horário, está também prevista a modalidade não presencial de contacto telefónico diário com a família, designadamente utilizando por ex. as modalidades de sms, correio electrónico, vídeo-chamada, zoom ou skype.

Assistência integral: numa perspectiva holística, reforça-se a ideia de que é fundamental o trabalho multidisciplinar com a colaboração de todos os elementos da equipa, sendo desejável que exista contacto periódico com o médico de família responsável pelo paciente no âmbito dos cuidados primários/ centro de saúde. Aliás, numa fase de transição, está previsto que o médico de família possa integrar algumas das visitas da equipa ”titular” e, obrigatoriamente, aquando do dia em que termine o período assistencial a cargo da HDP (“alta” do paciente pela equipa de HDP).

Nota final: como foi referido no início, o funcionamento pleno da modalidade HDP, exigindo recursos, no nosso meio está ainda numa fase muito “embrionária”.

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ASPECTOS DA MEDICINA INTEGRATIVA

Introdução

Ao longo do tempo, à palavra Medicina têm sido acrescentados adjectivos ou expressões adjectivadas traduzindo, quer diversas filosofias na prestação de cuidados de saúde de vária ordem, quer diversas atitudes e actuações profilácticas ou terapêuticas de acordo com certas experiências ou vivências.

Nesta perspectiva, virá a propósito mencionar alguns exemplos de terminologias com que frequentemente nos confrontamos: medicinas preditiva, preventiva, do trabalho, social, clássica (convencional, tradicional ou alopática), tradicional chinesa, homeopática, paliativa, alternativa ou complementar, baseada na evidência, narrativa, integrativa, etc.. As referidas terminologias, por sua vez, consubstanciam diversos cenários da relação médico-doente.

De acordo com fontes idóneas, a chamada medicina integrativa (MI) associa práticas da medicina clássica, ensinada nas universidades, com as práticas da chamada medicina alternativa ou complementar (que foram cientificamente comprovadas), criando-se um sinergismo.

Trata-se, com efeito, duma área em franca expansão na Europa e Américas, com alguns estudos publicados em revistas internacionais indexadas na PubMed, e sobre a qual a Organização Mundial da Saúde e a Academia Americana de Pediatria já se pronunciaram. A este respeito, cabe referir que no Brasil e Argentina, segundo estatísticas recentes, foi possível obter uma redução de custos em saúde da ordem dos 12,5%, explicável por menor consumismo de medicamentos.

Fundamentação

A medicina alternativa ou complementar (MA/C), integrando diversas modalidades e técnicas com indicações terapêuticas amplas, e baseando-se em conceitos filosóficos que correspondem a determinados estilos de vida, valoriza a noção de que os médicos devem, não só saber tratar, mas também saber cuidar, e de que o estresse psíquico influencia os sistemas nervoso, endócrino e imunitário. Desta última constatação nasceu uma nova disciplina designada psico-neuro-endócrino-imunologia.

No âmbito da MA/C, e em termos genéricos, os meios utilizados e a sofisticação tecnológica são muito variáveis: desde simples remédios caseiros, a produtos manufacturados complexos; estes poderão ser, ou altamente eficazes e seguros, ou ineficazes, perigosos e tóxicos.

De facto, a eficácia real atribuída à MA/C depende de diversos factores tais como a competência profissional e qualidades éticas de quem prescreve e pratica, e da idiossincrasia da pessoa assistida.

Contudo, há aspectos de grande relevância, contribuindo de sobremaneira para o êxito de tal prática: designadamente, as particularidades da relação médico-doente de quem exerce a MA/C, estabelecendo enorme empatia com o doente, ”preocupando-se mais com o doente que tem uma doença do que com a doença que o doente tem, colocando-se na posição do doente, e valorizando aspectos vividos para além da doença.

Esta postura, que dismistifica o poder absoluto da ciência, contribui para a humanização do acto clínico em medicina tradicional ou clássica e relaciona-se com a chamada “medicina narrativa”, área não desenvolvida neste capítulo.

No seguimento do que atrás foi referido e segundo os especialistas, a medicina integrativa (MI) é mais do que a soma da medicina clássica com a MA/C, no pressuposto (salienta-se) de serem utilizadas as modalidades desta última em que a eficácia e segurança foram cientificamente comprovadas.

E diz-se mais do que a soma…pelo facto de estar implícito obrigatoriamente um valor acrescido que se atribui à dimensão biopsicossocial, espiritual e holística, considerando a pessoa assistida como um todo e uma relação médico-doente mais humanizada.

Modalidades de MA/C

Entre os diversos grupos e modalidades de MA/C, derivados da medicina tradicional chinesa, cabe salientar aqueles em que se comprovou eficácia com base científica: a acupunctura, a osteopatia, a quiropraxia e os tratamentos farmacológicos biológicos, estes últimos já largamente utilizados em doenças do foro reumatológico.

Na caixa a seguir, anotam-se em síntese:

Acupunctura: esta prática é a mais conhecida como complemento da medicina convencional. Consiste na aplicação de agulhas para estimular pontos específicos do corpo. O alívio da dor, designadamente da dor crónica, como fibromialgia, contribuindo para o bem-estar, é o principal benefício associado a esta técnica.

Osteopatia: esta terapêutica (com nome derivado do grego osteon e relacionada com o tratamento dos ossos), idealizada pelo norte-americano Andrew Still (1828-1917) tem como filosofia uma abordagem holística, considerando o corpo como um todo. O objectivo é restabelecer a função de estruturas corporais através da intervenção manual sobre articulações, músculos e ligamentos. Os princípios da Osteopatia podem ser aplicados por fisiatras.

Quiropraxia: trata-se de terapêutica que, de certa forma, faz fronteira com a osteopatia. Etimologicamente, khei-ros, palavra grega, exprime a ideia de “mão”. Com efeito, na quiropraxia, para alívio da dor, as mãos (aliadas a uma ideia de conforto a transmitir) são utilizadas para promover o alinhamento das articulações, principalmente, da coluna vertebral, de modo a descomprimir as estruturas nervosas e a eliminar contracturas.

A posição de organismos internacionais

Em 1970, a Organização Mundial da Saúde (OMS) objectivou, em comunicados e resoluções, o compromisso de incentivar a nível mundial o desenvolvimento da Medicina Integrativa nos sistemas públicos de saúde; e, em 2002, reafirmou a respectiva estratégia, a qual teve seguidores na Europa e Américas.

Na transição para o século XXI, registou-se nos Estados Unidos um facto: uma proporção crescente de cidadãos (33-55%) passou a socorrer-se da MA/C pelo facto de se ter gerado certa desilusão com alguma falta de resultados em saúde em relação com a medicina clássica, considerando que “esta não satisfazia as necessidades” daqueles, “apesar do desenvolvimento da tecnologia”.

Nesta perspectiva, universidades de prestígio no Reino Unido, Israel e Estados Unidos (tais como Georgetown em Washington DC, Johns Hopkins, UCLA, etc.), reafirmando os valores humanísticos, e encarando o doente na perspectiva holística, ou seja, valorizando o conceito integrativo, passaram a incluir nos seus curricula programas educacionais conferindo competências nesta matéria aos seus graduados, após avaliação.

O próprio National Institute of Health (USA) criou um departamento para a investigação neste ramo, aguardando-se, entretanto, os resultados de estudos aleatorizados e observacionais sobre as implicações da formação no âmbito deste ramo da prestação de cuidados.

Por fim. relativamente à incorporação da MI nos programas de educação médica pré e pós-graduada e continuada, cabe citar a Academia Americana de Pediatria (AAP), de idoneidade indiscutível, e titular duma revista periódica de cariz formativo e enorme interesse pedagógico – Pediatrics in Review. Excelente repositório de temas de actualização, as respectivas edições incluem frequentemente artigos subordinados à rubrica Complementary, Holistic, and Integrative Medicine.

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SIMULAÇÃO E ENSINO-APRENDIZAGEM EM CLÍNICA PEDIÁTRICA

“It´s time to develop multimedia-based interactive training modules that provide really good simulations of possible experiences in a manner similar to the training and recertification of airline pilots”.

Fanaroff AF,1999.

Introdução

As metodologias e estratégias no âmbito da Educação Médica evoluíram muito nos últimos 40 anos. Com efeito, tem-se assistido a um verdadeiro movimento renovador com base em estudos científicos cuja liderança tem cabido a vários centros dos EUA, Reino Unido, Holanda, Suécia, Canadá e Austrália. Na Europa, entre outros centros pioneiros, Maastricht na Holanda e Dundee na Escócia, podem ser considerados exemplos paradigmáticos de excelência.

Nesta perspectiva, chamando-se a atenção para as potencialidades das novas tecnologias, têm sido preconizadas mudanças curriculares clamando maior efectividade dos programas formativos, designadamente no período da pré-graduação.

Cabe, a este respeito, uma referência especial aos seguintes documentos: Tomorrow´s Doctors (versões de 1993 e 2003) sob os auspícios do General Medical Council (GMC), Declaração de Edimburgo (1988), Iniciativa de Lisboa (1988) e às conclusões do evento World Summit on Medical Education em 1994. Dos mesmos resultaram determinadas recomendações, salientando as relacionadas com os seguintes tópicos:

  • Programas formativos em torno de problemas clínicos;
  • Programas formativos chamados “em espiral” cuja ideia principal é a de que um mesmo conteúdo deve ser apresentado de modo progressivo, em diferentes níveis de complexidade crescente, para melhor compreensão da sua aplicação à prática. Tal implica um esquema organizativo muito rigoroso, o qual pode ser consubstanciado na criação de áreas pedagógicas “em rede” ou agrupamento harmonioso de conteúdos, em contraposição ao aglomerado de disciplinas em compartimentos estanques em que se verifica maior probabilidade de repetições, com inconvenientes óbvios, designadamente quanto à gestão do tempo lectivo;
  • Participação dos alunos em projectos de investigação, sendo desejável o contacto com centros de investigação e personalidades ligadas a esta área;
  • Contacto, desde os primeiros anos do curso, com a futura realidade profissional em diferentes ambientes em que se poderá processar a prática clínica (infantários, escolas, centros de assistência à terceira idade, centros de saúde, escolas, visitas domiciliárias, etc.);
  • Programas utilizando a simulação em diversas modalidades associada aos métodos clássicos.

O objectivo deste capítulo é a abordagem de aspectos essenciais da “Simulação aplicável à Clínica Pediátrica” como estratégia de treino clínico tendo em vista a aquisição de competências técnicas e não técnicas.*

    • No texto, os: vocábulos “ensino-aprendizagem”, “ensino” e “aprendizagem” são por vezes utilizados indiferentemente.
    • Considerou-se a seguinte definição de competência: capacidade para a realização de determinadas tarefas com base em conhecimentos, atitudes, aptidões e valores. De acordo com Englander et al [2017]: “Competency An observable ability of a health professional related to a specific activity that integrates knowledge, skills, values, and attitudes. Since competencies are observable, they can be measured and assessed to ensure their acquisition. Competencies can be assembled like building blocks to facilitate progressive development”.
    • O inglesismo skill foi considerado como noção ligada a perícia, habilidade, destreza.

Simulação aplicada à Medicina

Em Medicina, o treino para aquisição de skills implica a “utilização” de seres humanos, adultos ou crianças, saudáveis ou doentes, cujas manifestações traduzem grande variabilidade de fenómenos biológicos.

Imperativos éticos e certos condicionalismos actuais relacionados, quer com novas regras de governação, quer com novos paradigmas assistenciais (de que são exemplo os internamentos de duração cada vez mais curta) limitam significativamente as oportunidades de treino para a aquisição das referidas competências.

Exemplificando com a situação clínica de meningite, comprova-se que as oportunidades de um interno de uma especialidade médica fazer uma punção lombar são escassas e, mais escassas são para alunos no âmbito do ensino pré-graduado.

Nesta perspectiva, surgiu o conceito de ensino – aprendizagem através do treino baseado na simulação.

Simular é, como se sabe, imitar ou fingir, fazendo parecer real o que não é. Tal conceito tem sido aplicado com objectivos educativos em áreas profissionais muito diversas; cita-se como exemplo clássico o treino dos pilotos da aeronáutica militar e civil desde há mais de 80 anos, utilizando simuladores de voo, não só para aprendizagem e aperfeiçoamento do desempenho em situações reais, mas também para avaliação do desempenho e recertificação periódica.

Considerando a área da clínica pediátrica, as capacidades a adquirir podem ser de âmbito:

  • Não técnico, compreendendo quer aspectos cognitivos (relacionados com conhecimentos fundamentais para a interpretação de dados clínicos), quer comportamentais (em relação com atitudes, tais como comunicação, liderança, atenção, trabalho de equipa, etc.);
  • Técnico, compreendendo aspectos psicomotores (gestos, habilidades, procedimentos ou técnicas em relação com o manejo de diverso equipamento com destreza).

Em Medicina, o desenvolvimento da área de treino baseado em simulação tem sido lento. Efectivamente, foi nas últimas quatro décadas que se verificou o maior impulso na sequência de estudos de validação científica comprovando boa relação custo-efectividade em termos de desempenho profissional futuro.

Porém, tal área de treino deverá ser encarada como complemento do treino clínico de proximidade, à cabeceira do “doente “real”. Assim, através da simulação em ambiente fictício, o praticante poderá cometer erros e corrigi-los, o que se afigura de grande utilidade: o objectivo último é saber estar e saber fazer bem, de modo correcto, o que garantirá a segurança do doente em situações reais futuras.

Assim a concretização dum programa de simulação obrigará, pois, a três requisitos fundamentais:

  • Condições logísticas que permitam criar um cenário, o mais aproximado possível da realidade;
  • Equipa treinada de formadores;
  • Equipamento para a simulação.

Âmbito da Simulação

Em Medicina o âmbito da simulação é lato, podendo abranger diversos cenários ou modalidades de treino de competências. Na sua forma mais simples e primitiva pode ser considerado acto de simulação o treino clássico na realização de determinadas tarefas ou procedimentos, com ou sem instrumentos, discriminados adiante, na alínea “Simulação aplicada ao ensino da Pediatria”.

Como modalidade clássica mais antiga de simulação, ainda hoje utilizada, remontando a séculos, cita-se a dissecção de cadáveres humanos e de animais como forma de treino em técnicas cirúrgicas.

Na década de 1960, a simulação começou a ter lugar na Medicina de Adultos com “doentes simulados”, ou seja, com pessoas treinadas (muitas vezes actores), para imitar situações clínicas diversas como expressão de dor com diversas localizações, tipos de tosse, dispneia, sibilância, estridor, crises epilépticas, abdómen agudo, etc.. Esta modalidade (Simulação com actores “doentes”, previamente treinados) permite igualmente o treino em comunicação.

Com o desenvolvimento da electrónica, dos sistemas multimédia e da criação das condições para a chamada “realidade virtual”, passou a ser possível utilizar programas de software permitindo obter treino em diversas áreas, nomeadamente em ventilação mecânica e na interpretação de casos clínicos, valorizando a semiologia e o treino em raciocínio clínico (Simulação baseada em computadores).

Ao mesmo tempo, a indústria passou a criar modelos com pormenores anatómicos e funcionais de grande minúcia (manequins simuladores) imitando fielmente o corpo humano, no todo ou em partes; inicialmente para treino de anestesistas, mais tarde passaram a ser utilizados para treino em reanimação básica e em procedimentos invasivos vários, como cateterismo, entubação traqueal, punção lombar, etc.. A chamada simulação híbrida congrega a combinação do cenário doentes actores com manequins simuladores.

Surgindo posteriormente a aplicação de programas de software aos manequins, entrou-se na era dos simuladores manequins de alta fidelidade ou baixa fidelidade, conforme o grau de sofisticação da tecnologia. Tais manequins robotizados, de corpo inteiro e assistidos por computador, adaptados à idade pediátrica, permitem reproduzir mais de uma centena de situações clínicas com fisiopatologia diversa.

Com a tecnologia que lhes serve de base, entre outras funcionalidades, executam movimentos de expansão e retracção torácica, cianose, palidez, sons e sopros cardíacos, pestanejo, adejo nasal, diversos tons de voz, diversos tipos de tosse, etc..

É igualmente possível observar o seu “comportamento” traduzido por efeitos ou “reacções” em função de determinadas intervenções terapêuticas ou procedimentos (correctos ou incorrectos); por exemplo, surgimento de cianose ou palidez, grito de dor, taqui ou bradicardia, etc.. É o caso dos simuladores designados por certas marcas de fabrico – SimMan (Laerdal Medical Corporation, Gatesville, USA) e por METI (Medical Educational Technologies Inc., Sarasota, USA).

Em suma, a tecnologia sofisticada passou a viabilizar manequins verdadeiramente “interactivos” com especial interesse, designadamente no treino em suporte básico e avançado de vida e em pneumocardiologia (Figura 1).

Outra modalidade é a chamada simulação baseada nas realidades virtual e virtual aumentada, com aplicação em diversos contextos, como no treino em técnicas cirúrgicas, designadamente em cirurgia laparoscópica. (pela particularidade da terminologia “realidade” no contexto deste capítulo, menos habitual, deverá consultar-se a caixa, a seguir à Figura 1).

1. Simuladores de baixa fidelidade

2. Simuladores de alta fidelidade

3. Tecnologia para realidade virtual

4. Modelos de treino de técnicas isoladas

5. Simulação baseada em computadores (software)

6. Simulação híbrida

7. Tecnologia para realidade aumentada

FIGURA 1 – Modalidades de utilização da Simulação em Medicina.

Realidade Virtual (RV): tecnologia que, através de instrumentos computacionais, permite “transportar” o utilizador para um ambiente virtual.
Realidade Aumentada (RA): tecnologia que, permitindo sobrepor elementos virtuais à nossa visão da realidade, combina imagens do mundo real com o mundo virtual; trata-se de conceito derivado do de Realidade Virtual.
Estas modalidades, implicando tecnologia dispendiosa, utilizam diversos dispositivos ou equipamento como “capacete” específico, monitores e dispositivo com formato de “óculos” associado a projector, etc..

Simulação aplicada ao ensino da Pediatria

Treino nas fases pré-clínica e de integração na prática clínica

Nas fases pré-clínica e de integração gradual na prática clínica do Mestrado Integrado em Medicina/MIM, de modo progressivo, para além do treino de atitudes, podem ser utilizados diversos tipos de manequins, assim como de aparelhos para o treino de técnicas e procedimentos. Especificando:

  • Prática correcta da lavagem das mãos em diversos ambientes;
  • Treino em comunicação: anamnese no contexto de casos clínicos simples recorrendo ao médico, incluindo situações de normalidade na perspectiva da prevenção e da informação clínica explicativa a familiares, etc.;
  • Utilização de manequins “anatómicos” como alternativa ao treino em cadáveres;
  • Medição da pressão arterial, treino em oftalmoscopia e otoscopia, manejo do oxímetro de pulso, etc.;
  • Inspecção e palpação de manequins exibindo diversa patologia (por ex. adenomegálias, globo vesical palpável, hepatosplenomegália, etc.);
  • Auscultação cardiopulmonar em manequim, aplicando tecnologia sofisticada assistida por computador (manequim de alta fidelidade);
  • Em ligação estreita ao relato de casos clínicos simples, observação de resultados imagiológicos em diversas idades incluindo o período pré-natal (fetos): por ex. de radiografia convencional, tomografia axial computadorizada, ressonância magnética, ecografia, etc.;
  • Entubações (gástrica, traqueal) em manequim;
  • Toque rectal e punção suprapúbica em manequim;
  • Aplicação de venoclise em manequim.

Treino na fase clínica do MIM, de pós-graduação e formação contínua

Nestes períodos da formação pediátrica, as áreas de treino, de execução mais complexa, incluem suporte básico e avançado de vida, assim como estabilização e transporte da criança gravemente doente. Eis os tópicos clássicos:

  • Prática na mudança de posição dos doentes simulados e transposição para macas ou camas;
  • Execução de determinados procedimentos utilizando partes de manequins convencionais (por ex. dorso, região dorso-lombar e região glútea para prática de punção lombar, membro superior para prática de venoclise ou cateterismo venoso, abdómen de recém-nascido para prática de cateterismo de artéria ou veia umbilical, abdómen e pelve para treino da manobra de Ortolani no recém-nascido, região vulvar e coxas com cabeça fetal em expulsão para compreensão da patogénese do traumatismo ocorrendo durante o trabalho de parto);
  • Prática de entubação traqueal e ventilação com pressão positiva intermitente, utilizando manequins clássicos;
  • Prática com desfibrilhador;
  • Programas estruturados de software em computador com sistemas áudio e vídeo, possibilidade de observação virtual do doente, discussão interactiva de casos clínicos, e avaliação final do desempenho;
  • Prática em manequins da alta fidelidade em centros de simulação (situações seleccionadas e adaptadas ao curriculum do MIM);
  • Programas de treino em reanimação e suporte avançado de vida como o EPLS (European Pediatric Life Support course ) ou de Reanimação Neonatal como o NLS (Neonatal Life Support) do ERC (European Resuscitation Council). Estes programas são considerados actualmente de referência e altamente recomendados no âmbito do Internato de Formação Específica em Pediatria e do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos. Desejável, contudo, é a inclusão nos programas já existentes de lista de técnicas e procedimentos, com aplicação de critérios de aprendizagem mensuráveis com base na simulação.

Nos EUA, o Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME) e a Residency Review Committee (RRC) for Pediatrics recomendam a aquisição das referidas competências em reanimação, e doutras já citadas, através do ambiente simulado durante o internato de pediatria.
Também, no Canadá e na Austrália, o uso proficiente e apropriado de competências técnicas em procedimentos invasivos constitui um requisito de acreditação dos programas de treino no âmbito dos internatos de Pediatria.

Quer no período da pós-graduação, quer no da formação contínua, para além das diversas valências de treino discriminadas anteriormente, e em função das necessidades educativas do praticante discente, poderão ser desenvolvidas as seguintes áreas:

  • Técnicas endoscópicas com simuladores assistidos por computador, com especial interesse em Cirurgia, Otorrinolaringologia, Pneumologia, Gastrenterologia e Urologia. O simulador para laparoscopia, designadamente o denominado pela sigla MISTELS (McGill Inanimate System for Training and Evaluation of Laparoscopic Skills) utilizado na Universidade de McGill/Canadá-Montreal, permite o treino na aquisição de capacidades em laqueações, execução de nós e suturas, e coordenação olho-mão em executantes dextros e sinistros;
  • Prática com simuladores de doenças cardiovasculares e de situações de anestesia utilizando, quer sistemas multimédia assistidos por computador, quer manequins de alta fidelidade;
  • Prática de farmacoterapia utilizando programas assistidos por computador centrados em fisiologia e farmacologia humanas; com esta estratégia é possível avaliar, em doente virtual, respostas específicas a fármacos, utilizados correcta ou incorrectamente;
  • Prática com manequins de alta fidelidade.

Estratégias para a formação

Para garantir a rendibilidade da aprendizagem, importa salientar determinados requisitos de ordem geral (a adaptar em função dos cenários anteriormente explanados), salientando-se que deverá imperar a noção de versatilidade:

  1. Antes do treino de procedimentos propriamente dito (treino), o formador explicando pormenores sobre o treino, procede à distribuição de um guião explicativo a todos os praticantes integrando, designadamente, métodos e estratégias, videogramas, cronograma das sessões e respectivos objectivos educativos.
    Este passo, exemplificando situações concretas com que o discente praticante se irá confrontar, consubstancia a noção de Briefing ou Prebriefing, termos muito usados na gíria internacional.
    Nesta sessão prévia impõe-se igualmente abordar um tópico designado na gíria internacional pela sigla CRM (Crew Resource Management), exprimindo um conceito. Tal área do conhecimento (CRM) teve origem nos procedimentos preventivos levados a cabo pelas tripulações de aeronaves perante riscos e erros de comunicação susceptíveis de provocar desastres e tragédias (ver caixa).

O conceito CRM, dizendo respeito ao treino em competências não técnicas como complemento das técnicas, e na gestão dos recursos, pode ser assim esquematizado:

    • treino na aquisição de competências, designadamente de liderança, utilizando todos os recursos disponíveis, incluindo todas as pessoas envolvidas assim como os equipamentos utilizados;
    • treino na execução de procedimentos feitos em segurança e na resolução de problemas surgidos, admitindo a possibilidade de surgirem erros, o que exige atitude de alerta para a prevenção destes;
    • treino na identificação das limitações humanas e técnicas associadas ao sistema;
    • treino em comunicação com eficácia entre elementos da equipa e na relação médico-paciente-família.

 

  1. O treino de procedimentos inicia-se após a breve explicação prévia do formador: os praticantes reúnem-se em pequenos grupos (não mais do que 4 por tutor e, idealmente, aos pares) dispondo em geral de 10-15 minutos para a execução de cada.
    • Havendo mais do que uma sala, o material didáctico poderá ser disposto de modo sequencial, o que facilitará a aprendizagem.
    • A atitude dos praticantes em geral, deverá ser o mais aproximada possível da situação real (em cenário de “doente”/manequim, ou de “reunião” para discussão de casos assistidos por computador) em obediência às normas vigentes na instituição.
    • No âmbito da prática de procedimentos invasivos, a acção formativa deverá incluir:
    • o ritual do “contacto com o doente-família” para obtenção de consentimento esclarecido na perspectiva de treino de capacidades para a comunicação;
    • o ritual da assepsia exigida com a realização de gestos simples, mas fundamentais, como os da lavagem correcta das mãos e utilização de “bata esterilizada”, precedidos pela colocação de avental, barrete e máscara (tal como acontece em ambiente de “bloco operatório”, de “bloco de partos”, ou mesmo de enfermaria onde poderão ser realizados procedimentos invasivos).
  2. Terminada a sessão de treino, este é ulteriormente completado em sessão na sala de reuniões com discussão docente/ discente sobre o desempenho da cada praticante, documentado com gravação. Nesta parte da acção formativa são emitidas recomendações pelo tutor sobre o que se aprendeu e sobre aspectos a melhorar. Este passo corresponde, pois, a um balanço final reflexivo sobre as tarefas realizadas durante a simulação, na gíria internacional designado por Debriefing (ver caixa).

 

Notas sobre terminologia internacional

Briefing ou Prebriefing – Sessão informativa preparatória para todos os praticantes em treino, antecedendo a experiência de simulação. Liderada pelo coordenador responsável, o objectivo é esclarecer sobre os objectivos do cenário, incluindo orientações para o uso de equipamentos (manequins e simuladores em geral) e contexto clínico do paciente. São reforçados os seguintes pontos: – necessidade de criação de ambiente sério e formal de aprendizagem, conquanto acolhedor e não hostil; – confidencialidade; e – participação equitativa.

Debriefing – Actividade que ocorre posteriormente à experiência de simulação, com o objectivo de consolidação dos conhecimentos. Tratando-se dum balanço do que aconteceu durante o treino, o coordenador dá oportunidade aos praticantes para reflectirem sobre o respectivo desempenho, sugerindo a colocação de dúvidas e a menção de aspectos que necessitam de revisão.
Existem vários métodos de Debriefing, utilizados por diferentes escolas. Entre os mais conhecidos e utilizados, citamos apenas três exemplos com siglas que correspondem a variantes estruturadas: – RUST (Reaction, Understanding, Summarize, Take-Home Messages); – FFAST (Feelings, Facts, Activity, Summary, Take Home Messages); – OSAD (Objective Structured Assessment of Debriefing).

Centros de Simulação

Em certos países, em hospitais e universidades com recursos avultados, existem áreas específicas de dimensões variáveis com toda a logística inerente a um serviço ou unidade (secretariado, enfermaria convencional, gabinetes de consulta, unidade de cuidados intensivos, bloco operatório, bloco de partos, sala de reuniões, etc.) onde são concentrados todos os recursos para a simulação; todavia, em vez de doentes reais há manequins e equipamento acessório. Este contexto corresponde ao centro de simulação “ideal”, nem sempre exequível, pelos elevados custos envolvidos.

O recrutamento dos formadores poderá ser feito entre clínicos ou elementos de enfermagem (ou outros profissionais ligados à saúde) motivados para o ensino centrado na simulação e experientes quanto à realização de certas técnicas e ao manuseamento de certa aparelhagem. De salientar que o treino com manequins de alta fidelidade implica formação específica nesta área.

Para além do formador (ou formadores) e dos discentes praticantes, e não existindo “doentes reais” no ambiente criado, é suposta a colaboração doutras pessoas com diversas funções associadas ao processo de simulação: pessoal de secretaria, familiares ou pessoas simulando familiares, médicos e enfermeiros, etc.., outras. Existe, portanto, um cenário próprio, quase “teatral”.

No referido centro é possível, de modo integrado, o treino de todas as capacidades descritas nas alíneas anteriores, incluindo lavagem das mãos, uso de bata, máscara, barrete, luvas, elaboração de relatórios, exposição oral de casos à cabeceira do “doente” e na sala de reuniões, etc..

Reitera-se que o praticante é igualmente treinado a adoptar atitudes correctas aplicáveis a casos específicos e a comunicar com médicos, profissionais de saúde, pessoal de secretariado e familiares.

No que se refere à logística e a aspectos organizativos, importa salientar que a escolha do equipamento deverá ser muito criteriosa e adaptada à realidade de cada instituição.

Como se pode depreender, reunidas as condições indispensáveis para além do equipamento (referidas anteriormente – formadores treinados e espaço disponível), haverá que colher referências junto de instituições com experiência comprovada neste âmbito.

Numa fase inicial de arranque, deverá ser adquirido material e manequins para prática de procedimentos básicos e treino de capacidades considerados prioritários, sem a preocupação de criar centro sofisticado. Igualmente, antes da aquisição do material haverá que ponderar os custos com as reparações e a manutenção do mesmo.

Numa perspectiva económica de racionalização de recursos e de poupança, haverá que organizar o plano contando com material já não utilizável na prestação de cuidados a doentes reais, mas ainda adequados no contexto de simulação, desde que reunidas condições de segurança para formadores e praticantes.

A experiência de um centro de simulação de técnicas em Pediatria (**)

Desde 2001, por iniciativa de JMVA, com a colaboração de MTN, e em afiliação à Universidade Nova de Lisboa através da Faculdade de Ciência Médicas/ Nova Medical School, funciona num dos pavilhões do campus do Hospital Dona Estefânia, uma área designada Centro Universitário.

Neste, para além de salas polivalentes onde decorrem acções de formação teórico-práticas, seminários e reuniões assistidas por meios audiovisuais, computadores com acesso à internet e biblioteca, localiza-se um Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria (CSTP), compreendendo sala de procedimentos, zona de lavagem e desinfecção das mãos e zona de armazenamento de equipamento. A equipa é constituída por elementos com formação em ensino por simulação, em número variável de acordo com as necessidades e a disponibilidade

(**) ABREVIATURAS: CSTP – Centro de Simulação de Técnicas em Pediatra; FCM/NMS/UNL – Faculdade de Ciência Médicas/Nova Medical School, da Universidade Nova de Lisboa; HDE – Hospital de Dona Estefânia, Lisboa; JMVA – João M. Videira Amaral; MTN – Maria Teresa Neto; PG – Pedro Garcia.

 

Os modelos disponíveis, representados na Figura 2, reproduzem de forma tão fidedigna quanto possível algumas das áreas anatómicas do corpo humano – cabeça e pescoço, boca, faringe e laringe (A), região abdominal, região umbilical neonatal com vasos umbilicais acessíveis (F), região lombo-sagrada para punção lombar (D), articulação coxo-femoral para manobra de Ortolani, membros superiores e inferiores (E) com componentes vascular e óssea e frascos com fluidos.

Existe também disponível o seguinte material, dum modo geral desactivado de diversas áreas assistenciais, tais como unidades de cuidados intensivos e bloco operatório: laringoscópios, tubos endotraqueais, máscaras laríngeas, insuflador manual auto-insuflável Sussex®, agulha intraóssea automática, cateteres venosos e arteriais umbilicais, material cirúrgico diverso (porta-agulhas, pinças, tesouras, pinças hemostáticas, etc.). Existe ainda material consumível diverso, tal como fios de sutura, cateteres, abocaths, agulhas, seringas e compressas.

Com os referidos modelos e material é propiciado o treino nos seguintes procedimentos e técnicas: estabelecimento de via aérea com máscara laríngea, tubo naso-faríngeo, entubação orotraqueal; ventilação com máscara e insuflador manual; cateterismo umbilical neonatal venoso e arterial; outros tipos de cateterismo venoso, periférico e central; estabelecimento de via emergente intraóssea; colheita de sangue venoso e arterial; punção lombar; limpeza e desinfecção de feridas; treino com material cirúrgico e suturas e drenagem de pneumotórax.

Figura 2 – Alguns dos modelos disponíveis no CSTP no Centro Universitário do Hospital de Dona Estefânia: modelo de estabelecimento da via aérea (A), modelos para punção venosa e arterial (B e E), instrumentos para suturas/ pequena cirurgia (C), modelo de punção lombar (D), modelo para canalização de artéria e veia umbilicais (F).
O CST tem vindo a crescer com a aquisição de novos modelos e substituição de outros, deteriorados pelo uso intensivo.

Nos primeiros anos, as acções de formação estiveram a cargo de um Professor (MTN). Desde 2011, o Coordenador responsável do CSTP é PG (Pedro Garcia), possuindo as seguintes competências: Tutor da FCM/NMS com Mestrado em Educação Médica, diferenciação em cirurgia e reanimação pediátrica e neonatal, e membro da Comissão de Reanimação do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa.

Ao longo de cada ano lectivo, recebem aulas de simulação de técnicas em pediatria cerca de 280 alunos, no âmbito do ensino da Pediatria do 5ª ano do MIM. Durante todo o ano lectivo, são recebidos dois grupos de 6-7 alunos por semana para participação em aulas com duração médica de 2 horas.

A execução de cada técnica é precedida de um enquadramento teórico para a realização da mesma (Briefing) em função de cada caso clínico, indicações e fundamentação da mesma, exames complementares a solicitar, resultados esperados e sua interpretação.

Segue-se a descrição da técnica e a demonstração prática do procedimento por parte do docente, chamando-se a atenção para o conceito atrás definido de CRM.

Posteriormente, inicia-se o treino individual dos alunos praticantes, com supervisão directa do tutor, prevendo-se repetição, tantas as vezes quanto as necessárias. Salienta-se que a orientação do ensino de gestos é feita individualmente, com a preocupação da aprendizagem correcta de cada procedimento, o qual é repetido até o aluno “saber fazere, sobretudo,saber fazer bem”, em obediência ao referido conceito de CRM.

No fim de cada bloco é solicitada de modo informal, a cada estagiário, opinião reflexiva sobre a sessão concluída, enquadrada nesta área de aprendizagem (Debriefing).

As opiniões dos alunos sobre o treino centrado na simulação podem sintetizar-se nas seguintes ideias-chave:

  • Aprendizagem útil/muito útil;
  • Sugerida maior carga horária dedicada a esta actividade;
  • Necessidade de melhoria das instalações;
  • Necessidade de aquisição de modelos mais diversificados; e
  • Substituição dos modelos mais antigos e deteriorados;
  • Considerado como muito positivo o apoio e acompanhamento personalizado dos docentes até “os alunos saberem fazer bem”.

Conclusão

  • A aquisição de competências, técnicas e não técnicas, adoptando o treino baseado na simulação como complemento da prática convencional em pessoa real afigura-se de grande utilidade, o que é corroborado por estudos científicos de validação, evidenciando bons índices de custo-efectividade; tal noção aplica-se a diversas fases da diferenciação profissional: desde a pré-graduação, à pós-graduação e à formação contínua.
  • A simulação como método de ensino-aprendizagem pode ser considerada um acto de treino clínico (tão natural como a sessão em que se apresentam casos clínicos para discutir, a prática em consulta externa, ou a visita médica clássica nas enfermarias).
  • Em termos organizativos e de planeamento, importa uma referência aos custos médios inerentes a esta estratégia de ensino-aprendizagem: um manequim convencional para idade pediátrica (ou parte anatómica de manequim) poderá oscilar entre 800 e 4.000 euros (sendo que existem manequins para diversas idades), e o dum manequim de alta fidelidade (robotizado, agregando mecanismos de software assistidos por computador), entre 80.000 e 250.000 euros.

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METABOLÓMICA – PERSPECTIVAS DE APLICAÇÃO À CLÍNICA

Definição e importância do problema

Perante a complexidade de determinadas patologias, os clínicos confrontam-se frequentemente com certas limitações quanto à sensibilidade e especificidade dos métodos laboratoriais clássicos utilizados para o diagnóstico. Por outro lado, em tais circunstâncias, segundo a experiência de investigadores, os referidos métodos são marcadores tardios da lesão de órgão.

No final do século XX, após a sequenciação do genoma humano, foram desenvolvidas novas metodologias – cuja designação termina com o sufixo “ómica” – representando a chamada Biologia dos sistemas. Com tal modalidade, torna-se possível a identificação e quantificação em simultâneo, de número significativo de metabólitos celulares (biomarcadores).

Trata-se, pois, duma nova área da ciência (Ciência das ómicas) em franca expansão, com o propósito de se proceder ao estudo integrado das moléculas que compõem um organismo.

As “ómicas abrangem áreas ou níveis de complexidade diversa mas interdependente, tais como: – a genómica e a transcriptómica, relacionadas respectivamente com os genes (ADN) e a sua expressão (ARN); – a proteómica, relacionada com as proteínas; e a metabolómica, área emergente da bioquímica analítica que identifica e quantifica os produtos intermédios ou finais das vias metabólicas (metabólitos, moléculas de baixo peso molecular). Uma vez que os metabólitos representam a expressão do genoma, transcriptoma e proteoma, os mesmos poderão reflectir o fenótipo de um organismo ou determinadas patologias em tempo real.

A Epigenética – interface entre a genética e os factores ambientais – estudando as modificações do genoma que podem ser transmitidas hereditariamente (alterações moleculares, designadamente metilação ou modificação das histonas, sem alteração da sequência dos nucleótidos do ADN) veio salientar a importância da regulação metabólica do ADN, regulação que pode ser avaliada e monitorizada precisamente através da metabolómica.

Através da metabonómica, variante da metabolómica, procede-se à avaliação em tempo real de determinado perfil metabólico em resposta a determinados estímulos como fármacos, nutrientes, exposição ambiental, etc..

No âmbito da comunidade científica, é consensual que a metabolómica é actualmente, a área das “ómicas” com maior utilidade na prática clínica pediátrica no que respeita especificamente à descoberta de biomarcadores, ao diagnóstico, prognóstico, e à avaliação dos efeitos de fármacos.

O objectivo deste capítulo é uma abordagem sucinta dos principais aspectos da metabolómica na perspectiva da aplicação à clínica pediátrica.

Aspectos metodológicos e limitações

Os vários aspectos da metodologia do estudo metabolómico estão resumidos no fluxograma que integra a Figura 1.

FIGURA 1. O processo da metodologia nos estudos metabolómicos (adaptado de MH Hanna & PD Brophy, 2015).

Salienta-se que é fundamental:

I – a correcta execução sequencial destes “passos” para evitar resultados enviezados;

II – garantir a validação correcta dos mesmos para evitar conclusões erradas.

As análises metabolómicas podem aplicar-se a qualquer tipo de amostras de produtos biológicos (urina, plasma, soro, sangue do cordão umbilical, saliva, ar exalado, fezes, líquido sinovial, tecidos em biópsias, etc.).

A urina é o fluido que mais frequentemente tem sido utilizado, com diversas vantagens, designadamente: – método de colheita não invasivo; – possibilidade de obter informação metabólica mais alargada, holística. Destas características decorre o seu especial interesse em Pediatria e Neonatologia.

A metabolómica utiliza actualmente tecnologias analíticas de elevada sensibilidade e especificidade como a cromatografia gasosa (GC) ou líquida (LC) associada a espectrometria de massa (GC-MS ou LC-MS), e a espectroscopia de ressonância magnética (NMR).

As plataformas mais frequentemente utilizadas em metabolómica apenas identificam espectros de moléculas cuja separação foi obtida com base na sua carga/ massa (espectrometria de massa, MS) ou nas propriedades magnéticas de átomos como 1H ou 13C (NMR).

A identificação dos metabólitos pode ser feita posteriormente através da utilização de bases de dados, como por exemplo a Human Metaboloma Database Metabolite, que associa espectros de MS e de NMR a metabólitos específicos e a vias metabólicas. Estas bases de dados incluem também referências a concentrações dos metabólitos em diferentes fluidos biológicos.

Os resultados analíticos (perfis de metabólitos) são submetidos a complexa análise estatística multivariada, sendo que o número de metabólitos submetidos a estudo pode ultrapassar várias dezenas ou centenas.

O conjunto dos vários metabólitos identificados (combinados e integrados num algoritmo único, interpretado de forma unificada), integra as chamadas “assinaturas”, na gíria dos investigadores.

As “assinaturas” são assim designadas por se assemelharem às vulgares assinaturas, reconhecíveis apenas no seu todo e por poderem contribuir para uma caracterização (metabólica) mais personalizada de cada indivíduo.

As mesmas podem ser comparadas a um código de barras (cada barra, cada metabólito): no seu conjunto é fornecida informação relevante, conquanto cada barra, como peça única, possa não ter significado.

Limitações

Apesar de se tratar duma área do conhecimento muito promissora, na fase actual verificam-se ainda algumas limitações relacionadas:

  • Com as características da tecnologia (equipamentos muito sofisticados e muito caros);
  • Com os recursos humanos (ainda escassos, exigindo-se elevado grau de diferenciação);
  • Ausência de definição dos valores de referência nalgumas áreas, entre o normal e patológico, o que constitui limitação acrescida no caso do organismo em idade pediátrica, caracterizado por variações dos metabolomas com o tempo, face ao crescimento e desenvolvimento; e
  • Falta de estandardização.

Áreas de investigação e aplicações práticas

No quadro 1 são enumeradas as áreas em que a investigação em metabolómica tem sido mais activa.

QUADRO 1. Áreas de investigação metabolómica em Perinatologia e Pediatria.

Medicina FetalRestrição do crescimento
Exposição a agentes infecciosos
Idade gestacional
Peso de nascimento
Prematuridade

Pediatria Neonatal – Neonatologia

Asfixia perinatal
Doenças hereditárias do metabolismo
Fibrose quística
Nutrição

Pediatria Geral

Agressividade
Anorexia nervosa
Asma
Neuro-psicopatias/Autismo
Hiperactividade e défice de atenção
Diabetes
Displasia broncopulmonar
Doença celíaca
Doença inflamatória intestinal
Enterocolite necrosante
Espondilite anquilosante
Fibrose quística
Nefro-uropatias
Defeitos congénitos cardíacos
Microbioma intestinal
Subnutrição
Obesidade e excesso de peso
Obstipação
Oncologia
Sepsis
Susceptibilidade a infecções

 

Citam-se a seguir alguns exemplos concretos de investigação em metabolómica, com aplicações práticas, designadamente quanto a decisões clínicas.

→ Análises em amostras de sangue do cordão umbilical:

  • Diferenças no perfil de aminoácidos e de outros metabólitos entre recém-nascidos (RN) com peso adequado para a idade gestacional e com restrição do crescimento intrauterino; entre RN de baixo peso e de peso normal; e entre RN pré-termo e de termo;
  • Diferenças entre gémeos monocoriónicos e bicoriónicos;
  • Diferenças entre RN com e sem quadro de asfixia perinatal, permitindo compreender a patogénese da adaptação à vida extrauterina (amostras de sangue do cordão);
  • Previsão da evolução clínica de RN com quadro de infecção congénita por CMV (citomegalovírus).

→ Análises em amostras de urina:

  • Diferenças entre RN com persistência de PDA (ductus arteriosus patente) quanto a necessidade, ou não, de profilaxia com anti-inflamatório (ibuprofeno) e, em caso positivo, previsão da resposta ao fármaco.

→ Análises em amostras de lavado broncoalveolar:

  • Diferenças quanto ao perfil de metabólitos do lavado broncoalveolar de RN com síndroma de dificuldade respiratória, pré- e pós-administração de surfactante.

Dados da investigação recente apontam para a comprovação de “assinaturas” compostas de biomarcadores que podem ser mais úteis na fenotipagem da asma e na selecção de tratamentos personalizados, comparativamente a estratégias baseadas em biomarcadores únicos.

A metabolómica da diabetes mellitus do tipo 1 (DM1) tem revelado aspectos curiosos. Demonstrou-se que as alterações da regulação do metabolismo dos lípidos e aminoácidos precedem o processo de seroconversão da autoimunidade pancreática.

Quanto ao papel da metabolómica e da metabonómica em nutrição na idade pediátrica, salienta-se a sua importância na identificação, a curto prazo, de marcadores de estado nutricional e, a longo prazo, na personalização do regime alimentar a recomendar.

Em medicina materno-fetal, as provas científicas mais interessantes dizem respeito à identificação de “assinaturas” metabolómicas urinárias das grávidas, preditivas do crescimento fetal. Acresce a possibilidade de intervenção precoce em contexto de factores de risco modificáveis como o estilo de vida das grávidas, por forma a alterar o metabolismo materno e, assim, a reduzir o risco de doença no recém-nascido.

No âmbito da avaliação de fármacos (fármaco-metabolómica) cabe citar, entre outros, os estudos preditivos do metabolismo e toxicidade de drogas, assim como a descoberta dos mecanismos de idiossincrasia.

A prevalência da asma na população pediátrica e o seu impacte, a diversidade de fenótipos e de prognóstico, assim como as limitações das terapêuticas farmacológicas, são alguns dos factores que justificam o maior desenvolvimento desta área. Há resultados encorajadores na aplicação da metabolómica, em tempo real e com dispositivos portáteis, dirigida à análise de compostos orgânicos voláteis.

O quadro 2 sintetiza alguns estudos de metabolómica em amostras líquidas obtidas por colheitas não invasivas relacionados com a asma em diversas populações pediátricas.

QUADRO 2 – Resumo dos estudos de metabolómica em amostras líquidas obtidas por colheitas não invasivas na asma em diversas populações pediátricas.

População (n)Amostra
(Método)
Metabólitos identificados com potencial capacidade discriminativaBibliografia
(n) = nº de indivíduos investigados; EBC = utilizando condensado do ar exalado; LC-MS = por cromatografia líquida associada a espectrometria de massa; NMR = por ressonância magnética nuclear.
Controlo saudável (25)
Asma (33)
EBC
(LC-MS)
Metabólito da prostaglandina, prostaglandina D2, leucotrieno C4, ácido 5-hidroxieicosatetraenóico.Glowacka E, et al, 2013
Controlo saudável (15)
Asma não grave (31)
Asma grave (11)
EBC
(LC-MS)
Ácido retinóico, deoxiadenosina, calcitriol, 20-hidroxi-prostaglandina F2alfa, tromboxano B2 e 6-ceto-prostaglandina F1alfa.Carraro S, et al, 2013
Controlo saudável (24)
Asma (65)
Saliva
Urina
(NMR)
Saliva: arginina, aspartato, citrato, taurina.
Urina: ácido butírico, ácido glucónico, ácido pantoténico, ácido quinolínico, lisina, pseudouridina.
(Pité L, et al – dados não publicados)
Asma controlada com corticosteróides (15)
Asma sem resposta a corticosteróides (15)
Urina
(LC-MS)
Gama-glutamilcisteína, cisteína-glicina, ácido 3,6-di-hidronicotínico, 3,4-di-hidroxi-fenilalanina, 3-metoxi-4-hidroxifenil (etileno)glicol.Park YH, et al, 2016
Controlo saudável (12)
Asma (41)
Urina
(LC-MS)
Ácido urocânico, ácido metil-imidazoleacético, dipéptido isoleucina-prolina.Mattarucchi E, et al, 2012
Controlo saudável (42)
Asma controlada (53)
Asma agudizada (20)
Urina
(NMR)
1-Metil-histamina, 1-metilnicotinamida, 2-oxoglutarato, 3-metiladipato, 4-amino-hipurato, O-acetilcarnitina, fenilalanina, triptofano, etc..Saude EJ, et al, 2011
Asma agudizada sob budesonida e salbutamol (69) ou placebo (48)Urina
(NMR)
Urina: cis-aconitato, lactato, 2-deoxyinosina, 3-metilhistidina, ácido 5-hidroxiindoleacético, 2-aminoadipato, glicose, citrulina, homoserina, histamina, alanina, asparagina, glicilprolina, snglicero-3-fosfocolina, sarcosina, ornitina, creatina, creatinina, glicina, isoleucina and trimetilamine N-óxidoQuan-Jun Y, et al, 2017

Conclusão

Sobre metabolómica, área em grande expansão, existem já na actualidade muitos estudos, particularmente no campo da asma. Salienta-se o interesse desta disciplina em Pediatria, considerando a utilização de amostras biológicas obtidas por métodos não invasivos, designadamente a partir do ar exalado, saliva e/ou urina.

Tendo em conta algumas limitações, torna-se obrigatório proceder à padronização no desenho dos estudos para a validação dos resultados em diferentes populações.

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QUALIDADE E SEGURANÇA EM CUIDADOS DE SAÚDE

Importância do problema: Primum non nocere

Os cuidados médicos podem, só por si, ser causadores de lesão. A dimensão do problema ao nível do sistema de saúde tornou-se evidente a partir dos anos 90, com a publicação por Lucian Leape dos primeiros artigos sobre a frequência do erro médico e com o relatório “To err is human: Building a safer Health System” do Institute of Medicine (1999).

Este estudo mostrou que doentes hospitalizados nos EUA, na proporção aproximada de 3 a 4%, sofriam danos como resultado de cuidados médicos, com um número de mortes anuais superior a 44.000. Nos hospitais portugueses, um estudo piloto revelou que 11% dos doentes adultos hospitalizados sofreram uma lesão associada aos cuidados de saúde. Para um profissional de saúde é hoje impossível ignorar esta realidade ou ficar indiferente à sua relevância na prática clínica.

À medida que os cuidados de saúde se tornam mais abrangentes, mais invasivos e mais complexos tecnologicamente, a intervenção do médico está cada vez mais dependente da subespecialização, da actualização científica e do trabalho de equipa. Neste contexto, tem-se verificado que os novos sucessos terapêuticos se acompanham de um risco cada vez maior, inerente ao sistema, e de maior número de oportunidades de erro e de lesão.

Paralelamente, os doentes e as suas famílias, estando mais atentos ao processo diagnóstico e terapêutico, tornam-se cada vez mais exigentes na avaliação dos resultados. E o grupo etário pediátrico está na linha da frente: quando consideramos os factores de risco para a ocorrência de incidentes (Quadro 1), verifica-se que a frequência de incidentes relacionados com a medicação em crianças e jovens é cerca de 3 vezes superior à dos adultos.

QUADRO 1 – Características de população pediátrica que a tornam mais susceptível à ocorrência de incidentes relacionados com os cuidados de saúde.

Dependência de um cuidador ou familiar para os cuidados habituais de sobrevivência (alimentação, locomoção, etc.) e para os cuidados médicos.

Comunicação difícil ou limitada pela idade e grau de desenvolvimento, com necessidade de interlocutores para a compreensão da história clínica, da doença e do plano terapêutico.

Anatomia e fisiologia imaturas, com desenvolvimento físico e cognitivo em mudança permanente limitando uma abordagem unificada a toda a pediatria.

Necessidade de equipamento ajustado à idade e necessidade de cálculos na prescrição e administração de medicação.

Epidemiologia diferente em relação à população adulta, com mais episódios de doença aguda e menos doença crónica.

 

A revisão de processos clínicos num hospital pediátrico mostrou que 15% das crianças hospitalizadas são vítimas de um evento adverso, ou seja, sofrem uma lesão relacionada com os procedimentos a que são submetidos. Muitos destes incidentes são considerados susceptíveis de prevenção.

A lesão originada pelos cuidados médicos é muitas vezes invisível para o doente e também para o próprio profissional, o qual é tentado a considerá-la inevitável ou pouco frequente.

O primeiro passo para a execução de práticas mais seguras na rotina é, por isso, garantir a maior visibilidade do erro e das suas implicações aos mais variados níveis (diagnóstico, medicação, utilização de equipamento, procedimentos, etc.).

Assim, recai sobre os pediatras grande responsabilidade, os quais deverão ser os principais promotores da segurança do doente.

Os incidentes relacionados com os cuidados de saúde na idade pediátrica

Como se definem

Para uniformizar os conceitos de incidente, de risco de evento adverso, de erro, de segurança e doutros termos relacionados com a qualidade dos cuidados de saúde, foi elaborada pela OMS em 2009 uma taxonomia internacional, recentemente adoptada pela Direcção Geral da Saúde (Quadro 2).

QUADRO 2 – Definição de conceitos em Segurança do doente.*

*Estrutura Conceptual da Classificação Internacional sobre Segurança do Doente, DGS 2011.
Segurança do Doente é a redução do risco de danos desnecessários relacionados com os cuidados de saúde, para um mínimo aceitável. Um mínimo aceitável refere-se à noção colectiva em face do conhecimento actual, recursos disponíveis e no contexto em que os cuidados foram prestados em oposição ao risco do não tratamento ou de outro tratamento alternativo.
Risco: a probabilidade de ocorrência de um incidente.
Dano associado ao Cuidado de Saúde é o dano resultante ou associado a planos ou acções tomadas durante a prestação de cuidados de saúde, e não de uma doença ou lesão subjacente.
Incidente de Segurança do Doente é um evento ou circunstância que poderia resultar, ou resultou, em dano desnecessário para o doente. Os incidentes surgem quer de actos intencionais quer de actos não intencionais.
Erro é a falha na execução de uma acção planeada de acordo com o desejado ou o desenvolvimento incorrecto de um plano. Os erros podem manifestar-se por prática da acção errada (comissão) ou por não se conseguir praticar a acção certa (omissão), quer seja na fase de planeamento, quer na fase de execução.
Ocorrência comunicável é uma situação com potencial significativo para causar dano, mas em que não ocorreu nenhum incidente.
Quase evento (near-miss) é um incidente que não alcançou o doente.
Evento sem danos é um incidente em que um evento chegou ao doente.
Incidente com danos (evento adverso) é um incidente que resulta em danos para o doente.

São frequentes?

Os incidentes relacionados com os cuidados pediátricos foram revistos por vários investigadores utilizando metodologias diferentes.

Diversos estudos adaptaram à Pediatria o método dos “triggers”, ou seja, a revisão dos processos clínicos dos doentes hospitalizados triados através da detecção de situações clínicas que podem fazer suspeitar de um incidente (ex: hipo ou hiperglicémia, hipo ou hipernatrémia, necessidade de antagonista de heparina ou de anticonvulsante).

Este método tem sido considerado o padrão para a determinação da frequência da lesão relacionada com os incidentes. A rede neonatal de Vermont Oxford analisando 1.230 relatos voluntários de incidentes em 54 unidades de cuidados intensivos neonatais, obteve os seguintes resultados:

  • 47% relacionados com a medicação;
  • 11% com erros de identificação; e
  • 7% com erro ou atraso no diagnóstico.

Em 10.778 prescrições pediátricas, o estudo de Kaushal et al detectou: 616 erros de medicação (5,7% das prescrições), dos quais 1% causaram lesão.

Num período de 1 ano, a National Patient Safety Agency no Reino Unido recebeu 910.089 relatos de incidentes dos quais 5% se relacionavam com os cuidados pediátricos e 2% com os cuidados a recém-nascidos.

Dos 339 diários clínicos pediátricos analisados por Carrol et al, 27% tinham registos errados referentes à medicação.

Os cuidados prestados em regime ambulatório têm sido menos estudados, não escapando contudo ao erro: de acordo com o estudo “Learning from errors in ambulatory pediatrics” analisando 147 relatos de erros médicos com origem em 14 consultórios, verificou-se que 37% eram relacionados com o tratamento, 22% com a identificação, 15% com as imunizações e 13% com exames diagnósticos.

Num serviço de urgência pediátrico canadiano foram verificadas as seguintes ocorrências: 100 erros de prescrição e 39 erros de administração de medicação por cada 1.000 doentes admitidos.

No Hospital de Dona Estefânia, o hospital pediátrico português com maior volume de doentes, foram relatados 3.418 incidentes relacionados com os cuidados de saúde entre 2002 e 2010 (8 anos), dos quais 428 (12,5%) foram relacionados com a medicação, 479 (14%) com o equipamento e 214 (6,3%) com a realização de procedimentos. 

Entre Janeiro de 2010 e Outubro de 2020, foram relatados 4.659 incidentes de segurança do doente, beneficiando já de uma plataforma electrónica de registo voluntário e confidencial. O padrão-tipo de incidentes relatados é semelhante ao dos anos anteriores, com predomínio de incidentes relacionados com os dispositivos e equipamentos (25,9%), medicação e fluidos intravenosos (16,9%), segurança geral (7,5%), dieta e alimentação (7%), comportamento (6,6%) e gestão do percurso do doente (6,5%).

Neste último período registaram-se também 210 incidentes relacionados com a informática. Os incidentes que se associaram com maior frequência a lesão do doente (evento adverso) foram as complicações cirúrgicas, as infecções associadas aos cuidados de saúde e os incidentes relacionados com a medicação.

Porque é que acontecem?

Embora uma acção ou omissão particular, um erro por desconhecimento do procedimento correcto, ou ainda um lapso momentâneo possam estar na origem imediata de um incidente (Quadro 3), a análise mais cuidada da situação revela invariavelmente uma sucessão prévia de pequenos desvios das práticas de segurança, influenciados pelo ambiente de trabalho.

QUADRO 3 – Alguns exemplos de eventos adversos em Pediatria.

Base de dados da Gestão de Risco do CHLC – HDE, Lisboa.
Lactente com suspeita de oclusão intestinal enviado para o bloco operatório sem observação prévia do cirurgião sénior, verificando-se a não indicação operatória quando o doente já estava ventilado e sedado na mesa operatória.
Erro na marcação na bomba infusora do ritmo de soro de correcção com cloreto de sódio (9 ml/hora em vez de 20 ml/hora) num recém-nascido com desidratação grave hiponatrémica, causando perfusão de dose infraterapêutica durante 12 horas.
Desconexão de cateter venoso umbilical, com consequente perda de sangue e necessidade de transfusão de concentrado eritrocitário e plaquetas.
Extubação acidental de criança ventilada e sedada durante a realização de radiografia do tórax originando bradicárdia e hipoxémia, sendo necessária ventilação manual com máscara e reentubação imediata.

 

Nos cuidados aos doentes no serviço de urgência pediátrico podem, por exemplo, ser factores contributivos para a ocorrência de incidentes: a incorrecta identificação dos doentes, a falta de experiência pediátrica do pessoal, o erro de cálculo nas doses de medicamentos, o défice de comunicação entre os profissionais que enviam e os que recebem o doente, ou entre os profissionais e os familiares, o diagnóstico errado por informação incompleta ou interrupções durante a avaliação do doente e a descoordenação por falta de treino em trabalho de equipa.

A cultura de segurança na prática clínica

A cultura de segurança ideal apoia-se em 4 elementos chave: os relatos de incidente, a justiça, a flexibilidade e a aprendizagem.

O relato voluntário dos incidentes detectados na prática clínica abre uma janela diagnóstica para as falhas do sistema. Para ultrapassar a habitual relutância dos profissionais em relatar é fundamental a compreensão, por parte da organização, do valor do relato como uma oportunidade para aprender e melhorar o sistema e não como factor de culpabilização.

A participação de enfermeiros, técnicos e médicos no sistema de relato ajuda a quebrar barreiras interprofissionais e a recolocar o interesse do doente (neste caso a prevenção da lesão) no centro dos cuidados. Sem desresponsabilizar os profissionais pelas quebras intencionais na segurança dos cuidados, uma cultura de justiça encoraja e valoriza a identificação das situações de risco, separando a sua análise e correcção da função disciplinar da instituição.

Uma cultura flexível favorece o trabalho de equipa disciplinado e a aquisição de competências técnicas em detrimento da hierarquia rígida ou do individualismo.

Numa organização de cuidados de saúde, todos os pormenores devem estar orientados para o doente. Em clínica pediátrica, este aspecto é particularmente importante: desde o treino dos vários profissionais no tratamento de crianças até à adaptação das instalações e dos equipamentos à dimensão infantil e à necessidade da presença permanente dos pais.

A flexibilidade também se traduz na incorporação da informação gerada pelos relatos de incidentes, avaliações de risco e auditorias na gestão diária da organização. São exemplos no Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central (CHULC):

  • A substituição rápida de equipamento com defeito detectado em relatos de incidente (sistemas de medição de diurese com tubos muito rígidos impedindo a clampagem, seringas mal calibradas que se soltam dos prolongamentos, agulhas de punção que se partem facilmente, prolongamentos de soro que não permitem perfusão com ritmos baixos, compressas cujos folhetos se separam);
  • A elaboração de procedimentos para actividades onde se verifique grande variabilidade (administração de terapêutica pré-anestésica, antibioticoterapia pré- e intraoperatória, actuação na dor abdominal aguda pediátrica, organização do processo clínico); e
  • A formação profissional em áreas transversais a toda a organização (controlo de infecção, reanimação pediátrica, prevenção do erro na via utilizada para o medicamento, segurança das instalações, etc.).

Uma cultura de aprendizagem utiliza a informação obtida pelos vários instrumentos de gestão de risco para implementar planos de acção correctivos ou preventivos da lesão do doente (Quadro 4).

QUADRO 4 – Análise de incidente e plano de acção.

*Causa raiz: a causa original da falha ou falta de eficiência de um processo; isto é, a razão fundamental para a ocorrência de um evento.
Base de dados da Gestão de Risco do CHLC – HDE, Lisboa.

Incidente
Lactente internado com alimentação parentérica exclusiva através de cateter venoso central de longa duração. Corte acidental do cateter pelo pai do lactente ao tentar remover com bisturi o adesivo que segurava uma luva de protecção colocada na zona de conexão do cateter ao sistema de soro (utilizada durante o banho do lactente).
Consequências para o doente
Necessidade de colocação cirúrgica de novo acesso central, perda de capital venoso (necessidade de laqueação de veia jugular).
Causa raiz*
Manipulação do cateter com técnica errada (utilização de bisturi).
Factores contributivos
Falta de formação do pai na manipulação de cateteres, excesso de confiança, presença de bisturis nos quartos, utilização pelos profissionais de procedimento inapropriado (luva e adesivo) para a protecção do cateter.
Plano de acção
Remoção dos cortantes dos quartos; plano de formação faseado dos cuidadores na manipulação dos cateteres com registo escrito do ensino e aprendizagem; não utilização de luva e adesivo para protecção do cateter.

A sistematização da análise e correcção dos incidentes com maior gravidade utilizando, por exemplo, o Protocolo de Londres, assim como a comunicação “em anonimato” dos resultados da investigação permitem criar uma memória organizacional susceptível de previnir ocorrências semelhantes no futuro.

As áreas que têm sido alvo de mais atenção dizem respeito a:

    • segurança do circuito de medicação, desde a prescrição à administração;
    • controlo de infecção hospitalar;
    • reconhecimento precoce da deterioração clínica do doente;
    • actuação rápida na paragem cardiorrespiratória;
    • comunicação eficaz da informação clínica;
    • prevenção das complicações cirúrgicas (compressas retidas, lado errado); e
    • identificação correcta dos doentes.


As medidas gerais sugeridas para cumprir estes objectivos são a simplificação de processos, a diminuição da variabilidade com o uso de protocolos e listas de verificação, a melhoria da comunicação e o treino de simulação e trabalho de equipa (Quadro 5).

QUADRO 5 – Cinco sugestões para melhorar a segurança do doente pediátrico.

1. Seguir protocolos escritos de segurança
2. Falar quando há dúvidas
3. Comunicar com clareza e precisão
4. Não desleixar o trabalho e impedir que outros o façam
5. Relatar e analisar os incidentes

E o doente? Aspectos da comunicação na relação médico-doente

Um estudo da Healthcare Commission (no Reino Unido) analisou o serviço prestado às crianças nos hospitais e detectou que apenas 24% das enfermeiras e 7 a 9% dos médicos tinham recebido algum treino na comunicação com crianças.

Segundo o referido estudo, e de acordo com os pais das crianças, os profissionais de saúde não dão grande importância à informação esclarecida sobre o estado clínico dos pacientes familiares, designadamente no contexto de deterioração do estado clínico ou do surgimento de novos sintomas.

Muitos estudos têm avaliado a participação das famílias e dos próprios doentes na promoção da segurança nos seus cuidados. Alguns hospitais (incluindo o HDE) sugerem sistematicamente ao doente e à sua família a lavagem das mãos, a vigilância para prevenção de quedas (grades das camas levantadas), dão conhecimento pormenorizado da medicação e dos procedimentos programados, alertam para situações de risco e esclarecem sobre a probabilidade de erros detectados durante o internamento.

Nesta perspectiva, os doentes que foram vítimas de um incidente que se tenha traduzido em lesão esperam uma comunicação honesta e aberta desse facto por parte dos profissionais implicados. Esta é uma “boa prática” reconhecida, mas infelizmente pouco praticada.

A dificuldade desta comunicação, sendo evidente, requer coragem, preparação e suporte por parte da instituição. Neste processo, não pode ficar esquecido o plano de cuidados ao doente lesado e o apoio ao profissional implicado.

Como saber e fazer mais

A segurança (em prol da qualidade dos cuidados prestados) implica um esforço conjunto dos profissionais, da administração e dos doentes e famílias, realçando-se a importância da participação dos pais nos cuidados pediátricos.

Em suma, todos os profissionais, particularmente os médicos, com o dever ético de investir na formação pós-graduada e continuada, devem incluir o treino da comunicação, do trabalho de equipa e da prevenção do erro no seu plano de formação em serviço.

Nesta perspectiva será de grande utilidade utilizar a experiência e as estratégias de diversos organismos internacionais devotados à melhoria da segurança e qualidade dos serviços assistenciais na idade pediátrica, tais como: National Patient Safety Agency, World Alliance for Patient Safety, Institute for Healthcare Improvement, Joint Commission, Agency for Healthcare Research and Quality.

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MEDICINA BASEADA NA EVIDÊNCIA – PRINCÍPIOS E APLICAÇÕES EM PEDIATRIA

Definição e importância do problema

A medicina baseada na evidência (MBE) é uma metodologia científica de apoio à decisão clínica que nas últimas três décadas adquiriu importância crescente na prática médica.

Considerando as diversas definições existentes, aquela que parece reflectir melhor os princípios e aplicações da MBE, foi descrita por Sackett (2000) que a refere como “the integration of best research with clinical expertise and patient values”. Na prática, a MBE pode ser vista como um processo sistemático de revisão, análise e utilização da literatura científica na avaliação das opções e no apoio às tomadas de decisão clínica.

Tal paradigma surge como opção do processo de tomada de decisão clínica utilizado durante séculos, que assentava, essencialmente, no ensino/ treino intensivo, na experiência individual (perícia/ expertise) acumulada e na aprendizagem com os “mestres” – medicina baseada na prática.

As principais críticas a este processo de decisão clínica residiam na enorme variabilidade das práticas, algumas delas com pouca sustentação científica e, consequentemente, dos resultados clínicos e económicos bem como no facto de nem sempre essas práticas serem avaliadas.

O desenvolvimento tecnológico, paralelamente aos sucessivos avanços na área da biomedicina, vieram colocar enormes desafios à prática clínica, exigindo uma constante actualização. Paralelamente, o difícil equilíbrio entre gerir recursos escassos e dispendiosos face a necessidades quase ilimitadas impõem, por parte da Sociedade, a prestação de cuidados efectivos, em tempo útil, centrados no doente, acessíveis, equitativos e com a máxima eficiência e segurança.

Na base desses desafios está a necessidade de obter e sintetizar a informação e o conhecimento científicos, válidos e relevantes, que sirvam de suporte à actividade clínica diária.

A questão central é, então, saber como podem os clínicos ter acesso à inovação e ao desenvolvimento que vai ocorrendo a um ritmo muito acelerado e, simultaneamente, dominar essa informação e conhecimento de modo a introduzir eventuais mudanças na sua prática para obter o máximo benefício para os doentes e o equilíbrio atrás referido.

Aspectos históricos

Historicamente, não obstante a utilização de estudos controlados no apoio à decisão clínica, remontar a 1940 pode dizer-se que a MBE, como metodologia sistemática, surgiu na década de 1970. Entre os pioneiros destaca-se Archie Cochrane (epidemiologista britânico), o principal impulsionador das revisões sistemáticas e o defensor da utilização de ensaios clínicos aleatorizados (randomized controlled trials – RCT) como “padrão de ouro” para se obter a prova ou a evidência em medicina, sendo igualmente.*

Mais tarde, nas décadas de 1980 e 1990, foram dados contributos muito significativos para a afirmação, conceptualização e desenvolvimento da MBE, salientando-se os estudos de David Sackett, Gordon Guyatt e Brian Haynes da Universidade de McMaster (Toronto, Canadá), e de David Eddy e colaboradores da Universidade de Duke (Carolina do Norte, EUA).

Virtudes e controvérsias

A MBE, ao defender a utilização da melhor prova ou evidência disponível para apoiar a tomada de decisão, incorpora três vantagens essenciais para a melhoria da prática clínica:

  • Proporcionar uma forma mais robusta e objectiva de definir e manter consistentemente elevados padrões de qualidade e segurança;
  • Promover o processo de transferência dos resultados decorrentes de estudos científicos para a prática clínica (medicina de translação);
  • Possibilitar ganhos de eficiência (através da diminuição de desperdícios e da aplicação de boas práticas).

Apesar de as virtudes atrás descritas serem facilmente identificáveis e estarem robustamente fundamentadas (prós), existem algumas resistências e oposições (contras) a este paradigma.

No essencial, as críticas assentam em dois argumentos:

  • A MBE diminui, ou não contempla, a importância da experiência clínica e a opinião do médico enquanto perito;
  • As condições em que são feitos os estudos e ensaios clínicos que definem as melhores práticas não são as que existem na prática clínica do dia-a-dia.

* Na verdade, segundo os filólogos, a palavra “evidência“, já radicada na gíria médica, é uma tradução não totalmente correcta da palavra em língua inglesa evidence que, em português significa “prova”. Mais correctamente, a tradução para português de, por ex. there is evidence seria “está provado” ou “existem provas de que…” Este anglicismo deve-se ao grande impacte que a língua inglesa tem hoje em diversas áreas da ciência.

João M. Videira Amaral

Haynes e colaboradores (2002) desenvolveram um modelo (Figura 1) que pretende demonstrar o papel central que a perícia/ experiência do médico tem na tomada de decisão clínica baseada na evidência.

Não pretendendo ser exaustivos na análise do modelo, parece-nos interessante referir o factor-chave nele contido: a experiência clínica (incluindo as competências básicas da prática clínica e a experiência individual do médico) deve ter em consideração e integrar, na tomada de decisão, as preferências dos doentes, o contexto e as circunstâncias da situação clínica, bem como o que está provado com rigor científico (isto é, a melhor prova ou evidência disponível).

Cinco passos fundamentais da MBE

Objectivamente, a MBE inclui cinco passos essenciais (Quadro 1):

  • A formulação de questões clínicas que emergem da constatação do problema, ou seja, converter a necessidade de informação em questões objectivas;
  • Pesquisar evidência, isto é, procurar e recolher provas que nos permitam dar resposta às questões clínicas levantadas;
  • Avaliação da qualidade da evidência (validade e utilidade clínica);
  • Aplicação da evidência ao doente individual ou grupo de doentes – população;
  • Avaliação do desempenho da aplicação da evidência na prática clínica (adesão à utilização da evidência e desfecho ou impacte nos resultados – Outcomes).

O Quadro 1 sintetiza estas ideias.

FIGURA 1. Modelo de tomada de decisão clínica baseada na evidência (adaptado de Haynes et al. 2002).

Haynes e colaboradores (2002) desenvolveram um modelo (Figura 1) que pretende demonstrar o papel central que a perícia/ experiência do médico tem na tomada de decisão clínica baseada na evidência.

Não pretendendo ser exaustivos na análise do modelo, parece-nos interessante referir o factor-chave nele contido: a experiência clínica (incluindo as competências básicas da prática clínica e a experiência individual do médico) deve ter em consideração e integrar, na tomada de decisão, as preferências dos doentes, o contexto e as circunstâncias da situação clínica, bem como o que está provado com rigor científico (isto é, a melhor prova ou evidência disponível).

Cinco passos fundamentais da MBE

Objectivamente, a MBE inclui cinco passos essenciais (Quadro 1):

  • A formulação de questões clínicas que emergem da constatação do problema, ou seja, converter a necessidade de informação em questões objectivas;
  • Pesquisar evidência, isto é, procurar e recolher provas que nos permitam dar resposta às questões clínicas levantadas;
  • Avaliação da qualidade da evidência (validade e utilidade clínica);
  • Aplicação da evidência ao doente individual ou grupo de doentes – população;
  • Avaliação do desempenho da aplicação da evidência na prática clínica (adesão à utilização da evidência e desfecho ou impacte nos resultados – Outcomes).

O Quadro 1 sintetiza estas ideias.

QUADRO 1 – Os cinco passos essenciais na medicina baseada na evidência.

    1. Formular uma questão clínica
    2. Pesquisar a informação mais relevante
    3. Avaliar a qualidade da prova ou evidência
    4. Aplicar a informação obtida ao doente
    5. Avaliar os resultados/ desempenho

 

A formulação de questões clínicas constitui o ponto de partida e, muitas vezes, a sua principal dificuldade, na medida em que nem sempre é fácil traduzir um problema clínico numa questão objectiva. Tendo essa dificuldade em consideração, Sackett e colaboradores (2000) desenvolveram um esquema que integra quatro pontos fundamentais (tipificados no acrónimo em Inglês, PICO, patient ou problema; intervention; comparison; outcomes), os quais devem ser tidos em consideração aquando da formulação de questões clínicas.

Apresentamos, como exemplo, o caso de um rapaz de 4 anos de idade que recorre ao seu médico assistente por febre com 12 horas de evolução e otalgia à direita. Na observação verifica-se uma membrana timpânica hiperemiada com abaulamento da mesma, compatível com otite média aguda (OMA) à direita. Surge a questão sobre medicar ou não com antibiótico, tendo em conta o seu efeito na duração dos sintomas, a ocorrência de complicações, a possibilidade de se estar perante uma situação frequente, a otite serosa, bem como potenciais efeitos adversos associados à terapêutica (Quadro 2).

QUADRO 2 – Exemplo duma questão clínica utilizando o acrónimo PICO.

P (Problema/ doente) Criança de 4 anos com otite média aguda

I (Intervenção) Antibioticoterapia

C (Comparação) Não medicar com antibiótico

O (Outcome/ Resultado) Duração dos sintomas, ocorrência de complicações, persistência de otite serosa e efeitos adversos da terapêutica

 

A pesquisa da literatura existente nas diferentes fontes de informação bibliográficas em formato digital (por exemplo: Cochrane; Pubmed; Web of Science; EMBASE, etc. onde se podem encontrar diversos títulos de publicação periódicas de carácter científico, tais como Evidence–Based Medicine; ACP Journal Club; Evidence-Based Practice; Clinical Evidence; Acta Paediatrica; Current Pediatrics; International Journal of Evidence Based Healthcare; Evidence-Based Child Health – Cochrane Review Journal; Pediatrics; Journal of Pediatrics; Pediatrics in Review; Archives of Disease in Childhood; British Medical Journal; New England Journal of Medicine; Lancet; Science) constitui um passo decisivo, uma vez que será esta a base da análise que posteriormente será avaliada e seleccionada, e que fundamentará as decisões/ opções a tomar.

Após pesquisar a literatura podemos obter:

  • quer estudos primários, como por exemplo, estudos retrospectivos de caso-controlo, estudos prospectivos de coorte, ensaios clínicos aleatorizados e controlados;
  • quer estudos secundários – síntese dos primários – de que são exemplo as revisões sistemáticas e as meta-análises relevantes para a questão colocada.

 

A fase seguinte consiste na avaliação crítica [em termos de validade interna (consistência do estudo entre a pergunta de investigação, a metodologia utilizada e os resultados obtidos), de validade externa (capacidade de obter resultados semelhantes quando se replica o estudo noutro contexto)] e utilidade clínica da evidência (ou implicações clínicas do que foi provado cientificamente).

Para o processo de avaliação crítica da evidência é fundamental obter respostas a um conjunto de questões e regras pré-definidas (por exemplo, risco de viés; como foi feita a aleatorização; grau de ocultação; os sujeitos foram tratados de maneira idêntica nos diferentes grupos do estudo?).

Outro critério para avaliar a utilidade da evidência em relação à capacidade para responder à questão clínica inicial pode ser ilustrado, numa forma hierárquica, conforme se apresenta na Figura 2 (hierarquia do valor relativo dos estudos primários e secundários).

Quando se considera estar perante um conjunto de literatura válida e útil (após passar pelo crivo de avaliação crítica) é chegada a fase de decidir qual a evidência que pode ser aplicada/ utilizada para determinado doente em particular, ou para uma determinada população.

Tal decisão deve contemplar os valores e preferências do doente, bem como as circunstâncias presentes. Outro aspecto crucial a ter em consideração diz respeito à discussão que deve haver entre o médico e o doente e/ou seus familiares, sobre a efectividade e os riscos inerentes às opções válidas. Dessa forma, o doente torna-se actor participante (aquilo que alguns autores anglo-saxónicos denominam de “therapeutic alliance”) e tem a possibilidade de fazer escolhas informadas. Ainda nesta fase, de aplicação do que está provado (da evidência), é fundamental integrar as questões custo-efectividade e a disponibilidade e exequibilidade da opção escolhida.

FIGURA 2. Hierarquia da evidência (adaptado, Haynes, 2006).

Por último, e não menos importante, vem a fase de avaliação após aplicação da evidência na prática clínica. Tal avaliação deve ser realizada periodicamente (em intervalos de tempo razoáveis), e possibilitar a introdução de melhorias em qualquer das quatro fases antecedentes.

Um exemplo importante é a realização de reuniões de revisão de casuística e de reuniões sobre morbilidade e mortalidade. Tais acções têm por base um processo de auto-avaliação da prática clínica de forma reflexiva.

Paralelamente, a execução prática de um programa de auditorias, internas e/ou externas é, de facto, desejável, pois permite medir o grau de utilização da MBE na tomada de decisão clínica, bem como o seu contributo para a melhoria da qualidade e da segurança dos cuidados prestados. Outro aspecto incontornável, principalmente na actual conjuntura socioeconómica, é a necessidade e a pertinência de se proceder a estudos de avaliação económica que permitam avaliar, numa perspectiva de custo-benefício, a adopção de tal metodologia na prática clínica do dia-a-dia.

Síndroma da morte súbita do lactente e plagiocefalia, exemplos de estudo

As recomendações actuais a nível nacional e internacional são unânimes em defender o decúbito dorsal como posição para dormir nos lactentes, por forma a prevenir a entidade síndroma de morte súbita do lactente (SMSL). Dado tratar-se dum tipo de patologia pouco frequente numa população saudável, as recomendações foram essencialmente baseadas em estudos de “caso-controlo”.

Na segunda metade do século XX fora aconselhado o decúbito ventral, com base em argumentos fisiológicos e fisiopatológicos. Com efeito, até 1970 foram publicados os resultados de dois estudos revelando um risco superior de SMSL associado ao decúbito ventral; a partir de 1986 estudos realizados em vários países revelaram consistentemente resultados semelhantes e, em 1988, foram publicados na revista Lancet os resultados preliminares duma primeira revisão sistemática.

Seguiram-se entretanto campanhas de saúde pública (a iniciativa Back to Sleep a partir de 1990) e a substancial redução da incidência de novos casos de SMSL (~50%) em concomitância com a redução da prevalência do decúbito ventral, o que se considerou sucesso. Contudo, aplicando tal medida, por outro lado e simultaneamente observou-se um incremento exponencial (~600%) da plagiocefalia.

Novos estudos foram realizados perante esta realidade e, numa perspectiva preventiva deste problema crescente relacionado com a campanha Back to Sleep, a Academia Americana de Pediatria em 2000 lançou nova campanha designada Back to Sleep – Tummy Time to Play, passando a aconselhar durante o período em que o bebé está acordado, o decúbito ventral de 10-15 minutos, pelo menos 3 vezes por dia, sob estrita vigilância.

Pode, pois, concluir-se que a concomitância ou associação dos factos descritos constituem provas convincentes ou evidências (ou, segundo a gíria da MBE, “as melhores evidências” disponíveis): no primeiro contexto, traduzidas em redução de mortes potencialmente evitáveis; no segundo contexto, traduzidas em redução da prevalência de plagiocefalias.

A este propósito, aconselha-se a consulta dos capítulos sobre Discranias e Plagiocefalia, na Parte XXI.

Normas de orientação clínica e MBE

As normas de orientação clínica – NOC (guidelines) – constituem um conjunto de recomendações desenvolvidas de forma sistematizada para apoiar o médico e o doente na tomada de decisões acerca dos cuidados de saúde, em situações clínicas específicas.

A metodologia de elaboração das NOC obedece aos princípios gerais da medicina baseada na evidência, ou seja, assenta na interpretação e síntese dos estudos científicos publicados sobre a matéria em discussão.

Cada NOC deve propiciar, de forma explícita, toda a informação disponível sobre a estrutura da sua concepção, como por exemplo: título; responsáveis pela sua elaboração; fontes de financiamento; objectivos; intervenções/ práticas; fonte e métodos de selecção da evidência científica; metodologia e avaliação crítica da referida evidência; recomendações principais; análise de custos; benefícios e riscos potenciais; e as datas previstas para se proceder à revisão das recomendações.

A “força ou robustez das recomendações de uma NOC deve ter por base um conjunto de factores, salientando-se os seguintes:

  • A qualidade da evidência (prova científica) em que se baseiam;
  • O balanço entre os riscos e os benefícios;
  • A aplicação e disponibilidade no contexto e nas circunstâncias em causa; e
  • O impacte em termos de custo-benefício.

Considerando as diferentes abordagens quanto à avaliação da qualidade da evidência e à hierarquização da força de recomendação das NOC, o Grading of Recommendation, Assessment, Development and Evaluation (GRADE) é, provavelmente, a mais conhecida e utilizada na generalidade dos vários centros mundiais. O GRADE tem por base uma abordagem sistemática relativamente a cada um dos factores enumerados no parágrafo anterior.

A concluir, cabe destacar que a MBE tem como principal objectivo melhorar a qualidade (senso lato)* dos cuidados através da integração da melhor evidência disponível com a perícia/ experiência do médico e as preferências dos doentes.

Longe de retirar a “arte” à prática da medicina, conforme alguns críticos afirmam, a MBE realça e potencia a interface entre “a ciência e a arte” na prestação de cuidados de saúde.

*Nas dimensões definidas por Maxwell: efectividade, eficiência, segurança, aceitabilidade; equidade; relevância.l

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DISLIPOPROTEINÉMIAS

Introdução

A não solubilidade aquosa dos lípidos (colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos, exceptuando-se os fosfolípidos) implica um sistema de transporte plasmático constituído pela associação daqueles a diversas proteínas específicas (apoproteínas ou simplesmente apo) mediante ligações covalentes, formando-se macromoléculas complexas, designadas lipoproteínas.

As dislipoproteinémias definem-se como afecções caracterizadas essencialmente por valores elevados ou baixos das várias classes de lipoproteínas major adiante sistematizadas (quilomicrons, lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL), de baixa densidade (LDL) e alta densidade (HDL).

O metabolismo das lipoproteínas pode resultar, quer da mutação de um único gene, quer, mais frequentemente, de múltiplos genes, com influência no metabolismo das lipoproteínas.

Importa referir, contudo, a possibilidade da actuação concomitante de diversos factores ambientais (tais como a ingestão excessiva de gordura e o sedentarismo), contribuindo também para o surgimento de dislipoproteinémias.

Nosologia

As doenças hereditárias relacionadas com defeitos do metabolismo dos lípidos integram classicamente os seguintes subgrupos:

  1. Alterações da β-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos;
  2. Alterações do metabolismo dos ácidos gordos de cadeia muito longa;
  3. Doenças de armazenamento de lípidos; e
  4. Doenças por anomalias do metabolismo e transporte das lipoproteínas (dislipoproteinémias).

Tendo os principais tópicos que integram as alíneas 1-, 2-, e 3- sido abordados nos dois capítulos anteriores (incluídos nas doenças dos organelos), o objectivo deste capítulo é proceder a uma descrição sucinta das disliproteinémias (alínea 4-), patologia que por sua vez tem afinidades com a doença aterosclerótica, incluída no 1º volume.

1. GENERALIDADES SOBRE LÍPIDOS

Lípidos e aterosclerose

Os estudos de investigação em lipidologia têm demonstrado a associação entre hipercolesterolémia, doença aterosclerótica e doença cardíaca coronária.

Os progressos realizados em técnicas laboratoriais sofisticadas permitindo identificar e separar subclasses de partículas lipídicas, assim como medir determinados marcadores de inflamação da parede arterial, têm permitido melhor compreensão da aterogénese e da ruptura da placa de ateroma conduzindo à síndroma coronária aguda.

Recorda-se, a propósito, que a aterosclerose afecta as artérias em geral e, com especial ênfase, as artérias coronárias, as artérias carótidas e as dos membros inferiores.

Admite-se que a fase inicial do desenvolvimento da aterosclerose corresponde a um processo de disfunção endotelial com espessamento da íntima e média ocorrendo na fase da pré-adolescência, com maior intensidade se existirem factores de risco como obesidade e hipercolesterolémia familiar.

De acordo com um estudo realizado em estudantes de Medicina de raça caucasiana nos EUA (The Johns Hopkins Precursors Study), verificou-se que a incidência de coronariopatia pelos 30-40 anos de idade era directamente proporcional aos valores de hipercolesterolémia na idade pediátrica.

A propósito dos factores de risco da aterogénese, cabe recordar os resultados de diversos estudos epidemiológicos abordados no capítulo sobre origens fetais de doenças no adulto (volume 1):

  • Maior incidência de coronariopatia no adulto com antecedentes de baixo peso de nascimento;
  • Maior risco de síndroma metabólica (resistência à insulina, diabetes mellitus de tipo 2, obesidade, coronariopatia) na idade adulta se houver antecedentes de ambiente intrauterino adverso, designadamente relacionável com diabetes e obesidade maternas.

Retomando o que foi referido no capítulo sobre doença aterosclerótica, reitera-se que o processo de penetração lipídica na íntima se pode dever a um conjunto de factores adversos, salientando-se o papel das partículas lipídicas LDL oxidadas e altamente tóxicas (ver adiante).

Linfócitos e monócitos, penetrando no endotélio lesado, evoluem para macrófagos “carregados“ com partículas LDL e, ulteriormente para células espumosas. Tal acumulação poderá, até certo ponto, ser contrabalançada por partículas HDL com capacidade de remoção dos lípidos da parede vascular.

Para a formação das placas fibrosas é fundamental a existência de processo inflamatório (testemunhado por elevação da PCR) em que participam macrófagos. A deposição de lípidos na camada subendotelial da parede arterial traduz-se macroscopicamente pelo aparecimento das estrias gordas que, até certo ponto, poderão ser reversíveis.

Numa fase mais tardia do desenvolvimento da placa, surge ruptura das células musculares lisas da parede arterial, o que é facilitado pela libertação de citocinas teciduais e de factores de crescimento.

A placa de ateroma (estrias gordas e placas fibrosas) é composta por uma parte central ou núcleo de substância gorda separada do lume por colagénio e tecido muscular liso. O crescimento da placa pode conduzir a isquémia dos tecidos cuja vascularização depende da artéria com parede lesada.

A inflamação crónica no interior do ateroma, possivelmente causada por agentes microbianos como Chlamydia pneumoniae, poderá conduzir a instabilidade da placa e a ruptura subsequente; se consequentemente surgir ruptura do endotélio, verifica-se fenómeno de agregação e adesão de plaquetas com formação de coágulo no local da ruptura.

Lipoproteínas

Tipos e estrutura dos lípidos

Os lípidos são ésteres, ou seja, a combinação de um ácido com um álcool; os ácidos constituintes dos lípidos chamam-se ácidos gordos. Os álcoois mais frequentemente encontrados nos lípidos são o glicerol e o colesterol.

Os principais lípidos existentes no organismo são classificados do seguinte modo:

  • Triglicéridos: em que as funções álcool do glicerol são esterificadas por três ácidos iguais ou diferentes;
  • Fosfolípidos: contendo na sua estrutura uma molécula de ácido fosfórico; são de 2 tipos:
    • glicerofosfolípidos e aglicerofosfolípidos ou esfingolípidos; os glicerofosfolípidos mais importantes são as lecitinas e as cefalinas,
    • esfingolípidos, lípidos predominantes no sistema nervoso, têm um álcool (a esfingosina), diferente do glicerol;
  • Ésteres do colesterol: resultam da esterificação da função álcool do colesterol por um ácido.

Sobre o sistema de transporte plasmático dos lípidos (designadamente do colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos), importa salientar que os mesmos estão envolvidos por proteínas, com um pólo solúvel nos lípidos, e outro, solúvel na água, orientando-se o pólo solúvel nos lípidos para o interior, e o pólo solúvel na água para o exterior. [não solubilidade aquosa dos lípidos (colesterol livre, colesterol esterificado e triglicéridos, exceptuando-se os fosfolípidos]. Formam-se assim compostos/ partículas designados lipoproteínas.

O centro das referidas partículas contém macromoléculas hidrofóbicas incluindo triglicéridos e ésteres de colesterol, enquanto a superfície é composta de moléculas hidrofílicas como fosfolípidos e colesterol.

As apolipoproteínas (designadamente as Apo B-100, Apo B-48, Apo A-I) são necessárias para a integridade estrutural e servem como ligantes ou co-factores para enzimas específicas.

Com base no princípio de que os lípidos têm baixa densidade, e as proteínas densidade mais elevada, foi possível separar por ultracentrifugação aqueles dois componentes e sistematizar quatro classes de partículas lipoproteicas por ordem decrescente de dimensões, e crescente de densidade (Figura 1):

  • As Quilomicron (Qm), cuja apoproteína é a Apo B-48, transportam triglicéridos do intestino para os tecidos periféricos, quer para consumo energético, quer para deposição nas células adiposas; não são aterogénicos.
  • As Lipoproteínas segregadas pelo fígado (de densidade muito baixa), o segundo transportador de triglicéridos com a sigla VLDL (do inglês, very low density lipoproteins contendo Apo B-100, C e E), são aterogénicas e precursoras das lipoproteínas de densidade baixa.
  • As Lipoproteínas de densidade baixa, o principal transportador de colesterol, com a sigla LDL (do inglês, low density lipoproteins) contendo somente Apo B) são aterogénicas.
  • As Lipoproteínas de densidade intermédia (intermediate density lipoproteins/IDL) derivam das VLDL.
  • As Lipoproteínas de densidade elevada, com a sigla HDL (do inglês, high density lipoproteins, contendo Apo A, exercem efeito protector no que respeita à formação do ateroma.

FIGURA 1. Separação de lipoproteínas por ultracentrifugação.

Acentua-se que:

  • As LDL constituem o principal transportador de colesterol;
  • As Qm e as VLDL transportam predominantemente triglicéridos; e
  • As HDL transportam predominantemente fosfolípidos;
  • A proporção de colesterol associado às HDL é superior à das VLDL e inferior à das LDL.

Uma referência especial merece a chamada lipoproteína (a), abreviadamente Lp(a), a qual partilha características com determinados factores de coagulação: possui elevado conteúdo em hidratos de carbono e integra duas apoproteínas: Apo B-100 e Apo(a), esta última muito semelhante ao plasminogénio.

Metabolismo e transporte das lipoproteínas

Existem dois órgãos com papel crucial na biossíntese e secreção das partículas lipoproteicas: o intestino e o fígado (Figura 2).

O sistema de transporte das lipoproteínas compreende três vias: endógena, exógena e de transporte reverso.

O primeiro passo na biossíntese do colesterol é a formação de 3-hidroxi-3-metilglutaril CoA (HMG-CoA) a partir de acetil-CoA; a HMG-CoA, por acção da HMG-CoA redutase leva à formação de mevalonato e, em passos seguintes, a isoprenóides activados e lanosterol, este último, o principal esteróide precursor de colesterol.

FIGURA 2. Vias metabólicas do colesterol. (consultar texto)

→ Pela via endógena, o colesterol e os triglicéridos, sintetizados no fígado (HDL e VLDL) e noutros tecidos, são transportados a outros territórios, quer para utilização como fonte energética, quer para formação de reservas ou depósitos.

As HDL captam o colesterol das células, esterificando-o, e as VLDL transportam os triglicéridos endógenos formados no hepatócito.

As partículas HDL encontram-se em diferentes subfracções designadas com numeração (por ex. HDL1, HDL 2, HDL 3), sendo geradas principalmente pelo metabolismo dos Qm e pela interacção com VLDL.

→ Pela via exógena, o colesterol e os triglicéridos absorvidos ao nível do intestino são transportados a outros tecidos, nomeadamente fígado, músculo e tecido adiposo. A mucosa intestinal sintetiza, imediatamente a seguir à ingestão de alimentos, os Qm a partir das gorduras ingeridas e VLDL, quer no período de digestão, quer nos respectivos intervalos (via exógena).

As Qm e as VLDL são formadas nos microssomas das células da mucosa duodenal e hepatócitos, respectivamente. Neste passo do metabolismo desempenha papel importante uma proteína microssómica de transferência de VLDL para o retículo endoplásmico.

A Apo C-II tem um papel importante na cisão das Qm e VLDL como co-factor da lipoproteína-lipase, ou glicoproteína ligada ao endotélio (ver adiante), a qual desdobra o triglicérido em glicerol e ácidos gordos, para ulterior metabolismo na célula. Os remanescentes das Qm são absorvidos pelo fígado (via receptor de Apo E) e metabolizados.

A VLDL evolui para IDL (intermediate density lipoprotein) e, após remoção de todos os lípidos, transforma-se finalmente em partículas LDL ricas em colesterol. Não sendo estas necessárias nos tecidos periféricos, são absorvidas novamente pelo fígado via receptor de LDL.

A LDL é encontrada em diferentes subfracções (LDL àLDL 6); LDL 6 é descrita como uma partícula pequena, densa e altamente aterogénica. As mesmas partículas LDL ligando-se, via Apo B-100, ao receptor de LDL, são captadas por endocitose e cindidas no lisossoma, principalmente através da acção da lipase ácida.

O colesterol, quando libertado, inibe a actividade da HMG-CoA sintetase e é armazenado via acil-CoA colesterol-aciltransferase (ACAT) nas células sob a forma de “gotículas lipídicas”.  

→ Pela via de transporte reverso o colesterol não esterificado é transportado dos tecidos extra-hepáticos, de novo, para o fígado com a participação das HDL, o que tem efeito vasoprotector.

Através da Apo A-I e Apo A-IV, as HDL activam a lecitina-colesterol-acil-transferase ou LCAT, induzindo a formação de ésteres de colesterol. Estes podem ser trocados por triglicéridos de outras lipoproteínas através da proteína de transferência CETP ou cholesteryl ester transfer protein.

Por este mecanismo, a maioria do colesterol contido nas HDL é metabolizada através da via das LDL.

O Quadro 1 sintetiza as principais funções das apoproteínas.

QUADRO 1 – Principais funções das apoproteínas.

LipoproteínaApolipoproteína (Apo)Função
Quilomícrons

A-I, A-IV, C-I, C-II, C-III, E, B-48

Transporte de triglicéridos exógenos, vitaminas solúveis em gordura e drogas
VLDLCI-III, E, B-100Transporte de triglicéridos endógenos
IDLC-II, E, B-100Produto de remoção de triglicéridos VLDL
LDLB-100Produto da remoção de triglicéridos IDL; transporte de colesterol para tecido extra-hepático; regulação da biossíntese de colesterol
HDL

A-I, A-II, A-IV, C-I, C-III, D, E

Principalmente modificação de outras lipoproteínas, transporte de colesterol para o fígado
Lipoproteína (a)B-100, Apo (a)Incerta, possivelmente para reparação vascular; factor de risco de aterosclerose

Receptores

Para melhor compreensão dos problemas clínicos decorrentes das anomalias hereditárias do metabolismo das lipoproteínas, torna-se útil sintetizar alguns aspectos relacionados com o papel dos receptores a nível ultra-estrutural.

O conceito de receptores para as lipoproteínas deve-se a Goldstein e Brown (Pémio Nobel) ao estudarem o mecanismo de transporte do colesterol dentro das células. Utilizando como modelo os fibroblastos em culturas, demonstraram que, na sua maioria, as LDL só se catabolizavam após fixação a receptores na membrana celular.

Posteriormente, verificou-se que, para lá destes receptores que reconhecem as apoproteínas B e E (receptores BE) e fixam as LDL, há no fígado receptores apenas para as apo E (receptores E). O número de receptores B e E é máximo no RN e diminui com a idade. Existem também receptores para as HDL.

Os receptores cuja estrutura é esquematizada na Figura 3 são glicoproteínas cujos aminoácidos estão distribuídos em 5 domínios. Os seus precursores são sintetizados nos ribossomas, migrando para o aparelho de Golgi; a síntese destes receptores é regulada por gene no cromossoma 19.

O receptor na membrana celular, aparecendo à superfície da membrana cerca de 45 minutos após a sua síntese, capta as LDL formando-se, entretanto, vesículas de endocitose revestidas por clatrina. Estas vesículas perdem rapidamente a clatrina e fundem-se com outras para formar grandes vesículas de contorno irregular, os endossomas ou receptossomas.

FIGURA 3. Representação esquemática da estrutura do receptor BE.

Quando o pH desce a 6,5 as LDL separam-se dos receptores, voltando o receptor à superfície (reciclagem dos receptores). Na fase seguinte as LDL são captadas pelos lisossomas, sendo as proteínas hidrolisadas em aminoácidos por acção de proteases, e os ésteres de colesterol em colesterol livre, por acção de esterases.

A captação do colesterol pelos receptores celulares tem por objectivo fornecer à membrana celular o colesterol de que ela necessita para a sua estabilidade. Compreende-se, assim, que o metabolismo do colesterol seja regulado para que seja fornecida à membrana uma quantidade necessária, mas não excessiva.

Assim, a captação do colesterol provoca:

  • Acções sobre a HMG-CoA redutase
    • repressão da síntese da enzima como se comprova pela diminuição do seu RNA-m,
    • aceleração do seu catabolismo,
    • inibição da sua actividade por inibição alostérica pelo colesterol em excesso;
  • Aumento da actividade de acil-CoA-colesterol aciltransferase (ACAT), enzima que esterifica o excesso de colesterol que ficará depositado no citoplasma como gotículas;
  • Repressão da síntese dos receptores.

As Figuras 4 e 5 sintetizam os mecanismos de captação das LDL e os mecanismos de regulação desencadeados pelo colesterol em excesso.

A actividade dos receptores é regulada por um conjunto de factores, cujos mecanismos de acção (alguns demonstrados apenas em estudos experimentais) poderão, em situações especiais, ser aplicados na prática clínica em várias estratégias de terapêutica das anomalias do metabolismo. Eis alguns exemplos mais relevantes:

  • A insulina aumenta o número de receptores nos fibroblastos em cultura;
  • A adrenalina diminui a fixação, internalização e degradação das LDL;
  • O cortisol diminui a internalização das LDL sem afectar o número de receptores;
  • O cálcio é necessário para a interacção LDL- receptores no fibroblasto, sendo a sua acção menos nítida no hepatócito; de referir que os bloqueantes dos canais do cálcio estimulam o catabolismo das LDL;
  • Inibidores da HMG-CoA redutase aumentam o número de receptores, do mesmo modo que as resinas catiónicas como a colestiramina e colestipol; certos fibratos, idem.

O órgão com maior número de receptores é o fígado (cerca de 75% relativamente aos restantes órgãos). A actividade específica mais elevada foi encontrada no córtex suprarrenal e corpo amarelo, o que se pode explicar pelo facto de o colesterol ser o precursor das hormonas esteróides.

Um aspecto particular diz respeito às células endoteliais cujos receptores podem captar as LDL, mas não promovendo a sua endocitose, exceptuando nos casos de lesão endotelial.

2. DISLIPOPROTEINÉMIAS

As dislipoproteinémias (de acordo com o que foi referido no início, consideradas como anomalias qualitativas ou quantitativas, por excesso ou por defeito, na repartição das lipoproteínas plasmáticas e/ou apoproteínas), quer primárias ou hereditárias, quer secundárias, têm tendência a prevalecer na idade adulta. Por isso, torna-se imperioso detectar tal patologia tão precocemente quanto possível.

Antes da abordagem das principais dislipoproteinémias primárias ou hereditárias, discriminam-se as principais entidades nosológicas que poderão constituir causas secundárias (Quadro 2).

Em suma, reforça-se a necessidade de atitude preventiva de actuação precoce em ambas as situações pelas implicações práticas importantes na perspectiva de redução do risco de aterogénese.

FIGURA 4. Consequências do excesso de colesterol celular.

FIGURA 5. Visão global do metabolismo dos receptores.

QUADRO 2 – Causas secundárias de dislipoproteinémia.

Hipercolesterolémia
Síndroma nefrótica, hipotiroidismo, colestase, isotretinoína, tiazidas, contraceptivos orais, beta-bloqueantes, imunossupressores, inibidores das proteases no tratamento das infecções por VIH, carbamazepina, progesterona, ciclosporina, etc..

Hipertrigliceridémia
Obesidade, diabetes mellitus tipo 2, álcool, insuficiência renal, sépsis, estresse, síndroma de Cushing, gravidez, hepatite, inibidores da protease, beta-bloqueantes, estrogénios, tiazidas, etc..

Diminuição de colesterol-HDL
Obesidade, hábitos de tabaco, diabetes mellitus tipo 2, má-nutrição, beta-bloqueantes, anabolisantes, etc..

Hipercolesterolémias

Hipercolesterolémia familiar (HF)

A hipercolesterolémia familiar constitui uma das dislipoproteinémias monogénicas primárias mais frequentes com transmissão hereditária de tipo autossómico co-dominante. A HF autossómica dominante é a dislipoproteinémia hereditária mais comum. Descrevem-se formas homozigóticas e heterozigóticas.

Os estudos moleculares identificaram cinco classes de mutações de genes afectando a capacidade de o colesterol-LDL se ligar ao receptor de LDL. Estão descritas mais de 900 mutações; algumas destas resultam em falência da síntese do receptor LDL (a que correspondem fenótipos mais graves – formas homozigóticas, com actividade de receptor LDL < 2%), enquanto outras resultam, quer em deficiência de ligação ou de libertação na interface lipoproteína-receptor, quer em número reduzido de receptores de LDL – formas heterozigóticas, com actividade de receptor de LDL ~ 25%.

A HF monogénica causada por mutações nos genes LDLR, APOB ou PCSK9 está associada a doença cardiovascular aterosclerótica de início precoce/ prematura e a morte antes dos 60 anos por doença cardiovascular.

Importa salientar, contudo, que a introdução das estatinas há cerca de três décadas (ver adiante) alterou significativamente a história natural da HF, conduzindo a redução da mobilidade e mortalidade.

Está indicado o rastreio da doença através de análise de sangue do cordão umbilical nos casos de antecedentes familiares de HF.

Forma homozigótica

Na forma homozigótica, com uma prevalência aproximada de 1/ 160.000 indivíduos, são herdados dois alelos mutantes de receptores de LDL resultando em valores de hipercolesterolémia, em regra, superior a 600 mg/dL. Os níveis de C-HDL estão ligeiramente diminuídos e os de triglicéridos ligeiramente elevados ou normais.

Nos casos de indivíduos de idade inferior a 18 anos com colesterolémia total > 270 mg/dL e/ou C-LDL ~200 mg/dL, existe probabilidade ~90% de HF; e, se existir familiar em 1º grau com a doença, o diagnóstico pode considerar-se muitíssimo provável.

As manifestações clínicas na forma homozigótica, muito precoces, traduzem-se em aterosclerose prematura atingindo a aorta e coronárias desde a infância; outros sinais são xantomatose precoce [essencialmente xantomas tuberosos (Figura 6), não observáveis na forma heterozigótica e que podem ser notórios desde os primeiros anos de vida] nos tendões (designadamente do tendão de Aquiles), nas regiões palmares e na pele da superfície de extensão dos antebraços, pálpebras (xantelasma), etc.. Pode estar presente o arco corneano (gerontoxon), habitualmente antes dos 10 anos.

Há antecedentes de doença cardiovascular familiar prematura, designadamente com coronariopatia e enfarte do miocárdio nos progenitores e familiares jovens, com risco de morte súbita.

A etiopatogénese da doença pode ser determinada pela análise das mutações, e a gravidade, pelo estudo da actividade dos receptores de LDL em linfócitos.

Como se pode depreender, o prognóstico é reservado sem tratamento, o que compromete a sobrevivência até à idade adulta.

FIGURA 6. Xantomas no contexto de hipercolesterolémia familiar homozigótica. (NIHDE)

Forma heterozigótica

A HF heterozigótica é uma das mais frequentes formas de doença aterosclerótica com coronariopatia associada a mutações de um único gene.

A sua prevalência, oscilando entre 1/250 a 1/300 indivíduos (mais de 10 milhões em todo o mundo), explica mais de metade dos óbitos em indivíduos no Ocidente.

Salienta-se que a HF heterozigótica é um dos defeitos genéticos mais frequentemente observados na idade pediárica; em comparação, a sua frequência é muito superior à doutras afecções do foro genético como a fibrose quística (1/2.500) e doença falciforme (1/700).

Trata-se duma situação de hereditariedade co-dominante, com uma penetrância da ordem de 50% nos familiares em 1º grau de indivíduos afectados, e de 25% nos familiares em 2º grau. Na sua etiopatogénese interagem factores genéticos e ambientais, o que explica a variabilidade de expressão fenotípica entre povos de diferentes regiões do globo, traduzida pelos valores do colesterol-LDL (valor médio na China ~170 mg/dL e, no Canadá, ~290 mg/dL).

Podem verificar-se arco corneano, xantomas tendinosos ou xantelasma, em geral a partir da adolescência. Os sintomas de doença coronária iniciam-se pelos 45 anos no sexo masculino, e uma década mais tarde no sexo feminino.

No desconhecimento de antecedentes familiares/ eventuais casos familiares não diagnosticados e, sem estudo de genética molecular prévio, o diagnóstico provável de HF heterozigótica poderá ser admitido com base nas seguintes noções epidemiológicas: com valores de colesterolémia total ~310 mg/dL, sem antecedentes familiares em 1º grau, existe probabilidade de 4% de HF heterozigótica; havendo antecedentes familiares em 1º grau de HF, a probabilidade será já de 95%.

Nota importante: para confirmação do diagnóstico de HF, os valores de colesterol-LDL devem ser determinados pelo menos duas vezes no intervalo de 3 meses.

Os aspectos fundamentais do tratamento das HF são abordados na parte final do capítulo, em alínea especial, integrando as entidades clínicas descritas.

Deficiência de Apo B-100 familiar

A deficiência de Apo B-100 familiar, com uma frequência aproximada de 1/700 nos indivíduos de cultura ocidental, é uma doença autossómica dominante, com características muito semelhantes às da HF heterozigótica, por vezes indistinguível desta.

Trata-se dum defeito estrutural em que a mutação de um gene leva a substituição de um aminoácido (glutamina por arginina) no codão 3500 da Apo B-100. De tal resulta redução da capacidade de ligação das LDL ao receptor, e elevação do colesterol-LDL, estando os triglicéridos em nível normal.

Somente foram descritas formas heterozigóticas a que correspondem situações clínicas de expressão semelhante à da HF heterozigótica: xantomas tendinosos e coronariopatia prematura.

Como na prática o perfil clínico e bioquímico, e atitude terapêutica semelhantes aos da HF heterozigótica, somente em estudos de investigação está indicada a destrinça por biologia molecular.

Sitosterolémia (ou fitosterolémia)

Esta dislipoproteinémia rara, autossómica recessiva, resulta de absorção excessiva de esteróis de plantas (sito ou fitosteróis) por mutações de genes responsáveis pelo respectivo sistema de transporte dependente de ATP (que limita a absorção no intestino delgado e promove a excreção biliar da parcela absorvida). O resultado é a elevação de colesterolémia, aparecimento de xantomas e aterosclerose prematura.

O diagnóstico faz-se pela determinação da colesterolémia e sitosterolémia, que são elevadas.

Hipercolesterolémia autossómica recessiva

Esta forma é muito rara, salientando-se a maior prevalência na ilha da Sardenha e no Líbano. A etiopatogénese relaciona-se com defeito do processo de internalização/ endocitose das LDL nos lisossomas, sem que a captação das LDL pelos receptores esteja comprometida; a consequência é a elevação sanguínea de LDL (níveis intermédios entre HF homo e heterozigótica).

A coronariopatia surge menos precocemente do que na HF homozigótica.

Hipercolesterolémia poligénica

A maioria dos casos de hipercolesterolémia (cerca de 85%) resulta de elevação primária de colesterol-LDL de causa poligénica, sendo que o papel de muitos genes com escassa influência no fenótipo é fortemente influenciado pelo ambiente (regime de sobrecarga alimentar).

Este tipo de hipercolesterolémia verifica-se em famílias que partilham estilos de vida comuns sem obedecerem ao padrão hereditário segundo o qual “ao defeito de um gene corresponde um defeito de lipoproteína”.

Hipercolesterolémia associada a hipertrigliceridémia

Compreende duas formas:

Hiperlipémia familiar combinada (HFC)

Trata-se duma situação AD – a mais frequente dislipoproteinémia surgindo na proporção ~1/200 – caracterizada por elevação moderada de colesterol-LDL e de triglicéridos, com diminuição do nível de colesterol-HDL. Embora não tenha sido descrito qualquer processo específico de aterogénese relacionado com esta forma clínica, em cerca de 20% dos indivíduos com doença coronária pelos 60 anos de idade verifica-se HFC.

O perfil clínico e bioquímico desta afecção pode traduzir-se do seguinte modo:

  • História familiar de doença cardíaca prematura;
  • C-LDL > percentil 90;
  • C-LDL e trigliceridémia > percentil 90;
  • Triglicéridos > percentil 90.

O diagnóstico de HFC implica que, em pelo menos dois familiares em 1º grau do caso a investigar, se verifique, no mínimo, 1 dos 3 parâmetros laboratoriais. Uma das características é a variação do fenótipo ao longo do tempo (dislipoproteinémia variável). Não surgem xantomas. A elevação de Apo B associada à detecção de pequenas partículas densas LDL suporta o diagnóstico.

Do quadro clínico da HFC em crianças e adultos faz parte a chamada síndroma metabólica que é sugerida pela verificação de adiposidade, hipertensão e hiperinsulinémia.

De acordo com o NCEP (National Cholesterol Education Program), a referida síndroma integra como componentes principais: obesidade abdominal, dislipidémia aterogénica, hipertensão arterial, resistência à insulina, com ou sem intolerância à glucose, evidência de inflamação vascular e hipercoagulabilidade. Estima-se que cerca de 30% dos indivíduos adultos com excesso de peso preenchem os critérios de diagnóstico de síndroma metabólica, incluindo 2/3 dos casos de HFC.

O mecanismo pelo qual a adiposidade visceral se associa a síndroma metabólica e a DM2 não está completamente esclarecido. Admite-se que a obesidade origina estresse ao nível do retículo endoplásmico, levando a supressão do receptor da insulina e resistência a esta.

Por outro lado, na HFC, a associação de hipertrigliceridémia a hipercolesterolémia confere risco aterogénico. Tal como foi referido a propósito da doença aterosclerótica, a acumulação de gordura intra-abdominal avaliada por RM (em investigação) constitui seguramente o marcador mais importante da adiposidade com risco aterogénico.

Disbetalipoproteinémia familiar (DBLF)/ Hiperlipoproteinémia tipo III

Esta doença rara, que surge com uma frequência ~1/10.000 indivíduos, é causada por mutações no gene da apo E; traduz-se por elevação de colesterol e triglicéridos com valor normal de HDL na sequência de exposição a factores ambientais tais como regime hipercalórico com elevado teor em gorduras e ingestão de álcool.

A expressão da doença é facilitada em presença de diabetes, obesidade, doença renal e hipotiroidismo.

Há uma acumulação de IDL evidenciada na electroforese pela existência de uma banda β e pré-β beta (broad beta). Recorda-se que os remanescentes são captados no fígado pelos receptores E e que o gene da Apo E polimórfica se expressa em 3 isoformas: Apo E3, Apo E2, e Apo E4; este último é o alelo “normal” presente na maioria da população.

Assim, as alterações moleculares da Apo E impedem a captação dos remanescentes. É o que se passa com a Apo E2 com uma capacidade de ligação ao receptor deficiente, ao contrário das Apo E3 e E4. Em cerca de 1% da população existe homozigotia para Apo E2/E2; a mutação mais comum é associada a DBLF, mas só se expressa a doença numa minoria de casos. Curiosamente, a homozigotia Apo E4/E4 predispõe para doença de Alzheimer.

Na adolescência e idade adulta, surgem xantomas tuberosos nos joelhos, cotovelos, nádegas, e coloração amarela nas pregas das palmas das mãos. Pela 4ª ou 5º década de vida surge quadro de doença aterosclerótica vascular periférica.

O diagnóstico é confirmado por electroforese – banda broad beta (ver atrás), discriminativa em 50% dos casos; e por determinação das VLDL por ultracentrifugação.

As ratio colesterol/ triglicéridos no soro < 3,0 e colesterol/ triglicéridos nas VLDL < 0,02 são indicações úteis, mas não conclusivas. A verificação do polimorfismo das Apo E constitui critério a favor da doença.

Hipertrigliceridémias 

Este tópico inclui diversas dislipoproteinémias de gravidade e frequência diversas.

Quilomicronémia familiar/ Hiperlipoproteinémia tipos I ou V

Trata-se duma situação muito rara, AR (frequência ~1/1 milhão, explicada por mutação de um gene, do que resulta depuração defeituosa das lipoproteínas contendo Apo B. A deficiência ou ausência da lipoproteína lipase (LPL), ou do seu cofactor apoC-II que facilita a lipólise pela LPL, origina: aumento de quilomicron (tipo I) ou; aumento de QM e de triglicéridos/VLDL (tipo V). Os níveis de C-HDL estão diminuídos.

A testemunhar o excesso de Qm por depuração defeituosa (no tipo I) está o aspecto do soro após 24 horas de repouso a +4ºC: sobrenadante leitoso ou cremoso num soro límpido (Figura 7). No tipo V, o aspecto do soro é diverso: sobrenadante cremoso devido aos Qm, e infranadante turvo devido às VLDL.

De salientar que a quilomicronémia causada por deficiência de LPL está associada a hipertrigliceridémia mais modesta do que a relacionada com ausência ou carência de Apo C-II.

Um dos quadros de apresentação clínica é o de dores abdominais recorrentes e de pancreatite aguda. Pode verificar-se hepatosplenomegália e xantomatose eruptiva com as localizações habituais já referidas a propósito doutras dislipoproteinémias. Não existe risco aterogénico.

FIGURA 7. Soro de criança com hiperlipoproteinémia do tipo I.

Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)/ Hiperlipoproteinémia tipo IV

A HTGF é uma doença AD de etiologia desconhecida, ocorrendo com uma frequência ~1/500 indivíduos. Traduz-se por elevação dos triglicéridos (> percentil 90, em geral entre 500 e 1.000 mg/dL); pode ser acompanhada por elevação ligeira do colesterol total com C-HDL baixo. De acordo com a experiência de vários centros, somente em cerca de 20% dos casos as manifestações surgem na idade pediátrica; ao contrário da HFC, não parece ser significativamente aterogénica (não se verifica o desenvolvimento de xantomas, nomeadamente).

As suas causas não são uniformes, pelo que não se trata de um grupo homogéneo de dislipoproteinémias. Fundamentalmente, a etiopatogénese pode relacionar-se com:

  • Síntese aumentada de VLDL, devida provavelmente a uma resistência periférica à insulina, com hiperinsulinismo secundário; esta modalidade encontra-se associada a síndroma metabólica (ver atrás-HFC);
  • Diminuição da destruição das VLDL, provavelmente por carência em Apo C-II, ou pela existência de variantes desta apoproteína.

Para o diagnóstico torna-se essencial que haja, pelo menos, um familiar em 1º grau com hipertrigliceridémia; o diagnóstico diferencial faz-se com a HFC e com a DBLF.

Nota: em geral, os valores de trigliceridémia na hiperlipoproteinémia de tipo V são muito superiores (> 1.000 mg/dL) aos dos verificados na HTGF.

Deficiência de lipase hepática

Esta afecção, muito rara, AR, resultante de défice de lipase hepática (LH) traduz-se por elevação de colesterol e de triglicéridos no plasma, em geral associada a elevação de c-HDL.

Recorda-se, a propósito, que a LH hidrolisa os triglicéridos e fosfolípidos em VLDL remanescentes e IDL, impedindo a conversão em LDL. A confirmação diagnóstica consiste em medir a actividade da LH em plasma heparinizado.

Antes da análise doutras dislipoproteinémias não necessariamente hiperlipémicas ou até normolipémicas, na perspectiva do diagnóstico diferencial, importa para o clínico a lista das principais hiperlipidémias secundárias, não hereditárias, em que deve ser considerado igualmente risco aterogénico (ver atrás- Quadro 2).

Alterações do metabolismo das HDL

Hipoalfalipoproteinémia primária

Esta dislipoproteinémia, a mais comum alteração do metabolismo das HDL e muitas vezes ocorrendo segundo o modo de transmissão AD, pode surgir na ausência de história familiar.

Define-se pelo padrão biológico: colesterolémia-HDL baixa (< percentil 10 para o género e idade) associada a C-LDL e trigliceridémia normais.

A etiopatogénese relaciona-se com diminuição da síntese de Apo A-I e aumento do catabolismo de HDL. Desconhecendo-se, com os dados disponíveis, o papel da doença na aterogénese, impõe-se o diagnóstico diferencial com outras afecções, como deficiência de LCAT, doença de Tangier e síndroma metabólica.

Hiperalfalipoproteinémia familiar

Trata-se duma situação rara que diminui o risco de aterosclerose e de coronariopatia, e probabilidade de sobrevida aumentada. Os níveis de colesterol-HDL excedem 80 mg/dL.

Défice da proteína de transferência colesterol-éster

A etiopatogénese relaciona-se com deficiência da proteína de transferência colesterol-éster (CETP) por mutações no respectivo gene localizado no cromossoma 16Y21. Tal facto traduz-se fundamentalmente numa desregulação do processo de transporte do colesterol para o fígado e ulterior excreção pela bílis. Na forma homozigótica (mais frequente no Japão), os valores de C-HDL poderão ser > 150 mg/dL.

Deficiência familiar de Apo A-I

Surge como resultado de mutações no gene da Apo A-I, determinando valores baixos ou vestigiais de HDL. Como consequência surge um quadro de gravidade variável em função das referidas mutações, caracterizado na maioria dos casos, por aterosclerose prematura, xantomatose, opacidade corneana e, ocasionalmente, associação a amiloidose.

O perfil laboratorial inclui diminuição de C-HDL e de Apo A-I no plasma.

Doença de Tangier

É uma doença autossómica co-dominante em que os valores de C-HDL são inferiores a 5 mg/dL. A etiopatogénese relaciona-se com mutações no gene ABCA1 de uma proteína implicada na ligação do colesterol celular à Apo A-I. A consequência é a acumulação de colesterol livre no SER, traduzida clinicamente pelos seguintes sinais e sintomas: neuropatia periférica intermitente, hepatosplenomegália, hipertrofia amigdalina com coloração alaranjada por acumulação de colesterol nas células de Schwann.

Deficiência de lecitina-colesterol aciltransferase familiar (LCAT)/ Doença fish-eye

A etiopatogénese desta doença rara relaciona-se com mutações nos genes que expressam a LCAT com deficiência total ou parcial desta enzima. Tal interfere com o processo de esterificação do colesterol e impede a formação de partículas de HDL e promove catabolismo de Apo A-I. Clinicamente verifica-se opacificação corneana (dado isolado na forma clínica designada por doença eye fish, em que a deficiência é parcial), anemia hemolítica e insuficiência renal progressiva a partir da adolescência e adultícia. Admite-se que não é aterogénica.

Para confirmação diagnóstica, os exames laboratoriais evidenciam diminuição de c-HDL, de Apo A-I, aumento de triglicéridos e relação colesterol livre/ colesterol total > 0,7.

Hipocolesterolémias

As situações associadas a alterações do metabolismo do colesterol intracelular das lipoproteínas com Apo B acompanham-se de hipocolesterolémia.

Abetalipoproteinémia

Esta anomalia rara, AR, origina-se por mutações no gene que codifica uma proteína microssómica de transporte de triglicéridos para o retículo endoplásmico, a qual é deficiente; como consequência, há produção deficiente de lipoproteínas contendo Apo B, necessárias para a transferência de lípidos no intestino delgado para as Qm nascentes e, no fígado, para as VLDL.

As manifestações clínicas incluem má absorção de gorduras com diarreia, carência de vitamina E, hipocrescimento, e sinais neurológicos (degenerescência espinocelular, hiporreflexia, ataxia, espasticidade na idade adulta, retinite pigmentar). Muitos dos sinais são o resultado de má absorção de vitaminas lipossolúveis. Os sinais neurológicos implicam o diagnóstico diferencial com a ataxia de Friedreich.

O perfil laboratorial inclui: ausência de Qm, VLDL, LDL e Apo B, com valores baixos de colesterol e triglicéridos; e disfunção eritrocitária (acantocitose).

Hipobetalipoproteinémia familiar

Esta doença familiar autossómica co-dominante, relacionada com mutações no gene que codifica a síntese de Apo B-100, na forma homozigótica evidencia sintomatologia semelhante à da abetalipoproteinémia.

Distingue-se da abetalipoproteinémia pelo facto de os progenitores heterozigóticos nos casos da doença em epígrafe evidenciarem diminuição do colesterol-LDL, de triglicéridos e de Apo B.

Doença de Anderson

Esta doença, com fenótipo sobreponível aos da abetalipoproteinémia e hipobetalipoproteinémia homozigótica, deve-se à incapacidade de secreção de Apo B-48 no intestino delgado.

A não absorção de Qm origina esteatorreia e carência de vitaminas lipossolúveis. O perfil bioquímico evidencia valor sanguíneo normal de Apo B-100 como resultado da sua secreção normal pelo hepatócito.

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO)

A etiopatogénese desta síndroma rara (incidência oscilando entre 1/20.000 – 1/60.000 RN caucasianos) está relacionada com mutações no gene DHCR7, do que resulta deficiência da enzima microssómica DHCR7 (7-di-hidrocolesterol redutase), a qual se traduz em défice da síntese de colesterol na sua fase final.

Desconhece-se até que ponto a síntese deficitária de colesterol poderá contribuir para a patogénese de defeitos congénitos, embora se conheça o papel importante da mielina no neurodesenvolvimento.

Recorda-se que as manifestações clínicas da SSLO integram em mais de metade dos casos anomalias craniofaciais, esqueléticas, genitais e do desenvolvimento; ao nível dos órgãos internos, podem estar afectados o SNC (holoprosencefalia, agenésia do corpo caloso, etc.), o sistema cardiovascular (canal atrioventricular, etc.), o tracto urinário (hipoplasia ou aplasia renal, etc.), tubo digestivo (doença de Hirschprung, etc.), sistema respiratório (hipoplasia pulmonar, anomalia dos lobos), sistema endócrino (insuficiência suprarrenal, etc.) e sindactilia cutânea (2º – 3º dedos do pé > 97%).

Nos casos de colesterolémia inferior a 20 mg/dL, a sobrevivência é improvável. O diagnóstico definitivo pode ser levado a cabo através da identificação de precursores do colesterol através da técnica de cromatografia gasosa e da análise mutacional.

Alterações do metabolismo intracelular do colesterol

Recorda-se que os ácidos biliares, sintetizados no fígado a partir do colesterol, são essenciais para a absorção lipídica no intestino, regulam a síntese do colesterol hepático e são necessários para a produção adequada de bílis.

Xantomatose cerebrotendinosa

Esta doença AR pode manifestar-se no RN como icterícia colestática (hepatite autolimitada). Em geral surge sintomatologia no fim da adolescência: inicialmente insuficiência mental, seguindo-se cataratas e deterioração neurológica progressiva, diarreia e aparecimento de xantomas tendinosos pelos 20-40 casos.

Outro dado clínico é o aparecimento de aterosclerose prematura podendo levar à morte por enfarte do miocárdio.

Segundo alguns autores, incluída no capítulo sobre perturbações da síntese dos ácidos biliares por mutação de gene, a referida xantomatose resulta em défice da enzima esterol-27 hidroxilase, necessário para a síntese mitocondrial de ácidos biliares no fígado. O resultado é a acumulação de colestanol e colesterol, sobretudo no sistema nervoso.

O diagnóstico faz-se pela demonstração de colestanol (e, por vezes, colesterol) elevado no plasma, assim como de álcoois biliares específicos na urina, também elevados. A deficiência enzimática pode demonstrar-se em fibroblastos; em certas populações, a análise de ADN pode ser um método rápido de diagnóstico.

Doença de Wolman

De transmissão AR, deve-se à falta da lipase ácida lisossómica, com consequente acumulação de ésteres de colesterol nas células por falência de hidrólise (doença de armazenamento).

As manifestações clínicas incluem hepatosplenomegália, esteatorreia, hipocrescimento; a morte surge em geral antes do 1 ano. O prognóstico é muito reservado (fatal).

Doença de Niemann-Pick tipo C

Trata-se duma esfingolipidose (doença AR) caracterizada pela acumulação de colesterol e esfingomielina no SNC e SRE. É devida, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu co-factor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída do colesterol do lisossoma, com consequente depósito de esfingomielina).

O prognóstico é reservado, com morte durante a 2ª infância ou adolescência.

Actualmente, é possível o tratamento com miglustat evidenciando resultados promissores.

Nota: os tipos A e B desta doença dos organelos foram tratados no capítulo sobre doenças do metabolismo dos organelos, incluído nesta Parte do livro.

Hiperlipoproteinémia (a) [Lp(a)]

A lipoproteína (a) [Lp(a)] tem constituição lipídica muito semelhante à das LDL. Identificada em 1963, o seu metabolismo não está completamente esclarecido na actualidade.

Contém uma molécula de apolipoproteína B-100 (como todas as LDL) ligada à apoproteína (a). Ou seja, é um tipo de LDL em que há adição doutra molécula, a Apo(a), o que lhe confere diferentes características e funções. Por sua vez, a estrutura molecular da Apo(a) é muito semelhante à do plasminogénio, uma proteína fundamental no processo de fibrinólise. Por outro lado, é mais aterogénica do que a LDL pelas suas propriedades pró- inflamatórias e pró-trombogénicas.

O gene da Apo(a), designado por LPA, localiza-se no cromossoma 6 e apresenta vários polimorfismos que determinam a concentração de Lp(a) no sangue. É reconhecida pelos receptores para Apo B e Apo E (receptores BE).

Demonstrou-se que existe uma relação inversa entre o tamanho da Apo(a) e os níveis sanguíneos ou plasmáticos da Lp(a) avaliados por métodos imunoquímicos.

Admite-se que concentrações de Lp(a) superiores a 50 mg/dL sejam relacionados com factores hereditários e comportem risco elevado de doença cardiovascular aterosclerótica prematura nalgumas famílias. Trata-se dum factor de risco independente.

O Expert Panel on Integrated Guidelines for Cardiovascular Health and Risk Reduction in Children and Adolescents da AHA (USA) não recomenda a determinação dos níveis de Lp(a) como rotina nos rastreios em jovens, excepto nos casos de antecedentes AVC isquémico ou hemorrágico não explicável pelos factores de risco clássicos.

A niacina constitui o único tratamento susceptível de promover diminuição dos valores de Lp(a). Desconhece-se se a diminuição dos níveis elevados de Lp(a) contribui para prevenir futura ou recorrente doença cardiovascular.

Avaliação do risco e tratamento das hiperlipidémias

Avaliação do risco associado

Em todas as crianças e jovens com dislipidémia devem ser avaliados os níveis de risco (risco elevado e risco moderado) em função de determinados parâmetros associados, o que tem implicações nas estratégias de actuação:

  • Risco elevado: hipertensão arterial/HTA requerendo tratamento com fármacos (PA > percentil 99 + 5 mmHg), hábitos tabágicos, IMC > percentil 97, diabetes mellitus dos tipos 1 ou 2, doença renal crónica, status pós-transplante cardíaco e/ou pós-Kawasaki com aneurismas;
  • Risco moderado: HTA não requerendo tratamento com fármacos, IMC entre percentis 95 e 97, colesterol-HDL < 40 mg/dL, status pós-Kawasaki sem aneurismas, doença inflamatória crónica, infecção por VIH, síndroma nefrótica.

A intervenção terapêutica propriamente dita compreende medidas gerais (algumas já referidas a propósito da doença aterosclerótica) dirigidas predominantemente às situações acompanhadas de hipercolesterolémia) e farmacoterapia.

Medidas gerais

  • Modificação do estilo de vida e exercício físico mantidos, como prioridade
    Este procedimento (idealmente a aplicar em toda e qualquer criança ou jovem saudável, sem dislipidémia), deverá ter lugar, durante pelo menos 6 meses, antes de outras medidas a aplicar eventualmente.
  • Regime alimentar
    Fazendo parte do estilo de vida saudável e considerando o parâmetro percentagem do valor calórico total para a quantificação do suprimento alimentar, nas situações de dislipidémia, tal medida diz respeito:
    • à redução do suprimento em gorduras: inferior a 30% (sendo gorduras saturadas inferior a 7-10%, poli-insaturadas 10% e mono-insaturadas 10-15 %),
    • à ingestão de alimentos com teor de colesterol inferior a 200-300 mg/dia,
    • ao incremento da ingestão de hidratos de carbono (50-60%, aumentando o teor em hidratos de carbono complexos e reduzindo o teor de açúcares) e de proteínas (15-20%).

    A restrição dietética somente deverá ser posta em prática em crianças com mais de dois anos, exceptuando nos casos de HF homozigótica (e ponderada nas formas heterozigóticas).
    O regime deverá igualmente ter suprimento rico em fibras, frutos e vegetais.
    Relativamente ao suprimento em fibras solúveis, o mesmo deve ser calculado em gramas (gramas a administrar = idade em anos + 5 a 10 até à idade de 15 anos) até máximo de 25 gramas por dia). Com esta estratégia é possível a diminuição da colesterolémia em cerca de 10-15%.

  • Exames clínicos planeados
    A avaliação clínica global periódica, incluindo a do peso e altura para determinação do IMC (índice de massa corporal) é fundamental, designadamente nos casos associados a hipertrigliceridémia, com tendência para obesidade.

Farmacoterapia

De acordo com as recomendações gerais do NCEP/USA (National Cholesterol Education Program) o tratamento farmacológico das hiperlipémias está indicado nas crianças com idade de 10 anos ou superior, após período mínimo de 6 meses de regime alimentar dietético e de mudança para estilo de vida mais saudável sem terem sido atingidos os objectivos terapêuticos.

Assim, para além das medidas gerais – que deverão continuar – deve ser considerada a administração de fármacos nas seguintes circunstâncias:

  • manutenção do colesterol-LDL > 190 mg/dL;
  • manutenção do colesterol-LDL > 160 mg/dL associado a 1 ou mais factores de risco elevado e/ou a 2 ou mais factores de risco moderado;
  • manutenção do colesterol-LDL > 130 mg/dL associado a 2 ou mais factores de risco elevado; ou a 1 factor de risco elevado + 2 ou mais factores de risco moderado, ou evidência de coronariopatia.

Estas normas, que têm vigorado ao longo de mais de 20 anos com algumas modificações, baseiam-se na probabilidade estatística de o caso em questão poder corresponder a uma forma hereditária de dislipoproteinémia, tal como HF. A idade de 10 anos foi seleccionada por corresponder à idade em que se tem verificado, em estudos, a formação das estrias gordas nas artérias coronárias e aorta.

De acordo com os peritos do NCEP, está previsto que, em casos específicos, correspondendo a valores muito elevados de colesterol, a terapêutica com fármacos possa ser antecipada.

Assim, por exemplo, a partir dos 3-4 anos poderão utilizar-se resinas fixadoras de ácidos biliares, como a colestiramina (entre 4-32 gramas/dia) em duas tomas ou o colestipol (5-40 gramas/dia), associados ao ácido fólico (5 mg 1 vez por semana).

Com a utilização de fármacos, é possível redução dos valores da colesterolémia cerca de 30%.

Não está indicada a intervenção farmacológica nos casos de hipertrigliceridémia isolada, devendo ser ponderada se os valores de triglicéridos ultrapassarem > 1.000 mg/dL no período pós-prandial pelo risco de pancreatite.

Os principais fármacos a utilizar no contexto das dislipoproteinémias em geral distribuem-se pelos seguintes grupos (Quadro 3):

QUADRO 3 – Farmacoterapia nas dislipoproteinémias.

Estatinas (Inibidores da HMG-CoA redutase): diminuem a síntese do colesterol e de VLDL; indicadas perante elevação das LDL; dose iniciais entre 5 e 80 mg/dia
Resinas fixadoras de ácidos biliares (colestiramina e colestipol): estimulam a função dos receptores hepáticos de LDL e a excreção biliar; indicadas perante elevação de LDL; doses iniciais entre 4 e 40 mg/dia
Ácido nicotínico/Niacina: diminui a síntese das VLDL hepáticas; indicado perante elevação de TG e LDL; diminuição de Lp(a); doses iniciais – 100-2000 mg 3x/dia
Fibratos/Gemfibroxil: estimulam a LPL e diminuem as VLDL; indicados perante elevação de TG; doses iniciais de 600 mg 2x/dia
Óleos de peixe: diminuem a produção de VLDL; indicados perante elevação de TG; doses iniciais entre 3 e 10 g/dia
Inibidores da absorção do colesterol/Exetimibe: diminuem a absorção do colesterol; indicados perante elevação das LDL; doses iniciais de 10 mg/dia
Inibidores da PCSK9/Inclisiran: promovem maior captação de LDL pelos seus respectivos receptores nos hepatócitos, com redução dos níveis de LDL. (*)

(*) A PCSK9 é uma proteína que promove a degradação de receptores hepáticos de LDL, levando à hipercolesterolémia. Os inibidores dessa proteína (anticorpos monoclonais) aumentam a disponibilidade dos receptores de LDL. Quando a PCSK9 é inibida, ocorre uma maior captação de LDL pelos respectivos receptores presentes nos hepatócitos, com redução de níveis séricos e plasmáticos de LDL.

Medidas específicas

Para além das medidas gerais explanadas antes e a aplicar em todas as situações de dislipoproteinémias em geral, são especificadas outras medidas a aplicar nas doenças descritas.

Hipercolesterolémia familiar homozigótica
  • Aférese das LDL.
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, eventualmente associadas a ezetimibe como forma de bloqueio da absorção intestinal do colesterol ou a resinas fixadoras de ácidos biliares como a colestiramina ou o colestipol.
  • Transplante hepático, ponderando as complicações associadas.
  • Terapêutica génica.
Hipercolesterolémia familiar heterozigótica e deficiência de Apo B-100 familiar
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, eventualmente associadas a ezetimibe como forma de bloqueio da absorção intestinal do colesterol, ou a resinas fixadoras de ácidos biliares como a colestiramina ou o colestipol.
    Na idade pediátrica há estudos que demonstram maior eficácia da colestiramina e colestipol em comparação com ezetmibe.
  • Inibição da PCSK9 (pró-proteína convertase subtilisina/kexina tipo 9) como forma de promover uma maior captação de LDL pelos respectivos receptores presentes nos hepatócitos, com redução de níveis séricos e plasmáticos de LDL. Com os inibidores de PCSK9 (PCSK9i) consegue-se promover uma redução adicional podendo atingir 60% nos níveis de LDL em comparação com as estatinas.
Hipercolesterolémia autossómica recessiva
  • Inibição da HMG CoA redutase com estatinas, com resposta escassa.
Sitosterolémia
  • Ezetimibe ou resinas fixadoras de ácidos biliares (colestiramina ou colestipol)

Nota: as estatinas são ineficazes.

Hipercolesterolémia poligénica
  • Têm cabimento as medidas gerais, eficazes. A farmacoterapia é raramente necessária.
Hiperlipémia familiar combinada (HFC)
  • Nos casos de C-LDL > 160 mg/dL, deverá ser considerada a farmacoterapia.
Disbetalipoproteinémia familiar (DBLF)
  • Embora as medidas gerais sejam suficientemente eficazes, a alternativa é a associação a farmacoterapia (estatinas, ácido nicotínico e fibratos).
Quilomicronémia familiar
  • Reforçando-se a noção de as medidas gerais incluírem suplemento de vitaminas lipossolúveis, nesta doença estão indicados óleos de peixe ou TCM, estes últimos absorvidos directamente para o sistema venoso porta. Há que evitar administração hormonal (esteróides, estrogénios), a qual é agravante.
Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)
  • Tal como foi referido em Medidas Gerais, apenas está indicada farmacoterapia (fibratos, nicotinamida, óleo de peixe) se os valores de TG ultrapassarem 1.000 mg/dL, pelo risco de pancreatite.
Alterações do metabolismo das HDL
  • O tratamento é sintomático, devendo evitar-se outros factores de risco de aterosclerose.
Hipocolesterolémias
  • Na abetalipoproteinémia está indicado o suplemento precoce com vitamina E (100 mg/kg/dia), assim como com outras vitaminas lipossolúveis A, D e K por via IM.
  • Na síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO), para além do tratamento sintomático geral, está indicada alimentação com elevado teor em colesterol (por ex. incluindo colesterol liofilizado e gema de ovo) e a administração de estatinas para prevenir a síntese de precursores tóxicos formados a montante do bloqueio enzimático; nesta circunstância, os resultados são contraditórios.
Alterações do metabolismo intracelular do colesterol
  • Na xantomatose cerebrotendinosa, o tratamento precoce com ácido chenodeoxicólico reduz os níveis de colesterol e previne o surgimento de sintomas.
Hiperlipoproteinémia (a)
  • Perante antecedentes de AVC na criança e jovem e elevação do teor em Lp(a) está indicada a niacina/ácido nicotínico (ver atrás).

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DOENÇAS MITOCONDRIAIS

Introdução

O metabolismo da mitocôndria, muito complexo, compreende a produção de energia necessária a diversos processos metabólicos sob a forma de Adenosina trifosfato/ TriPhosphate/ ATP) através da fosforilação oxidativa, oxidação do piruvato, ciclo de Krebs, beta-oxidação de ácidos gordos, catabolismo dos aminoácidos e apoptose. Nesta perspectiva, a disfunção de tal mecanismo pode verificar-se em numerosas situações.

Enquanto uma maior parcela da energia (ATP) advém da fosforilação oxidativa (OXPHOS) obtida através da cadeia respiratória (CR), uma menor parcela da energia é obtida através dos restantes processos atrás citados, sendo que nas respectivas vias metabólicas está envolvida uma multiplicidade de enzimas sob controlo genético.

Às doenças decorrentes de alterações no metabolismo energético mitocondrial [em relação com defeitos de enzimas ou de complexos enzimáticos, interferindo nas vias metabólicas que conduzem à geração de energia] tem sido dado o nome de doenças mitocondriais (DM). Dado que o cérebro e o músculo são muito dependentes do sistema OXPHOS/CR, a sintomatologia neurológica e muscular é muito comum. Assim, surgiu o termo encefalopatia mitocondrial como sinónimo de DM, conceito que abrange um largo espectro de doenças multissistémicas.

A este propósito, importa reter as seguintes noções:

  • As DM são causadas por mutações em genes do DNA mitocondrial (DNAmit – a que correspondem cerca de 40 genes) ou do DNA nuclear (DNAn – a que correspondem cerca de 1500 genes). De salientar que os defeitos do genoma nuclear são responsáveis pela maioria (80-90%) das doenças mitocondriais que se manifestam na idade pediátrica;
  • Tal patologia, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/10.000 nados-vivos e a que corresponde um grupo nosológico de enorme heterogeneidade, integra as formas mais comuns de alterações neurológicas hereditárias;
  • A sintomatologia das DM, evidenciando várias combinações de sintomas, traduz a disfunção de órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina.

A mitocôndria possui o seu próprio sistema DNA (DNAmit), o qual está fortemente dependente do genoma nuclear para a produção de inúmeros factores essenciais a diversas funções das mesmas mitocôndrias, como transcrição, tradução, replicação.

Assim, cada célula contém centenas de mitocôndrias, ou seja milhares de cópias do DNAmit, e de genes que as codificam.

Notas importantes:

    1. Anteriormente, considerava-se que as doenças mitocondriais (DM) eram afecções caracterizadas exclusivamente por disfunção primária da cadeia respiratória mitocondrial (CR) ou sistema OXFOS com a consequente diminuição da produção de energia pela fosforilação oxidativa, na forma de ATP.
    2. Na actualidade, o conceito DM é mais amplo, dizendo respeito (para além da disfunção na cadeia respiratória), a outras disfunções da mitocôndria relacionadas com vias metabólicas em que participam processos bioquímicos, enzimas e complexos enzimáticos, interdependentes, como: complexo da piruvato-desidrogenase (c PDH), ciclo da carnitina, β-oxidação dos ácidos gordos (β-OXAG), oxidação de acetilCoA no ciclo tricarboxílico, cetogénese, cetólise, síntese e transporte da creatina, ciclo de Krebs, homeostase do cálcio, apoptose, estresse oxidativo, etc. (ver adiante).
    3. As DM na sua grande maioria dizem respeito a situações de base hereditária genética, as quais constituem o objecto de estudo deste capítulo (DM primárias).
    4. Com efeito, a par desta maioria, existe uma minoria de situações adquiridas (DM secundárias) em que se comprova disfunção mitocondrial, tais como síndroma metabólica, isquémia-reperfusão após acidente vascular cerebral, doenças neurodegenerativas, etc.

 

Neste capítulo são abordados tópicos essenciais das doenças mitocondriais de base hereditária/ genética, dando ênfase aos defeitos/ às disfunções da CR, da oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como aos defeitos da biossíntese e transporte da creatina.

Em certos livros de texto, os tópicos relacionados com a oxidação dos ácidos gordos, da cetogénese e cetólise, assim como os defeitos da biossíntese e transporte da creatina, são abordados no âmbito do metabolismo dos lípidos e dos aminoácidos.

1. DISFUNÇÃO DA CADEIA RESPIRATÓRIA (Sistema OXPHOS)

Complexos e funções da cadeia respiratória (CR)

A fosforilação oxidativa (OXPHOS) é obtida através da cadeia respiratória (CR) formada por cinco complexos.

A CR, localizada na membrana interna da mitocôndria, merece assim uma referência especial, designadamente quanto a complexos que integra e suas funções; a mesma está dependente de dois genomas diferentes: o DNAn e o DNAmit, ao nível dos quais se podem verificar mutações (ver caixas seguintes, realçando-se a importância de uma das suas funções – fosforilação oxidativa – na produção de energia/ ATP).

CRcomplexos

    • complexo I (CI): NADH-CoQ- oxido-redutase que contém mais de 40 subunidades codificadas pelo DNA nuclear (DNAn), e apenas 7 pelo DNAmit;
    • complexo II (CII): Succinato-CoQ-oxido-redutase com 4 subunidades codificadas apenas e só pelo DNAn;
    • complexo III (CIII): Ubiquinol-citocromo c-oxido-redutase, com dez subunidades codificadas pelo DNAn, e uma pelo DNAmit;
    • complexo IV (CIV): Citocromo c-redutase (oxidase) com dez subunidades do DNAn, e três codificadas pelo DNAmit; e
    • complexo V (CV): ATP-sintetase com catorze subunidades do DNAn, e apenas duas do DNAmit. Portanto: das 80-90 proteínas da CR, apenas 13 são codificadas pelo DNAmit.

CRfunções

    • a reoxidação do NADH e FADH oriundos do ciclo do ácido cítrico (CAC) e da b-OXAG;
    • a transferência de electrões para o O2; e
    • a fosforilação oxidativa do ADP em ATP (Fig. 1).

A reoxidação dos referidos substratos liberta energia [E] que serve para bombear protões da matriz da mitocôndria para o espaço intermembranar; o gradiente electroquímico gerado é utilizado pelo CV para a síntese de ATP (Fig. 2, esquematizando apenas os aspectos fundamentais).


Os defeitos ou disfunções da CR podem surgir em qualquer idade. O desenvolvimento intrauterino pode ser afectado gravemente, o que se traduz em defeitos congénitos, designadamente do SNC (necrose neuronal, alteração da migração axonal originando por ex. dismorfia craniofacial); nas crianças mais pequenas predomina a patologia encefalopática, intermitentemente progressiva, enquanto em adolescentes e adultos predomina a patologia miopática.

FIGURA 1. Funções da cadeia respiratória mitocondrial.

FIGURA 2. Complexos da CR e formação de ATP.

Genética

Para melhor compreensão da clínica das DM, importa relembrar algumas noções fundamentais de genética referente à mitocôndria e ao núcleo:

  1. O DNAmit é herdado da mãe;
  2. As moléculas do DNAmit existem em múltiplas cópias na célula (poliplasmia);
  3. As mutações patogénicas afectam, no geral, uma certa proporção do DNAmit (heteroplasmia);
  4. Apenas acima de uma percentagem mínima crítica de DNA que sofreu mutação surgem alterações significativas da fosforilação oxidativa e sintomatologia (efeito limiar);
  5. O grau de heteroplasmia, nas gerações seguintes de células, pode alterar-se (segregação replicativa), podendo mudar o quadro clínico;
  6. Os defeitos enzimáticos da CR podem ser: isolados (um só complexo afectado), ou combinados, sendo que qualquer defeito enzimático da CR, independentemente da sua localização, poderá afectar gravemente o metabolismo;
  7. As mutações do DNAn que podem afectar o metabolismo energético são ainda pouco conhecidas, mas o seu número cresce progressivamente;
  8. Na fertilização, todo o DNAmit provém do ovócito, pelo que o padrão de transmissão do DNAmit (e mutações patogénicas) é radicalmente diferente do da hereditariedade mendeliana (nuclear). Assim, uma mãe com mutação pontual no DNAmit transmite-a a todos os seus filhos de ambos os sexos, mas só as filhas a transmitirão à descendência (hereditariedade materna);
  9. O fenótipo é assim determinado pela proporção relativa entre o DNA em que se verificou mutação e o DNA normal, que é variável nos diferentes tecidos, e pode alterar-se ao longo da vida.

Na perspectiva da relação entre alterações genéticas e entidades clínicas, pode estabelecer-se a seguinte sistematização:

Alterações primárias do DNAmit

As doenças resultantes de tais alterações associam-se a hereditariedade mitocondrial.

Podem surgir deleções simples, duplicações (estas últimas podendo coexistir), e mutações pontuais. As deleções simples, apresentando-se geralmente de forma esporádica, determinam determinadas síndromas como: de Pearson, de Kearn-Sayre (KSS), PEO (oftalmoplegia externa progressiva), diabetes e surdez. Ocasionalmente pode haver transmissão materna.

No que respeita às mutações pontuais (cerca de 200) poderão decorrer de hereditariedade materna e ser multissistémicas, ou esporádicas e específicas de tecido; o seu número tem crescido, sugerindo-se, para actualização, a consulta do sítio – http://infinity.gen.emory.edu/mitomap. html.

Nas encefalomiopatias de transmissão materna há fundamentalmente 4 síndromas mais importantes a destacar: MELAS, MERFF, NARP/MILS e LHON.

Para além destas formas sindromáticas (e outras, como veremos adiante), bem definidas e caracterizadas, estão descritas inúmeras associações de sinais/ sintomas devidas a mutações do DNAmit. Os órgãos ou sistemas mais frequentemente afectados são, entre outros, os relacionados com: visão, audição, sistemas endócrino, cardiovascular, digestivo, renal, etc..

Alterações do DNAn

As doenças resultantes de tais alterações associando-se a hereditariedade nuclear, mendeliana, especificamente dependem de mutações em genes que codificam proteínas da CR e defeitos da sinalização intergenómica.

Das várias dezenas de polipéptidos que constituem a CR, apenas 13 são codificados pelo DNAmit, sendo todos os outros pelo DNAn.

Eis alguns exemplos: mutações que codificam subunidades do CI e CII dando origem:

  • a formas autossómicas recessivas (AR) de síndroma de Leigh; ou
  • a defeitos predominantemente miopáticos, encefalopáticos ou generalizados do CoQ10; ou
  • a mutações nos genes que codificam proteínas necessárias à “reunificação” dos diferentes complexos da CR, como: SURF1, SCO2, COX10, COX15, SCO1 associadas a formas de Leigh, a formas infantis miltissistémicas fatais, a encefalopatia e cardiomiopatia (SCO2, COX15), a nefropatia (COX10), a hepatopatia (SCO1).

Nota: É importante mencionar, a propósito, o defeito primário de CoQ10: primeiros casos descritos em 1989 em 2 irmãos com fadiga progressiva, fraqueza proximal, crises de mioglobinúria, presença de RRF (ver adiante) e lípidos no músculo. A actividade enzimática dos complexos da CR era normal, mas diminuída a dos CI+III e II+III. Outros doentes podem apresentar encefalomiopatia sem mioglobinúria, ou fenótipo de Leigh, com início na idade adulta.

No que se refere aos defeitos da sinalização intergenómica, importa salientar que as mutações nos genes nucleares podem provocar alterações qualitativas ou quantitativas no DNAmit.

  • Alterações qualitativas: deleções múltiplas do DNAmit (AD ou AR) com: oftalmoplegia externa progressiva (PEO) associada a variados sinais/ sintomas; ou mutações no gene da timidina fosforilase (TP) originando a síndroma MNGIE (encefalomiopatia neurogastrintestinal mitocondrial); ou mutações no gene de uma isoforma do transportador do nucleótido adenina (ANT1) com PEO (AD); ou mutações no gene da polimeraseg (POLG) com PEO (AD ou AR); ou no gene Twinkle (helicase).
  • Alterações quantitativas: deplecções acentuadas a parciais do DNAmit com formas congénitas ou juvenis de miopatia ou hepatopatia (AR). Estão identificados 2 genes na síndroma de depleção do DNAmit: gene da timidina-quinase 2 (TK2) com depleção do DNAmit e miopatia isolada; e gene da deoxiguanosina-quinase (δ GK) com formas sistémicas de depleção, frequentemente com miopatia e compromisso hepático.

Têm sido descritos recentemente mais genes nucleares patogénicos, como: o gene da síndroma de Barth (tafazina), e os genes nucleares do CI: NDUFV1, NDUFV2, NDUFS1, NDUFS3, NDUFS4, NDUFS6, NDUFS7. A investigação nesta área está em franco progresso.

Resumindo:

    • As DM podem resultar, quer de mutações no genoma mitocondrial ou nuclear, quer de defeitos da comunicação intergenómica;
    • As DM evidenciam quadros clínicos muito variados resultantes do compromisso de numerosas funções em órgãos com grandes necessidades energéticas de suprimento de ATP, como cérebro, coração, musculatura esquelética, rins ou retina: combinações de sinais e sintomas envolvendo sistemas diferentes e independentes.

Manifestações clínicas de suspeita de DM

Como regra geral, deve suspeitar-se de DM quando ocorrer uma associação inexplicável (isto é sem relação aparentemente funcional ou embriológica) de dois ou mais sintomas, geralmente com curso rapidamente progressivo ou persistente. É característico observar-se um número crescente de órgãos/tecidos afectados em que o SNC acaba por estar envolvido nas fases avançadas.

A sintomatologia inicial pode persistir ou agravar-se ou, por vezes, melhorar ou desaparecer, à medida que outros órgãos vão sendo afectados.

    • As DM podem surgir em qualquer idade, com qualquer tipo de sintomas, atingir qualquer órgão ou sistema, e com qualquer tipo de hereditariedade.
    • Para além de um alto grau de suspeição, é crucial realizar uma anamnese detalhada e um exame físico o mais completo possível.

São descritos a seguir determinados sinais e sintomas clínicos de suspeição em função de diferentes idades:

Período neonatal

  • Cardíacos: cardiomiopatia;
  • Digestivos: hepatopatia, hipoglicémia refractária, insuficiência hepatocelular grave;
  • Multissistémicos: alterações multiorgânicas e acidose láctica, alterações hematológicas como anemia e pancitopénia;
  • Neurológicos: dificuldade respiratória e acidose láctica marcadas, grave hipotonia isolada, verificação de lesões quísticas na imagiologia cerebral sem história de asfixia perinatal.

A causa mais frequente da sintomatologia neurológica é a depleção do DNAmit por mutações em DNAn.

Período pós-neonatal

  • Metabólicos: coma com cetoacidose, crises de acidocetose e hiperlacticidémia em períodos febris, morte súbita, síndroma de Reye;
  • Gastrintestinais: não progressão ponderal, vómitos recorrentes, diarreia crónica, atrofia das vilosidades intestinais, hipocrescimento, insuficiência hepática grave, hepatomegália progressiva, falência hepática devida ao valproato, disfunção pancreática exócrina, pseudo-obstrução intestinal;
  • Cardíacos: cardiomiopatia, geralmente hipertrófica (concêntrica), síndroma de hiperexcitabilidade, bloqueios de condução;
  • Hematológicos: anemia sideroblástica, pancitopénia com medula aplástica, neutropénia e trombocitopénia, anemia macrocítica refractária e dependente de múltiplas transfusões;
  • Endócrinos: hipoglicémia recorrente, diabetes mellitus insulinodependente, diabetes insípida, hipocrescimento, atraso da idade óssea, hipotiroidismo, hipoparatiroidismo, deficiência de hormona de crescimento, insuficiência suprarrenal, hiperaldosteronismo, insuficiência ovárica ou disfunção hipotalâmica com infertilidade;
  • Renais: raquitismo vitaminorresistente, hipercalciúria, insuficiência renal, nefrite tubulointersticial, síndroma de Toni-Debré-Fanconi, de Bartter, nefrótica, hemolítica-urémica;
  • Musculares: hipotonia e fraqueza musculares, instabilidade cérvico-cefálica, hipomobilidade espontânea, atrofias musculares, fadiga fácil, miopatia, intolerância ao exercício com mialgias, mioglobinúria recorrente, distonia;
  • Neurológicos: atraso ou paragem do desenvolvimento psicomotor, ataxia cerebelosa, epilepsia resistente ou que se agrava com valproato, epilepsia mioclónica, síndroma de West, polineuropatia sensitivo-motora, pés cavos, amiotrofia muscular, leucodistrofia;
  • Oftalmológicos: ptose palpebral, atrofia óptica, retinite pigmentar, degenerescência retiniana, retinopatia “sal e pimenta”, motilidade ocular alterada, oftalmoplegia externa, cataratas, opacidades da córnea, diplopia;
  • ORL: surdez neurossensorial progressiva, ototoxicidade provocada por aminoglicosídeos;
  • Dermatológicos: pigmentação marmoreada, pigmentação de áreas expostas à luz, cabelo fraco, quebradiço, tricotilodistrofia, exantemas;
  • Dismórficos: fácies simile síndroma alcoólica fetal, com ou sem agenésia do corpo caloso;
  • Outros: lipomatose simétrica múltipla, paraganglioma hereditário.

Formas clínicas

Para além da vastidão do perfil clínico, destacam-se formas sindromáticas particulares (algumas designadas por siglas do inglês) que importa conhecer.

Síndroma de Leigh

Esta síndroma, com especial interesse na idade pediátrica, reflecte as consequências da alteração do metabolismo energético no desenvolvimento do cérebro. Demonstrou-se associação, quer a outras alterações relacionadas com DNAmit e DNAn, quer a defeitos do metabolismo do piruvato.

Também chamada encefalomielopatia necrosante subaguda, caracteriza-se por lesões bilaterais, simétricas, de espongiose, proliferação vascular e astrocitose, afectando os gânglios da base, tronco cerebral e medula.

A evolução faz-se por crises com regressão psicomotora, episódios frequentes de apneia e problemas de deglutição por alteração do tronco cerebral.

É frequente a verificação de: vómitos, recusa alimentar, paralisia oculomotora, atrofia óptica, nistagmo, movimentos involuntários (e/ou síndroma extrapiramidal), síndroma piramidal por vezes com reflexos osteotendinosos ausentes.

Menos frequentes: proteínas elevadas no LCR, diminuição da velocidade de condução nervosa, leucodistrofia.

Foram identificadas mutações em cerca de 75% dos genes nucleares com padrão de hereditariedade AR ou ligada ao X. Em cerca de 25% dos casos existem mutações do DNAmit.

A imagiologia cerebral é fundamental para documentar as alterações referidas.

Síndroma de Pearson

Surge habitualmente no primeiro ano de vida com compromisso multiorgânico variável, anemia macrocítica refractária, com ou sem neutropénia, e trombocitopénia.

Na medula óssea: vacuolização dos precursores eritróides e mielóides, hemossiderose, sideroblastos em anel. É frequente observar-se disfunção pancreática exócrina.

Trata-se de síndroma geralmente fatal durante a infância; nos sobreviventes regista-se evolução para síndroma de Kearn-Sayre.

Através da genética molecular são identificadas grandes deleções simples do DNAmit de novo.

Síndroma de Kearns-Sayre (KSS)

Esta síndroma integra um qaudro multissistémico definido pela tríade: início habitual antes dos 20 anos, oftalmoplegia externa progressiva e retinite pigmentar; por outro lado, os doentes afectados têm pelo menos um dos seguintes sinais: bloqueio cardíaco, ataxia cerebelosa ou proteínas no LCR > 100 mg/dL.

Outras manifestações incluem: demência, diabetes, hipoparatiroidismo, baixa estatura por défice da hormona de crescimento, presença de RRF (tradução de Red Rough Fibres, fibras vermelhas rasgadas ou defeituosas) no músculo.

A nível genético foram identificadas mais de 150 deleções simples diferentes no DNAmit.

Síndroma de Barth

Nesta afecção, com hereditariedade ligada ao cromossoma X, salientam-se cardiomiopatia dilatada, neutropénia crónica grave, miopatia e acidúria 3-metilglutacónica (tipo II).

Síndroma de Alpers ou Alpers-Huttenlocher

Ocorrendo habitualmente entre 1-4 anos de idade, tem as seguintes manifestações: regressão psicomotora e crises mioclónicas refractárias, microcefalia, poliodistrofia rapidamente progressiva com perda neuronal, astrocitose, espongiose e hepatopatia (insuficiência hepatocelular).

Síndroma de depleção do DNAmit

São descritas várias formas:

  • Encefalopática com hepatopatia: ocorrendo desde o período de RN até aos 2 anos de vida, com hipotonia generalizada, grave encefalopatia, acidose láctica, hipocrescimento, morte precoce e hepatopatia fatal. Pode verificar-se epilepsia mioclónica e cardiomiopatia;
  • Miopática: no RN e lactente jovem, com hipotonia generalizada, miopatia progressiva, acidose láctica, tubulopatia frequente, distrofia e atrofia musculares progressivas. A histologia do músculo pode ser normal ou evidenciar RRF (ver atrás). O EMG evidencia padrão miopático.

MELAS (Mitochondrial Encephalomyopathy, Lactic Acidosis, Stroke-like episodes)

Esta síndroma caracteriza-se pela seguinte tríade: episódios simile AVC, encefalopatia com convulsões e/ou demência e acidose láctica ou presença de RRF evidenciadas em biópsia muscular (ver atrás) geralmente antes dos 40 anos.

Outras manifestações incluem crises epilépticas focais ou generalizadas, cefaleias recorrentes (tipo enxaqueca), vómitos, hipocrescimento/ baixa estatura, surdez neurossensorial, oftalmoplegia externa progressiva, diabetes não insulinodependente, polineuropatia. Pelo exame do LCR: proteinorráquia (~50% dos casos). Pela imagiologia: calcificações nos gânglios. A mutação mais comum é a A3243G.

MERRF (Myoclonic Epilepsy Ragged Red Fibres)

Síndroma multissistémica (com nome derivado de abreviaturas em inglês: evidenciando mioclonias, por vezes o primeiro sinal de epilepsia mioclónica com presença de RRF. Por vezes, demência, surdez neurossensorial, atrofia óptica, e neuropatia sensitiva. Mutação mais típica: A8344G.

NARP (Neuropathy, Ataxia, Retinitis Pigmentosa)

Síndroma caracterizada essencialmente por neuropatia, ataxia, retinite pigmentar e fraqueza muscular proximal, em combinações variáveis. Também, atraso psicomotor, epilepsia e atraso mental.

LHON ou neuropatia óptica de Leber

Mais frequente no sexo masculino (4 a 5 vezes), o quadro clínico inclui: perda de visão aguda ou subaguda devida a atrofia óptica bilateral, neuropatia retrobulbar, tortuosidade dos vasos retinianos e edema do disco óptico, síndroma cerebelosa, piramidal, neuropatia periférica e alterações da condução cardíaca.

MNGIE (Mitochondrial Neuro-Gastro-Intestinal Encephalopathy)

Encefalopatia mio-neuro-gastrintestinal que ocorre com diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução intestinal, miopatia com RRF, oftalmoplegia externa progressiva, neuropatia periférica, leucodistrofia e caquexia.

Síndroma de Wolfram (DIDMOAD)

Esta forma clínica, muito rara (prevalência global de 1/770.000 nados vivos), é conhecida também pelo acrónimo assinalado (em inglês ) significando combinação de sinais e sintomas, respectivamente: diabetes insípida, diabetes mellitus, atrofia óptica (optical atrophy) e surdez neurossensorial (deafness).

Trata-se de patologia progressiva, década a década da vida: na idade adulta, surgimento de complicações renais e neurológicas (ataxia cerebelosa e mioclonias).

Diagnóstico

O diagnóstico definitivo das DM exge um trabalho complexo, necessitando, dum modo geral, da conjugação de parâmetros clínicos, bioquímicos, anatomopatológicos e genéticos. De acordo com os resultados respectivos, o diagnóstico poderá ser considerado: confirmado, provável, possível, ou refutado.

Tal complexidade resulta do facto de a clínica e as alterações bioquímicas não serem específicas do defeito metabólico, o que poderá levar a resultados inconclusivos. Na literatura científica é realçada uma “verdadeira odisseia” relacionada com uma exigência de raciocínio clínico laborioso conducente ao diagnóstico.

Por outro lado, se os resultados forem normais, tal não invalida o diagnóstico de DM. Por consequência, são necessárias, por vezes, provas dinâmicas que ponham em evidência a alteração do metabolismo energético subjacente, provas que implicam padronização com o objectivo de uma mais correcta interpretação.

Assim, frequentemente, o diagnóstico bioquímico/ genético só é concretizado após uma longa série de estudos bioquímicos e moleculares, em diferentes tecidos, de preferência os mais afectados clinicamente. É crucial, pois, existir um diálogo contínuo entre o clínico, o bioquímico e o geneticista para uma interpretação integrada de todos os dados recolhidos.

De salientar que devem ser evitadas as provas/ estudos desnecessários, chamando-se a atenção para a necessidade do consentimento informado e esclarecido.

Para o diagnóstico de DM torna-se necessário persistência, humildade e, não raras vezes, aguardar pela evolução do quadro clínico.

O fluxograma da Figura 3 poderá ser útil.

FIGURA 3. Doenças mitocondriais – marcha diagnóstica.

SUSPEITA DE DOENÇA MITOCONDRIAL
Atingimento de órgãos sem aparente relação com evolução clínica progressiva
Acidose metabólica no momento da descompensação aguda
Padrão simile AVC (stroke-like)
Atingimento dos gânglios basais
Alteração da substância branca

Exames bioquímicos basais (iniciais)

Análise basal de metabólitos

Doseamento de: lactato (L), piruvato (P), razão L/P, 3-hidroxibutirato (3OHB), acetoacetato (AcAc), razão 3OHB/AcAc, e glicémia e AG livres, em jejum e 1 hora após refeição, se possível ao longo de 24 horas.

Fundamental para o diagnóstico: hiperlacticidémia (L > 4 mmol/L); frequentemente a razão L/P e, também, a razão 3OHB/AcAc estão elevadas; cetonémia paradoxal após refeição: é sugestiva.

Tais relações reflectem, indirectamente, o potencial redox do citoplasma (L/P), e da mitocôndria (3OHB/AcAc).

Deve ser colhido sangue venoso ou arterial em tubo com fluoreto de sódio, não usando garrote e evitando, quanto possível, designadamente, a agitação (movimentos) e o choro. É útil recordar a correspondência: Lactato em mmol/L <> mg/dL x 0,11.

Outros metabólitos: CPK, ácido úrico, amónia, CoQ10, AA (alanina), carnitina total, livre e acilcarnitinas no plasma e urina; aminoácidos (AA) e ácidos orgânicos (AO) urinários. Se possível: tocoferol e biotinidase.

Se houver sintomas gastrintestinais (GI) predominantes, deve dosear-se a timidina no sangue para o diagnóstico de MNGIE.

Nota: se os doseamentos evidenciarem resultados normais no sangue, mas existirem sinais de compromisso do SNC, deve proceder-se aos seguintes doseamentos no LCR: glucose, proteínas, L, P, L/P, AA e folatos.

Provas dinâmicas

  • Prova de sobrecarga com glucose: 2 g glucose/kg, com doseamento no sangue (imediatamente antes e 60 minutos após a toma) de: glicémia, L, P, 3OHB e AcAc, respectivas razões; e, na urina, os AO. A prova procura revelar uma alteração do metabolismo energético mitocondrial não evidente nas condições basais, como seja um L ou alanina elevados. Trata-se duma prova ideal para crianças.
  • Prova de esforço: em crianças maiores colaborantes, adolescentes e adultos. Dosear no sangue: CPK, L, P, L/P, AA (alanina), e AO (urina), antes e após o esforço. Interpretação por vezes difícil.
Outros estudos

Cita-se a análise do consumo de O2 (polarografia) em mitocôndrias a fresco, só possível em laboratórios especializados muito experientes.

Outros exames complementares

Todos os órgãos-alvo devem ser explorados cuidadosamente.

  • Olhos: fundoscopia, acuidade visual, campimetria, motilidade ocular. A retinite pigmentar está presente em 75% dos casos.
  • Sistema nervoso: EMG e velocidade de condução nervosa; potenciais evocados auditivos e visuais; ERG; EEG (vigília e sono) com poligrafia. RM-CE convencional: possível detecção de lesões hiperintensas nos núcleos da base e tronco (Leigh); lesões vasculares agudas (MELAS), alterações difusas da substância branca central (KSS, defeito do CII); RM-CE com espectroscopia: estudo do pico de L, mielinização, perda neuronal, medição de picos de outros metabólitos como: creatina, colina, acetil-aspartato; TAC-CE para detecção de calcificações (MELAS, KSS). Com estes exames de neuroimagem podem ser observadas alterações em 80% dos doentes, dependendo, contudo, do tempo de evolução da doença.
  • Sistema cardiovascular: para detecção de cardiomiopatia, bloqueios de condução, síndroma de hiperexcitabilidade, etc..
  • ORL: audiometria (detecção de surdez neurossensorial, frequente).
  • Sistema endócrino: detecção de diabetes, hipoparatiroidismo (Pearson, KSS, MELAS). Prova com ACTH e outros estudos se existir baixa estatura.
  • Rim: função renal completa, glomerular e tubular, urina de 24 horas. Avaliação sobre eventualidade de síndroma de Fanconi ou outras alterações até ao momento não evidenciadas (Pearson, KSS, MELAS).
  • Sangue: alterações podem afectar as três séries; se suspeitar de Pearson, há que proceder a punção da medula óssea.
  • Sistema digestivo: frequentes os problemas alimentares e RGE, particularmente nos mais jovens; valorizar vómitos frequentes, diarreia crónica, hipocrescimento, disfunção pancreática exócrina (Pearson), episódios de pseudobstrução intestinal; valorizar os sintomas do foro hepático como hepatomegália, insuficiência hepática induzida pelo valproato, disfunção hepática aguda (depleção do DNAmit).
  • Sistema muscular: poderá ser necessário estudar o metabolismo energético da mitocôndria com RM e espectroscopia com 31P, e determinar a relação fosfocreatina/ fósforo inorgânico no estado de repouso, exercício e na recuperação. Nos doentes, a relação é baixa no repouso, desce mais ainda no exercício e, na recuperação, verifica-se subida lenta, sendo que a técnica é difícil de aplicar em crianças.
  • Sistema cognitivo: uma avaliação cognitiva cuidadosa é, obviamente, importante.

Nota importante: deverá proceder-se a registos audiovisuais: fotos e videoimagens, para estudo evolutivo.

Exame histológico

Os estudos histológicos são muito importantes para o diagnóstico de DM. O achado ultra-estrutural de fibras vermelhas rasgadas (RRF) (Figura 4) corresponde a fibras musculares com acumulação subsarcolémica de mitocôndrias alteradas quanto ao seu número, disposição, forma e estrutura interna. Tal achado foi considerado como marcador inequívoco de DM, mas actualmente não é aceite, pois poderá ser observado noutras doenças não mitocondriais como a distrofia muscular, polimiosite, dermatomiosite, ou até em pessoas idosas.

Por outro lado, pode verificar-se DM sem padrão RRF, designadamente nas formas LHON e síndroma de Leigh, em relação com mutações no gene da ATPase 6.

Nos estudos histológicos usam-se actualmente diferentes técnicas: morfológicas (como o teste tricrómio Gomorri modificado); histoquímicas (succinato desidrogenase, citocromo c-oxidase, ou ambas); de fluorescência (catiões lipofílicos fluorescentes); imuno-histoquímicas (anticorpos), ou de hibridação in situ (sondas específicas). No músculo dos doentes é frequente a observação de depósitos de gordura e de glicogénio.

As alterações mitocondriais são mais difíceis de interpretar noutros tecidos, como hepatócitos, células tubulares renais, miocárdio, músculos extraoculares, etc..

FIGURA 4. Aspecto ultra-estrutural RRF (fibras musculares rasgadas, defeituosas ou Ragged Red Fibers). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exame bioquímico ulterior

Após a realização dos estudos bioquímicos iniciais, e perante a suspeita de DM, deve proceder-se ao doseamento da actividade dos complexos da CR, o qual pode ser efectuado em diferentes tecidos:

  • Cultura de fibroblastos através de biópsia de pele; ou
  • Biópsia do músculo.

As biópsias devem ser executadas nas condições mais adequadas, cumprindo regras essenciais:

    • No caso da biópsia de pele, a amostra deve ser colocada em meio especial (ex. Hans), conservada e enviada à temperatura ambiente até ao limite de 48 horas, para o laboratório especializado;
    • No caso da biópsia do músculo e para estudos a fresco (métodos polarográficos), os mesmos deverão ser feitos obrigatoriamente no mesmo dia da biópsia, o que implica a realização desta no próprio centro especializado. Se tal não acontecer, deve dividir-se a amostra de músculo em 2 porções, conservadas a -80º C:
      → uma para estudo da actividade enzimática e DNA; e
      → outra para estudos histológicos. Chama-se a atenção para a importância do doseamento de CoQ10 no músculo, porquanto a doença por defeito de CoQ10 é tratável.

 

Em suma, o uso de amostras congeladas é a prática mais comum, ainda que não a ideal. É aconselhável medir a actividade enzimática individual dos complexos da CR, mas também a actividade do I+III e II+III.

Deve padronizar-se a actividade de cada complexo pela actividade da citrato-sintetase, para garantia da validade e estado de conservação da amostra.

Nota importante: uma actividade enzimática normal dos complexos da CR não afasta o diagnóstico de DM. Com efeito, poderá acontecer que o tecido estudado não expresse a doença ou, no caso de a expressar, que exista um mosaicismo celular.

Exame genético

O exame genético é, por vezes, decisivo para diagnóstico de DM.

Assim, numa primeira fase, deve proceder-se do seguinte modo:

  • Investigar as mutações do DNAmit e DNAn (estas últimas ainda pouco conhecidas);
  • Escolher o(s) tecido(s) mais afectado(s) clinicamente a que possivelmente corresponderá uma proporção maior de DNA que sofreu mutação;
  • Estudar: mutações pontuais, deleções, duplicações e deplecção do DNAmit;
  • Técnicas: colheita de sangue: 5-10 mL em tubo EDTA; colheita de tecidos: fibroblastos, músculo, fígado, outros.

É útil fazer o estudo genético do(a) filho(a) e da mãe, se houver suspeita de mutações do DNAmit e hereditariedade materna; ou no doente e em ambos os progenitores, se se suspeitar de mutações nucleares e hereditariedade mendeliana.

Se houver suspeita de determinada síndroma clínica em concreto, como por exemplo: MERRF, MELAS, NARP, Leigh, etc., deve fazer-se a detecção prévia das alterações genéticas conhecidas do DNAmit; se o estudo mutacional for negativo, deve proceder-se a biópsia muscular para estudos bioquímicos, histológicos e moleculares.

Se a situação configurar uma associação de sintomas e sinais não conhecida, mas evocadora de uma DM, deve proceder-se a biópsia muscular e a outros estudos neste tecido.

Tratamento

Específico

Pela ausência de grandes séries de doentes, não há estudos conclusivos quanto ao efeito dos múltiplos tratamentos experimentados. A terapêutica farmacológica específica revela apenas alguma melhoria em casos raros, geralmente sem efeito nas formas precoces e multissistémicas. Como excepção devem ser citados os seguintes fármacos:

  • A ubiquinona-10 ou CoQ10, potente antioxidante, eficaz no defeito primário do CoQ10;
  • A idebenona: similar à ubiquinona mas muito mais solúvel; pode atravessar a barreira hemato-encefálica, e pode ser útil na doença de Friedrich;
  • Outros (sendo referida entre parênteses a entidade clínica para a qual é dirigido): vitamina C (def. CIII); vitamina K3, menadiona (def. CIV provavelmente); vitamina B2, riboflavina (def. CI); vitamina B1, tiamina (útil apenas no def. PDH); citocromo c (KSS provavelmente); mono-hidrato de creatina (crises agudas do MELAS); histidinato de cobre (a tentar nas formas graves de encefalomiocardiopatia do lactente com defeito de COX – mutação SCO2); carnitina (útil nas deficiências secundárias); dicloroacetato (útil nas acidoses lácticas graves no defeito PDH, mas por períodos curtos); bicarbonato (melhoria da hiperventilação); ácido fólico (útil no KSS e anomalias da mielinização); ácido folínico (por vezes alguma melhoria em situações de alteração da substância branca cerebral); corticóides (por vezes útil nas crises do MELAS e na insuficiência suprarrenal no MELAS e KSS); L-arginina, precursora do óxido nítrico (vasodilatador), com acção inconstante nas crises de AVC no MELAS.

Nota importante: não devem ser usados fármacos que inibam a CR e/ou o metabolismo da mitocôndria: valproato de sódio, fenobarbital, hidantoína, tetraciclinas, ciprofloxicina, aminoglicosídeos (especialmente nos doentes com a mutação A1555G, que têm surdez), anestésicos vários, analgésicos (como o fentanil).


Os transplantes hepático, renal ou cardíaco deverão ser cuidadosamente ponderados em casos muito seleccionados, dadas as características evolutivas das DM.

Medidas gerais

Reforça-se o papel importante de certas medidas de suporte, a saber:

  • Evicção/correcção de descompensações metabólicas agudas, tendo em atenção a correcção sintomática em função de sinais de compromisso de diferentes órgãos;
  • Suprimento energético adequado, não excessivo: evicção do jejum prolongado, promovendo refeições com intervalos regulares;
  • Dieta cetogénica somente com indicação no def. PDH, e no Leigh, com resultados contraditórios;
  • Evicção de situações que exijam elevada necessidade energética: administração de antipiréticos em casos de febre (não ácido acetilsalicílico, preferindo ibuprofeno), evicção de ambientes muito quentes, abstenção de álcool;
  • Reidratação IV em situações de desidratação;
  • Diálise se insuficiência renal ou nos casos de MNGIE (se timidina muito elevada no sangue);
  • Fomento do exercício físico aeróbico controlado, sempre que possível para melhorar a tolerância à fadiga;
  • Correcção da acidose: bicarbonato; nos casos de acidose láctica grave, poderão estar indicadas diálise peritoneal ou hemodiálise;
  • Apoio psicológico e/ou psiquiátrico aos doentes e familiares, quando necessário (aspecto fundamental, a não descurar).

Nota importante:

    1. Apesar de não existir tratamento curativo para as DM, ante a mínima suspeita deve proceder-se à administração de cofactores para melhorar a função da CR. No caso específico de MELAS, em todos os doentes deve administrar-se suplemento com arginina e citrulina durante os surtos de “AVC” e na fase de manutenção.
    2. Abundam controvérsias acerca dos resultados e benefícios de muitas das terapêuticas citadas.

2. DOENÇAS POR DEFEITOS DA OXIDAÇÃO MITOCONDRIAL DOS ÁCIDOS GORDOS E DA CETOGÉNESE

Etiopatogénese e nosologia

A oxidação dos ácidos gordos (AG) na mitocôndria é crucial para a produção de energia. Nos estádios tardios de jejum, os AG fornecem ~80% das necessidades totais de energia pela síntese hepática de corpos cetónicos e por oxidação directa noutros tecidos.

Os ácidos gordos de cadeia longa (AGCL: C16-C20) constituem a fonte energética essencial para o músculo esquelético durante o exercício prolongado e a fonte preferida pelo miocárdio.

A oxidação de AG integra quatro componentes:

  1. Ciclo da carnitina;
  2. Ciclo da beta-oxidação;
  3. Via de transferência de electrões; e
  4. Síntese dos corpos cetónicos (ver adiante).

A via de transferência de electrões transfere uma parcela da energia libertada na beta-oxidação para a cadeia respiratória, daí resultando síntese de ATP.

No fígado, parte importante da acetil-CoA derivada do ciclo da beta-oxidação é utilizada para a síntese de corpos cetónicos: 3-hidroxibutirato e acetoacetato. Estes corpos cetónicos são então exportados para os tecidos para a oxidação final (principalmente para o cérebro), poupando glicose.

Noutros tecidos, como o músculo, a acetil-CoA entra no ciclo de Krebs para a produção de ATP.

Os AG livres, libertados com o concurso das lipases, dos triglicéridos armazenados no tecido adiposo, circulam ligados à albumina. A sua oxidação nos tecidos periféricos poupa o consumo de glucose, e a necessidade da conversão das proteínas do corpo em glucose.

Por sua vez, o fígado, utilizando AG, fornece energia para a gluconeogénese e para a síntese de ureia.

As doenças principais que decorrem de anomalias ao nível dos quatro componentes atrás referidos ( 1 -, 2 -, 3 – , 4 – ) podem ser assim sistematizadas (ver caixa):

    • defeito do transportador da carnitina (CTD) – deficiência primária de carnitina e deficiência de captação de carnitina;
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 1 (CPT1);
    • deficiência de carnitina/acilcarnitina-translocase (CACT);
    • deficiência de carnitina-palmitoil-transferase 2 (CPT2);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia muito longa (VLCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia média (MCAD);
    • deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia curta (SCAD);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia longa (LCHAD);
    • deficiência de proteína trifuncional mitocondrial (MTP);
    • deficiência de desidrogenase de hidroxiacil-CoA de cadeia curta (SCHAD);
    • deficiência de 3-cetoacil-CoA tiolase da cadeia média (MCKT);
    • deficiência de desidrogenases de múltiplas acil-CoA (acidúria glutática tipo 2) ou de ETF/ETF-DH (flavoproteínas de transferência de electrões);
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase conduzindo a defeito da cetogénese;
    • deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) liase conduzindo a defeito da cetogénese.


Dois aspectos com implicações clínicas importantes a reter são:

  • A produção insuficiente de corpos cetónicos, associada à inibição da gliconeogénese pelos baixos níveis de acetil-CoA durante os estados catabólicos (por ex. jejum prolongado, infecção, procedimento cirúrgico, etc.), poderá causar coma hipoglicémico hipocetótico típico, acompanhado por sinais de insuficiência hepática e hiperamoniémia;
  • A acumulação tóxica de acilcarnitinas de cadeia longa, especialmente nas perturbações de oxidação dos ácidos gordos de cadeia longa, poderá causar acidose láctica grave no RN e lactente, cardiomiopatia e hepatopatia.

Como consequência do que foi referido, os defeitos da ß-oxidação dos AG são actualmente considerados um grupo major de doenças neurometabólicas. As respectivas manifestações clínicas levantam problemas de diagnóstico diferencial com defeitos da CR.

Manifestações clínicas

As perturbações da oxidação de ácidos gordos e da cetogénese, evidenciando grande variabilidade de manifestações, apresentam-se na maioria dos casos, em 3 formas principais: hepáticas, cardíacas, e musculares.

Em geral, as manifestações ocorrem no lactente jovem com episódios potencialmente fatais de coma com hipoglicémia hipocetótica induzidos por jejum ou doença febril, por vezes em associação a falência hepática e hiperamoniémia.

O compromisso hepático é o mais comum e revelador (qualquer que seja o defeito): hepatomegália, esteatose, aumento do valor das transaminases, síndroma de Reye, colestase e falência hepática. A esteatose é um indicador seguro, mas não específico, que deverá conduzir à suspeita e estudo destas patologias.

Quanto ao compromisso extra-hepático, há a referir, no RN e lactente: sinais hemodimâmicos/ cardíacos, designadamente cardiomiopatia (CM), taquicardia ventricular e arritmia hipoglicémia hipocetótica.

Em crianças mais velhas é comum observar-se: fraqueza e dor musculares, rabdomiólise recorrente induzida pelo exercício ou CM aguda ou crónica.

Na LCHAD pode observar-se retinopatia ou neuropatia periférica e síndroma HELLP materna.

Os defeitos (def.) da cetogénese: def. de HMG-CoA sintetase e def. de HNG-CoA liase podem apresentar-se, precoce ou tardiamente, no contexto de infecção ou de estresse metabólico.

A descompensação pode levar a encefalopatia, vómitos, alterações da consciência, em associação frequente a hepatomegália, hipoglicémia hipocetótica. Na deficiência de liase, em que é possível a complicação de pancreatite, alguns pacientes podem estar assintomáticos durante anos ou evoluir para sequelas neurológicas.

A MCAD é, no geral, o defeito mais frequente, seguindo-se LCHAD, VLCAD e os defeitos do ciclo da carnitina (CPT1, CPT2, CACT). Em Portugal a MCAD é frequente na etnia cigana.

Salienta-se que a deficiência de CACT é frequentemente sintomática nas horas a seguir ao parto.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em:

Exames laboratoriais

  • Perfil das acilcarnitinas no plasma ou urina por espectrofotometria de massa em tandem;
  • Doseamento da carnitina total no plasma, sendo que todas estas doenças (excepto a CPT1) têm concentrações de carnitina baixa ou muito baixa;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina, a qual poderá evidenciar acidúria dicarboxílica específica durante o jejum ou doença;
  • Acilglicinas urinárias;
  • Doseamento de ácidos gordos plasmáticos.

Também relevantes para o diagnóstico: hiperamoniémia moderada (mais comum no RN), acidose metabólica moderada, hiperlactacidémia (que diminui com a idade). Os valores de ALT, AST e GGT são raramente superiores 2-3 vezes em relação aos valores de referência.

Por vezes são necessárias outras análises, in vitro ou in vivo, para estudo da via de oxidação dos ácidos gordos.

Estudo histológico hepático

O estudo histológico hepático na fase aguda pode evidenciar sinais de esteatose hepática micro ou macrovesicular que, nos intervalos das crises, podem normalizar.

Pode existir fibrose hepática (VLCAD) e alteração cirrótica (LCHAD).

Nas formas musculares poderá verificar-se quadro de miopatia lipóide/ acumulação de gordura.

Avaliação da actividade enzimática

A avaliação da actividade enzimática é possível nos fibroblastos e linfoblastos.

Diagnóstico molecular

O diagnóstico molecular pode ser de utilidade nas seguintes doenças, para pesquisa de mutações (designadas entre parênteses): MCAD (A985G), LCHAD (G1528C) e CPT2 na sua forma miopática (S113L).

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico pré-natal é possível em todas estas doenças usando amniócitos ou vilosidades coriónicas, excepto na deficiência de HMG-CoA (3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA) sintetase.

Há que admitir a possibilidade de defeito de beta-oxidação de AG perante hipoglicémia, miopatia ou cardiomiopatia não explicadas.

Tratamento

Fase aguda

  • Deve promover-se elevado suprimento de glucose IV (10 mg/kg/minuto ou superior) de imediato, estando proscritos lípidos por via IV;
  • Manter a glicémia > 100 mg/dL (> 5,5 mmol/L), com o objectivo de estimular a secreção de insulina, suprimir a oxidação de AG no fígado e músculo, e bloquear a lipólise;
  • Riboflavina:100 mg/dia (alguns doentes com SCAD e ETF/ETF-DH respondem bem):

A recuperação, não imediata, pode demorar 1-2 dias.

Fase de manutenção

  • Deve evitar-se o jejum prolongado na tentativa de evitar a utilização de AG como fonte energética;
  • Nos casos mais graves, especialmente nos doentes com fraqueza muscular e/ou CM, deve evitar-se o jejum, procedendo-se à alimentação intragástrica contínua nocturna, dar-se amido cru como meio libertador lento de glucose, e restringir-se o suprimento de gorduras;
  • TCM/ triglicéridos de cadeia média: nos defeitos de beta-oxidação da AG de cadeia longa e na LCHAD são de grande utilidade; de utilidade discutível nos SCAD, SCHAD e defeitos da cetogénese e; contraindicados nos casos de deficiência MCAD; no defeito VLCAD podem ter utilidade episodicamente antes do exercício físico;
  • Triglicérido C7 (tri-heptanoína) em formas seleccionadas, por ex. VLCAD, suprindo 30-35% do VCT; melhoria sobretudo em situações de hipoglicémia, rabdomiólise, fraqueza muscular e CM;
  • Carnitina: a sua utilização, se os respectivos níveis estiverem diminuídos, é crucial na forma CTD (defeito do transportador da carnitina); deve ser cautelosa ou evitada noutras formas;
  • Fórmulas especiais com redução da gordura: Monopen, Basic-f, úteis nos VLCAD e CPT2;
  • Ácidos gordos essenciais/ AGE, designadamente óleos de noz, de soja, de trigo, incorporando ácidos linoleico (ómega-6), linolénico (ómega-3) nos casos de restrição de AGCL muito severa;
  • Ácido docosa-hexanóico (DHA) na LCHAD;
  • Bezafibratos – a investigação em curso configura boas expectativas.

Nota final – os níveis séricos de vitaminas lipossolúveis devem ser vigiados.

Evolução

Com o rastreio neonatal alargado e o diagnóstico precoce das situações descritas, de acordo com estudos de grandes séries, a mortalidade, anteriormente rondando cerca de 48%, baixou significativamente. Como exemplos – no MCAD, anteriormente 20%, baixou para 0-4%; LCHAD e VLCAD, de 60% para 0%.

3. DOENÇAS POR DEFEITOS DA CETÓLISE

Etiopatogénese e nosologia

Os corpos cetónicos (cc): acetoacetato e 3-hidroxibutirato são metabólitos derivados dos ácidos gordos/ AG e dos aminoácidos/ AA cetogénicos, como a leucina.

A situação de cetose esporádica surge como resposta ao jejum, estado catabólico ou dieta cetogénica. A cetose permanente, rara, poderá traduzir defeito da cetólise.

A cetose, se associada a outras anomalias metabólicas, poderá traduzir: alterações do metabolismo mitocondrial, tais como acidúrias orgânicas e perturbações da cadeia respiratória; e, também, diabetes mellitus. A cetonúria no RN constitui, como regra, doença metabólica primária.

Após jejum prolongado os cc podem oferecer cerca de 2/3 da energia necessária para o cérebro.

Nas doenças por defeitos da cetólise verifica-se falência do processo de utilização dos corpos cetónicos sintetizados no fígado, originando cetoacidose grave e hipoglicémia hipercetótica.

Na prática clínica identificam-se duas entidades relacionadas com defeitos da cetólise:

  • Deficiência de succinil-CoA 3-oxoácido CoA-transferase (SCOT);
  • Deficiência de 3-oxotiolase ou beta-cetotiolase (acetoacetil-CoA tiolase mitocondrial), também envolvida no catabolismo da isoleucina.

Trata-se de doenças passíveis de bom prognóstico clínico se o diagnóstico e tratamento forem precoces e correctos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As perturbações da cetólise traduzem-se fundamentalmente por episódios recorrentes de cetoacidose grave potencialmente fatais, taquipneia, hipotonia e coma (na SCOT) e também por episódios de náuseas e vómitos, com sinais neurológicos de expressão variável (na deficiência de 3-oxotiolase), raramente com apresentação neonatal.

Nalguns doentes poderá desenvolver-se insuficiência mental, ataxia ou distonia.

→ Na SCOT a função hepática não está afectada e não existe hepatomegália. Verifica-se elevação pemanente de cc – acetoacetato e 3-hidroxibutirato – no soro e urina.
Deve fazer-se o diagnóstico diferencial, designadamente com a hipoglicémia cetótica idiopática e a glicogenose tipo 0.
O diagnóstico deve ser confirmado por estudo enzimático em linfócitos, trombócitos e fibroblastos (essencial) em cultura.

→ Na deficiência de 3-oxotiolase para além da elevação acetonas (D-3-hidroxibutirato e acetoacetato) no soro e urina, verifica-se hipo ou hiperglicémia. Na urina salienta-se a elevação de metabólitos da isoleucina como a 2-metil-3 hidroxibutirato, 2-metilacetoacetato e tiglilglicina.
A elevada concentração de acetoacetato no sangue e urina pode originar resultados falsos positivos no teste dos salicilatos.

Através da RM poderão ser evidenciadas anomalias dos gânglios basais.

Tratamento

As bases fundamentais da actuação têm em conta que os doentes com defeitos da cetólise podem sofrer descompensação rápida já na primeira infância, o que poderá dar origem a sequelas neurológicas irreversíveis.

A actuação compreende os seguintes passos:

  • Devem ser evitados períodos de jejum, propiciando elevado suprimento em fluidos com elevado teor de hidratos de carbono desde a verificação do mínimo sinal de doença (designadamente intercorrências acompanhadas de estresse metabólico como infecções) ou em caso de intervenções cirúrgicas;
  • Hospitalização caso se comprove cetonúria; em tal circunstância deve ser aplicada perfusão IV de glucose para tentar interromper o estado catabólico (~10 mg/kg/minuto <> 60 kcal/kg/dia) e incorporando bicarbonato se a acidose for grave (pH<7,1);
  • Na fase aguda da descompensação deve ser evitado o suprimento de proteínas e gorduras;
  • Monitorização rigorosa do balanço hidroelectrolítico, prevenindo e/ou combatendo a desidratação, tendo em conta que a hipernatrémia poderá ser fatal;
  • Após melhoria está indicado suprimento de baixo teor em gorduras (não ultrapassando 1 g/kg/dia de lípidos IV);
  • Poderá estar indicado suplemento em carnitina se os respectivos níveis séricos forem baixos.

4. DOENÇAS POR DEFEITOS DA BIOSSÍNTESE e TRANSPORTE da CREATINA

Etiopatogénese e nosologia

O sistema creatina/ creatina-fosfato tem papel importante de reserva energética no cérebro e músculo.

A creatina (Cr) é sintetizada num processo que envolve duas enzimas: arginina-glicina amidinotransferase (AGAT) e guanidinoacetato metiltransferase (GAMT).

A S-adenosilmetionina (SAM) serve como dador do grupo metilo.

A creatina é sintetizada primariamente no rim e pâncreas (ambos ricos em AGAT), e no fígado (rico em GAMT). A creatina e a creatina-fosfato são convertidas, não enzimaticamente, em creatinina (Crn), que é excretada especialmente na urina.

Para que a Cr seja captada ao nível dos tecidos cerebral e muscular torna-se necessário um transportador da Cr (CRTR).

Nesta perspectiva, são identificadas três entidades relacionadas com defeitos da biossíntese ou do transporte de Cr, levando a concentrações baixas desta no SNC:

  • Deficiência de GAMT;
  • Deficiência de AGAT;
  • Deficiência de CRTR (ou def. SLC6A8) ligada ao cromossoma X.

A GAMT é a forma mais grave, a CRTR a forma mais comum, sendo a sua prevalência alta entre os doentes do sexo masculino com insuficiência mental ligada ao sexo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

No que respeita a manifestações clínicas salienta-se que nas três afecções referidas, verifica-se atraso no neurodesenvolvimento, com especial relevância na área da fala (grave), epilepsia por vezes refractária (verificando-se anomalias no EEG), sinais extrapiramidais (na GAMT), autismo e alterações do comportamento.

Através da RM com espectrometria é possível comprovar-se as concentrações baixas/ muito baixas de Cr no cérebro (o órgão mais afectado) nas três entidades anteriormente referidas constituem um dado fundamental para o diagnóstico. O cérebro é, aliás, o órgão mais afectado.

O diagnóstico bioquímico faz-se pelo doseamento simultâneo de: creatina, creatinina, ácido guanidinoacético (AGA) no plasma, e pela razão Cr/Crn na urina. Para os resultados importa consultar a caixa seguinte.

A concentração muito elevada (e tóxica) do AGA, é marcador da GAMT. A ratio Cr/Crn elevada na urina é marcador de CRTR, especialmente no sexo masculino. Assim:

AGAT → AGA baixo (urina, plasma e LCR); Cr no plasma no limite do normal; Crn moderadamente baixa na urina.
GAMT → AGA muito elevado (tecidos e fluidos) – achado quase patognomónico -, e Cr baixa.
CRTR → AGA dentro do normal.

      • No sexo masculino: Cr elevada na urina; Crn baixa na urina; ratio Cr/Crn elevada na urina.
      • No sexo feminino: ratio Cr/Crn no limite do normal, ou elevada na urina.

A confirmação diagnóstica faz-se através de estudos enzimáticos, moleculares e funcionais de captação da Cr nas células em cultura, para o CRTR.

O estudo molecular, disponível para as três entidades, deve ser feito em todos os doentes.

Os doentes portugueses com GAMT apresentam a mutação c.59G>C (p.W20S), geralmente em homozigotia. A CRTR é diagnosticada em crianças e adultos; as mulheres heterozigotas, em 50% dos casos, apresentam dificuldades de aprendizagem e alterações do comportamento.

O tratamento inclui essencialmente a administração oral de mono-hidrato de creatina (300-400 mg/kg/dia), com suplemento de ornitina, e redução de arginina na GAMT, com melhoria de prognóstico e evolução.

Na AGAT a administração de mono-hidrato de creatina pode levar a melhoria dramática do desenvolvimento, se iniciada na fase pré-sintomas.

Aliás, se a terapia for instituída precocemente nos assintomáticos com AGAT e GAMT, poderá evitar-se o surgimento das manifestações clínicas.

A Cr tem efeitos neuroprotectores (in vivo e in vitro).

Recentemente foram propostas novas terapias:

  1. Suplemento de S-adenosilmetionina, a qual atravessa a barreira hemato-encefálica;
  2. Suplementos de ácido fólico, vitaminas B6 e B12 a fim de se promover o incremento da síntese de metionina e a redução da S-adenosil-homocisteína (que inibe a GAMT);
  3. Análogos lipofílicos de Cr, que atravessam a barreira hematoencefálica, são independentes do CRTR, e evidenciam efeitos promissores na experimentação animal.

Quanto ao defeito de CRTR (SLC6A8), a administração isolada do mono-hidrato de Cr não é eficaz. Foi proposto juntar suplementos de arginina e glicina (precursores da Cr), com resultados incertos ou não mantidos: em certos casos tem-se assistido a melhoria da epilepsia ou dos sintomas musculares, enquanto noutros se tem verificado agravamento do quadro clínico com a introdução da glicina.

No geral, salienta-se que os doentes com “pico” residual de Cr no cérebro beneficiam com o suplemento oral de Cr, mais eficazmente se iniciado em fase precoce.

Como conclusão prática pode afirmar-se:

  1. Perante uma situação de insuficiência mental ligada ao cromossoma X deverá admitir-se: síndroma do X-frágil; e defeito de CRTR.
  2. O rastreio destas doenças da creatina está indicado em doentes de ambos os sexos, com insuficiência mental não específica associada a: – comportamento autista ou outros sintomas psiquiátricos e; – convulsões ou hipotonia.

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DOENÇAS DO METABOLISMO DOS ORGANELOS

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

As células do organismo humano possuem diversos organelos interligados funcionalmente:

  • Lisossomas
  • Peroxissomas
  • Retículo endoplásmico
  • Aparelho de Golgi
  • Mitocôndrias

Os processos fisiopatológicos verificados a este nível permitem a individualização de determinadas nosologias do foro metabólico e hereditário e uma melhor compreensão dos problemas clínicos que as integram.

Lisossomas

Os lisossomas, organelos que contêm hidrolases em meio ácido, são fundamentais para a cisão intracelular de moléculas e compostos de diversas dimensões. Certas enzimas lisossómicas, sendo captadas através de endocitose por outras células, poderão ser identificadas nos fluidos orgânicos.

Como consequência de defeitos em genes que codificam as referidas enzimas lisossómicas, haverá acumulação de substratos incompletamente catabolisados nos organelos de diversos sistemas e órgãos (por ex. órgãos sólidos, tecido conjuntivo, sistema osteoarticular, sistema nervoso, etc.), cuja tradução clínica é o surgimento de organomegálias e outras disfunções de carácter progressivo.

No âmbito das doenças dos lisossomas são consideradas diversas entidades clínicas assim discriminadas:

  • Mucopolissacaridoses (MPS);
  • Oligossacaridoses;
  • Mucolipidoses (ML);
  • Esfingolipidoses;
  • Doenças lisossómicas de armazenamento ou depósito de lípidos (incluindo as lipofuscinoses), e de glicogénio (glicogenose tipo II ou doença de Pompe, já abordada);
  • Doenças por defeito de transporte lisossómico.

Neste capítulo, é dada ênfase às primeiras quatro entidades clínicas (MPS, Oligossacaridoses, ML e Esfingolipidoses), respectivamente nas alíneas 1, 2, 3, 4, adiante sistematizadas.

Na sua globalidade, as doenças lisossómicas, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/7.700, compreendem mais de 50 entidades clínicas.

Peroxissomas

Os peroxissomas são organelos celulares que possuem funções anabólicas e catabólicas, sintetizam fosfolípidos (plasmalogénios, importantes constituintes das membranas celulares), a mielina; intervêm na beta-oxidação dos ácidos gordos de cadeia muito longa e alfa-oxidação do ácido fitânico (ácido gordo 3-metil) e na formação dos ácidos biliares; e promovem o catabolismo da lisina e do glioxilato.

Muitas reacções dependentes do oxigénio verificam-se nos peroxissomas para proteger a célula dos radicais livres, sendo que o H2O2 produzido é metabolizado pela catalase peroxissómica. Salienta-se que, para a biossíntese dos peroxissomas e transporte transmembranar, se torna fundamental o concurso das chamadas peroxinas codificadas pelo gene PEX.

Neste contexto, as doenças dos peroxissomas podem ser sucintamente sistematizadas em:

  • Defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Defeitos do metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Neste capítulo, a alínea 5. (ver adiante) aborda sucintamente o metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Retículo endoplásmico e Aparelho de Golgi

Citam-se outros organelos com importância na etiopatogénese de um grupo de doenças hereditárias do metabolismo:

  • O retículo endoplásmico (RE) – estrutura do citoplasma celular constituída por um conjunto de sáculos e de túbulos achatados cuja função está associada a outro organelo, o aparelho de Golgi;
  • O aparelho de Golgi (AG) – microestrutura com pequenas bolsas e vesículas, com função importante nos processos de secreção e absorção da célula.

Para melhor compreensão das doenças relacionadas com alteração do metabolismo destes organelos RE e AG, importa recordar as seguintes noções:

  • Muitas enzimas e proteínas de membrana e de transporte, assim como certas hormonas, requerem glicosilação (glicosilação proteica) para que se tornem funcionais, formando-se glicoproteínas; salienta-se que existe também a modalidade de glicosilação lipídica;
  • Tal processo requer a participação mais de 50 enzimas localizadas nos referidos organelos (RE e AG);
  • As perturbações ao nível de múltiplos passos metabólicos relacionados com a glicosilação originam uma diversidade de síndromas designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês – congenital defects of glycosylation).

Tais perturbações são abordadas adiante neste capítulo, integrando a alínea 6. , com o título: defeitos da glicosilação (síndromas CDG).

Mitocôndrias

Uma das principais funções das mitocôndrias, organelo em forma de grão, bastonete ou filamento, é o fornecimento de energia sob a forma de ATP através da oxidação dos ácidos gordos, a oxidação de acetilCoA no ciclo do ácido tricarboxílico e a fosforilação oxidativa na cadeia respiratória. Tal processo implica o concurso de mais de 50 enzimas e complexos enzimáticos compostos por número variável de polipéptidos.

As doenças do metabolismo energético mitocondrial, ou simplesmente doenças mitocondriais, decorrem de perturbações de enzimas ou complexos enzimáticos directamente envolvidos na geração de energia química pela fosforilação oxidativa; incluem o complexo piruvato desidrogenase (PDH), o ciclo do ácido tricarboxílico, a cadeia respiratória e a ATP sintetase.

Este tópico é abordado separadamente no próximo capítulo.

1. MUCOPOLISSACARIDOSES (MPS)

Definição e etiopatogénese

AS MPS são doenças lisossómicas de sobrecarga, resultantes de deficiência de enzimas lisossómicas (hidrolases ácidas), com consequente degradação incompleta dos glicosaminoglicanos (com a abreviatura de GAG, sinónimo do termo antigo de mucopolissacáridos), os quais se depositam nos órgãos e tecidos.

Os GAG (que constituem a matriz extracelular das membranas celulares dos tecidos conjuntivo e cartilagíneo, das paredes vasculares e fluidos articulares) são açúcares de cadeia longa aminoacetilados ou sulfatados em ligação a estrutura proteica.

Trata-se de doenças crónicas, progressivas e multissistémicas, de transmissão AR, exceptuando no caso da MPS II (doença de Hunter), que é ligada ao cromossoma X. Nas formas moderadas ou atenuadas, o fenótipo e a esperança de vida aproximam-se da normalidade. O diagnóstico pré-natal é possível para todos os tipos.

Os bebés afectados têm geralmente aparência normal ao nascer, com o tempo definindo-se o fenótipo; se este for sugestivo logo ao nascer, é mais provável que a situação em causa se relacione com mucolipidose tipo II ou I-cell disease, ou gangliosidose GM1, ou doenças de aramazenamento de ácido siálico (ver adiante).

Manifestações clínicas gerais

As manifestações clínicas mais relevantes das MPS podem ser sistematizadas como se segue:

  • Dismorfia facial (fácies grotesca)
  • Alterações esqueléticas (disostose múltipla)
  • Hepatosplenomegália
  • Hérnia umbilical e inguinal
  • Rigidez articular como regra, exceptuando na doença de Mórquio
  • Hipocrescimento de grau variável (nanismo na antiga nomenclatura)
  • Surdez, opacidade da córnea
  • Deterioração mental e alterações neurológicas progressivas (variáveis)
  • Defeitos cardíacos (lesões valvulares)
  • Pele áspera e hirsutismo
  • Infecções respiratórias frequentes.

Nosologia

O Quadro 1 resume a classificação das MPS, dando ênfase a aspectos clínicos característicos.

QUADRO 1 – Síntese classificativa das MPS.

Designação dos tipos de MPS: I-Hurler; II-Hunter; III-Sanfilippo; IV-Mórquio; VI-Maroteaux-Lamy; VII-Sly. (  )=variável.
TipoDismorfia facial         Disostose múltipla         Atraso mental         Opacidade da córnea           Coração
I+++++++++
II+++(++)+++
III+++++
IV+++(+)
VI+++++
VII++(+)+(+)


O tipo IX (Natowicz) contou durante longo tempo com um caso apenas. Contudo, até 2015 foram descritos vários casos na mesma família considerados “artrite idiopática juvenil”, e correspondendo a fenótipo limitado às articulações.

Em síntese, as MPS podem ser caracterizadas do seguinte modo:

  • Síndroma dismórfica e hipocrescimento (Hurler, Hunter e Maroteaux- Lamy, Sly) (Figuras 1-A, B, C; 2; 3; 4);
  • Deficiência mental com regressão das capacidades e alterações do comportamento (Sanfilippo) (Figura 5);
  • Displasia óssea grave com inteligência normal (Mórquio) (Figura 6).

FIGURA 1A. MPS-I (Hurler): Nanismo, fácies grosseira, organomegália, mão bota. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 1B. MPS-I (Hurler): Fácies grosseira, opacidade da córnea/ tapada, pescoço curto, hirsutismo.

FIGURA 1C. MPS-I (Hurler): Aspecto das mãos, dedos grosseiros. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 2. MPS-II (Hunter): Atraso mental, fácies grosseira, organomegália, dificuldade de extensão articular. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 3. Maroteaux-Lamy (MPS-VI): Fácies grosseira, alterações esqueléticas, hérnia umbilical, dificuldade de extensão articular, nanismo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 4. Sly (MPS-VII): Fácies grosseira, hipertrofia gengival, organomegália, alterações esqueléticas, hidrocele. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 5. Sanfilippo (MPS-III): hirsutismo, fácies grosseira. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 6. Mórquio (MPS-IV-A): 2 irmãos com a doença; nanismo severo, ausência de rigidez articular e inteligência normal. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se:

  • Na detecção urinária e caracterização dos GAG parcialmente degradados (QUADRO 2);
  • Na análise (no soro, leucócitos ou fibroblastos) da actividade das enzimas específicas (QUADRO 3);
  • Na análise molecular (estudo mutacional);
  • No estudo radiológico (FIGURAS 7 a 11).

O cuidadoso estudo radiológico pode contribuir para o diagnóstico, valorizando as seguintes alterações: escafocefalia, sela turca alargada; costelas alargadas e grosseiras com afilamento proximal (costelas em remo); corpos vertebrais em anzol com esporão ântero-inferior, gibosidade, cifose dorsal, lordose lombar; metacárpicos com afilamento proximal; alteração dos ossos da bacia (grandes asas do ilíaco, como na doença de Mórquio), cavidades cotiloideias fugidias e irregulares, etc. (Figuras 7 a 11).

QUADRO 2 – Glicosaminoglicanos(•) patológicos na urina em diferentes MPS.

(•) Anteriormente designados mucopolissacáridos (GAG/MPS) e pesquisados como triagem; probabilidade de falsos negativos nos tipos III e IV.

( ) = varável; n = normal

 

Normal

Mucopolissacaridose

Achados clínicos típicos, sistemas orgânicos afectados

 

 

I

II

III

IV

VI

VII

 

Sulfato de dermatano

 

++

++

  

++

+

Esqueleto + órgãos internos

Sulfato de heparano

 

+

+

+

  

n/+

Atraso mental

Sulfato de queratano

    

+

  

Esqueleto

Sulfato de condroitina

+

   

(+)

 

+

 

QUADRO 3 – Mucopolissacaridoses e défices enzimáticos específicos.

MPS I (Hurler-Scheie) → alfa-L-iduronidase

MPS II (Hunter) iduronato-2-sulfatase

MPS III (Sanfilippo) quatro enzimas (A, B, C, D, E) do metabolismo do sulfato de heparano, respectivamente: heparano N sulfatase, N-ac-glucosaminidase, Ac-CoA-glucosamina-N-acetiltransferase, N-ac-glucosamina-6-sulfato sulfatase

MPS III E → arilsulfatase G

MPS IV (Mórquio) duas enzimas (A, B) do metabolismo do sulfato de queratano, respectivamente: N-ac-galactosamina-6-sulfatase (Mórquio A), beta-galactosidase (Mórquio B)

MPS VI (Maroteaux-Lamy) N-acetilgalactosamina-4-sulfatase (arilsulfatase B)

MPS VII (Sly) beta-glucuronidase

MPS IX (Natowicz) hialuronidase ou hialuronoglucosidase I (Hyal I)

FIGURA 7. MPS: aspecto radiológico de costelas em remo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 8. Aspecto radiológico de MPS; vista lateral da coluna vertebral: costelas alargadas, grosseiras; alteração dos corpos vertebrais (vértebras em “anzol”) com esporão anteroinferior; retrolistese. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 9. MPS: padrão radiológico (pormenor de vértebra em anzol). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 10. MPS: radiografia do 1/3 inferior dos antebraços e das mãos: metacárpicos grosseiros, com afilamento proximal; metacárpicos em “favo de mel”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 11. Radiografia do crânio de MPS: vista lateral do crânio com sela turca alargada em “tamanco”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Tratamento

Apesar dos recentes avanços, o tratamento definitivo ou curativo na maioria das afecções que atingem o cérebro ainda não é possível. Para além do tratamento sintomático, salienta-se a importância de certas medidas que poderão retardar a progressão da doença:

  • Terapêutica enzimática de substituição (TES), disponível para alguns tipos de MPS (I, II, IV-A e VI -perfusão IV semanal de enzima recombinante);
  • Transplante de células estaminais/ stem-cells hematopoiéticas (TSCH) eventualmente associada a terapêutica enzimática; como a enzima administrada por via IV não atravessa a barreira hematoencefálica, a terapia de eleição na MPS I severa é o tratamento combinado com terapia enzimática de substituição (TES);
  • Transplante de medula óssea: nalguns casos de MPS tipos I (especialmente), II e VI tem sido realizado este procedimento com resultados variáveis, menos notórios quanto às alterações esqueléticas e oculares.

Seguimento

Dada a natureza progressiva das MPS, torna-se necessária uma avaliação clínica seriada e rigorosa abrangendo várias funções: audição, visão, cardiovascular, pulmonar, articular, neurológica, qualidade do sono, etc.. Nesta perspectiva, impõe-se a colaboração de equipas multidisciplinares para a actuação específica em determinadas situações como hidrocefalia comunicante, opacidade da córnea, degenerescência da retina, surdez, rigidez articular, síndroma do canal cárpico, profilaxia da endocardite bacteriana, da compressão medular, etc.. Há também que ter a maior atenção à anestesia a realizar nos casos de doença de Mórquio A.

2. OLIGOSSACARIDOSES

Definição e etiopatogénese

As oligossacaridoses são doenças de armazenamento lisossomial, autossómicas recessivas, resultantes da deficiência de enzimas que fazem a degradação das cadeias oligossacarídicas das glicoproteínas; daí serem também chamadas glicoproteinoses. A deficiência enzimática específica origina acumulação intracelular de glicoproteínas e/ou de oligossacáridos, parcialmente degradados, com consequente excreção aumentada na urina.

A sua frequência, inferior à das MPS, é elevada contudo em certas regiões do mundo, como é o caso da fucosidose em Itália, e da aspartilglicosaminúria na Finlândia.

Existe grande heterogeneidade clínica, em parte explicada pela vasta heterogeneidade alélica. O mesmo defeito enzimático pode dar origem a formas clínicas diferentes, com idade de início, gravidade e envolvimento de órgãos, muito variáveis, sendo responsável tanto pelas formas precoces como pelas de começo tardio. Partilham muitos aspectos clínicos com as mucolipidoses (ML), e outras doenças lisossomais, mas em particular com as mucopolissacaridoses (MPS), designadamente no que respeita a alterações esqueléticas e fácies grosseira. Dum modo geral as manifestações das oligossacaridoses surgem mais precocemente do que as das MPS (RN ou primeira infância).

Nosologia

As oligossacaridoses integram as seguintes entidades clínicas:

  • Manosidoses
  • Fucosidoses
  • Doença de Schindler
  • Aspartilglicosaminúria
  • Sialidoses e
  • Galactossialidoses, descritas de modo sucinto a seguir.

Alfa-Manosidose (McKusick 248500)

Esta doença é devida à deficiência da alfa-manosidase que causa acumulação de oligossacáridos e glicoproteínas ligadas a resíduos de manose em vários tecidos e tipos de células, incluindo neurónios. Existem mais de 60 mutações, sendo a R750W a mais comum.

As manifestações clínicas são de largo espectro, desde formas perinatais, geralmente fatais, a formas oligossintomáticas, na idade adulta. São frequentes: fácies grosseiro (simile-Hurler), disostose múltipla, atraso psicomotor, surdez, cataratas, opacidade da córnea, hepatosplenomegália e hérnias. As infecções bacterianas são comuns, possivelmente em relação com deficiência imunitária. Por vezes surgem: ataxia progressiva e hidrocefalia comunicante. A pesquisa de linfócitos com vacúolos é habitualmente positiva.

São descritos dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), ocorrendo antes do 1 ano de idade com: fácies grosseira, hipertrofia gengival, macroglossia, organomegália, surdez, atraso psicomotor evoluindo para atraso mental grave. A morte ocorre entre 3-10 anos de idade;
  • Tipo 2 (Juvenil/ Adulto), mais moderado, com início mais tardio, da infância à idade adulta, com disostose múltipla, atraso mental moderado, surdez progressiva e sintomas psiquiátricos. Os angioqueratomas são raros.

O tratamento, requerendo apoio multidisciplinar, é de suporte e preventivo das complicações. O transplante de medula óssea (TMO) ou TMO/TSCH, se efectuados precocemente, poderão estabilizar a deterioração neurológica. Em estudos experimentais de investigação animal verificou-se melhoria da ataxia com TES.

Beta-Manosidose (McKusick 248510)

Devida à deficiência da beta-manosidase, é muito menos frequente do que a doença anterior.

Como manifestações clínicas descrevem-se: graves dificuldades de aprendizagem, alterações graves de comportamento, surdez e infecções frequentes.

O fenótipo simile-Hurler tem menor incidência. A disostose múltipla é mais rara e a organomegália é inconstante. Por vezes surgem angioqueratomas.

Mais frequentemente surgem: atraso mental que pode estar associado a neuropatia periférica, convulsões, surdez e atraso de crescimento. O início surge por volta dos 1-2 anos, podendo alguns doentes viver até à idade adulta.

Fucosidose (McKusick 230000)

É devida à deficiência da alfa-L-fucosidase, com consequente acumulação de glicoesfingolípidos, glicolípidos e glicoproteínas contendo fucose em vários tecidos, originando grave doença neurodegenerativa, convulsões frequentes, e moderada disostose múltipla. Estão descritas mais de 20 mutações.

As manifestações clínicas iniciam-se-se em geral entre as idades de 1-2 anos, podendo verificar-se sobrevivência até à idade adulta. No geral verifica-se: fácies grosseira, atraso mental, infecções respiratórias frequentes, deterioração neurológica, alterações esqueléticas, hepatosplenomegália. Alguns doentes apresentam angioqueratomas proeminentes.

Estão descritos dois tipos:

  • Tipo 1, de início precoce (3-18 meses) com compromisso do SNC e medula espinal, deterioração progressiva com convulsões, rigidez de descerebração terminal, atraso mental, atraso de crescimento, disostose múltipla, alterações vertebrais, cardiomegália, hepatosplenomegália, hérnias, destacando-se o prognóstico muito reservado e morte na primeira década de vida; neste tipo 1 os doentes apresentam concentração de NaCl elevada no suor;
  • Tipo 2, de início mais tardio e curso mais lento, com angioqueratomas (aspecto típico), sendo a concentração de NaCl no suor normal.

Em ambos os tipos podem observar-se linfócitos no sangue periférico, com vacúolos.

O tratamento é de suporte, verificando-se melhoria se o TMO for efectuado precocemente.

Doença de Schindler (McKusick 104170)

Trata-se de doença muito rara resultante de deficiência de α-N-acetilgalactosaminidase que provoca acumulação anormal de glicoesfingolípidos, glicopéptidos e oligossacáridos em vários tecidos. Descrevem-se dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), de início por volta do 1 ano de idade, em crianças até aí aparentemente normais; depois verifica-se deterioração neurológica com convulsões, hipotonia axial, espasticidade, atrofia óptica, nistagmo, surdez e atraso psicomotor grave.

Tipicamente há pois um quadro de distrofia neuroaxonal e crises mioclónicas sem alterações viscerais, as quais são típicas noutras doenças dos lisossomas. Outros doentes apresentam síndroma piramidal e cerebelosa; alguns têm hiperacúsia, oftalmoplegia e estrabismo.
Nas fases terminais: cegueira, espasticidade, mioclonias, postura de descorticação, atraso psicomotor profundo, contracturas em flexão e imobilidade.
Através da neuroimagem demonstra-se atrofia do córtex cerebral, cerebelo e tronco: a electromiografia evidencia sinais de degenerescência axonal e o electrorretinograma é normal. O EEG evidencia sinais de compromisso cerebral difuso, e de irritabilidade multifocal, especialmente nas regiões central, parietal e occipital.
A mutação E25K é a mais comum nesta forma grave, especialmente em homozigotia.

A marca anátomo-patológica evidencia axónios terminais e pré-terminais esferóides:

  • Tipo 2 (Adulto), ou doença de Kansaki; todos os doentes apresentam telangiectasias, angioqueratomas, vasos sanguíneos tortuosos nas conjuntivas, atraso mental ligeiro e degenerescência axonal periférica; por vezes, fácies grosseira e lábios grossos. Os sinais clínicos mais chamativos são a ausência da fala e de interactividade com o ambiente, o que leva muitas vezes ao diagnóstico de autismo.

Pela neuroimagem comprovam-se sinais de enfartes lacunares sem atrofia cortical. O electromiograma permite evidenciar redução de amplitude e velocidade de condução normal. Não ocorre degenerescência progressiva. Estão descritos quadros intermédios sem organomegália ou alterações ósseas. Existe discrepância genótipo-fenótipo admitindo-se que outros factores contribuam para o quadro neurológico tão grave das formas precoces.

Aspartilglicosaminúria (McKusick 208400)

Trata-se duma doença causada pela deficiência da aspartilglicosaminidase que leva ao armazenamento de aspartilglicosamina nos tecidos, e à sua excreção elevada na urina. É frequente na Finlândia (1/17.000), e rara noutras regiões.

Como manifestações clínicas destacam-se: atraso do neurodesenvolvimento, diminuição da coordenação dos movimentos finos, atraso da linguagem (dado fundamental), alterações psiquiátricas, hiperactividade, infecções recorrentes nos primeiros anos de vida, diarreia e hérnias.

Salientam-se atraso da linguagem, alterações do comportamento, dismorfias, cifose, baixa estatura, fraqueza ligamentar, macroglossia, voz rouca, acne, fotossensibilidade, angioqueratomas e telangiectasias.

O desenvolvimento motor é menos afectado do que a fala e as capacidades intelectuais.

Contudo, estas últimas vão-se deteriorando com a idade.

A hepatomegália é rara, excepto nos doentes finlandeses. No adolescente pode surgir macrorquidismo. A disostose é ligeira e não há alterações visuais (excepto, por vezes, um ponteado semelhante a cristal na córnea).

Alguns autores referem um aspecto facial característico: hipertelorismo, nariz pequeno e grosseiro, pavilhões auriculares com lobos pequenos ou ausentes e lábios grossos. A morte pode ocorrer na terceira década, fase em que o adulto emite já poucas palavras, tem marcha atáxica e incoordenação motora.

Alguns doentes podem apresentar microcefalia, opacidade da córnea, espasticidade, hipotonia, hipertrofia das válvulas cardíacas e sinais de artrite inflamatória.

A marca anátomo-patológica é a extensa vacuolização celular em vários órgãos como o cérebro; no sangue periférico podem ser observados linfócitos com vacúolos. Na Finlândia a mutação mais frequente é a C163S.

O tratamento com o TMO permite normalização bioquímica e ligeira melhoria da capacidade intelectual; contudo, poderão surgir complicações; para o tratamento das convulsões utiliza-se a carbamazepina.

Sialidoses (McKusick 256550)

As sialidoses são devidas à deficiência da α-neuraminidase responsável pela remoção dos resíduos de ácido siálico dos sialoconjugados, com consequente excreção urinária elevada de sialoligossacáridos. O espectro clínico é amplo, desde formas precoces com hidropisia fetal, até formas de progressão lenta de síndroma mioclónica e mancha cor de cereja ou cherry-red spot detectável por fundoscopia.

Descrevem-se dois tipos principais:

  • Tipo 1, de início na infância/ adolescência, com perda visual progressiva, cherry-red spot na mácula (constante), convulsões, mioclonias de difícil controlo, que se agravam com os estímulos emocionais/ sensoriais e ataxia. Mais tarde: atrofia óptica, opacidade punctiforme da córnea e cegueira. Não ocorrem: dismorfias, alterações esqueléticas nem atraso mental significativo.

Em geral, nas 2-3 primeiras décadas de vida, os doentes podem apresentar desenvolvimento e aspecto físico normais, embora com marcha anómala.

Pela neuroimagem detecta-se atrofia cerebral e do cerebelo. Por vezes são observados linfócitos vacuolizados no sangue periférico.

  • Tipo 2, de início muito mais precoce, com fácies grosseira, disostose múltipla e hepatosplenomegália.
    Este tipo integra duas formas:
    • Congénita, com hidropisia fetal, ascite, hérnias, displasia óssea, opacidade da córnea e telangiectasias; a morte é precoce (pré-natal ou nas primeiras semanas de vida); e
    • Infantil, com grave atraso do desenvolvimento neurológico, hepatosplenomegália; edema; a ascite pode observar-se ao nascer ou mais tarde; o fenótipo like-Hurler vai-se acentuando; são comuns: cherry-red spot na mácula, opacidade punctiforme na córnea e cristalino, surdez, convulsões, atraso de crescimento e disfunção motora; pode verificar-se macrocefalia nalguns casos.

Os doentes podem sobreviver até à segunda década, mas, geralmente a morte ocorre na infância (1-7 anos). Como achados radiológicos destacam-se: disostose múltipla que pode ser grave e sinis de condrodisplasia puntacta epifisária.

Verifica-se intensa vacuolização dos leucócitos em diferentes tecidos e órgãos, incluindo fígado e cérebro. O diagnóstico pode ser difícil: por defeito isolado da neuraminidase, ou por defeito combinado com a deficiência da β- galactosidase.

Para confirmação, devem ser usados de preferência tecidos frescos (fibroblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas); leucócitos ou tecidos congelados não devem ser usados.

Galactossialidoses (McKusick 256540)

Trata-se de doenças devidas a defeito combinado da neuraminidase e da β-galactosidase, o qual é causado por falta duma proteína protectora, a catepsina A, responsável pela estabilidade do complexo enzimático dentro dos lisossomas.

Há vários sialoligossacáridos excretados pela urina.

As manifestações clínicas são dominadas por fácies grosseira, cherry-red spot na mácula, e alterações ósseas. O exame do esfregaço do sangue periférico evidencia linfócitos vacuolizados.

Distinguem-se três tipos:

  • Tipo infantil precoce, com as seguintes manifestações, já no RN: hidropisia fetal, ou edema, ascite, hérnia inguinal, fácies grosseira, fígado e baço aumentados, insuficiência renal com proteinúria maciça, cardiomegália, e telangiectasias. A morte é precoce por insuficiência cardíaca e renal;
  • Tipo infantil tardio, manifestando-se até aos 2 anos por fácies grosseira, hepatosplenomegália, hérnia inguinal, disostose múltipla, cherry-red spot e opacidade da córnea e, por vezes, convulsões. Como complicações descreve-se insuficiência cardíaca devida ao encerramento das válvulas aórtica e mitral. Nalguns doentes verificam-se macrocefalia e surdez neurossensorial;
  • Tipo juvenil/ adulto, ocorrendo com maior incidência no Japão e em idade média de início aos 15 anos. Neste tipo são evidentes: fácies grosseira, opacidade da córnea, angioqueratomas, envolvimento cardíaco e alterações da coluna vertebral (platispondilia); nalguns casos são verificados: deterioração neurológica progressiva com ataxia, mioclonias, convulsões, sinais piramidais, insuficiência mental e ausência de visceromegália.

Estão descritos quadros atípicos em que se verificam crises de dor neuropática e ausência de sialoligossacaridúria.

Para confirmar o diagnóstico procede-se:

  • À execução de cromatografia da urina em camada fina a qual evidenciará excreção elevada de sialoligossacáridos;
  • À determinação da actividade enzimática da neuraminidase e da beta-glucosidase.

Como complemento destes exames pode dosear-se a catepsina A e proceder-se à análise mutacional.

Não existe tratamento específico; apenas é possível executar medidas de suporte.

O transplante renal, a fazer-se em caso de insuficiência renal, não impede a progressão da doença. O TMO nesta patologia está em fase de investigação experimental.

Diagnóstico diferencial, definitivo e pré-natal

Do ponto de vista clínico, as oligossacaridoses partilham muitos sinais e sintomas, não só com as mucolipidoses (ML) II e III como, principalmente, com as mucopolissacaridoses (MPS). Os pacientes portadores destas últimas, contudo, excretam na urina GAG (mucopolissacáridos) e não oligossacáridos.

Assim, perante um doente com fácies grosseira (semelhante à da síndroma de Hurler), alterações esqueléticas, com (ou sem) atraso mental, torna-se fundamental proceder, de imediato, a cromatografia em camada fina em urina de 24 horas (a única prova de rastreio útil e fiável para pesquisa de oligossacáridos e mucopolissacáridos).

Se se comprovar mucopolissacaridúria, tal apontará, em princípio, para MPS; se se verificar oligossacaridúria, há que admitir a possibilidade de oligossacaridose, ou de doenças relacionadas, como ML, ou ainda doutras doenças lisossomais que apresentam oligossacaridúria como: GM1, GM2, e doença de armazenamento de ácido siálico infantil.

Chama-se a atenção para o facto de outras doenças, não metabólicas poderem apresentar alteração na excreção de oligossacáridos, tais como: síndromas de: Coffin-Lowry, Coffin-Siris, displasia frontometafisária, Sotos, Williams, Costello, e outras, não esquecendo o hipotiroidismo congénito.

Será importante dosear, no plasma, a quitotriosidase, que está elevada não só na doença de Gaucher, mas também nas doenças: GM1, Krabbe, MPS IV-B, NP-B, NP-C, doença de armazenamento de ésteres do colesterol, Wolman, fucosidose, galactosialidose e glicogenose IV.

A pesquisa de linfócitos vacuolizados no sangue periférico, quando positiva, constitui um elemento adjuvante da suspeição clínica.

O exame radiológico dos ossos, particularmente da coluna vertebral, em dois planos, é fundamental para provar (ou não) a existência de disostose múltipla.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade das enzimas lisossómicas específicas nos leucócitos, fibroblastos, linfoblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas, e raramente no plasma. Nas sialidoses e galactosialidoses não devem ser usados, para esse fim, os leucócitos, sendo preferível a cultura de células. Na galactossialidose é possível determinar a actividade da catepsina A nos fibroblastos.

A análise do DNA está disponível para todas estas patologias.

Para o diagnóstico pré-natal podem ser usadas as vilosidades coriónicas em todas as doenças, excepto na sialidose e galactossialidose (para as quais se dá preferência, respectivamente, ao líquido amniótico e à cultura de células).

Tratamento e prognóstico das oligossacaridoses

Para o tratamento das oligossacaridoses, como já foi referido, torna-se fundamental o apoio multidisciplinar de centros especializados em doenças hereditárias do metabolismo.

Deve ser dada atenção às possíveis perturbações do sono e do comportamento, assim como às situações que necessitem de anestesia. A dismorfia facial, a displasia esquelética, a obstrução das vias aéreas superiores podem dificultar grandemente as manobras de anestesia.

O transplante de células estaminais hematopoiéticas (TSCH), a terapêutica enzimática de substituição (TES), e de redução do substrato estão em evolução.

O transplante de medula óssea (TMO) tem sido realizado em número reduzido de casos, não sendo a sua eficácia definida com exactidão: na alfa– manosidose parece favorável quando realizado muito precocemente; na fucosidose os resultados têm sido inconclusivos, referindo-se que alguns doentes finlandeses com aspartilglicosaminúria tiveram importantes complicações após o referido TMO.

O êxito da TES na doença de Gaucher, na doença de Fabry e nalgumas MPS, faz prever que as oligossacaridoses possam vir a beneficiar dessa terapêutica, assim como da terapia génica.

3. MUCOLIPIDOSES (ML)

As mucolipidoses (ML), outro tipo de doenças lisossómicas, partilham características clínicas e bioquímicas das MPS e das esfingolipidoses.

Nosologia

As ML integram os seguintes tipos: ML I (sialidose do tipo II), ML II (doença da célula-I ou I-cell disease), ML III (distrofia pseudo-Hurler), e a ML IV.

A ML I, considerada por alguns como oligossacaridose, é devida a deficiência da enzima lisossómica alfa-neuraminidase. As manifestações clínicas são variáveis: hidropisia fetal, défice visual, convulsões mioclónicas, alterações da marcha, fundoscopia evidenciando mancha cor de cereja e disostose múltipla.

As ML II e ML III são devidas a deficiência da enzima: N-acetilglicosamil fosfotransferase.

A ML II, por defeito completo da enzima N-acetilglicosamil fosfotransferase é semelhante à doença de Hurler, mas com início muito precoce e com evolução grave: dismorfia facial, macroglossia, cifoscoliose, gibosidade lombar, visceromegália, cardiomiopatia, coronariopatia, rigidez articular, hipertrofia gengival, atraso psicomotor em geral grave e morte precoce (2-8 anos). É frequente a ocorrência de hidropisia fetal.

A ML III, por defeito parcial da mesma enzima – N-acetilglicosamil fosfotransferase-, comportando maior sobrevivência, evidencia quadro clínico menos exuberante, embora alguns doentes evidenciem displasia óssea progressivamente incapacitante; outras manifestações: escassos ou nenhuns problemas de aprendizagem, dores articulares por vezes intensas, e limitação motora semelhante à verificada na artrite reumatóide juvenil; compromisso das vávulas cardíacas; e sobrevivência até à idade adulta.

Na ML II e III existe vacuolização em vários tipos de células de vários órgãos. Existem também inclusões citoplásmicas nos fibroblastos [daí o nome de célula i (I) ].

Estas doenças resultam do defeito na captação e localização intracelular das enzimas lisossómicas por falta do marcador do reconhecimento – a manose-6-fosfato; por esta razão, os doentes têm elevada concentração no plasma de várias enzimas lisossómicas, e baixa concentração intracelular das mesmas enzimas, aspecto importante para o diagnóstico. O doseamento da N-acetilglicosamil fosfotransferase faz-se nos leucócitos ou fibroblastos.

 

A ML IV, devida a deficiência de mucolipidina 1 (proteína de canal do cálcio com papel importante na endocitose) caracteriza-se fundamentalmente por alteração progressiva do neurodesenvolvimento, opacidade da córnea e elevação da gastrina na maioria dos casos (parâmetro que poderá ser utilizado como triagem).

Tratamento

O tratamento das ML é sintomático. Quanto a TMO, se for precoce, pode ser benéfico. O TCSH está em estudo. Por vezes está indicada intervenção cirúrgica ortopédica em patologia da articulação coxofemoral; nos casos de dor óssea e hipomobilidade consequente pode utilizar-se o pamidronato.

4. ESFINGOLIPIDOSES

Definição e etiopatogénese

As esfingolipidoses são doenças dos lisossomas afectando um ou mais órgãos através da acumulação de esfingolípidos, por deficiência primária de enzimas ou de proteínas activadoras envolvidas no respectivo catabolismo.

Os esfingolípidos, localizados predominantemente no sistema nervoso, estão distribuídos por todo o organismo. Incluem fundamentalmente:

  • Os galactocerebrosídeos, sulfatídeos e esfingomielina, componentes essenciais das camadas de mielina; e
  • Os gangliosídeos, encontrados particularmente na substância cinzenta do cérebro.

Deste modo, as esfingolipidoses surgem como doenças primárias do SNC ou periférico; contudo, as manifestações também poderão decorrer da acumulação de esfingolípidos no sistema reticuloendotelial (SRE) ou noutras células.

Manifestações clínicas gerais

Como manifestações clínicas gerais das esfingolipidoses citam-se: atraso progressivo do neurodesenvolvimento, epilepsia, ataxia e/ou espasticidade. Poderá verificar-se hepatosplenomegália, sendo que alterações esqueléticas e dismórficas são raras (excepto na GM1 – ver adiante).

Outros achados incluem: o aspecto fundoscópico de mancha cor de cereja na mácula, medula óssea com células espumosas, e linfócitos vacuolados.

Nosologia

As entidades clínicas que fazem parte das esfingolipidoses são:

  • Doença de Gaucher
  • Doença de Niemann-Pick A e B
  • Gangliosidoses GM1
  • Gangliosidoses GM2
  • Doença de Krabbe
  • Leucodistrofia metacromática
  • Doença de Fabry
  • Doença de Farber
  • Doença de Niemann-Pick C
  • Defeito da prosaposina.

Todas, excepto a doença de Fabry (recessiva, ligada ao X), são doenças autossómicas recessivas.

Seguidamente, procede-se à abordagem sucinta das primeiras quatro doenças citadas.

Doença de Gaucher

É uma das doenças lisossómicas mais comuns.

A etiopatogénese da doença de Gaucher (DG) relaciona-se a deficiência de beta-glucosidase (ou glucocerebrosidase). Embora se admita hoje que existe um espectro clínico contínuo e diversificado, a tradicional subdivisão em 3 fenótipos é útil e tem cunho didáctico:

  • Tipo 1 (doença não neuropática ou tipo adulto), mais frequente, correspondendo a 80-90% dos casos de doença de Gaucher;
  • Tipo 2 (doença neuropática aguda ou infantil); e
  • Tipo 3 (doença neuropática subaguda, crónica ou juvenil).

Todos os tipos são pan-étnicos, realçando-se que o tipo 1 é particularmente prevalente nos judeus Ashkenazi (1/450).

DG do tipo 1: conquanto seja geralmente diagnosticada na idade adulta, pode aparecer em qualquer idade, com manifestações muito variáveis, desde formas assintomáticas a formas extremamente incapacitantes. Salientando-se que não ocorrem, em geral, alterações neurológicas significativas, cabe referir que os sintomas prevalentes são viscerais, hematológicos e ósseos.

Na criança surge esplenomegália, geralmente acompanhada de hepatomegália, anemia, trombocitopénia, tendência hemorrágica, crises agudas de dor abdominal (estas últimas, relacionadas com enfartes esplénicos), crises dolorosas ósseas (por enfartes medulares nos ossos longos). O envolvimento ósseo é, nos mais velhos, uma causa maior de morbilidade; a necrose asséptica da cabeça do fémur e as fracturas espontâneas são comuns. Poderá ocorrer infiltração pulmonar e, nos adultos, poderá surgir quadro de hipertensão pulmonar.

DG do tipo 2: a sintomatologia torna-se notória na infância precoce com disfunção do tronco cerebral, disfagia, alteração da motilidade ocular (oftalmoplegia), espleno-hepatomegália, retroflexão do pescoço, espasticidade marcada, hipocrescimento e caquexia. A evolução é geralmente rápida: poucos doentes sobrevivem até aos 2 anos de idade, sendo que outros têm curso mais lento e sobrevivem até aos 5 anos. Estão descritas variantes fetais e neonatais com elevada incidência de óbitos por hidropisia. Estas formas clínicas são por vezes descritas como de “bébé colódio”.

DG do tipo 3: é muito heterogénea. As manifestações clínicas mais frequentes e mais graves traduzem compromisso do SNC (tronco cerebral): paralisias dos músculos oculares (compromisso da motilidade para cima e horizontal), surdez e, por vezes, atraso do neurodesenvolvimento. Pode haver quadro de epilepsia mioclónica progressiva com demência e morte. Em doentes mais velhos pode surgir sintomatologia simile doença de Parkinson. Pode também verificar-se compromisso cardíaco e esplenomegália.

Salienta-se que nos casos de DG:

    • é comum o surgimento de gamapatias e malignidade, como mieloma múltiplo, linfoma, leucemia linfoblástica, etc.;
    • a qualidade de vida dos doentes e da família é muito precária.


O diagnóstico assenta essencialmente:

  • Na demonstração de células de Gaucher em esfregaço da medula óssea;
  • Na verificação de níveis elevados de quitotriosidase (igualmente importante para a monitorização do tratamento);
  • Na demonstração da deficiência enzimática ~30% do normal (em leucócitos, linfócitos, fibroblastos, células do fígado e baço;
  • Na análise mutacional (sendo que mais de 300 mutações já foram identificadas).

Actualmente existem dois tipos fundamentais de tratamento:

  • A terapêutica enzimática de substituição (TES); e
  • A terapêutica de redução do substrato (TRS).

A TES com administração IV lenta de enzima recombinante foi já usada em milhares de doentes, tendo-se comprovado eficácia e segurança, especialmente na DG do tipo 1.

Alguns centros têm utilizado com resultados promissores a alglucerase, a imiglucerase, a velaglucerase e a taliglucerase, medicamentos já autorizados na União Europeia. No geral a TES é eficaz no controlo dos sintomas clássicos – organomegália, trombocitopénia, anemia – mas menos satisfatória nos casos com manifestações ósseas, em que o miglustat é muito útil.

A TRS é uma terapêutica oral (miglustat) que pretende reduzir a acumulação de células de Gaucher nos vários tecidos, incluindo o ósseo. Pode usar-se isoladamente ou em associação a TES. Estão ainda disponíveis algumas drogas-órfão para a TRS e uso de chaperones farmacológicos.

Doença de Niemann-Pick (tipos A e B)

Esta entidade clínica engloba um grupo heterogéneo de doenças, actualmente divididas em dois subgrupos:

  • Os tipos A e B, em que existe deficiência da enzima lisossómica esfingomielinase (mais acentuada no tipo A), com consequente acumulação progressiva de esfingomielina e colesterol não esterificado nos órgãos sistémicos e no cérebro (menos acentuada no tipo B); e
  • O tipo C devido, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu cofactor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída de colesterol do lisossoma com consequente depósito de esfingomielina).

O tipo A é uma forma neuropática aguda e mais prevalente nos judeus Ashkenazi; o tipo B é uma forma não neuropática com incidência étnica mais alargada.

Quanto a manifestações clínicas e laboratoriais, importa salientar:

O tipo A clássico caracteriza-se fundamentalmente pelo surgimento dos primeiros sintomas nas primeiras semanas de vida com vómitos e/ou diarreia e estabilização do crescimento. Pode surgir icterícia colestática neonatal raramente.

Antes dos 3-4 meses verifica-se hipotonia e fraqueza musculares, hepatosplenomegália e linfadenopatias progressivas. Pelos 6 meses torna-se evidente atraso do neurodesenvolvimento. Entretanto, a par do quadro de hipotonia axial inicial, que é substituído por espasticidade e rigidez, surge frequentemente caquexia.

Por fundoscopia, em cerca de 50% dos casos verifica-se a presença de mancha cor de cereja na mácula.

A deterioração motora e cognitiva é progressiva, ocorrendo em geral a morte entre os 18 e 36 meses. Estão descritos, no entanto, quadros clínicos de gravidade intermédia, com início do quadro neurológico no período infantil tardio, juvenil, ou até na idade adulta.

O tipo B corresponde a uma doença crónica que tipicamente se inicia com esplenomegália ou hepatosplenomegália na infância, mas que pode ocorrer em qualquer idade. Existe raramente doença hepática grave.

Os achados mais comuns são: infiltração reticulonodular no pulmão e doença pulmonar intersticial com repercussão funcional variável. Os doentes evidenciam também um perfil lipídico anormal, transaminases elevadas e trombocitopénia. No adulto a fibrose pulmonar com sintomatogia acompanhante leva à necessidade de oxigenoterapia. Nos casos “puros” de tipo B não se verificam alterações neurológicas nem défice cognitivo (Figura 12).

FIGURA 12. Criança do sexo feminino com doença de Niemann-Pick do tipo B em cujo quadro sobressai hepatosplenomegália; ausência de défice cognitivo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

O curso da doença é marcado por hiperesplenismo progressivo (implicando raramente esplenectomia), perfil lipídico aterogénico e deterioração da função pulmonar. Nalguns casos a esperança de vida é quase normal.

No tipo C verifica-se grande heterogeneidade de manifestações clínicas. Em cerca de metade dos doentes surge icterícia colestática neonatal prolongada, desaparecendo espontaneamente nos primeiros 3 meses de vida; noutra metade existe quadro de doença hepática grave. É comum haver insuficiência mental, epilepsia e cataplexia; embora o neurodesenvolvimento seja inicialmente normal, surge regressão ulteriormente. Um sinal típico não habitual no início da doença, é “paralisia do olhar para cima”. Hepatosplenomegália inconstante.

Nas formas de início tardio, os sinais principais são ataxia e demência lentamente progressiva.

O diagnóstico pode ser suspeitado pela verificação de histiócitos esponjosos na medula óssea (células de Niemann-Pick), de histiócitos “azul-marinho”, e pela determinação da concentração do biomarcador quitotriosidase, moderadamente aumentada.

O diagnóstico definitivo baseia-se na determinação da actividade enzimática nos fibroblastos (de preferência, pela maior confiabilidade), ou nos leucócitos. Nos fibroblastos em cultura demonstra-se esterificação do colesterol deficiente. O estudo mutacional é importante.

No âmbito do tratamento, a experiência com o transplante de medula óssea (TMO), limitada, não parece trazer benefícios para os doentes do tipo A. A esplenectomia pode ter efeitos deletérios nos casos de doença pulmonar. Está disponível a terapêutica enzimática de substituição (TES) com enzima humana recombinante para o tipo B. A oxigenoterapia nos doentes com doença pulmonar crónica faz parte das medidas de tratamento sintomático.

O miglustat pode melhorar os sintomas neurológicos e em especial a ataxia. Nos casos de cataplexia: clomipramina. Recentemente têm-se tentado a ciclodextrina e a “heat shock protein 70” humana recombinante.

Gangliosidose GM1

Trata-se duma esfingolipidose devida a defeito da enzima lisossómica beta-galactosidase, com manifestações fenotípicas muito diversas. A enzima normal catalisa, não só glicoconjugados, gangliósidos GM1 e outros glicosfingolípidos, mas também oligossacáridos contendo galactose, e o sulfato de queratano. Deste modo, as formas mais graves são uma combinação de aspectos observados nas neurolipidoses, MPS e oligossacaridoses.

A deficiência da enzima vem associada a duas doenças clinicamente distintas:

  • As gangliosidoses GM1 (com anomalias que as aproximam mais das esfingolipidoses) e – a doença de Mórquio B, com anomalias que a torna mais próxima das MPS.

Em Portugal esta patologia é frequente na etnia cigana.

Quanto a manifestações clínicas, distinguem-se 3 tipos de GM1:

  • Tipo 1: neste tipo (infantil-precoce) verifica-se hipotonia nos primeiros dias/ semanas de vida, instabilidade cérvico-cefálica, estabilização do neurodesenvolvimento pelos 3-6 meses, dificuldade alimentar, hipocrescimento e, por vezes, edema da face e periférico.

As características dismórficas poderão ser notórias logo ao nascer, ou paulatinamente ao longo do tempo: fácies grosseira, edema palpebral, macroglóssia, hipertrofia gengival, achatamento da raiz nasal e filtro longo.

A hepatosplenomegália está quase sempre presente, assim como a cifoscoliose. Com o tempo surge défice visual, nistagmo pendular, sendo que em cerca de 50% dos casos por fundoscopia observa-se a cherry-red spot ou mancha cor de cereja da mácula.

Por outro lado, a hipotonia dá lugar a espasticidade e verifica-se deterioração neurológica pelos 12 meses com evolução fatal até cerca dos 2 anos de idade. Uma variante mais grave de expressão fetal/ neonatal inclui hidropisia e cardiomiopatia. As alterações esqueléticas dos ossos longos e coluna têm tradução radiológica semelhante às das MPS (Hurler) (Figura 13);

FIGURA 13. Criança de etnia cigana com gangliosidose GM1. Fácies grosseira, edema da face, achatamento da raiz nasal e filtro longo. Hipotonia e atraso psicomotor. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

  • Tipo 2 (infantil-tardio), cujas manifestações surgem em geral entre os 12-18 meses, com disfunção motora, sobretudo no sentar-se, pôr-se de pé, dificuldades da marcha, ataxia, etc.. A breve trecho surge tetraparésia espástica e quadro de convulsões. Não há sinais dismórficos, nem alterações visuais ou visceromegália;
  • Tipo 3 (crónico, tipo adulto, de início tardio), com início de manifestações no final da infância, adolescência, ou na idade adulta, a evolução é muito lenta: disartria e distonia frequentes, inteligência normal ou ligeiramente afectada. Não existem anomalias oculares.

O diagnóstico da GM1 baseia-se na presença de linfócitos com vacúolos no sangue periférico e de histiócitos espumosos na medula óssea, assim como de alterações radiológicas ósseas. Como foi referido, no caso da GM1 do tipo 1, tais alterações são semelhantes às que se associam à MPS (Hurler).

Através de fundoscopia pode ser detectado o já referido sinal de mancha cor de cereja na mácula nas GM1 do tipo 1.

Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental determinar a actividade enzimática nos leucócitos. O doseamento da neuraminidase em leucócitos ou fibroblastos deve ser feito sistematicamente em todos os casos de deficiência de beta-galactosidase para se excluir galactossialidose.

O tratamento inclui a utilização do fármaco miglustat, administrado por via oral com o objectivo de redução do substrato.

Gangliosidose GM2

Distinguem-se três subtipos desta esfingolipidose:

  • Doença de Tay-Sachs (mais comum, por deficiência da beta-hexosaminidase A);
  • Doença de Sandhoff (por deficiência da beta-hexosaminidase A e B); e
  • Deficiência do activador GM2, subtipo raro.

Em todos os subtipos existe alteração do catabolismo dos gangliósidos GM2 nos lisossomas, acumulando-se nos neurónios.

A forma clássica da doença de Tay-Sachs (T-S) tem elevada incidência entre judeus Ashkenazi; uma variante especial de T-S (variante B1) tem elevada incidência no norte de Portugal e sul da Europa.

No que respeita a cronologia das manifestações clínicas, qualquer dos subtipos pode evidenciar formas infantis, formas infantis tardias ou juvenis e formas crónicas ou do adulto.

As formas infantis dos 3 subtipos têm uma apresentação similar: por volta dos 4-6 meses de idade nota-se fraqueza muscular e hipotonia, assim como típica resposta de sobressalto aos sons com hiperextensão dos membros superiores (reacção por hiperacúsia).

À medida que a hipotonia se acentua, verifica-se de modo progressivo regressão das capacidades psicomotoras, dificuldades de deglutição, convulsões, deficiência visual progressiva com amaurose, tetraplegia espástica e macrocefalia, com descerebração pelos 3 anos. A mancha cor de cereja na mácula é inconstante. Na doença de Sandhoff pode verificar-se hepatosplenomegália.

Nas formas infantis tardias ou juvenis, particularmente T-S, o início dos sintomas tem lugar entre os 2 e 10 anos com ataxia, disartria, involução psicomotora, espasticidade e convulsões. A mancha cor de cereja é inconstante.

As formas crónicas ou do adulto apresentam-se de modo muito diverso: distonia, ataxia, atetose, psicose (em 30-50% dos adultos doentes), síndroma do neurónio motor inferior, disfunção espinocerebelosa com oftalmoplegia supranuclear, disfunção autonómica, etc..

Quanto ao diagnóstico, quer na forma infantil, quer na forma infantil tardia ou juvenil, está indicada a fundoscopia para detecção da mancha cor de cereja na mácula que, conforme foi referido, é inconstante.

Torna-se igualmente fundamental a determinação da actividade enzimática nos leucócitos ou fibroblastos. O estudo anátomo-patológico ultraestrutural da pele ou conjuntiva pode contribuir para o diagnóstico através da identificação de corpos lamelares concêntricos nas terminações nervosas.

Para o diagnóstico definitivo é importante o estudo genético; por exemplo, a mutação R178H em homozigotia é frequente na forma juvenil da variante B1.

Tal como no caso da GM1, tem sido utilizado o miglustat oral como tratamento para restrição de substrato.

5. DEFEITOS DO METABOLISMO DOS PEROXISSOMAS

Manifestações clínicas gerais

Os defeitos do metabolismo dos peroxissomas causam, em geral, doenças multissistémicas progressivas e graves.

As doenças do peroxissoma podem ser reconhecidas por um conjunto de manifestações clínicas, traduzidas fundamentalmente por sinais dismórficos, anomalias neurológicas, disfunção hepática, gastrintestinal e por vezes renal, a saber:

  • Dismorfia craniofacial, anomalias esqueléticas, encurtamento proximal (rizomélico) dos membros, calcificações das epífises, etc.;
  • Encefalopatia, convulsões, neuropatia periférica, marcha anormal, hipotonia;
  • Anomalias auditivas e oculares (retinopatia, cataratas, desmielinização do nervo óptico, cegueira);
  • Doença hepática com hepatomegália, icterícia e colestase;
  • Nefrolitíase, nefrocalcinose;
  • Alteração do comportamento e deterioração cognitiva;
  • Falência do crescimento.

Em função da idade, os sintomas e sinais podem ser assim discriminados:

  1. RN: hipotonia, hipoactividade, convulsões, dismorfia craniofacial, alterações esqueléticas, e icterícia colestática (prolongada);
  2. 1-6 meses: hipocrescimento, hepatomegália, icterícia prolongada, anomalias gastrintestinais, hipocolesterolémia, défice de vitamina E, e anomalias visuais;
  3. > 6 meses – 4 anos: hipocrescimento, problemas neurológicos, atraso no neurodesenvolvimento, deficiência visual e auditiva, osteoporose;
  4. > 4 anos: alterações do comportamento, deterioração cognitiva, sinais de desmielinização da substância branca, paraparésia espástica, deficiência visual e auditiva, neuropatia periférica, anomalias da marcha; sintomas psiquiátricos no adolescente e adulto.

Nosologia

O Quadro 4 resume a classificação das doenças do peroxissoma.

QUADRO 4 – Classificação das doenças dos peroxissomas.

Defeitos da biogénese dos peroxissomas

    • Síndroma de Zellweger (ZS)
    • Adrenoleucodistrofia neonatal (NALD)
    • Doença de Refsum infantil (IRD)
    • Condrodisplasia punctata rizomélica tipo 1 (RCDP1)

Defeitos enzimáticos isolados

    • Adrenoleucodistrofia ligada ao X (X-ALD)
    • Adrenomieloneuropatia (AMN)
    • Pseudoadrenoleucodistrofia neonatal
    • Deficiência da proteína D-bifuncional
    • RCDP tipo 2 e tipo 3
    • Deficiência de 2-metilacil-CoA racemase
    • Doença de Refsum do adulto
    • Hiperoxalúria tipo 1
    • Acidémia glutárica tipo 3
    • Acatalasémia
    • Nanismo de Mulibrey


Seguidamente são descritas algumas das formas clínicas mais representativas das doenças dos peroxissomas.

Síndroma de Zellweger-ZS (ou cérebro-hepato-renal)

As principais manifestações clínicas desta afecção incluem: fácies peculiar (simile Down), fronte elevada, epicanto, fontanela anterior muito grande, hipotonia muscular acentuada, convulsões neonatais, anomalias oculares (glaucoma, catarata, retinopatia pigmentar, displasia do nervo óptico), pavilhões auriculares displásicos, surdez neurossensorial, doença hepática, quistos renais, calcificações epifisárias.

A morte ocorre habitualmente no primeiro ano de vida.

Adrenoleucodistrofia neonatal-NALD

Nesta situação, em que se verifica progressiva alteração da substância branca, os achados dismórficos podem estar ausentes ou ser menos acentuados que na ZS. Alguns doentes exibem fenótipo sugestivo de doença de Werdnig-Hoffman. No RN são habituais convulsões e hipotonia. Não se verificam calcificações epifisárias e a morte surge em geral na infância tardia.

Doença de Refsum infantil-IRD

Trata-se da forma mais ligeira do espectro de Zellweger, com sobrevivência possível até à idade adulta. Os doentes poderão evidenciar início tardio de sintomas e ausência, quer de anomalias de migração neuronal, quer de doença progressiva da substância branca. A dismorfia facial, ligeira (ou inconstante), é semelhante à que se verifica na ZS. O desenvolvimento cognitivo e motor é muito variável, desde quadro muito severo a moderada dificuldade de aprendizagem com surdez, deficiência visual devida a retinopatia.

A síndroma de Zellweger (ZS), a adrenoleucodistrofia neonatal (NALD) e a doença de Refsum infantil (IRD) constituem, em continuum, o chamado espectro Zellweger, ou seja, diversidade de manifestações duma mesma entidade, desde a forma mais grave à mais ligeira.

Condrodisplasia punctata rizomélica clássica (RCDP)

Esta condrodisplasia caracteriza-se por encurtamento dos segmentos proximais dos membros, dismorfia facial típica, calcificações epifisárias que podem desaparecer depois dos 2 anos, contracturas, cataratas, atraso psicomotor grave, restrição de crescimento e, por vezes, ictiose.

No fenótipo estão implicados muitos genes, o que determina grande heterogeneidade na tipologia clínica (por exemplo, tipos 1, 2 e 3, indistiguíveis no plano clínico). As variantes mais moderadas devem ser destrinçadas de outras formas de condrodisplasia punctata como a forma AD de Conradi-Hunermann (sem atraso mental), e as formas AR e ligadas ao X (recessivas ou dominantes).

Lembra-se, a propósito, que uma forma de condrodisplasia, de etiopatogénese desconhecida, foi documentada no âmbito do capítulo desta obra sobre osteocondrodisplasias (Parte XXIV-volume 2).

Doença de Refsum clássica

Nesta doença, que tem início na idade escolar ou adolescência, ou mais tardiamente na 5ª década de vida, os aspectos clínicos mais relevantes são: retinopatia, neuropatia periférica, ataxia cerebelosa. O sintoma mais precoce parece ser cegueira nocturna na idade escolar.

Sem tratamento, verifica-se deterioração do quadro clínico. Menos frequentemente: surdez neurossensorial, alterações cutâneas, anósmia, anomalias esqueléticas e cardíacas. Não se observam dismorfias, disfunção hepática, nem atraso mental.

Existe hiperproteinorráquia sem aumento do número de células no LCR.

Nalguns casos poderá ser sugerido o diagnóstico de doença de Charcot-Marie-Tooth.

Adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X (X-ALD)

Esta doença manifesta-se com grande variabilidade clínica, inclusivamente dentro da mesma família. A forma cerebral da criança constitui o fenótipo mais grave: início de sintomas entre os 5 e 12 anos, levando a estado vegetativo e morte em poucos anos.

Os rapazes afectados poderão apresentar como primeiras manifestações: défice da atenção, alterações comportamentais, mau aproveitamento escolar, deficiência visual-espacial e/ou surdez. Posteriormente: deficiência visual e auditiva graves, quadriplegia, ataxia cerebelosa, convulsões e, por vezes, hipertensão intracraniana.

Sintomas de insuficiência suprarrenal (hipoglicémia, crises de perda de sal, pigmentação cutânea) poderão preceder, coexistir ou seguir o quadro neurológico.

Adrenomieloneuropatia (AMN)

Pode considerar-se uma variante da X-ALD. Afecta cerca de 60% dos homens com ALD entre os 20 e 50 anos e 60% das mulheres heterozigóticas com mais de 40 anos. Em ambos os sexos a doença apresenta-se com paraparésia espástica progressiva e, nalguns homens, desenvolve-se posteriormente desmielinização cerebral lentamente fatal, o que não acontece no sexo feminino.

Diagnóstico

No âmbito do diagnóstico das doenças do metabolismo dos peroxissomas, para além de exames de imagem do SNC (TAC, RM, etc.) em todas as doenças deste foro, está indicada a realização sistemática do doseamento do colesterol total (normal ou baixo), da bilirrubinémia total e conjugada (existe hiperbilirrubinémia conjugada) e das provas de função hepática (resultados indicadores de disfunção).

Quanto a análises específicas (doseamentos) cabe referir as seguintes:

  • Ácidos gordos de cadeia muito longa (AGCML) no plasma – análise fundamental: valores elevados nas doenças com deficiência de beta-oxidação nos peroxissomas; valores normais na doença de Refsum, deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase e RCDP;
  • Plasmalogénios eritrocitários: valor baixo aponta para doenças do espectro Zellweger e RCDP;
  • Ácido fitânico no soro e LCR: aumentado nos defeitos de biogénese e na doença de Refsum;
  • Ácido pristânico no soro: aumentado nas doenças em que está afectada a beta-oxidação nos peroxissomas; elevação isolada indica deficiência de alfa-meti-acil-CoA racemase;
  • Intermediários dos ácidos biliares (soro, urina): elevados na deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase, e normais ou elevados nos defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Glioxalato, oxalato e glicolato urinários: excreção elevada na hiperoxalúria primária tipo 1;
  • Ácido pipecólico: os valores determinados permitem fazer a destrinça das várias formas;
  • Exame do LCR: hiperproteinorráquia sem aumento de células (LCR) na doença de Refsum clássica.

Após estas análises:

  • Estudo enzimático (fibroblastos); e
  • Análise mutacional.

O exame ultraestrutural do fígado evidencia ausência de peroxissomas na ZS.

Tratamento

As bases essenciais do tratamento das doenças do metabolismo dos peroxissomas incluem dieta com restrição de ácido fitânico (proibição de carnes de ruminantes e de gorduras), com ou sem plasmaférese na doença de Refsum clássica.

Na ALD ligada ao X, o transplante de células hematopoiéticas (TCSH) pode estabilizar, ou até reverter, a desmielinização cerebral, desde que realizado muito precocemente e em doentes seleccionados.

Não existe tratamento eficaz para a forma inflamatória cerebral de ALD.

O óleo de Lorenzo (mistura na proporção respectiva de 4/1 de trioleato de gliceril e de trierucato de gliceril) parece não ter efeito curativo nem preventivo.

Na hiperoxalúria tipo I alguns centros têm experiência com a realização de transplante renal e hepático.

6. DEFEITOS DA GLICOSILAÇÃO (SÍNDROMAS CDG)

Definição e etiopatogénese

Reiterando o que atrás foi referido no início do capítulo, a glicosilação [um passo metabólico ocorrendo no retículo endoplásmico (RE) e no aparelho de Golgi (AG)] consiste no processo de síntese de glicanos (oligossacáridos) e na sua ligação covalente a outros compostos, designadamente, proteínas (produzindo as glicoproteínas).

Salientando-se que o processo de glicosilação se pode verificar igualmente nos lípidos, neste capítulo é dada ênfase à glicosilação proteica.

 

Cerca de metade das proteínas corporais [tais como muitas proteínas do soro (transferrinas, factores de coagulação, etc.), de membrana, intracelulares como enzimas e também hormonas] são glicoproteínas que requerem glicosilação para serem glicoproteínas funcionais.

Em diversos passos do processo metabólico de glicosilação intervêm mais de 100 enzimas conhecidas, localizadas nos referidos organelos (RE e AG).

As perturbações ao nível de diversos passos metabólicos em relação com defeitos enzimáticos comprometendo a glicosilação proteica originam uma diversidade de afecções multissistémicas, genéticas familiares, designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês- congenital defects of glycosylation).

Do vasto leque de doenças (em expansão crescente acompanhando com o tempo a investigação) destaca-se a seguinte tipologia: as anomalias estruturais e de funções em distintas combinações, o compromisso neurológico e o espectro de gravidade muito variável.

Manifestações clínicas de alerta

Seguidamente são referidas algumas manifestações clínicas sugestivas de CDG:

  • Distribuição anormal da gordura corporal e/ou mamilos invertidos;
  • Ictiose; cutis laxa;
  • Diarreia crónica; fibrose hepática;
  • Cataratas e/ou coloboma;
  • Sinostose rádio-cubital;
  • Surdez neurossensorial;
  • Síndroma neurológica e grupo sanguíneo bombay; síndroma cerebrocostomandibular;
  • Síndroma neurológica e hipertermia episódica;
  • Anemia diseritropoiética congénita ii;
  • Cardiomiopatia sindrómica;
  • Infecções recorrentes com hiperleucocitose.

Outra sintomatologia específica, associada a certas formas clínicas, é descrita na alínea Nosologia.

Genética

Quanto a padrões genéticos, importa salientar:

  • Todas as CDG conhecidas são doenças autossómicas recessivas;
  • Com excepção da EXT1/EXT2-CDG, já citada, que é autossómica dominante, e a MAGT1-CDG que é ligada ao cromossoma X, e apresenta atraso mental puro, e um padrão normal na focagem isoeléctrica da transferrina sérica (ver adiante).

Nosologia

A primeira CDG foi descrita por Jaak Jacken em 1980. A nomenclatura existente até 2009, usando números romanos e letras árabes (por ex: CDG-Ia a Ip, CDG-IIa a IIL) tornou-se, devido ao número crescente de novas doenças e ao melhor conhecimento da etiopatogénese.

Foi então proposta uma classificação mais simples que englobasse os defeitos da N- e O-glicosilação, e também os defeitos da glicosilação dos lípidos e da glicofosfatidilinositol.

Actualmente cada CDG é identificada pelo nome do gene envolvido, seguido pelo “sufixo” CDG (a designação clássica que se mantém); alguns exemplos: PMM2-CDG (antiga CDG-Ia), e PMI-CDG (antiga CDG-Ib), em que PMM2 significa fosfomanomutase 2, e MPI fosfomanose-isomerase.

Assim, a nova classificação das CDG (de 2009), de acordo com o defeito da glicosilação, é a seguinte (Quadro 5):

  1. Defeitos da N-glicosilação proteica;
  2. Defeitos da O-glicosilação proteica;
  3. Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI);
  4. Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias.

QUADRO 5 – Defeitos congénitos da glicosilação segundo a nova nomenclatura.*

Def <> Defeitos

 *Adaptado de Theodore M & Morava E, 2011

Def N-glicosilação proteica Def O-glicosilação proteicaDef glicosilação lipídica e GPIDef múltiplos glicosilação
PMM2-CDG (CDG-Ia)
MPI-CDG (CDG-Ib)
ALG6-CDG (CDG-Ic)
ALG3-CDG (CDG-Id)
ALG12-CDG (CDG-Ig)
ALG8-CDG (CDG-Ih)
ALG2-CDG (CDGIi)
DPAGT1-CDG (CDG-Ij)
ALG1-CDG (CDG-Ik)
ALG9-CDG (CDG-IL)
RFT1-CDG (CDG-In)
ALG11-CDG (CDG-Ip)
TUSC3-CDG
MAGT1-CDG
MGAT2-CDG (CDG-IIa)
GCS1-CDG (CDG-IIb)
EXT1/EXT2-CDG
B4GALT7-CDG
GALNT3-CDG
SLC35D1-CDG
POMGNT1-CDG
SCDO3-CDG
B3GALTL-CDG
DK1-CDG (CDG-Im)
SIAT9-CDG
PIGM-CDG
PIGV-CDG
DPM1-CDG (CDG-Ie)
DPM3-CDG (CDG-Io)
MPDU1-CDG (CDG-If)
GNE-CDG
B4GALT1-CDG (CDG-IId)
SLC35A1-CDG (CDG-IIf)
SLC35C1-CDG (GDG-IIc)
SRD5A3-CDG (CDG-Iq)
COG-CDG (COG1,4-8)
ATP6V0A2-CDG
SEC23B-CDG

I- Defeitos da N-glicosilação proteica

As CDG resultantes de defeitos da N-glicosilação proteica são o grupo mais comum (só em 2013 foram descritas mais oito novas CDG).
Na N-glicosilação estão envolvidos três compartimentos celulares: citosol, retículo endoplásmico (RE) e o aparelho de Golgi (AG).
Trata-se de doenças fenotipicamente muito diversas, afectando múltiplos sistemas e funções, como o SNC, as funções musculares, de transporte, de regulação, a imunidade, o sistema endócrino, a coagulação, e outros.

Alguns doentes podem ter uma sobrevivência longa, e outros apenas uma deficiência intelectual sem sinais dismórficos como a TUSC3-CDG.

II- Defeitos da O-glicosilação proteica

Já os defeitos da O-glicosilação proteica são geralmente específicos de tecido e clinicamente diferentes das doenças da N-glicosilação, como:
EXT1/EXT2-CDG (exostoses cartilagíneas múltiplas); a B4GALT7-CDG (variante da síndroma de Ehlers-Danlos simile progéria); a POMTI-CDG (síndroma de Walker-Warburg); a POMGNT1-CDG (doença músculo-olho-cérebro, e o espectro da distrofia muscular congénita; a GALNT3-CDG (calcinose tumoral familiar); a SLC35D1-CDG (displasia de Schneckenbecken); a FKTN-CDG (distrofia muscular congénita de Fukuyama) e outras.

III- Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI)

Os defeitos da glicosilação dos lípidos (o primeiro foi descrito em 2004) são, em termos clínicos, semelhantes ao fenótipo da N-glicosilação, como a SIAT9-CDG (epilepsia infantil Amish);
Os defeitos do glicofosfatidilinositol incluem algumas síndromas conhecidas como a doença de Mabry ou a hemoglobinúria paroxística nocturna, com apresentação específica de órgão ou tecido.

Nota importante: Um grupo crescente de doentes com padrão alterado de glicosilação, mas ainda sem defeito enzimático ou molecular definido, constitui o tipo CDGx, admitindo-se assim que muitas formas de CDG estão ainda por descobrir.

IV- Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias

No grupo dos defeitos múltiplos da glicosilação e outras vias estão actualmente incluídas algumas CDG anteriormente classificadas como Ie, If, Im, Io, Iq, IIc, IId, IIf e outras, como os defeitos do complexo COG (conserved oligomeric Golgi): COG1, COG4, COG5, COG6, COG7 e COG8.
O COG é um complexo oligomérico do aparelho de Golgi, constituído por 8 unidades; o defeito de qualquer delas pode produzir alteração em ambas as vias de glicosilação no aparelho de Golgi, porquanto o complexo é crucial no controlo da N- e O- glicosilação e na ligação entre o RE e o aparelho de Golgi.

 

Nesta alínea, é dada ênfase a duas formas mais frequentes, sendo a última tratável

  • PMM2-CDG
  • PMI-CDG

PMM2-CDG (antiga CDG Ia)

Esta doença, a forma mais comum no âmbito dos defeitos em análise (identificados mais de 550 casos), é devida à deficiência de fosfomanomutase 2 (PMM2).

Os sintomas e sinais são distintos consoante a idade, salientando-se que o SNC está afectado na generalidade dos casos, sendo o compromisso doutros órgãos variável.

No feto surge hidropisia detectável por ecografia pré-natal; no RN são notórios derrame pericárdico e ascite. Pode ocorrer falência multiorgânica e morte.

No lactente, verifica-se distribuição anómala da gordura subcutânea, mamilos invertidos, estrabismo, aracnodactilia, hipotonia axial (podendo desaparecer mais tarde), hipocrescimento, dificuldade alimentar (vómitos, diarreia, anorexia), atraso no neurodesenvolvimento, ataxia, hiporreflexia, hepatomegália, diátese hemorrágica, doença tromboembólica, etc.. Alguns doentes evidenciam sinais de renomegália, derrame pericárdico e/ou cardiomiopatia. A mortalidade ocorre em cerca de 25% dos casos por insuficiência hepática, cardíaca ou renal.

Na segunda infância e adolescência, são evidentes alterações neurológicas, endócrinas, insuficiência mental, disfunção cerebelosa, retinite pigmentar, convulsões ou AVC recorrentes. Poderão também surgir anomalias esqueléticas e osteopénia.

No adulto, surge ataxia, insuficiência mental não progressiva, neuropatia periférica e alterações esqueléticas (tórax e coluna) com impotência funcional obrigando ao recurso a cadeira de rodas. No geral, os doentes são extrovertidos e alegres. É frequente o hipogonadismo hipergonadotrófico -puberdade ausente – no sexo feminino.

Estão descritas formas ligeiras, sem dismorfismo e com atraso psicomotor moderado.

PMI-CDG (antiga CDG Ib)

Esta forma, devida a deficiência de fosfomanose-isomerase (PMI), é fundamentalmente dominada por sintomatologia do foro hepatointestinal. São frequentes enteropatia com perda de proteínas, fibrose hepática congénita, coagulopatia, e doença trombótica. Alguns doentes evidenciam vómitos persistentes, e/ou sinais de hipoglicémia com hiperinsulinismo.

Não existem alterações neurológicas nem sinais dismórficos, e o neurodesenvolvimento é em geral normal.

Nota importante: O diagnóstico de síndroma CDG deverá ser considerado em todo e qualquer quadro clínico sem explicação etiopatogénica aparente, multissistémico ou não, com ou sem compromisso neurológico.

Exames complementares e diagnóstico

Perante uma suspeita de CDG está indicada como rastreio a electroforese da transferrina sérica por focagem isoeléctrica (FIE), tandem MS, ou por electroforese capilar. Para a colheita de sangue não devem ser usados tubos EDTA.

Os padrões anormais da FIE são de dois tipos:

  • Padrão tipo 1- aumento da disialotransferrina e/ou da assialotransferrina, e diminuição da tetrasialotransferrina; e o
  • Padrão tipo 2: aumento da trisialotransferrina, di-, mono- e/ou assialotransferrina.

Uma vez detectado um padrão anormal são necessários, conforme os casos, estudos adicionais:

  • Análise dos oligossacáridos por HPLC, enzimologia, imunocitoquímica, espectrometria de massa com electrospray e estudos mutacionais para confirmação diagnóstica.

Um padrão normal da FIE das transferrinas não exclui síndroma CDG, porquanto o mesmo resultado ocorre nas seguintes situações: GCSI-CDG (CDG-IIb), SLC35C1 (CDG-IIc), SLC35A1 (CDG IIf), TUSC3-CDG e, ainda por vezes, em doentes adolescentes e adultos.

Poderá estar indicado fazer-se a FIE utilizando outras glicoproteínas como: haptoglobina, tiroglobulina e alfa-1-antitripsina.

Quanto a diagnóstico diferencial, importa referir que padrões relacionados com alterações secundárias da glicosilação podem ser detectados noutras afecções como galactosémia, intolerância hereditária à frutose, hepatite e alcoolismo crónico.

Algumas doenças da O-glicosilação podem ser detectadas:

  • No soro, pela FIE da apolipoproteína CIII no soro (casos da síndroma de Walker-Warburg);
  • No músculo através de biópsia, por coloração apropriada do complexo da alfa-distroglicano nos casos de síndroma músculo-olho-cérebro.

O dois tipos de CDG descritos [PMM2 e PMI-CDG] apresentam um padrão do tipo 1 da FIE da transferrina sérica.

São comuns as alterações da coagulação:

  • Em todos os casos de CDG: défice do Factor XI
  • Nalguns casos de CDG: défice das proteínas C, S, antitrombina III-AT III, hipoalbuminémia, elevação de ALT e AST, hipocolesterolémia e proteinúria tubular.

A imagiologia do SNC na PMM2-CDG evidencia sinais de hipoplasia cerebelosa (constante), hipoplasia cerebral (inconstante), e de hipomielinização do SN periférico (frequente); no fígado são observados sinais de fibrose e esteatose.

O doseamento da actividade enzimática da PMM2 pode efectuar-se nos leucócitos ou fibroblastos.

O estudo mutacional (mais de 70 mutações identificadas) é fundamental; a mutação mais frequente é a Rl41H, letal em homozigotia.

Na PMI-CDG podem ser comprovadas as seguintes alterações: hipoglicémia com hiperinsulinismo e alterações bioquímicas e da coagulação já descritas na PMM2-GDG.

O doseamento da actividade da PMI pode realizar-se nos leucócitos e fibroblastos.

Tratamento

No caso da PMM2-CDG não existe tratamento específico.

Discute-se o interesse da dieta cetogénica. Para além do tratamento anticonvulsante, importa ter em conta a prevenção dos AVC com ácido acetilsalicílico na dose de 0,5-1 mg/kg/dia. Se surgirem fracturas frequentes, estão indicados os bifosfonatos.

Recentemente tem sido feita a proposta de terapia com chaperones farmacológicos.

Quanto à PMI-CDG, é essencial o diagnóstico precoce, pois existe tratamento disponível com manose oral em doses elevadas; com efeito, os sintomas regridem rapidamente, embora o padrão alterado das transferrinas leve alguns meses a melhorar ou a normalizar.

A terapia com heparina parece eficaz para a enteropatia com perda de proteínas. Será de encarar o recurso ao TH nos doentes resistentes ao tratamento com manose que apresentem icterícia hemolítica, fibrose hepática progressiva, dispneia acentuada e intolerância ao exercício (por envolvimento pulmonar); após o TH muitas destas manifestações melhoram dramaticamente.

Para além desta CDG tratável, algumas outras, a seguir discriminadas, têm actualmente algum tipo de terapia:

  • A SLC35C1 (antiga CDG-iic) por défice de transportador GDP-fucose pode ser parcialmente tratada com fucose, que é eficaz nas típicas infecções recorrentes com hiperleucocitose;
  • Na PIGM-CDG (convulsões intratáveis e trombose venosa, portal e hepática) a administração de butirato parece controlar;
  • As convulsões;
  • Na DPAGT1-CDG, o tratamento com colinesterase melhora a fraqueza muscular;
  • Na PCM1-CDG, com deficiente galactosilação, a terapia com galactose oral:
    • melhora a função hepática, a hepatomegália e a hipoglicémia;
    • normaliza a coagulação; e
    • pode permitir uma puberdade normal nas raparigas com hipogonadismo hipogonadotrópico.

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DOENÇAS DO METABOLISMO DO ÁCIDO NUCLEICO E DO HEME

*Revisão de Aguinaldo Cabral

1. DOENÇAS DO METABOLISMO DAS PURINAS E PIRIMIDINAS

Introdução

A propósito do tema-base deste capítulo, e para uma melhor compreensão do mesmo, importa recordar certas noções essenciais relacionadas.

As purinas (adenina e guanina ou guanidina) e as pirimidinas (tiamina, citosina e uracilo) são bases azotadas, componentes essenciais dos nucleótidos.

Os nucleótidos são compostos constituídos por um açúcar (ribose ou desoxirribose) ligado ao ácido fosfórico sob a forma de éster e combinado com uma base púrica ou com uma base pirimídica. Os referidos nucleótidos são constituintes essenciais de todas as células vivas, sob a forma de ácidos nucleicos ou de fosfatos destes ácidos. Certos nucleótidos actuam como transportadores de energia em diversas reacções enzimáticas.

A propósito de ácidos nucleicos, citam-se o ácido ribonucleico (ARN ou RNA) e o ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA).

O RNA é um ácido nucleico cujo açúcar é a ribose, o qual é um constituinte do citoplasma e núcleo das células.

O DNA tem como açúcar uma ribose que perdeu oxigénio (daí a designação do prefixo desoxi). Os DNA são igualmente constituintes dos núcleos celulares, os quais incorporam cromossomas contendo genes. Em suma, os genes, partículas elementares dos cromossomas, são constituídos essencialmente por DNA.

Metabolismo das purinas e pirimidinas

Abordar sucintamente o metabolismo das purinas e pirimidinas implica uma descrição breve da síntese dos ácidos nucleicos; esta faz-se a partir da ribose-5-fosfato que, sob a acção da fosfo-ribosil-pirofosfato sintetase (PRPS) origina a P-5-ribose-pirofosfato (PRPP) de que derivam dois tipos de compostos: precisamente, as purinas (ou bases purínicas) e as pirimidinas (ou bases pirimídicas).

A biossíntese das purinas decorre duma via complexa implicando diversas enzimas e mecanismos de retrocontrolo, resultando em inosina monofosfato (IMP), que é convertida em adenosina monofosfato e guanosina monofosfato (AMP, GMP). As purinas são catabolisadas via transformação hipoxantina → xantina → ácido úrico.

A biossíntese das pirimidinas faz-se por junção à PRPP de ácido orótico proveniente do aspartato e do carbamil fosfato. Forma-se assim o ácido orótico e o ácido uridílico, precursores das bases pirimídicas dos ácidos nucleicos, o que implica – tal como na via das purinas – a intervenção de diversas enzimas e mecanismos de retrocontrolo que podem estar ausentes, deficitários ou disfuncionantes (por ex. hiperactividade).

As doenças hereditárias do metabolismo das purinas e pirimidinas, traduzem as perturbações em diversos passos das vias metabólicas, com implicações clínicas.

Manifestações clínicas gerais

No seu conjunto, a clínica poderá integrar:

  • manifestações renais: infecções recorrentes do tracto urinário, nefrolitíase, insuficiência renal;
  • manifestações neuropsíquicas: atraso psicomotor, epilepsia, espasticidade, distonia, ataxia, coreoatetose, autismo, automutilação, surdez, cegueira congénita, dismorfias, etc.;
  • artrite e gota;
  • baixa estatura;
  • cãimbras e fraqueza musculares, hipotonia;
  • imunodeficiência e infecções recorrentes, etc..

Diagnóstico

Para o diagnóstico torna-se fundamental valorizar um conjunto de parâmetros, a saber:

  • determinação do nível de ácido úrico no soro e na urina de 24 horas;
  • determinação da relação ácido úrico/ creatinina na urina da manhã;
  • detecção de cristais urinários;
  • estudo das purinas e pirimidinas na urina de 24 horas, evitando nas 24 horas precedentes e durante a colheita, a ingestão de xantinas (veiculadas pelo chá, café, cacau, licores, etc.);
  • determinação do ácido orótico na urina.

Nosologia

As doenças resultantes de alteração do metabolismo das purinas e pirimidinas integram um conjunto muito heterogéneo, com formas de apresentação diversa. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças das purinas e pirimidinas.

PURINAS

    • Hiperactividade da fosfo-ribosil-pirofosfato sintetase
    • Deficiência da adenilsuccinase
    • AICA-ribosidúria
    • Deficiência de AMP deaminase muscular (miodenilato desminase)
    • Deficiência de adenosina deaminase (ADA)
    • Hiperactividade da ADA
    • Deficiência de nucleosídeo fosforilase (NP)
    • Deficiência de xantina – oxidase (ou desidrogenase)
    • Síndoma de Lesch-Nyhan
    • Deficiência de adenina-fosfo-ribose-transferase
    • Deficiência de deoxiguanosina cinase

PIRIMIDINAS

    • Acidúria orótica hereditária
    • Deficiência de di-hidropirimidina de-hidrogenase
    • Deficiência de di-hidropirimidinase
    • Deficiência de pirimidina 5’-nucleotidase
    • Hiperactividade da 5’-nucleotidase citosólica
    • Deficiência de timidina fosforilase (síndroma MNGIE)
    • Deficiência de timidina cinase

Principais doenças do metabolismo das purinas

Seleccionam-se, como exemplos mais representativos, as seguintes:

Deficiência de adenosina deamidase (ADA)

Sucintamente, esta afecção integra um quadro de imunodeficiência combinada grave, múltiplas infecções recorrentes, diarreia, hipocrescimento, sinais neurológicos progressivos, hipogamaglobulinémia, linfopénia e elevação da adenosina e deoxiadenosina. O tratamento consiste em transplante da medula óssea, salientando-se que é possível a terapêutica de reposição enzimática.

A terapêutica génica é controversa.

Nefropatia hiperuricémica familiar juvenil

Trata-se dum quadro possivelmente relacionado com defeito de transporte renal. Manifestando-se a partir da puberdade, é caracterizado por gota, insuficiência renal precoce e antecedentes familiares de idêntica patologia.

Comprova-se, por exame laboratorial, hiperuricémia, excreção renal diminuída de ácido úrico, e relação elevada ácido úrico/ creatinina.

Síndroma de Lesch-Nyhan

Esta síndroma, de transmissão ligada ao cromossoma X, decorre de regeneração deficiente de IMP a partir de hipoxantina, e de GMP, a partir de guanina, com implicação da enzima HPRT (hipoxantina/ guanina fosfo-ribosil transferase). As manifestações clínicas, que podem manifestar-se a partir dos 3-4 meses, integram atraso motor, hipotonia muscular, distonia, coreoatetose, espasticidade com hiperreflexia, epilepsia, automutilação compulsiva, gota, cálculos de ácido úrico e insuficiência renal.

Nos primeiros meses é notada a presença de cristais cor de laranja nas fraldas.

Estão descritas formas de mais discreta expressão clínica, quer articular, quer neurológica. (Figura 1)

Existe hiperuricémia, aumento da relação ácido úrico/ creatinina na urina da manhã e aumento da hipoxantina. O tratamento, sem efeito na sintomatologia neurológica, inclui regime alimentar com restrição de purinas e administração de alopurinol.

FIGURA 1 – Síndroma de Lesch-Nyhan: criança com distonia; são visíveis as marcas de automutilação na mão esquerda. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Outras doenças do metabolismo das purinas

Salientam-se, entre outras:

  • a hiperactividade da fosfo-ribosil pirofosfato sintetase (PRPS), ligada ao X, cursando com hiperuricémia, hiper ou hipoxantinémia e quadro de gota, associando-se nefrolitíase e surdez neurossensorial; e
  • a xantinúria por défice da xantina-oxidase ou xantina-desidrogenase cursando com nefrolitíase e artromiopatia, hematúria, hipouricémia, hiperxantinémia e hiper-hipoxantinémia.

Ambas requerem dieta restrita em purina e alopurinol.

Principais doenças do metabolismo das pirimidinas

Citam-se, entre outras, duas entidades:

Acidúria orótica hereditária

Esta afecção, resultante do défice de uridina-monofosfato sintetase, pode manifestar-se já no RN e lactente com um quadro de hipocrescimento, atraso no neurodesenvolvimento e anemia megaloblástica refractária ao tratamento. O achado laboratorial mais notório é a elevação maciça de ácido orótico na urina. O tratamento consiste na administração de uridina (25 a 150 mg/kg/dia) em função do resultado do doseamento urinário de ácido orótico.

Deficiência de timidina fosforilase (TP)

A principal característica clínica desta doença, em geral com início de manifestações entre os 5 e 15 anos, é a chamada encefalopatia mitocondrial (mio-neuro-gastrintestinal – sigla MNGIE) acompanhada de diarreia intermitente alternando com períodos de pseudobstrução, neuromiopatia com RRF, oftalmoplegia externa crónica progressiva (CPEO), neuropatia periférica e caquexia. Como achado laboratorial ressalta-se a elevação do teor de timidina na urina.

2. DOENÇAS DO METABOLISMO DO HEME: AS PORFÍRIAS

Introdução

A síntese da hemoglobina, em cuja fórmula química entra o heme (constituído por núcleo tetrapirrólico e ferro), é um fenómeno muito complexo. Classicamente, podem ser esquematizados os seguintes passos na respectiva via metabólica: combinação dos ácidos succínico e glicínico resultando o ácido α-amino- β-ceto-adípico que imediatamente se transforma por descarboxilação em ácido δ-amino-levulínico; da polimerização deste último forma-se porfobilinogénio, passo fundamental da sucessiva formação de porfirinas (uroporfirina III, coproporfirina III e protoporfirina III). Finalmente introduz-se o ferro no interior do núcleo da protoporfirina, produzindo-se o heme.

No âmbito da abordagem sucinta do metabolismo do heme, é importante recordar, para melhor compreensão dos problemas clínicos a ele ligados, que a biossíntese daquele se processa a partir da glicina e succinil-CoA, principalmente na medula óssea (~80%) e no fígado, com o concurso de oito enzimas. O heme é metabolizado em bilirrubina, com ulterior excreção biliar.

As porfírias são doenças monogénicas, frequentemente de transmissão autossómica dominante (AD) caracterizadas pela acumulação e excreção excessivas de porfirinas e de seus precursores. Cada uma das porfírias é consequência do defeito de uma enzima da via de síntese do heme. Os défices de actividade enzimática rersultam de mutações dos genes correspondentes a cada enzima.

Descrevem-se dois grupos de porfírias tendo em conta os tecidos em que o defeito metabólico primariamente se expressa:

  1. Hepáticas
  2. Eritropoiéticas

A definição geral de porfíria exige que, além da eliminação de porfirina ou dos seus precursores, exista um quadro clínico imputável à acção tóxica das porfirinas (síndroma cutânea, abdominal, neurológica ou psíquica).

A única excepção é a intoxicação por chumbo, actualmente inexistente, citada apenas por razões histórias e pedagógicas.

Manifestações clínicas gerais

Sob o ponto de vista clínico consideram-se duas formas:

  1. aguda neurovisceral; e
  2. cutânea.

As manifestações clínicas das anomalias do metabolismo do heme integram fundamentalmente sintomas abdominais, neurológicos e dermatológicos, os quais estão relacionados com níveis elevados de porfirinas e seus precursores no sangue, sua acumulação nos tecidos, e ulterior excreção pela urina e fezes.

Nas porfírias eritropoiéticas a fotodermatose das partes expostas à luz é característica.

Nas formas agudas constuem características: dor abdominal crónica, náuseas, vómitos, obstipação e sintomas psiquiátricos.

Nas formas não agudas predominam as manifestações dermatológicas.

Diagnóstico

Para o diagnóstico torna-se fundamental valorizar um conjunto de parâmetros, a saber:

  • detecção de porfobilinogénio na urina (provas de Hoesch, de Watson-Schwartz), havendo suspeita de porfíria hepática aguda;
  • detecção de coproporfirina e protoporfirina nas fezes;
  • detecção de coproporfirina e porfirinas (uro, hepta-, hexa-, penta-) na urina;
  • detecção de precursores da porfirina (ácido delta-aminolevulínico e porfobilinogénio) na urina nos casos de suspeita de porfíria hepática e doença de Gunther;
  • detecção da actividade enzimática eritrocitária em situações específicas (sobretudo na protoporfíria): por ex. deidratase do ácido delta-aminolevulínico, sintetase do uroporfirinobilinogénio III, etc..

Nosologia

O Quadro 2, adaptado de Saudubray, sintetiza a classificação das porfírias relacionando as diversas entidades clínicas com os respectivos defeitos enzimáticos.

QUADRO 2 – Porfírias e defeitos enzimáticos.

Doença/ Porfíria Enzima Classificação
Hepática Eritropoiética Aguda Cutânea
De-hidratase ácida 5-aminolevulínica De-hidratase ácida 5-aminolevulínica  ?X  X
Aguda intermitente Desaminase porfobilinogénio  X  X
Congénita eritropoiética Co-sintetase uroporfirinogénio III X X
Tardia cutânea Descarboxilase uroporfirinogénio X X
Hepatoeritropoiética Descarboxilase uroporfirinogénio X X X
Coproporfíria hereditária Oxidase coproporfirinogénio X X X
Variável Oxidase protoporfirinogénio X X X
Protoporfíria ertitropoiética Ferroquelatase X X

Alguns exemplos de porfírias

Foram seleccionadas as seguintes entidades:

Porfíria eritropoiética congénita (doença de Gunther)

Esta afecção, manifestando-se desde idades muito precoces (período neonatal), com transmissão autossómica recessiva (AR), é muito rara. Só é patente nos homozigotas.

A etiopatogénese relaciona-se com defeito enzimático correspondente à co-sintetase uroporfirinogénio III (10q25.2-q26.3). Na ausência de metabolizção, os porfirinogénios são oxidados, dando origem a hiperprodução de uro- e coproporfirina I, compostos fotoactivos responsáveis pela fotossensibilidade.

As manifestações clínicas caracterizam-se por fotossensibilidade grave, levando a fotodermatose, por vezes mutilante (nariz, lábios, orelhas e mãos) associada a crises hemolíticas explicadas por acção dos raios solares sobre os eritrócitos circulando nos capilares subcutâneos.

Os dentes e escleróticas podem ter coloração avermelhada e fluorescerem com a luz de Wood. Outras manifestações oculares incluem blefarite, ectropion cicatricial, conjuntivite e opacificação da córnea, podendo levar a cegueira.

A urina pode ter coloração rosada devido à eliminação de porfirinas.

O tratamento inclui evitar a radiação solar, usando roupa e óculos com protecção UV, e chapéu de abas largas. A administração de beta-caroteno tem utilidade limitada. A hemólise poderá estabelecer a indicação de transfusão sanguínea. Alguns autores aconselham a administração de alfa-tocoferol (vitamina E) e de vitamina C como captadores e inibidores de radicais livres, tentando prevenir a fototoxicidade cutânea induzida pelas porfirinas acumuladas na pele e eritrócitos.

Porfíria hepática intermitente aguda

É a porfíria mais comum. Mais frequente no sexo feminino, manifesta-se na adolescência e idade adulta mediante a acção de desencadeantes como fármacos indutores enzimáticos, fome, estresse, álcool, barbitúricos, hormonas contraceptivas, menstruação, etc..

Trata-se de doença de transmissão autossómica dominante (AD); a mesma  resulta de défice da enzima porfobilinogénio desaminase (11q23) avaliada nos eritrócitos.

Os precursores das porfirinas acumulam-se e são responsáveis pelas seguintes manifestações clínicas: vómitos, cólicas abdominais, quadro simile abdómen agudo, polineuropatia periférica, taquicardia, hipotensão, tremores, e sudorese aumentada; e ainda, dores generalizadas (cabeça, pescoço, tórax), fraqueza muscular, disúria, convulsões por hiponatrémia e manifestações do foro psiquiátrico.

As crises graves e prolongadas podem ser fatais por paralisia bulbar. Existe risco aumentado de hepatocarcinoma, depressão e suicídio.

De acordo com os exames laboratoriais importa salientar:

  • os precursores porfobilinogénio [PBG] e ácido 5-aminolevulínico evidenciam subida da sua concentração na urina;
  • nas fezes a concentração de porfirinas é normal ou está ligeiramente aumentada; este dado é importante para o diagnóstico diferencial com outras porfírias.

O tratamento tem como objectivo essencial inibir a síntese de heme e a produção de precursores de porfirinas, adoptando-se a seguinte actuação:

  • nas crises agudas, para além da evicção de desencadeantes, está indicada analgesia (clorpromazina, opiáceos), anti-emese (promazina) e glicose a 10% IV (4-6 g/kg/dia) e hematina (3-4 mg/kg/dia) em administração IV lenta de curta duração, durante 4 dias;
  • se não for possível esta actuação, é necessário providenciar elevado suprimento de hidratos de carbono (300-500 g/dia). Nas crises agudas a hospitalização é frequente.

O tratamento das convulsões é problemático: podem ser administrados brometos, gabapentina e vigabatrim.

Protoporfíria eritropoiética-hepática

Esta doença, de transmissão AD, tem como base etiopatogénica défice de descarboxilase uroporfirinogénio. Como manifestações clínicas, essencialmente registam-se fotossensibilidade, fotodermatose (urticária solar de repetição) e, nalguns pacientes, doença hepática que poderá culminar em insuficiência hepática.

Para além dos marcadores atrás referidos a propósito do diagnóstico laboratorial das porfírias em geral, cabe referir o teor elevado de protoporfirina livre nos eritrócitos, plasma e fezes.

O tratamento inclui fotoprotecção, administração de beta-carotenos, cisteína, colestiramina e ácidos biliares nas complicações hepáticas. O transplante hepático é controverso e o transplante de medula óssea poderá trazer benefícios.

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DEFEITOS DO METABOLISMO DOS HIDRATOS DE CARBONO

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

A glicose é para as células dos mamíferos a fonte primária de energia, podendo ser armazenada na forma macromolecular como glicogénio para uso ulterior. A galactose e a frutose também constituem fontes de energia, embora em menor grau que a glucose.

Assim, os hidratos de carbono com implicações clínicas mais relevantes nas doenças hereditárias do metabolismo (DHM) compreendem três monossacáridos (glucose, galactose e frutose), três dissacáridos (lactose<>galactose+glucose, isomaltose<>glucose+glucose, e sacarose<>frutose+glucose), e um polissacárido (o já referido glicogénio).

A galactose entra na composição de certos glicolípidos, glicoproteínas e glicosaminoglicanos.

O suprimento contínuo de glucose a partir da alimentação, gluconeogénese e glicogenólise mantém a normalidade do nível de glucose no sangue.

Recorda-se que:

    • o metabolismo da glucose gera ATP pela via da glicólise (conversão da glucose ou glicogénio em piruvato), fosforilação oxidativa mitocondrial (conversão do piruvato em dióxido de carbono e água), ou ambas; e
    • as fontes dietéticas da glucose provêm dos polissacáridos ingeridos, amidos e dissacáridos.

As alterações do metabolismo dos hidratos de carbono mais importantes são: os defeitos hereditários do metabolismo da galactose e frutose, defeitos da neoglucogénese, doenças de armazenamento de glicogénio (glicogenoses), defeitos do metabolismo do glicerol, do metabolismo das pentoses, do transporte da glicose, e o hiperinsulinismo congénito.

Neste capítulo são abordadas, pela sua maior frequência, as glicogenoses, a galactosémia e a intolerância hereditária à frutose.

1. GLICOGENOSES

Introdução

As glicogenoses são afecções hereditárias relacionadas com defeitos genéticos originando défice congénito de determinadas enzimas intervindo no metabolismo do glicogénio e caracterizadas pela acumulação do mesmo, de estrutura normal ou anormal (em quantidade e qualidade ou ambas) nas células de diferentes tecidos.

O resultado final das alterações do metabolismo do glicogénio (essencialmente dizendo respeito a glicogénese, glicogenólise e respectiva regulação) é o surgimento de um largo espectro de doenças de grande heterogeneidade genética e clínica.

Tais afecções constituem uma das formas das chamadas doenças de armazenamento (tesaurismoses) – neste caso, do glicogénio, distinguindo-se as formas hepáticas, musculares e generalizadas.

Metabolismo do glicogénio e nosologia

Para a compreensão da patogénese e fisiopatologia das glicogenoses, importa sintetizar alguns tópicos sobre o metabolismo do glicogénio.

A formação do glicogénio ocorre a partir da glicose (glicogénese) em praticamente todos os órgãos e tecidos, mas principalmente no fígado e músculo.

A glicogenólise (no citoplasma e nos lisossomas), processo inverso da glicogénese, consiste na degradação do glicogénio.

A glicose pode sofrer dois diferentes destinos: – ser degradada (glicólise); ou -sair da célula e ser utilizada.

A regulação do metabolismo do glicogénio faz-se essencialmente através de duas enzimas fundamentais: a glicogénio-sintetase e a fosforilase. O AMP cíclico desempenha um papel fundamental na regulação destas enzimas pois, mediando a fosforilação destas enzimas, inibe a sintetase e estimula a fosforilase com consequente glicogenólise.

A regulação do metabolismo do glicogénio do músculo é do tipo hormonal, através da adrenalina e da insulina. Tal regulação ao nível do fígado faz-se através da glucagina (ou glucagom), do cálcio, da insulina e da própria glucose.

Os aspectos fundamentais da síntese e degradação do glicogénio estão resumidos na Figura 1.

Figura 1. Metabolismo do glicogénio.

São conhecidas actualmente mais de 12 glicogenoses que podem ser: predominantemente hepáticas, preferencialmente musculares, ou generalizadas.

As glicogenoses hepáticas compreendem os seguintes tipos: I (Ia e I não a), III, IV, VI, IX, XI e O.

As glicogenoses musculares mais frequentes são tipo V e VII, não esquecendo o envolvimento muscular, por vezes muito relevante, nas glicogenoses III e IX, e na forma juvenil/ adulto da glicogenose tipo II; outras: defeito da fosfogliceratoquinase, fosfogliceratomutase, defeito da desidrogenase láctica, defeito da frutose-1, 6-difosfato aldolase A, defeito da isoforma muscular da piruvatoquinase, e defeito da fosfogluco-isomerase.

A glicogenose generalizada é essencialmente a glicogenose tipo II (doença de Pompe), embora se reconheça carácter sistémico à glicogenose tipo IV.

Glicogenose tipo I

Como foi referido, é uma das mais frequentes glicogenoses (cerca de 1/4 de tais afecções); distinguem-se dois subtipos, resultantes respectivamente:

  • do defeito da subunidade catalítica da glucose-6-fosfatase (tipo Ia ou doença de von Gierke); e
  • do defeito da translocase da glucose-6-fosfato (tipo I não-a ou tipo Ib).

Quanto às manifestações clínicas em relação com a etiopatogénese, há a salientar: hipoglicémia recorrente (de jejum curto), convulsões por hipoglicémia, hepatomegália, acidose láctica e hiperventilação. Outros sinais frequentes são: baixa estatura, fácies de boneca, obesidade do tronco, abdómen saliente por grande hepatomegália, postura lordótica, musculatura hipotrófica, hipotonia, equimoses e epistaxes. O coração tem tamanho normal e os rins estão simetricamente aumentados. (Figura 2)

O tipo Ib, menos frequente, apresenta ainda: esplenomegália, infecções bacterianas ou fúngicas recorrentes devidas a neutropénia, anomalias fagocitárias e outras anomalias da imunidade. Neste tipo é também frequente a doença inflamatória intestinal (semelhante à doença de Crohn), diarreia prolongada, anemia e artrite ocasional. A morte pode ocorrer por sépsis.

FIGURA 2. Fenótipo de crianças com glicogenose do tipo Ia (von Gierke). Fácies de boneca, grande distensão abdominal por hepatomegália importante e obesidade. (NIHDE)

No que respeita ao diagnóstico, este deve basear-se na clínica, e nos resultados de análises bioquímicas e genéticas (mutacionais). Os achados de hepatomegália, hipoglicémia de jejum curto, acidose láctica, hiperlipidémia e hiperuricémia são altamente sugestivos. Poderá ser necessário realizar uma prova de tolerância à glucose oral (2 g/kg, até máximo de 50 g, com colheitas de sangue aos 30, 60, 90, 120 e 180 minutos) para destrinça diagnóstica: na glicogenose de tipo I (Ia ou Ib) verifica-se diminuição da lactacidémia, enquanto nas outras glicogenoses se verifica aumento.

A prova do glucagom (500 µg ou 30-100 µg/kg IM com determinação da glicémia aos 15, 30, 45 e 60 minutos) mostrará falta de resposta hiperglicémica (ausência de incremento de 25 mg/dL em 45 minutos e marcada elevação da lactacidémia), salientando-se que poderá surgir neste contexto hipoglicémia ou acidose grave. Só raramente será necessário proceder a biópsia hepática para o estudo enzimático (fígado fresco, idealmente não congelado).

Sob o ponto de vista de novas tecnologias aplicadas à semiologia, com implicações práticas importantes no tratamento, cita-se um novo sensor que, para além da monitorização contínua subcutânea da glicémia, permite igualmente proceder em 1 minuto à determinação do nível plasmático de lactato (Lactate-Pro).

Nas glicogenoses tipo I, os objectivos do tratamento são evitar a hipoglicémia e alterações metabólicas secundárias, promover o crescimento normal e prevenir a nefropatia. Assim, torna-se fundamental propiciar um suprimento exógeno de glucose continuamente, dia e noite, a um ritmo que mantenha a glicemia acima do limiar dos mecanismos de contrarregulação.

Salienta-se, a propósito, que as necessidades diárias de glucose vão diminuindo com a idade: 0-12 meses à 7-9 mg/kg/minuto; >1-3 anos (A) → 6-8 mg/kg/minuto; > 3-6 A → 6-7 mg/kg/minuto; > 6-12 A → 5-6 mg/kg/minuto; adolescente → 5 mg/kg/minuto; adulto → 3-4 mg/kg/minuto.

O valor calórico total (VCT) deverá ser repartido do seguinte modo: hidratos de carbono à 60-70%; gorduras à 20-30%, substituindo as gorduras saturadas por insaturadas; proteínas à 10-15%.

As necessidades são cobertas por refeições frequentes, ricas em hidratos de carbono durante o dia e, durante a noite, com a chamada alimentação contínua nocturna (ACN) de acordo com o seguinte esquema: duração ~12 horas até aos 6 anos, cobrindo ~50-35% do VCT; duração ~10 horas após os 6 anos até ao fim da adolescência (~30% do VCT); e duração ~8 horas no adulto (~25% VCT).

Para evitar a hipoglicémia, a ACN deve iniciar-se, no máximo, 1 hora após a última refeição do dia; e, na manhã seguinte, deve iniciar-se a alimentação do doente cerca de 15-30 minutos depois de terminada a ACN. Após 1 ano de idade emprega-se o amido cru: de 4-4 horas até aos 2 anos de idade; e, depois, de 6-6 horas.

Nos casos em que não é possível a ACN, está indicada a administração de alimentos ricos em hidratos de carbono a intervalos regulares, de 2-2, 3-3, ou 4-4 horas, também durante a noite.

Quanto aos hidratos de carbono de absorção rápida, salienta-se a necessidade de restringir a lactose e evitar a sacarose.

Em função do contexto clínico de cada caso, poderá ser necessário recorrer a terapêuticas complementares dirigidas a situações específicas, como: hiperlipidémia, proteinúria mantida, nefrocalcinose, nefrolitíase, hiperuricémia, osteopénia, osteoporose, restrição do crescimento (a hormona de crescimento/GH não traz benefícios) etc..

Por vezes é necessário recorrer a transplantes: hepático, de hepatócitos, e renal.

Como novas terapias, citam-se a dieta rica em ácidos gordos de cadeia média, e novo amido modificado proporcionando melhor tolerância em jejum.

Nos doentes com mau controlo metabólico, não explicado por deficiente adesão às orientações médicas, é fundamental avaliar a função tiroideia pelo risco de hipotiroidismo. Efectivamente, a intensa terapia com hidratos de carbono, alterando o padrão alimentar, poderá originar carências nutricionais específicas, designadamente em vitamina B12, cálcio e selénio.

Na glicogenose do tipo Ib o tratamento é semelhante ao do tipo Ia; contudo, face às respectivas manifestações clínicas (ver atrás) existem certas particularidades:

  • a gastrostomia está contraindicada;
  • precaução com o suprimento de amido cru, susceptível de exacerbar doença inflamatória intestinal;
  • a utilização de antbióticos profilácticos deverá ser ponderada;
  • a utilização de G-CSF (factor estimulante do crescimento dos granulócitos), não glicosilado que, aumentando significativamente o número de neutrófilos (se neutropénia < 1.500/mmc), contribui para a diminuição da frequência e gravidade das infecções, a melhoria da cicatrização de abcessos e úlceras, e a melhoria da doença inflamatória intestinal;
  • a utilização de IECA diminui a hiperfiltração, a proteinúria e a hipertensão arterial;
  • eventualidade de esplenectomia nos casos de esplenomegália irreversível, resultante do tratamento com G-CSF.

Novas propostas de tratamento incluem: adalimumab (anticorpo monoclonal cujo alvo é o factor alfa de necrose tumoral); suplementação com vitamina E (antioxidante); terapia nutricional com dieta polimérica suplementar com TGF-Beta2 (Modulen-IBD):

Como complicações da glicogenose do tipo I há a referir: adenoma hepático, que pode evoluir para carcinoma hepatocelular; doença renal que se inicia precocemente e pode levar à necessidade de transplante renal; gota; cálculos renais; pancreatite; anemia; osteopénia; ovários poliquísticos; hipertensão pulmonar; hipocrescimento; atraso pubertário; tendência hemorrágiaca; e envolvimento neurológico. O atraso mental é raro.

Glicogenose tipo II (doença de Pompe)

Esta forma de glicogenose, mais rara que as de tipo I (incidência estimada em ~1/50.000 nados-vivos, correspondendo nas estatísticas de vários centros a 1/5 de todas as glicogenoses), resulta do défice da enzima maltase ácida lisossomal (alfa-1,4 glucosidase ácida) cujo gene estrutural está localizado no cromossoma 17q25.2. Importa salientar que foram identificadas diversas mutações.

Estão descritas duas formas principais: neonatal/ infantil (mais frequente) e juvenil/ adulto, conforme a data de início de manifestações; contudo existem formas com início em diversas idades e de evolução lenta caracterizadas essencialmente por miopatia.

Na forma neonatal/ infantil – início nas primeiras semanas ou nos primeiros meses de vida ou já no RN – são notórios hipotonia generalizada (floppy baby) com massas musculares de volume normal, perturbações da deglutição, macroglóssia (por vezes o primeiro sinal que chama a atenção), cardiomegália exuberante e progressiva/ cardiomiopatia hipertrófica, e insuficiência cardiorrespiratória que pode conduzir à morte nos primeiros meses (< 1-2 anos). Não existe hepatomegália ou a mesma é discreta. O ECG, muito típico na forma infantil, revela encurtamento de P-R e complexos QRS de alta voltagem. (Figuras 3 e 4)

Existe uma variante muscular com início nos primeiros 6 meses de vida, com sintomatologia muscular predominante, geralmente sem compromisso cardíaco.

A forma juvenil caracteriza-se fundamentalmente por fraqueza muscular proximal, sobretudo nos membros inferiores e tronco, incapacidade progressiva e impossibilidade da marcha autónoma ao longo dos anos, com desfecho fatal em idade variável, em geral por volta dos 30 anos. O EMG revela sinais de irritabilidade eléctrica.

No adulto simula outras miopatias. A miopatia proximal é lentamente progressiva sem atingimento cardíaco, ou mínimo.

Os achados laboratoriais são semelhantes nas duas formas: demonstração de vacúolos nas células (musculares, leucócitos, fibroblastos) que se coram para o glicogénio, e elevação da fosfatase ácida, CK e, por vezes de ALT e AST. A glicémia, a lactacidémia, a prova de tolerância à glucose oral e a do glucagom são normais.

Outros exames:

  • EMG com padrão miopático em todos os fenótipos;
  • Avaliação da função pulmonar, evidenciando marcada diminuição da capacidade vital e fadiga diafragmática precoce.

A confirmação do diagnóstico faz-se:

  • Pela demonstração do défice enzimático; e
  • Por análise mutacional, segundo a metodologia já referida para outras doenças hereditárias do metabolismo (biópsia muscular, fibroblastos, etc.).

FIGURA 3. Lactente com hipotonia generalizada (floppy baby) no contexto de glicogenose tipo II (doença de Pompe). (NIHDE)

FIGURA 4. Sinais radiológicas de cardiomegália em criança com doença de Pompe. (NIHDE)

É possível o diagnóstico pré-natal.

O tratamento tem uma base multidisciplinar (dietética, suporte ventilatório e fisioterapia) enquanto não se inicia a terapêutica enzimática de substituição (TES):

  • Dietaelevado suprimento proteico (20-30% do VCT) com ou sem misturas de AA ramificados e suprimento calórico adedquado;
  • Suporte ventilatório – por vezes há que recorrer a traqueostomia e ventilação mecânica;
  • Fisioterapiaé importante o treino dos músculos inspiratórios;
  • TES procede-se a terapia endovenosa semanal, geralmente com boa tolerância: diminui a dependência do ventilador, melhoria da CM, motora e da função respiratória.

2. GALACTOSÉMIA

Metabolismo da galactose e nosologia

A galactosémia é uma doença hereditária traduzindo-se por valor elevado de galactose no sangue e integrando três formas clínicas associadas, respectivamente, a deficiência de três diferentes enzimas que integram o metabolismo da galactose.

Tais enzimas são: a galactose-1-fosfato-uridil transferase (GALT), a galactoquinase (GALK) e a uridina difosfato galactose-4-epimerase (GALE ).

A designação de galactosémia, embora apropriada para qualquer das deficiências enzimáticas referidas, na generalidade é atribuída à forma clássica (GALT), mais prevalente, em que se verifica deficiência completa da enzima GALT.

A propósito do metabolismo da galactose, cabe recordar que a lactose, dissacárido constituído por glicose e galactose, é o principal hidrato de carbono do leite. Ao ser ingerida, a lactose é hidrolisada no intestino por acção da lactase, em glicose e galactose; a galactose é depois fosforilada em galactose-1-fosfato (Gal-1-P) pela galactoquinase (GALK).

Outra enzima, a galactose-1-P-uridil transferase (GALT) converte a Gal-1-P e a uridina difosfato glicose (UDP glucose) em uridina difosfato galactose-4-epimerase (GALE ou UDP-galactose) e em glucose-1-P, sendo esta metabolizada em glucose-6-P, a partir da qual se formam glicose, piruvato e lactato. [UDP <> Uridina Di Fosfato] [F<>Phosphate].

A galactose pode ser também convertida em galactitol (causa primária das cataratas) por acção da aldolase redutase; por sua vez, a UDP glicose pode ser convertida em UDP galactose pela UDP galactose epimerase.

A UDP galactose é utilizada na síntese de glicoconjugados e intervém nas vias de síntese de novo, isto é, de produção endógena de galactose, facto que parece explicar muitas complicações tardias da galactosémia; a produção endógena, que é contínua, da ordem de 0,53-1,05 mg/kg/hora, pode conduzir a verdadeira intoxicação do SNC.

A fonte principal de galactose é o leite e produtos lácteos, existindo livre nas frutas e vegetais.

Aspectos epidemiológicos e genética

A galactosémia, doença autossómica recessiva, surge com incidência na Europa entre 1/18.000 e 1/60.000 na sua forma clássica, mais frequente na Irlanda. A mesma resulta da deficiência completa de GALT, com consequente acumulação de galactose-1-fosfato (Gal-1-P), exercendo acção lesiva nas células parenquimatosas do rim, fígado e cérebro.

De realçar que outras variantes derivam de graus diversos de deficiência parcial de GALT, como a variante Duarte que, em homozigotia, tem uma actividade enzimática de 50%.

A deficiência GALK, rara, com consequente acumulação nos tecidos de galactitol, tem sido descrita com maior incidência na Roménia. A deficiência GALE é a mais benigna, descrevendo-se o incremento de UDP-galactose nos tecidos e apenas deficiência enzimática ao nível de leucócitos e eritrócitos, sem desregulação metabólica noutros tecidos.

O gene para a transferase GALT localiza-se no cromossoma 9p13. Relativamente à forma GALK foram descritos dois genes: GK1 no cromossoma 17q24 e GK2 no cromossoma 15. O gene para a epimerase (GALE) localiza-se no cromossoma 1p-35-36.

Manifestações clínicas

A forma clássica (GALT), mais grave, tem início de forma aguda por volta da 1ª semana de vida após ingestão de leite, incluindo leite materno: vómitos, diarreia, perda ponderal, letargia, hipotonia, icterícia por hiperbilirrubinémia não conjugada ou mista, hepatomegália, disfunção hepática, hemorragias; tais manifestações podem ser fatais. As cataratas podem estar presentes desde os primeiros dias de vida ou observar-se mais tarde.

Na sua forma crónica verifica-se, em geral, anorexia persistente, vómitos frequentes, restrição do crescimento e alterações do desenvolvimento. (Figura 5)

Uma constelação de achados clínicos no RN e lactente, como doença hepática, diátese hemorrágica, icterícia, vómitos recorrentes, não progressão do peso, etc. devem levantar a suspeita diagnóstica de galactosémia, sendo que o diagnóstico de sépsis é muitas vezes o primeiro a ser sugerido. Por outro lado, há que ter em atenção que a septicémia por E. coli surge com frequência nos doentes com galactosémia.

Quanto às manifestações clínicas da forma GALK, dentro da raridade, citam-se: catarata e sinais de pseudotumor cerebri causados pelo galactitol.

FIGURA 5. Lactente com galactosémia: icterícia, desnutrição e distensão abdominal notórias. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Exames laboratoriais

Como achados laboratoriais há a realçar acidose metabólica, glicosúria, galactosúria, albuminúria, e aminoacidúria relacionáveis com disfunção tubular renal.

A positividade de substâncias redutoras na urina, embora não seja um achado muito sensível, pode fortalecer a suspeita.

Obtém-se maior sensibilidade e maior especificidade com o chamado teste de Beutler (fluorescent spot test), realizado com amostra de sangue total: não se observa fluorescência em caso de deficiência de GALT; esta análise só deverá ser executada 120 dias após eventual transfusão de sangue.

O resultado positivo apontará para suspeita diagnóstica de galactosémia, a confirmar mediante:

  • Análise mutacional, genética, pesquisando mutações: no nosso país, a mais prevalente é a Q188R;
  • Determinação da actividade enzimática nos eritrócitos “método padrão de ouro” (só após 120 dias de transfusão).

Na forma GALK o diagnóstico final é feito demonstrando actividade normal de GALT e ausência de actividade de GALK nos eritrócitos.

Diagnóstico precoce

O diagnóstico precoce (antes das manifestações clínicas) pode ser feito após o nascimento. O rastreio alargado para a galactosémia clássica é feito na Europa apenas em 10 países (dados de 2014). A este propósito, importa referir que foi introduzida nova estratégia para diminuir os resultados falsos positivos: nos casos em que a actividade enzimática é < 15% faz-se o teste da galactose-desidrogenase, avaliado por fluorescência com radiação ultravioleta.

Tratamento

O tratamento baseia-se na exclusão da galactose e lactose da alimentação. Assim, em caso de suspeita de doença, deve excluir-se de imediato a galactose da alimentação, designadamente interrompendo:

  • O aleitamento materno e/ou fórmulas convencionais (derivadas do leite de vaca); e
  • Os produtos lácteos e derivados.

Na fase aguda é importante a administração de vitamina K e plasma fresco; a fototerapia raramente é necessária.

A dieta específica levará em geral a uma melhoria rápida, especialmente da função hepática e da doença tubular renal e, mais tardiamente, das cataratas.

Ultrapassada a fase aguda, o único tratamento específico é a dieta. Contudo, não é possível prevenir as complicações neurológicas tardias.

Deve proceder-se à administração de suplementos de cálcio, escolhendo cautelosamente os preparados sem lactose.

A falência ovárica evidencia-se por hipogonadismo hipergonadotrófico, o qual atinge cerca de 90% das mulheres doentes; são comuns a puberdade atrasada, a amenorreia e a oligomenorreia. As mulheres galactosémicas grávidas devem continuar a dieta sem lactose durante a gravidez.

O marcador mais importante para monitorizar o tratamento é a medição da Gal-1-P nos eritrócitos, admitindo-se como valor no limite superior aceitável: 150 µmol/L.

Os doentes com galactosémia necessitam de seguimento especializado, com especial atenção para o desenvolvimento na área da fala e para a vertente endocrinológica (em relação com início de tratamento hormonal – anticoncepção – nas raparigas, pelos 12-13 anos).

A forma GALE não necessita de tratamento. Nas formas assintomáticas, identificadas em programas de rastreio, aconselha-se, não dieta livre de galactose, mas apenas restrição, dado o papel importante da galactose no desenvolvimento do sistema nervoso.

Complicações

Mesmo nos doentes tratados poderão surgir complicações tardias frequentes como moderada restrição do crescimento, atraso da fala, dispraxia (movimentos “desajeitados e descoordenados” – incluindo ao nível dos músculos que intervêm na fala – sem que haja parésia ou ataxia), hipotonia, tremor, deficiência psíquica, deficiência da visão e percepção, disfunção ovárica conduzindo a infertilidade, ataxia, etc.. Por isso, o prognóstico final poderá ser problemático, tendo em conta designadamente que o QI diminuindo durante a infância, sofrerá progressivo agravamento com a idade.

3. INTOLERÂNCIA HEREDITÁRIA À FRUTOSE

Metabolismo da frutose e nosologia

A intolerância hereditária à frutose (IHF) é uma afecção causada por deficiência da actividade da aldolase B (frutose1,6 – difosfato) no fígado, rim e intestino. É explicável por mutações no gene da aldolase B no cromossoma 9q22.3.

A aldolase B catalisa a hidrólise da frutose 1,6 difosfato em triose fosfato e gliceraldeído fosfato; hidrolisa igualmente a frutose-1-fosfato (F-1-P).

Quando se verifica ingestão de frutose, o resultado do défice enzimático é o surgimento de sintomas por acumulação de frutose 1-fosfato com acção tóxica tecidual, devida a redução do ATP intracelular e inibição da glicogenólise.

A frutose é importante fonte dietética de hidratos de carbono, encontrando-se no mel, vegetais, leguminosas, frutos, sacarose, sorbitol (este último, poliálcool que resulta da redução enzimática da glicose). Dum modo geral, um adulto consome diariamente cerca de 100 gramas de frutose, consumo que, infelizmente, está em crescendo.

Distinguem diversas entidades clínicas, entre elas:

  • A frutosúria essencial ou benigna, assintomática, resultante de défice da frutoquinase (que catalisa a fosforilação da frutose em frutose-1-fosfato), com incidência ~1/120.000; e
  • A intolerância hereditária à frutose (IHF) por défice da aldolase B [ou aldolase da frutose 1,6-difosfato (F-1,6 DP)] ao nível do fígado, rim e intestino delgado, com uma incidência aproximada de 1/23.000.

Neste capítulo é dada ênfase à IHF.

Manifestações clínicas

Como regra geral, os indivíduos de qualquer idade com a anomalia não evidenciam sintomatologia até ingerirem alimentos contendo frutose ou sacarose (açúcar de mesa). Os RN e lactentes alimentados exclusivamente com leite materno estão assintomáticos.

Existem formas de apresentação aguda e crónica. O modo mais frequente corresponde ao início da diversificação alimentar com a introdução de fruta ou sacarose: palidez, vómitos, diarreia, hipoglicémia, sudorese, tremor, choque, icterícia, diátese hemorrágica, apatia, coma, edema, ascite, oligoanúria, hepatomegália e, por vezes, esplenomegália, insuficiência hepática aguda e disfunção tubular renal que podem ser fatais. (Figura 6) A sintomatologia inicial é semelhante à da galactosémia.

A sensibilidade à frutose é variável: enquanto certos doentes exibem sintomas com pequenas doses de frutose, outros poderão tolerarar até 250 mg/kg/dia; dum modo geral, a exuberância de manifestações é directamente proporcional ao teor de frutose ingerido.

FIGURA 6. Imagem de histologia hepática: lactente com IHF, sendo notórias alterações cirróticas no contexto de hepatomegália em regressão com dieta. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Poderá desenvolver-se aversão aos doces e hábitos alimentares peculiares, o que tem efeito protector pela menor ingestão do nutriente: típica ausência de cárie).

Poderá haver atraso do diagnóstico correcto, conhecendo-se casos em que tal é somente realizado na idade adulta. Deve reforçar-se a ideia de que os doentes não identificados estão em risco de vida.

Havendo suspeita da doença, deve proceder-se a um conjunto de exames laboratoriais:

  • Análise de urina (incluindo pesquisa de substâncias redutoras); os achados clássicos em caso de intolerância à frutose são: frutosúria, glicosúria, fosfatúria, proteinúria, aminoacidúria testemunhando disfunção tubular renal;
  • Análise de sangue: pH, fósforo, potássio, glicose diminuídos; e lactato, ALT, AST elevados; alteração dos factores de coagulação;

NB- a hipoglicémia verificada num tempo curto após exposição à frutose poderá escapar à detecção.

 

  • Análise de ADN permite confirmação diagnóstica em mais de 95% dos casos), pesquisando a mutação prevalente na Europa (A149P);
  • Análise – medição da actividade enzimática, de preferência nas células hepáticas ou, como alternativa, no intestino delgado (biópsia), havendo dúvidas; salienta-se que tal medição não deve ser realizada nas células do sangue nem nos fibroblastos, os quais somente expressam a aldolase A.

Notas importantes:

    • não se deve proceder à prova de sobrecarga com frutose oral (envolvendo risco); somente, e se for considerado indispensável, se pode realizar a prova de sobrecarga com frutose IV de forma lenta, em 4 horas, com 200 mg/kg de frutose; no caso de IHF verifica-se: diminuição do fosfato, hipoglicémia a seguir, e elevação subsequente de ácido úrico e magnésio.
    • o diagnóstico deve ser sempre transmitido à equipa de saúde, quer no contexto de consulta, quer no de serviço de urgência.

Tratamento

O tratamento consiste em prescrever para toda a vida um regime alimentar isento de frutose, assim como de seus precursores como sacarose e sorbitol. Uma vez ultrapassada a fase aguda, o cumprimento de tal dieta permite, em geral, um curso benigno.

As fórmulas infantis não devem conter frutose nem sacarose.

Alguns autores preconizam a suplementação de vitamina C e de folatos.

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DEFEITOS DO METABOLISMO DOS AMINOÁCIDOS E PROTEÍNAS

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Sistematização

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM) dos aminoácidos compreendem diferentes situações clínicas como: hiperfenilalaninémias (incluindo fenilcetonúria); tirosinémia dos tipos I, II e III; alcaptonúria, hawkinsinúria; acidémias/acidúrias orgânicas de cadeia ramificada (leucinoses, acidémias propiónica, metilmalónica, isovalérica e outras); doenças do ciclo da ureia; doenças dos aminoácidos sulfurados (incluindo homocistinúria e outras); hiperornitémias, síndroma HHH; acidúrias orgânicas “cerebrais” e doenças do catabolismo da lisina (incluindo a acidúria glutárica tipo I, a L2-hidroxiglutárica, a D2 – hidroxiglutárica, a acidúria N-acetilaspártica ou doença de Canavan); hiperglicinémia não cetótica; doenças do metabolismo da prolina e da serina; defeitos do transporte dos aminoácidos através das membranas celulares (cistinúria, intolerância proteica lisinúrica, doença de Hartnup) e muitas outras.

Etiopatogénese

As deficiências de determinadas enzimas envolvidas no metabolismo dos aminoácidos conduzem frequentemente a sinais e sintomas de intoxicação aguda ou crónica por acumulação de metabólitos e lesão tecidual. Os órgãos mais frequentemente afectados são o sistema nervoso central, o fígado e os rins.

A expressão clínica e da gravidade dependem fundamentalmente do grau de deficiência enzimática e, particularmente, da ingestão proteica e da produção endógena decorrente do catabolismo proteico.

Manifestações clínicas

A idade de apresentação é variável.

No período neonatal, geralmente após um intervalo livre que pode ser inferior a 24 horas, depois do início da alimentação, ocorrem os seguintes sinais, por vezes associados: recusa alimentar, sucção pobre, episódios de apneia, vómitos, não ganho de peso, hipotonia, letargia, convulsões, hipotermia, coma, alterações do tono muscular, mioclonias e, por vezes, odor anómalo.

Após o período neonatal, as formas de apresentação podem ser: crises agudas ou recorrentes de coma, vómitos crónicos, acidose, hipoglicémia, ataxia, alterações do comportamento, neuropatia, deterioração neurológica e/ou mental progressiva, autismo, etc..

Na primeira infância, coincidindo com a diversificação alimentar, poderão surgir febre, anorexia ou vómitos.

Na puberdade, o crescimento e eventuais alterações do foro endócrino poderão constituir factores desencadeantes de estresse metabólico.

Exames complementares

Perante a suspeita de doença relacionável com defeitos do metabolismo dos aminoácidos, e paralelamente às análises em amostras de sangue, urina e LCR, discriminadas no capítulo anterior, devem ser feitas outras análises mais específicas em laboratório especializado, a partir das referidas amostras:

  • Cromatografia dos aminoácidos no sangue e urina;
  • Cromatografia dos ácidos orgânicos na urina;
  • Cromatografia dos aminoácidos no LCR se suspeita de encefalopatia metabólica;
  • Perfil de acilcarnitinas no plasma.

Outros exames a solicitar dependerão da suspeita diagnóstica específica (ver adiante).

Tratamento de emergência

Em muitas destas situações verifica-se descompensação aguda directamente relacionada com incremento da ingestão proteica ou com estado catabólico, factor altamente deletério.

Assim, as principais linhas de actuação incluem:

  • Interromper o estado catabólico: propiciando um suprimento energético aumentado, geralmente soluto glicosado endovenoso (excepcionalmente por sonda nasogástrica), se necessário associando a administração de insulina por via endovenosa.
  • Interromper o suprimento proteico: propiciando a chamada “nutrição de emergência” através de nutrição (entérica ou parentérica de acordo com a situação clínica) à custa de hidratos de carbono, lípidos, NaCl, KCl, gluconato de cálcio e água durante 24-48 horas.
    Após este período, o suprimento proteico é iniciado cautelosamente de modo progressivo com leite materno, se possível, ou com fórmula; se a via entérica não for viável, procede-se à nutrição parentérica com solução de aminoácidos em incrementos progressivos; nesta última circunstância, com a melhoria do quadro clínico, procede-se à transição para a alimentação entérica, geralmente dentro do período de 4-5 dias.
  • Propiciar suprimento hídrico e electrolítico adequados. Níveis séricos de sódio dentro dos limites da normalidade reduzirão o risco de edema e lesão cerebrais.
  • Terapêutica medicamentosa específica ou vitamínica (cofactores enzimáticos) dependendo da patologia em causa (por exemplo, biotina na acidúria propiónica, hidroxicobalamina na acidúria metilmalónica, carnitina nas acidúrias orgânicas, glicina na acidúria isovalérica, etc.), e fármacos que promovem a eliminação da amónia (benzoato de sódio, fenilbutirato de sódio nas doenças do ciclo da ureia).
  • Meios de depuração dependendo da patologia, estado clínico e achados laboratoriais: diurese forçada, diálise peritoneal, hemodiálise, hemofiltração, exsanguinotransfusão, etc..

Tratamento de manutenção

  • Dietético: dieta hipoproteica, e suplemento de mistura específica aminoácidos (não contendo os aminoácidos cuja via metabólica está bloqueada) associado a oligoelementos e sais minerais.
    De referir que a utilização de mistura de aminoácidos é crucial nos casos de fenilcetonúria, leucinose, tirosinémia, homocistinúria, e no defeito da ornitina-aminotransferase; noutras situações, como as acidúrias orgânicas, a mistura de aminoácidos é mais controversa, especialmente na fase aguda, podendo contribuir para elevação da amónia. No entanto, cabe referir que a restrição proteica excessiva pode levar a catabolismo.
  • Medicamentoso: aplicam-se as noções referidas a propósito do tratamento de emergência que contribuam para a desintoxicação, por exemplo, nas doenças do ciclo da ureia, tirosinémia tipo I, etc..

Avaliação regular do crescimento, desenvolvimento e parâmetros laboratoriais

Chama-se a atenção para o risco de má-nutrição e de deficiências nutricionais diversas como resultado do regime dietético restritivo.

De acordo com as patologias em causa, para além das análises para avaliação global, haverá que incluir o ionograma sérico, ureia no sangue e urina, determinação de proteínas totais e fracções, amoniémia, aminoácidos urinários e plasmáticos e ácidos orgânicos na urina. Importa igualmente a avaliação nutricional.

Educação da família

A família deve ser instruída sobre as características principais da doença em causa, sobre a sintomatologia nas crises de descompensação, sobre critérios de gravidade e sobre medidas emergentes a tomar. Torna-se, assim, fundamental que a família aprenda a contactar de imediato o centro especializado de tratamento a que a criança deve recorrer nas situações graves.

No âmbito deste capítulo é feita uma referência especial à fenilcetonúria, à tirosinémia do tipo I, à homocistinúria, à leucinose, às acidúrias orgânicas clássicas e às doenças do ciclo da ureia.

1. FENILCETONÚRIA

Esta doença, vulgarmente designada nos países de língua inglesa pela sigla PKU (de phenylketonuria), pertence ao grupo das hiperfenilalaninémias.

A PKU na sua forma clássica surge com uma frequência estimada entre 1/10.000 e 1/20.000 RN; em Portugal, até final do ano de 2005, em 2.590.890 RN foi encontrada prevalência ~1/11.000 e, em 2015, ~1/12.150.

A mesma resulta do défice total ou parcial da enzima fenilalanina – hidroxilase hepática (PAH) originando níveis elevados de fenilalanina e seus metabólitos no sangue; o gene que codifica a fenilalanina-hidroxilase localiza-se no cromossoma 12q24.1, descrevendo-se uma diversidade de mutações (mais de 500). A maioria dos doentes corresponde a heterozigotias para dois diferentes alelos mutantes.

De referir que em cerca de 1-3% dos casos com valores elevados de fenilalanina no sangue, a anomalia é explicada por défice duma das enzimas necessárias para a produção ou renovação do cofactor tetra-hidro-biopterina (BH4); trata-se das chamadas formas malignas de hiperfenilalaninémia, ou mais correctamente, hiperfenilalaninémias por defeito de BH4, muito graves, não respondendo à dieta hipoproteica isolada.

Quanto a manifestações clínicas, salienta-se que a criança afectada é assintomática na data do nascimento mas, caso não se verifique qualquer intervenção (o que acontecia na era pré-rastreio) verifica-se atraso do neurodesenvolvimento progressivo e grave: atraso psicomotor, da locomoção, da fala, hiperactividade frequente, comportamento autista, negativismo, etc.. Pode igualmente verificar-se quadro de hipsarritmia (“espasmos infantis”), hipertonia e hiperreflexia osteotendinosa; sem tratamento, surge deterioração neurológica e mental progressiva.

Os fenilcetonúricos podem apresentar, de modo inconstante, um fenótipo clínico particular: pele clara, dermatose aparentando eczema, cabelos loiros e olhos azuis; trata-se dum pseudo-albinismo secundário.

O tratamento dietético é fundamental: consiste numa dieta hipoproteica, semi-sintética, suplementada com aminoácidos apropriados, sendo o suprimento em fenilalanina reduzido e controlado.Tal regime deve ser mantido durante toda a vida.

O leite materno pode ser usado durante os primeiros meses de vida, sob rigorosa vigilância do centro especializado de tratamento.

A vigilância metabólica é feita com o doseamento regular do nível sérico da fenilalanina, o qual deve ser mantido entre 3-6 mg/dL. Chama-se, a propósito, a atenção para o facto de dietas extremamente restritivas, originando valores séricos < 3 mg/dL, poderem conduzir a quadros de défice de fenilalanina (que é um aminoácido essencial) traduzido por hipocrescimento, letargia, anemia, alterações ósseas e até, morte.

Estão descritas formas de hiperfenilalaninémia moderada, benigna, com valores de fenilalaninémia ligeiramente elevados, até 6-6,5 mg/dL, com dieta normal. Nestes casos o prognóstico parece ser bom, sem necessidade de regime alimentar restritivo, sendo, no entanto, prudente o seguimento clínico (com atenção especial ao exame neurológico) e a vigilância laboratorial periódica.

Alguns centros utilizam um biomarcador independente dos níveis sanguíneos fenilalanina: a ADMA (dimetilarginina assimétrica). Na prática, utiliza-se a ratio ADMA/creatinina, com interesse sobretudo para detectar casos de pacientes com dieta eventualmente não balanceada, susceptível de efeitos negativos a longo prazo.

Se o indivíduo afectado atingir a idade adulta e, no sexo feminino, a idade de procriar, há que atender a que níveis elevados de fenilalanina durante a gravidez podem ter efeito lesivo sobre o feto (aborto frequente, baixo peso de nascimento, restrição do crescimento fetal, defeitos cardíacos, microcefalia e outras anomalias congénitas). É necessário, pois, que a mulher com hiperfenilalaninémia cumpra dieta muito rigorosa antes da concepção e durante toda a gravidez, de modo a manter níveis séricos de fenilalanina entre 1-3 mg/dL.

As novas terapias incluem:

  • Suplementação de aminoácidos neutros, os quais competem com o transporte da fenilalanina/Phe;
  • Administração de BH4 (sapropterina di-hidrocloreto- Kuvan) em doentes seleccionados. A resposta/sensibilidade ao BH4 necessita da presença de alguma actividade residual da PAH. Permite aumentar, duas a três vezes, a tolerância alimentar à PHE, com menores ou nulas restrições dietéticas;
  • Terapia enzimática com PAL (fenilalanina – amónia – liase), proteína que converte a Phe em excesso em metabólito não tóxico;
  • Administração de glicomacropeptídeo, proteína natural derivada da caseína resultante do fabrico de queijo. Está presente no soro do leite e, na forma pura, não contém Phe. Os alimentos preparados a partir desta proteína são boa alternativa à mistura de aminoácidos sintéticos;
  • Alimentos hipoproteicos de nova geração e novas apresentações de misturas de aminoácidos em barras, saquetas, comprimidos, líquidos são resultado dos enormes progressos da tecnologia;
  • Terapia génica, que se tem desenvolvido na procura de correcção duradoira ou permanente do fenótipo PKU.

2. TIROSINÉMIA DO TIPO I

A tirosinémia do tipo I (ou tirosinémia hepatorrenal) é uma doença autossómica recessiva rara, provocada por défice da enzima fumaril-aceto-acetato-hidrolase originando elevação da tirosina sérica e acumulação de metabólitos tóxicos intermediários.

Como consequência surge compromisso grave ao nível do fígado, rim e nervo.

A doença raramente tem início no período neonatal; dum modo geral, surge a partir da 4ª-5ª semana de vida e, mais frequentemente, nos primeiros meses.

Trata-se duma doença hepática grave, com insuficiência hepática aguda que pode ser fatal. Os sinais clínicos poderão ser desencadeados por doença intercorrente levando a estado catabólico (por ex. febre).

Caracteriza-se por icterícia, hepatosplenomegália, edema, diátese hemorrágica, ascite, hipoglicémia, e, por vezes, odor a “couve cozida”. Pode existir disfunção tubular renal complexa, raquitismo de causa renal, e, raramente, sinais de polineuropatia periférica aguda (simile porfíria). Os doentes estão em risco de sofrer de hepatocarcinoma, o qual pode aparecer precocemente. (Figura 1)

No âmbito da avaliação laboratorial do quadro sindrómico de hepatopatia e diátese hemorrágica, cabe referir níveis elevados de ALT e AST traduzindo citólise, e níveis baixos dos factores de coagulação II, VII, IX, XI, XII.

O diagnóstico diferencial faz-se fundamentalmente com a galactosémia e intolerância hereditária à frutose pela hepatopatia, diátese hemorrágica e tubulopatia.

O diagnóstico baseia-se na demonstração de níveis elevados de tirosina e de alfa-fetoproteína (no sangue), de ácido aminolevulínico (ALA) (na urina), e da presença de succinilacetona (SA) na urina e sangue.

FIGURA 1. Lactente com quadro clínico de tirosinémia tipo I: hepatosplenomegália, sinais de raquitismo, e desnutrição com hepatocarcinoma aos 11 meses de idade. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Salienta-se que esta última constitui melhor marcador para o diagnóstico do que a hipertirosinémia, a qual pode acompanhar outros tipos de hepatopatias agudas adquiridas.

Progressos recentes relacionados com o PNDP alargado permitem diagnóstico mais rápido com a medição da SA no sangue fresco.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade da enzima acima referida em amostras de biópsia hepática, de culturas de fibroblastos, e ainda através de estudo genético (análise mutacional).

O tratamento consiste essencialmente:

  1. numa dieta hipoproteica com suprimento reduzido e controlado de fenilalanina e tirosina, suplementado com mistura apropriada de aminoácidos; e
  2. na utilização imediata do fármaco NTBC (nitro-triflurometil-benzoil-cicloexanediona), tricetona que inibe a hidroxifenil-piruvato dioxigenase, bloqueando a montante o catabolismo da tirosina, e evitando a acumulação de metabólitos tóxicos para o fígado, rim e nervo, o que se traduz numa melhoria dramática.

Trata-se duma terapêutica de primeira linha em qualquer idade, inclusivamente no RN em coma. Se não houver resposta ao NTBC (o que pode ocorrer em cerca de 10% dos casos) e/ou houver suspeita de malignidade hepática, o transplante do fígado impõe-se com urgência.

3. HOMOCISTINÚRIA

A homocistinúria clássica ou de tipo I, devida a deficiência da cistationina-beta-sintetase (CBS), é o erro inato do metabolismo da metionina mais frequente. Tal deficiência, relacionada com gene localizado no cromossoma 21q.22.3, leva à acumulação nos tecidos de metionina, homocistina e derivados, com perda de cistationina e baixa concentração de cistina.

No que respeita a manifestações clínicas, cabe referir que a doença está associada a anomalias graves em quatro órgãos ou sistemas: o olho (luxação do cristalino, miopia, glaucoma, etc.), o esqueleto (dolicostenomélia, aracnodactilia, escoliose, osteoporose, fracturas patológicas, mobilidade articular diminuída, etc.), o sistema nervoso central (insuficiência mental, AVC, sintomas psiquiátricos, etc.) e o sistema vascular (tromboembolismo das artérias e veias, a principal causa de morbilidade e mortalidade).

A acumulação de homocistina é provavelmente determinante do dano vascular generalizado e complicações tromboembólicas.

A criança é assintomática ao nascer, mas, se não for tratada, surgirá progressivamente o quadro clínico completo, incluindo o fenótipo semelhante ao da síndroma de Marfan (estatura elevada, ossos longos finos e alongados) e aracnodactilia na transição para a puberdade. Contudo, a restrição da mobilidade articular contrasta com a laxidão da autêntica síndroma de Marfan. As anomalias surgem significativamente mais cedo nos doentes não respondentes à piridoxina (vitamina B6). Casos moderados poderão ser reconhecidos após o surgimento de complicações tardias como os AVC.

O diagnóstico inicial assenta no perfil típico da cromatografia dos aminoácidos no plasma: elevação da metionina e homocistina, baixo nível de cistina, e não aumento de cistationina. A determinação da homocisteína total (tHcy) no plasma (p) é de grande valor diagnóstico, considerando-se valor normal de tHcy p: < 15 µmol/L; os doentes não tratados têm valores > 200 µmol/L.

O diagnóstico definitivo far-se-á determinando a actividade enzimática nos fibroblastos e hepatócitos (biópsia hepática) e por análise mutacional.

O tratamento tem como objectivo reduzir os níveis elevados de homocistina para valores próximos do normal, mantendo um ritmo de crescimento normal. O mesmo consiste em dieta com suprimento de metionina reduzido, e de cistina elevado, associando piridoxina, ácido fólico, vitamina C, vitamina B12 e betaína, em várias combinações; por vezes é necessária uma mistura específica de aminoácidos isenta de metionina.

Cerca de 50% dos doentes respondem, por vezes parcialmente, a doses altas de vitamina B6 (mas sempre < 1 grama/dia). Salienta-se igualmente a importância do tratamento antitrombótico. A ausência de resposta à piridoxina poderá estar relacionada com a carência em folato.

4. LEUCINOSES

As leucinoses são doenças do catabolismo dos aminoácidos de cadeia ramificada (AACR): leucina, isoleucina e valina, por deficiência do complexo da desidrogenase dos α-cetoácidos de CR (BCKD), complexo composto por três unidades catalíticas e duas enzimas reguladoras, codificadas por 6 loci genéticos diferentes: E1 (E1α e E1β), E2, E3, e as reguladoras BCKD-fosfatase e cinase.

Sobre a etiopatogénese, importa referir que a deficiência da BCKD origina uma elevação marcada dos AACR e dos seus cetoácidos no plasma, urina e LCR. Da isoleucina elevada forma-se, por racemização não enzimática, a alo-isoleucina, cuja presença é sistemática nos doentes com leucinose. Os AACR representam aproximadamente 40% das necessidades em AAE (essenciais).

O excesso de AACR e dos seus cetoácidos interfere com o metabolismo do sistema neurónio/astrócito, o que afecta a biossíntese das aminas biogéneas e altera o equilíbrio dos ciclos leucina/glutamato e glutamato/glutamina, no cérebro. A leucina e o ácido 2-cetoisocapróico elevados provocam disfunção cerebral: são os metabólitos mais neurotóxicos.

No que respeita à genética e epidemiologia, importa referir que se trata duma doença AR, pan-étnica, com incidência de 1/120.000 a 1/500.000 na Europa, sendo no Mundo à volta de 1/185.000 nados-vivos. Em Portugal é frequente nas comunidades ciganas, especialmente no sul do país.

Existem 6 formas de apresentação clínica: 1- Forma clássica: grave, de início neonatal; 2- Forma intermédia; 3- Forma intermitente; 4- Forma sensível à tiamina; 5- Forma por deficiência de E3; e 6- Formas assintomáticas, estas últimas na actualidade mais frequentemente diagnosticadas através da realização do rastreio alargado.

A Forma clássica, representando 80% das leucinoses, é caracterizada por encefalopatia + cetose. No geral, trata-se de um RN de termo que nasce bem, mas que, após um intervalo livre, seja entre o 4º e o 7º dia, evidencia sucessivamente: sucção débil, recusa alimentar, letargia, soluços, hipotonia, bradicardia, crises de apneia, hipotonia axial com hipertonia dos membros, movimentos de boxage e pedalagem, por vezes elevação lenta dos membros (espontânea ou após estimulação), tremores, opistótono, mioclonias, fontanela anterior hipertensa, um odor especial da urina (açúcar/ caramelo). Os abalos mioclónicos podem ser interpretados como convulsões; o EEG pode registar um padrão periódico (do tipo burst suppression).

A alimentação com leite materno pode atrasar os sintomas para a segunda semana de vida.

O odor característico (com algum valor na suspeição) pode surgir em RN alimentado com leite materno no contexto de mãe lactante tendo ingerido caril, especiarias, condimentos, ou de o coto umbilical ter sido limpo com iodopovidona.

Sem tratamento, rapidamente surge o coma e morte precoce. Durante o coma podem ser observados sinais neurológicos focais, hemiplegia aguda, hemianópsia e sinais de edema cerebral.

Para o diagnóstico, torna-se fundamental a realização dum conjunto de exames, predominantemente bioquímicos e, complementarmente, imagiológicos.

A cromatografia de aminoácidos (CAA) no plasma, sangue, urina e LCR mostra valores elevados de AACR (especialmente de leucina), dos respectivos cetoácidos (em especial do 2-cetoisocapróico) e de alo-isoleucina.

O teste DNPH (di-nitro-fenil-hidrazina) na urina, método colorimétrico detectando os cetácidos de CR, é positivo na fase aguda.

A presença de alo-isoleucina no plasma e urina é patognomónica, mas poderá não surgir até ao 6º dia de vida.

Existe cetonúria acentuada e a amónia pode estar elevada, embora com valor < 130 µmol/L). Mais raramente pode ocorrer acidose e hipoglicémia. A razão alo-isoleucina/ isoleucina > 0,6 é típica da Forma Clássica.

Com valores de leucina plasmática > 800 µmol/L, a encefalopatia torna-se evidente.

Através da imagiologia cerebral (TAC, RM) podem ser observados sinais de edema cerebral generalizado e de alterações da substância branca profunda: cerebelo, pedúnculos e cápsula interna. Salienta-se, pois, que a leucinose é uma doença da substância branca.

Para a confirmação diagnóstica procede-se à determinação da actividade enzimática nos fibroblastos/ linfoblastos em cultura, ou a estudos de biologia molecular.

O diagnóstico pré-natal é possível.

As complicações são frequentes: edema cerebral, sobretudo no RN e lactente; nos doentes mais velhos poderá surgir compressão do tronco cerebral e morte súbita (atenção à reidratação vigorosa). Outras complicações: desmielinização, alopécia, descamação cutânea, ulcerações da córnea, pancreatite e desnutrição; esta última poderá ser reversível com dieta correcta e continuada.

I – O tratamento do RN sintomático com a forma clássica é uma emergência médica.

Ia – Na fase aguda

Os objectivos são: reduzir rapidamente os níveis plasmáticos de AACR; combater o catabolismo; fomentar o anabolismo; providenciar o suprimento adequado de nutrientes. Assim:

  • fluidoterapia IV (soro fisiológico se necessário), mantendo valores plasmáticos de Na > 140 mEq/L e Osmol > 290 mOsm/L, com atenção ao edema cerebral, e evitando glicémia > 150-200 mg/dL;
  • métodos dialíticos (HFvv, HD – sendo que os AACR têm baixa depuração/ clearance renal), de acordo com os seguintes critérios: sintomas neurológicos graves, leucina (p) > 1500 µmol/L, intolerância gástrica (frequente), descida de leucina (s) < 500 µmol/L após 24 horas de dieta específica, ausência de melhoria clínica;
  • paragem de proteína natural (24-48 horas); suprimento energético > 100 kcal/kg/dia;
  • introdução de mistura de aminoácidos (Mx AA) livre de AACR para aumentar a síntese proteica;
  • suplementos de valina e isoleucina, ao 2º-3º dia de terapia, na dose 300-400 mg/dia de cada, para fomentar a síntese proteica e evitar a sua deficiência precoce, visto se eliminarem mais rapidamente do que a leucina; a dieta será administrada, consoante os casos, por sonda nasogástrica ou por alimentação parentérica total;
  • tiamina: 100-500 mg/dia, particularmente nas formas sensíveis à vitamina B1; alguns centros advogam uma terapia dietética apenas (evitando a diálise), mas somente se o diagnóstico for precoce (antes do 3º-7º dia de vida) e em doentes assintomáticos.
  • após as 24-48 horas sem proteínas naturais, deve iniciar-se um suprimento cauteloso das mesmas, incluindo de leucina, até à tolerância do doente.

Ib – Na fase de manutenção

Os objectivos são: manter o equilíbrio metabólico e alcançar um bom estado nutricional, de crescimento e de desenvolvimento. Assim:

  • dieta hipoproteica, semissintética, regularmente ajustada, para toda a vida. Os suprimentos de leucina são monitorizados de acordo com os respectivos níveis plasmáticos;
  • manter a ingestão de Mx de AA livre de AACR, que é crucial (pode fornecer-se na proporção de ~90% da proteína total);
  • manter o suplemento de valina e isoleucina até ser necessário;
  • manter o suplemento de tiamina (é prática comum);
  • suprimentos de leucina cerca de 300-400 mg/dia (60 a 110 mg/kg/dia) até aos 6 meses de idade. Crianças maiores de 3 anos, adolescentes e adultos podem tolerar até 500-700 mg/dia;
  • vigiar/corrigir possíveis deficiências de: isoleucina, valina, cálcio, magnésio, zinco, selénio e outros, e também de ácidos gordos (AG) essenciais;
  • usar tabelas de equivalentes: 1 parte é igual ao peso em gramas de um alimento que forneça 50 mg de leucina. Muito útil na confecção diária das dietas: evita monotonia alimentar e melhora o estado nutricional.

Nota importante:
A restrição excessiva de leucina pode ser tão devastadora como a sua acumulação
.

    • Níveis plasmáticos de AACR desejáveis:
    • Leucina: 80-200 µmol/L; Isoleucina: 40-90 µmol/L; Valina: 200-425 µmol/L, em sangue colhido 2-3 horas pós-prandial. Alguns centros preconizam níveis mais altos de isoleucina e valina, entre 200-400 µmol/L, no pressuposto de que tais valores elevados vão competir com a leucina, na entrada para o cérebro.
    • As crises de descompensação metabólica são potencialmente fatais.
    • Deve dar-se atenção à vacinação, pelo risco de descompensação nos 8-10 dias subsequentes.

Ic – Durante as intercorrências

Se no decurso da terapia ocorrerem situações febris, vómitos, diarreia (que aumentam o catabolismo), os níveis plasmáticos dos AACR e cetoácidos podem atingir níveis neurotóxicos em poucas horas, surgindo então sinais de alarme: apatia, ataxia, alucinações, anorexia, convulsões, alterações do equilíbrio e do comportamento.

Os pais devem procceder de imediato à realização do teste DNPH na urina para detectar a cetonúria, reduzir/ suprimir o suprimento de proteína natural, fornecer mais energia, manter os suplementos de Mx de AA, de valina e de isoleucina. Se houver intolerância gástrica, e ao mínimo sinal de alteração da consciência, deve contactar-se prontamente o centro de referência hospitalar.

II– Outras terapias

  • transplante hepático: já executado com êxito: o risco de descompensação em eventos catabólicos parece abolido;
  • transplante de hepatócitos: o interesse nos humanos está em avaliação;
  • fenilbutirato: reduz a concentração plasmática dos AACR e cetoácidos, parecendo aumentar a activiade residual da BCKD;
  • recentemente: introdução de fórmulas enriquecidas em vários AA que competem no transporte dos AACR através da BHE, diminuindo a entrada da leucina no cérebro;
  • uso de norleucina: potente competidor da leucina ao nível da BHE, diminuindo a sua entrada e acumulação, e especialmente do 2-cetoisocapróico, no cérebro. É um isómero da leucina e isoleucina.

Nas variantes moderadas, se assintomáticas, não é clara a necessidade de terapêutica de longo prazo; contudo, os doentes e famílias devem saber evitar/ corrigir hipotéticas crises.

Nos casos de leucinose materna: dieta hipoproteica rigorosa; deve manter-se concentração de leucina entre 100-300 µmol/L, e de valina e isoleucina, normal a ligeiramente elevada. É possível o nascimento de filho saudável. Todavia, há que ter em atenção o puerpério: risco de descompensação metabólica da mãe até 6 a 8 semanas após o parto.

Sobre a evolução e prognóstico, há a salientar os seguintes factos:

  • nos sobreviventes poderão surgir sequelas neurológicas graves, insuficiência cognitiva, espasticidade e cegueira cortical;
  • actualmente verificam-se menor morbilidade, menor mortalidade e mais baixa proporção de hospitalizações. Mais de 1/3 dos doentes com a forma clássica alcançarão QI > 90, e 1/3 entre 70-90. Os doentes que apresentam espasticidade, quadriplegia, regra geral, têm pior prognóstico intelectual.

5. HIPERGLICINÉMIA NÃO CETÓTICA

A glicina é o aminoácido mais pequeno que existe, não essencial, actuando como neurotransmissor inibidor no SNC.

A doença mais representativa em relação com este aminoácido é a hiperglicinémia não cetótica a qual se deve a um defeito no complexo multienzimático encarregado de metabolizar a glicina e diminuir a sua concentração no organismo.

Existem duas formas de apresentação clínica:

  1. precoce, mais grave e frequente; e
  2. tardia.

A forma precoce (neonatal) cursa com encefalopatia grave e deterioração neurológica progressiva (hipotonia generalizada, convulsões e ulterior espasticidade); o prognóstico é muito reservado.

A forma tardia, podendo surgir em qualquer fase da infância ou no adulto, traduz-se essencialmente por movimentos paroxísticos coreicos, confusão mental e alterações do comportamento.

A glicina está elevada no plasma (p) e no LCR, com razão LCR/p elevada

(normal = < 0,02; na situação em análise: proporção muito elevada = > 0,08).

O tratamento com dextrometorfan, benzoato de sódio e folatos é de sucesso limitado.

6. ACIDÚRIAS ORGÂNICAS

SISTEMATIZAÇÃO

As acidúrias orgânicas (AO) são devidas a deficiências enzimáticas no metabolismo mitocondrial dos ácidos carboxílicos activados pela CoA, muitos dos quais resultam do catabolismo dos aminoácidos (AA).

São devidas, não só à acumulação de intermediários tóxicos, mas também à alteração do metabolismo energético mitocondrial e da homeostase da carnitina.

Incluem-se nas AO a deficiência de biotinidase ou de holocarboxilase sintetase levando a deficiência múltipla de carboxilases.

O termo mais correcto é acidúria, e não acidémia, porquanto se trata de doenças essencialmente detectadas pela análise da urina.

As AO mais conhecidas, ditas clássicas, incluem as seguintes nosologias:

Grupo I

  • Acidúria propriónica (AP);
  • Acidúria metilmalónica (AMM); e
  • Acidúria isovalérica (AIV).

Grupo II

  • Acidúria metilmalónica (AMM) e homocistinúria (forma especial de AMM).

Como exemplos de AO mais raras, não abordadas neste capítulo, citam-se:

3-metil-crotonil-glicinúria;
3-metilglutacónica I; deficiência de desidrogenase da Acil-CoA de CC;
2-metil-3-hidroxibutiril-CoA desidrogenase;
isobutiril-CoA desidrogenase, 3-hidroxi-isobutírica;
acidúria malónica;
e defeitos do metabolismo da biotina, já referidos.

Grupo I

As AP, AMM e AIV, ditas clássicas, são causadas por defeitos do catabolismo dos AACR (leucina, isoleucina, valina).

Formas de apresentação

  • Forma de início neonatal, grave;
  • Forma de início tardio, aguda, intermitente;
  • Forma crónica, progressiva;
  • Formas assintomáticas.

A forma de início neonatal comporta-se como encefalopatia metabólica de “tipo intoxicação” que surge após um intervalo livre de sintomas.

O início é marcado por deterioração (sem causa aparente e sem resposta à terapia sintomática). Primeiros sinais: recusa alimentar e sonolência, a que se seguem coma, desregulação neurovegetativa (dificuldade respiratória, soluços, episódios de apneia, bradicardia, hipotermia).

No coma é frequente ocorrerem alterações do tono muscular e movimentos involuntários, episódios de hipertonia generalizada com opistótono, movimentos de pedalagem e boxage, e outras manifestações de intoxicação central como hipotonia axial com hipertonia dos membros, tremores e espasmos mioclónicos. No EEG é comum um padrão periódico (burst-suppression). A desidratação é frequente, assim como hepatomegália moderada. Na AIV é dado importante o odor a pés suados.

As características bioquímicas incluem: acidose metabólica, cetose, hiato aniónico com valor elevado, hiperamoniémia de grau variável (se > 500 µmol/L poderá induzir alcalose respiratória e a suspeita errada de doença do ciclo da ureia), hipocalcémia, glicémia normal, baixa ou elevada (se elevada poderá induzir suspeita errada de coma diabético), neutropénia, anemia, trombocitopénia, pancitopénia (podendo induzir suspeita errada de sépsis) e, por vezes, valor do lactato elevado.

A forma de início tardio, de modo agudo e intermitente, surge geralmente após intervalo livre longo (por vezes superior a um ano), ou mesmo até na adolescência e na idade adulta.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas traduzem-se por crises recorrentes, intercaladas por períodos assintomáticos, como regra.

A crise inicial pode ser fatal; as recorrentes ocorrem, em geral, no contexto de infecção, estado catabólico, suprimento alimentar rico em proteínas, ou sem causa aparente. São comuns situações de coma recorrente (de todos os tipos) e crises recorrentes de ataxia e letargia.

Os doentes poderão apresentar sinais neurológicos focais, sintomatologia de edema cerebral (sugerindo erradamente encefalite, AVC ou tumor cerebral).

Outra apresentação traduz-se por um quadro similar ao da síndroma de Reye.

De salientar que a neutropénia e trombocitopénia podem ser sinais inaugurais.

A forma crónica, progressiva pode manifestar-se por anorexia persistente, vómitos crónicos, má progressão ponderal e osteoporose. Tal sintomatologia poderá levar à suspeita errada de: refluxo gastresofágico, intolerância às proteínas do leite de vaca, doença celíaca, ou de estenose pilórica tardia.

Noutros casos, verifica-se hipotonia, fraqueza muscular e massas musculares pobres sugerindo miopatia ou doenças neurológicas congénitas; noutros ainda, atraso de desenvolvimento não específico, atraso psicomotor progressivo, insuficiência mental, convulsões e patologia dos movimentos.

Frequentemente, os doentes permanecem por longo tempo sem diagnóstico correcto até à ocorrência de crise neurológica aguda e coma; nestas circunstâncias poderá então surgir a suspeita de DHM.

As formas assintomáticas, descritas cada vez com maior frequência como resultado do rastreio alargado, podem ser representadas pela AIV associada a mutação C932T (A282V), geralmente em heterozigotia, e com fenótipo bioquímico moderado. Tais formas assintomáticas de AO levantam dúvidas quanto à necessidade de tratamento dietético contínuo e ao prognóstico a longo prazo.

Complicações

As complicações das AO clássicas são várias: sindroma extrapiramidal aguda ou progressiva, envolvimento ou mesmo necrose dos gânglios basais, atrofia cerebral, atraso de mielinização e alterações da motilidade.

Na AMM, de modo especial: falência renal que pode ocorrer pelos 10 anos de idade e progredir até à insuficiência renal terminal, necessitando de diálise e/ou TR; as lesões cutâneas são também comuns: descamação, alopécia, úlceras da córnea, geralmente devidas a má-nutrição proteica e deficiência de isoleucina.

Na AIV salienta-se: pancreatite aguda ou crónica que pode ser o quadro inaugural nos casos tardios, e ainda, cardiomiopatia.

Na AP pode surgir igualmente cardiomiopatia, a qual poderá estabelecer a indicação para transplante.

Diagnóstico

Quanto ao diagnóstico, importa referir que se torna fundamental a realização, entre outros, dos seguintes exames laboratoriais:

  • cromatografia de AA plasmáticos (CAA);
  • cromatografia de ácidos orgânicos urinários (CAO) podendo evidenciar o perfil específico de cada patologia;
  • doseamento no plasma da carnitina total, livre e acilcarnitinas, amónia e lactato.

A acilcarnitina anómala na AP e AMM é a propionilcarnitina (C3), e na AIV a isovalerilcarnitina (C5).

A marca bioquímica típica das AO Clássicas é: acidocetose e hiperamoniémia secundária.

O diagnóstico deve ser confirmado por estudos enzimáticos ou por estudo genético mutacional.

Tratamento

O tratamento das AO clássicas (AP, AMM e AIV) inclui procedimentos diversos na fase aguda e na fase de manutenção

Na fase aguda
  • combater o catabolismo com altas doses endovenosas de glucose (mais insulina, se necessário); corrigir a acidose e tratar a infecção e a anemia;
  • interromper o suprimento de proteínas (máximo: 24-48 horas) a par de suprimento energético normal/ elevado;
  • administrar carnitina em todas as AO, e carnitina + glicina nas formas graves de AIV;
  • descontaminação intestinal com metronidazol (20 mg/kg) para reduzir a produção de propionato pelo microbioma intestinal (AP, AMM);
  • administrar vit B12 (AMM) e biotina (AP);
  • promover a remoção dos metabólitos tóxicos com métodos dialíticos: HD (hemodiálise), HF (hemofiltração) ou HDF (hemodiafiltração); a DP (diálise peritoneal) é menos eficaz, especialmente nas situações muito graves, com hiperamoniémia grave (frequente na AP).
    Na AMM, como a clearance renal do ácido metilmalónico é alta, se a amoniémia não for muito elevada, poderá ser suficiente a reidratação, a promoção do anabolismo e a dieta hipoproteica;
  • benzoato de sódio e carbamilglutamato em casos de amónia elevada; se o lactato estiver muito elevado (o que poderá ocorrer na AP) por deficiência de tiamina, deve esta ser suplementada.
Na fase de manutenção
  • dieta hipoproteica, por vezes suplementada com Mx de AA isenta dos AA cujo metabolismo está afectado;
  • administar sempre carnitina, e carnitina + glicina (AIV);
  • descontaminação intestinal intermitente (com metronidazol) durante 10 dias em cada mês, ou contínua com metronidazol (1 mês), trimetroprim (1 mês), amoxicilina (1 mês) e assim sucessivamente (na AP e AMM);
  • administar hidroxicobalamina (AMM) e biotina (AP) nas formas sensíveis;
  • por vezes é necessário recorrer ao TH (AP), ou TH e/ou TR na AMM;
  • vigilância dos desequilíbrios dos AA plasmáticos, especialmente dos AA essenciais, e do nível dos AG essenciais, podendo ser necessário suplemento de ácido docosa-hexanóico;
  • alimentação entérica nocturna sistemática, nos mais jovens (qualquer que seja o apetite); por vezes, devido às dificuldades alimentares, tão comuns nas AO, há que recorrer à alimentação por sonda nasogástrica ou gastrostomia.

Grupo II

Uma forma especial de AMM pelas suas características e tratamento particulares é a acidúria metilmalónica associada a homocistinúria. Trata-se de um defeito da síntese intracelular da adenosilcobalamina e da metilcobalamina, cofactores, respectivamente, da metilmalonil-CoA mutase e da metionina sintetase.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas podem iniciar-se in utero: restrição de crescimento fetal, dismorfias moderadas, microcefalia e cardiomiopatia dilatada fatal.

Após o nascimento são descritas duas formas:

Forma infantil: de início precoce, mais frequente e grave, multissistémica, progressiva.

Como alterações mais típicas, citam-se: restrição do crescimento, microcefalia, dificuldades alimentares e de ganho ponderal, hipotonia, hidrocefalia, deterioração neurológica, anemia megaloblástica, alterações maculares e síndroma hemolítica urémica.

Forma tardia: sintomatologia mais evidente após os 4 anos de idade – regressão neurológica, sintomas neuropsiquiátricos, encefalopatia progressiva, degenerescência da espinhal medula, anemia megaloblástica, complicações tromboembólicas.

Diagnóstico

O diagnóstico desta forma especial depende dos resultados dum conjunto de exames laboratoriais: – cromatografia de AA plasmáticos (CAA); – cromatografia de ácidos orgânicos urinários (CAO); – doseamento do ácido metilmalónico e de homocisteína total (tHcy) no plasma; e perfil das acilcarnitinas no plasma.

O perfil bioquímico desta forma clínica inclui: ácido metilmalónico e homocisteína elevados, cistationina e metionina baixos; os níveis de vitamina B12 dentro do normal e de acilcarnitina C3 elevados constituem o padrão clássico.

Tratamento

O tratamento inclui administração diária parentérica de hidroxicobalamina (não a cianocobalamina) parentérica, betaína, ácido folínico e carnitina oral. Está em estudo o uso de hidroxicobalamina intranasal; a administração por via oral é ineficaz.

A dieta hipoproteica é controversa, porquanto as proteínas dietéticas têm muito pouca homocisteína. Podendo ser necessários suplementos de metionina, não deve administrar-se Mx de AA sem metionina (usadas na AMM) pelo risco de hipometioninémia grave.

Estão ainda indicadas:

  • dose antiagregante plaquetária de ácido acetilsalicílico;
  • monitorização regular da concentração de tHcy no plasma.

Como medida pré-natal importante cita-se a necessidade de reduzir as concentrações dos metabólitos tóxicos na mãe, o que parece ter impacte nas complicações de longo prazo.

Complicações

As complicações são variadas por atingirem diversos sistemas: SNC, olhos, sangue, vasos sanguíneos, rim, coração. A melhor estratégia para as evitar e ou conter diz respeito à administração de doses correctas diárias de hidroxicobalamina parentérica + betaína.

Na forma infantil pode ocorrer perda progressiva de visão até à cegueira (primeira década de vida). As complicações vasculares determinam maior morbilidade e mortalidade.

Salienta-se que no contexto de analgesia/ anestesia/ cirurgia não deve ser usado o óxido nitroso por ser potencialmente tóxico nesta doença.

Recomenda-se, se possível, o uso limitado das Mx de AA específicas, o que poderá facilitar o ajuste individualizado do suprimento de proteínas naturais. O doseamento da ureia e da creatinina na urina de 24 horas será de grande utilidade para esse cálculo. Assim, se o doente estiver medicado com Mx de AA, a razão ureia/ creatinina urinária será elevada, geralmente > 30, o que significa que muitos dos aminoácidos da Mx são excretados pela urina, sem qualquer efeito; se a ureia urinária (que reflecte o catabolismo proteico) for muito baixa e o doente não estiver a tomar a Mx de AA, pode-se, com alguma segurança, aumentar o suprimento proteico, fundamental para o equilíbrio metabólico, nutricional e o crescimento.

Estão em estudo:

    • o uso de vitamina E, vitamina C e creatina para melhorar o estado mitocondrial e as defesas antioxidantes, alterados nas AO; e
    • a administração de determinados precursores para “recarregar” os metabólitos deficientes no ciclo de Krebs.

Abreviaturas: Mx <> misturas

7. DOENÇAS DO CICLO DA UREIA

ETIOPATOGÉNESE

O ciclo da ureia ou de Krebs-Henseleit que, na sua forma completa, tem lugar somente no fígado, constitui a principal via metabólica comum para a excreção do azoto. A sequência de reacções que o integram, em parte na mitocôndria, em parte no citosol, converte (sobretudo a partir da glutamina e do glutamato) a amónia tóxica e outros compostos nitrogenados em produto não tóxico – a ureia – excretada através da urina.

Aos diferentes defeitos genéticos responsáveis por deficiência de uma ou mais enzimas que intervêm no ciclo (em número de oito – Figura 2) – correspondem diversas entidades clínicas adiante discriminadas em que se verifica hiperamoniémia. De referir, no entanto, que defeitos enzimáticos noutras vias metabólicas poderão secundariamente bloquear qualquer passo do ciclo da ureia.

FIGURA 2. Ciclo da ureia e vias alternativas de excreção de azoto. 1) Carbamil fosfato sintetase; 2) Ornitina transcarbamilase; 3) Arginino-succinato sintetase; 4) Arginino-succinato liase; 5) Arginase; 6) N-acetilglutamato sintetase; 7) Glutamina sintetase; 8) Citrina (transportador mitocondrial de aspartato-glutamato).

As vias alternativas de excreção do azoto, nomeadamente a conjugação da glicina com o benzoato, e da glutamina com o fenilacetato poderão ser aproveitadas como meio de tratamento dos doentes com défice de formação de ureia e hiperamoniémia.

Aspectos epidemiológicos

As doenças do ciclo da ureia (DCU) correspondem aos erros metabólicos hereditários dos mais frequentes (incidência cumulativa de 1/8.000).

Descrevem-se as seguintes entidades clínicas:

  • deficiência de ornitina transcarbamilase (OTC);
  • deficiência de arginino-succinato sintetase (AS) ou citrulinémia (vários tipos);
  • deficiência de arginino-succinato liase (AL);
  • deficiência de arginase ou hiperargininémia;
  • deficiência de glutamina-sintetase (GS);
  • dficiência de carbamil fosfato sintetase (CPS);
  • deficiência de N-acetilglutamato sintetase (NAGS); e
  • defeito da citrina.

Com excepção da deficiência da ornitina transcarbamilase ou OTC (de transmissão hereditária ligada ao cromossoma X e a forma mais comum de todas as doenças do ciclo da ureia), os outros defeitos são de transmissão autossómica recessiva. Como regra geral, os homozigotos com OTC do sexo masculino têm formas mais graves que os heterozigotos do sexo feminino; por outro lado, os heterozigotos do sexo feminino podem ter formas ligeiras, sendo que cerca de 75% são assintomáticos.

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações clínicas das doenças do ciclo da ureia são extremamente variáveis:

No RN aparentemente saudável com peso adequado à idade, após um intervalo livre por vezes inferior a 24 horas, ou de alguns dias, surge anorexia, recusa alimentar, vómitos, letargia, e/ou irritabilidade e taquipneia. Verifica-se deterioração rápida com alterações neurológicas, alterações do tono muscular, hiporreflexia, instabilidade vasomotora, hipotermia, apneia e convulsões, podendo seguir-se coma profundo e morte.

As complicações são: hemorragia cerebral e pulmonar; e, como sequela: grave atraso do neurodesenvolvimento. O diagnóstico inicial sugere habitualmente septicémia, sendo que a presença de alcalose respiratória, associada às manifestações descritas, poderá ser a chave para o diagnóstico.

A ureia plasmática muito baixa (1-2 mg/dL) é um dado relevante; portanto:

    • num RN gravemente doente com ureia de valor muito baixo, há que admitir doença do ciclo da ureia;
    • num RN em presença de alcalose respiratória, com hiato iónico normal e glicémia normal, sem cetoacidose, há igualmente que admitir doença do ciclo da ureia.

Após o período neonatal, as manifestações poderão ser menos agudas e mais variáveis: anorexia, letargia, vómitos, hepatomegália, má progressão ponderal, atraso do neurodesenvolvimento, episódios de irritabilidade; diplegia, tetraplegia espástica na deficiência da argininase (argininémia); alterações do cabelo (tricorexis nodosa) na deficiência da arginino-succinato liase.

No adolescente e no adulto: habitualmente verificam-se sintomas neurológicos e/ou psiquiátricos crónicos, com alterações do comportamento, por vezes bizarro, com desorientação, letargia, alterações do estado de consciência, e quadro de psicose. As referidas doenças poderão também manifestar-se por encefalopatia recorrente, geralmente associada a ingestão de elevado teor de proteínas, infecção, estresse, anestesia, estado catabólico ou, por vezes, sem causa aparente.

Na hiperargininémia, o quadro poderá ser diferente, caracterizando-se fundamentalmente por diplegia espástica, (por vezes interpretada como fazendo parte de paralisia cerebral), hiperactividade, ataxia, atetose, distonia e, raramente, coma e convulsões refractárias ao tratamento anticonvulsante.

Diagnóstico

O Quadro 1 mostra situações que, não sendo doenças do ciclo da ureia, podem cursar com hiperamoniémia.

QUADRO 1 – Situações que apresentam hiperamoniémia.

    • Deficiências de enzimas do ciclo da ureia (UCD)
    • Insuficiência hepática
    • Doenças dos ácidos orgânicos
    • Defeitos de oxidação dos ácidos gordos
    • Síndroma de Reye
    • Terapêutica com valproato
    • Choque hipovolémico
    • Hiperamoniémia transitória do RN
    • Síndroma HHH (hiperornitinémia, hiperamoniémia, homocitrulinúria)
    • Infecção por vírus Herpes simplex
    • Síndroma de hiperamoniémia e hiperinsulinismo
    • Miopatias mitocondriais, deficiência de piruvato carboxilase, deficiência de piruvato desidrogenase
    • Intolerância proteica lisinúrica
    • Asfixia perinatal
    • Insuficiência cardíaca congestiva
    • Tratamento com asparaginase
    • Infecção por bactérias urease positivas

 

Salienta-se que, das hiperamoniémias não devidas a artefactos, cerca de 2/3 correspondem efectivamente a DCU.

No que respeita ao diagnóstico das doenças do ciclo da ureia, é importante rever algumas definições, dando ênfase aos exames analíticos.

Assim, fala-se de hiperamoniémia quando o valor da amónia no sangue é > 80 µmol/L no RN, e > 50 µmol/L após os 28 dias de vida. Na prática, consideram-se valores normais, respectivamente os valores < 50 µmol/L no RN, e < 35 µmol/L após o período neonatal.

Num RN sem doença deste foro, mas com patologia relacionada com septicémia ou asfixia, raramente a amónia é > 180 µmol/L; se o valor for > 200 µmol/L há que suspeitar de doença metabólica, sendo que nas doenças do ciclo da ureia, e designadamente neste grupo etário, são atingidos valores de amónia > 1.500 µmol/L, sem cetoacidose e, geralmente, sem hipoglicémia.

Salienta-se, a propósito, que a hiperamoniémia é uma emergência médica.

Nas situações de suspeita clínica de doença do ciclo da ureia torna-se fundamental realizar de imediato um conjunto de análises básicas obedecendo a rigorosas condições técnicas de colheita e transporte (designadamente amostras de sangue e urina em recipientes acondicionados em gelo); no sangue – amónia, electrólitos, pH e gases, hiato iónico, lactato, glucose, ureia, creatinina, provas de função hepática e factores de coagulação; na urina – análise sumária.

Como análises especiais (em laboratório especializado) estão indicados os seguintes doseamentos: aminoácidos plasmáticos e urinários, ácidos orgânicos urinários, ácido orótico na urina, e perfil da carnitina e acilcarnitinas no plasma. Na deficiência de OTC verifica-se: aumento importante de ácido orótico na urina. Em todas as DCU há acumulação de glutamina (excepto na deficiência de glutamina sintetase/GS) e de alanina.

Os resultados obtidos quanto ao padrão de aminoácidos plasmáticos poderão ter valor diagnóstico para as entidades clínicas a seguir discriminadas: deficiência de arginino-succinato-sintetase (AS), de arginino-succinato liase (AL), de arginase, e de glutamina-sintetase (GS).

O diagnóstico pode ser confirmado, quer por estudo enzimático (leucócitos, fibroblastos, hepatócitos), quer por análise mutacional.

Salienta-se que o doseamento urgente da amónia no sangue deve fazer parte da investigação básica obrigatória em todos os doentes com encefalopatia não esclarecida, em qualquer idade.


Reiterando que a hiperamoniémia implica tratamento emergente, há no entanto que atender a uma eventual situação de coma hiperamoniémico com duração superior a 2-3 dias: a equipa médica responsável deverá discutir com os pais do paciente as opções a tomar.

Tratamento

O tratamento de emergência compreende:

  • interrupção imediata do suprimento proteico durante 24-48 horas;
  • aplicação imediata de sonda cânula ou cateter IV para suprimento energético elevado à base de soluto de glucose (a 10% se em veia periférica ou a 10-25% se em veia central); contudo, está indicada restrição de fluidos se houver suspeita de edema cerebral;
  • se os vómitos forem persistentes, pode usar-se ondansetron IV na dose de 0,15 mg/kg em 15 minutos, podendo repetir-se até 3 doses diárias;
  • introdução imediata de drogas eliminadoras de amónia:
    *benzoato de sódio até 500 mg/kg/dia, PO ou IV em 2 doses (1ª de 250 mg/kg em 2-4 horas; 2ª de 250 mg/kg nas próximas 20-22 horas);
    *fenilbutirato de sódio até 600 mg/kg/dia, PO ou IV em 2 doses (1ª de 250 mg/kg em 2-4 horas; 2ª de 350 mg/kg nas próximas 20-22 horas);
    *L-arginina PO ou IV (até 700 mg/kg/dia na citrulinémia e acidúria arginino-succínica); até 150 mg/kg/dia nas deficiências de ornitina transcarbamilase/ OTC, de carbamilfosfato-sintetase/CPS e de N-acetilglutamato-sintetase/ NAGS; também se usa o carbamil-glutamato nos defeitos de NAGS e CPS, o qual é activador da CPS, primeira enzima do ciclo da ureia – dose inicial de 100 mg/kg/dia, ulteriormente até 300 mg/kg/dia;
    *L-carnitina PO ou IV na dose de 200 mg/kg/dia, se o doente estiver submetido a tratamento com benzoato de sódio e emulsão de lípidos (AP);
  • técnicas de diálise; se a amoniémia for muito elevada (> 400 µmol/L), o doente estiver em coma, a amoniémia não descer significativamente nas primeiras 4 horas do tratamento atrás indicado, ou houver falência multiorgânica, estão indicadas técnicas de diálise: HD (hemodiálise), HF (hemofiltração) ou HDF (hemodiafiltração); em alternativa, diálise peritoneal, menos eficaz; não se deve fazer exsanguinotransfusão; o recurso à ECMO é muito eficaz;
  • introdução cautelosa da dieta de emergência sem proteínas nas primeiras 24-48 horas através de alimentação entérica (AE) e/ou alimentação parentérica (AP) consoante a gravidade da encefalopatia aguda, e intolerância digestiva;
  • após 24-48 horas sem proteínas, início de suprimento de proteínas- 0,5 g/kg/dia (na AP, sob a forma de aminoácidos) ou na AE através de fórmula infantil adequada à restrição proteica;
  • se surgirem convulsões, não usar valproato nem corticóides; os riscos nesta fase são hiperidratação, edema cerebral e má-nutrição;
  • se for necessário proceder a transfusão, usar apenas sangue fresco;
  • evitar a toxicidade de drogas; sendo impossível o respectivo doseamento sérico, utilizar o valor do hiato iónico: se > 15 mEq/L ou incremento de 6 mEq/L em relação a valor anterior, é provável o estado de toxicidade.

O tratamento de manutenção baseia-se em:

  • dieta hipoproteica com restrição de proteína natural de acordo com o tipo de doença, idade, peso, e tolerância individual, suplementada com mistura apropriada de aminoácidos;
  • administração de fármacos eliminadores de amónia, per os, como o fenilbutirato de sódio e/ou benzoato de sódio, cloridrato de arginina (excepto no defeito da arginase); na deficiência de arginina-succinato-liase (AL) a dose de arginina deverá ser muito mais baixa do que a usada na fase aguda (manutenção da arginina entre 50-200 µmol/L;
  • suprimento adequado de vitaminas, minerais e oligoelementos;
  • os fármacos devem ser administrados durante as principais refeições para rendibilizar a remoção da amónia.

Os objectivos do tratamento são:

  • manter amoniémia < 80 µmol/L, e glutamina < 800-1.000 µmol/L;
  • manter ausência de ácido orótico na urina;
  • manter a normalidade dos níveis plasmáticos de proteínas totais, de albumina e pré-albumina, de aminoácidos essenciais (manter Isol > 25 µmol/L – valor baixo é marcador de má-nutrição proteica) e de carnitina total (> 30 µmol/L).

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INTRODUÇÃO À CLÍNICA DAS DOENÇAS HEREDITÁRIAS DO METABOLISMO

*Revisão de Aguinaldo Cabral

Importância do problema

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM), embora raras, estão associadas a morbilidade e mortalidade significativas em relação, sobretudo, com o atraso no diagnóstico e a aplicação de medidas terapêuticas indicadas, já no período neonatal.

Muitas destas doenças são provocadas por mutações em genes que codificam proteínas específicas; o resultado final de tais anomalias será o compromisso variável da capacidade funcional daquelas (enzimas, receptores, proteínas de transporte, componentes da membrana celular ou de outras estruturas celulares como ácidos nucleicos, lisossomas, peroxissomas, aparelho de Golgi, mitocôndrias, etc.) originando quadros clínicos de expressão diversa.

Até à actualidade, foram identificados mais de seis centenas de defeitos enzimáticos responsáveis por tais doenças hereditárias. Foram mapeados, clonados, isolados e sequenciados muitos dos genes envolvidos e catalogado um enorme número de mutações responsáveis por heterogeneidade bioquímica e genética.

Também os progressos impressionantes no diagnóstico e terapêutica contribuiram para mudar o perfil e o prognóstico deste tipo de patologia.

Na sua maioria (cerca de 60%), trata-se de doenças de transmissão autossómica recessiva, sendo cerca de 20% de transmissão autossómica dominante, 12% ligadas ao cromossoma X e 8% com padrão de hereditariedade mitocondrial. Salienta-se que podem ocorrer em qualquer idade, desde a vida fetal até à idade adulta.

Como se depreende, tais patologias deverão ser assistidas e orientadas inicialmente em centros especializados de referência, embora o seu seguimento se possa realizar em instituições menos diferenciadas, mas sempre em estreita ligação com aqueles.

Rastreio

A detecção no período neonatal de algumas patologias através do rastreio universal, visando a identificação de diversas situações, tem sido realizada ao longo de várias décadas. Com os avanços da tecnologia, muitas doenças genéticas/metabólicas podem ser diagnosticadas ainda antes do início das manifestações clínicas. É este o conceito de diagnóstico precoce.

A escolha das doenças a rastrear implica a obediência a um conjunto de condições básicas:

  • a possibilidade de diagnóstico confiável numa fase precoce da vida, quando os sinais são inespecíficos, inexistentes ou raros; e
  • a existência de uma terapêutica considerada eficaz.

Um rastreio implica, igualmente, a ponderação de um conjunto de questões de ordem prática, relacionadas, nomeadamente, com:

  • a tecnologia a utilizar;
  • o controlo laboratorial de qualidade; e
  • a garantia das condições, a sua realização de forma ininterrupta ao longo do tempo.

Uma vez rastreados os casos de possível doença, devem os mesmos ser encaminhados para centros de referência para confirmação diagnóstica e tratamento específico.

O Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) é um programa de saúde pública que teve o seu início em 1979 no âmbito do Instituto de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães com o rastreio da fenilcetonúria (doença hereditária do metabolismo-DHM) e, posteriormente, em 1981, com o do hipotiroidismo congénito.

A partir de 2004 passaram a ser incluídas progressivamente no Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) outras doenças hereditárias do metabolismo (rastreio alargado), utilizando a espectrofotometria de massa em tandem, sendo em 2008 já rastreadas 26 patologias (25 metabólicas e o hipotiroidismo congénito). Como dados globais nacionais importa referir que até final de 2015 foram rastreados mais de três milhões de recém-nascidos.

De acordo com o Relatório do PNDP de 2015, o painel de rastreio das DHM em Portugal abrange as seguintes doenças:

  1. Aminoacidopatias/Doenças do ciclo da ureia
    Fenilcetonúria/hiperfenilalaninémias
    Tirosinémia tipo I
    Tirosinémia tipos II/III
    Leucinose (MSUD)
    Homocistinúria clássica
    Hipermetioninémia (def. MATI/III)
    Citrulinémia tipo I
    Acidúria arginino-succínica
    Hiperargininémia
  2. Acidúrias orgânicas
    Acidúria propiónica (PA)
    Acidúria metilmalónica (MMA, Mut-)
    Acidúria isovalérica (IVA)
    Acidúria 3 – hidroxi-3-metilglutárica (3-HMG)
    Acidúria glutárica tipo I (GA I)
    3-Metilcrotonilglicinúria (def. 3-MCC)
    Acidúria malónica
  3. Doenças da Beta-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia curta (SCHAD)
    Def. desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia média (MCAD)
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia longa (LCHAD)/TFP
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia muito longa (VLCAD)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase I (CPT I)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase II (CPT II)/CACT
    Def. múltipla das desidrogenases dos ác. gordos (MADD)/Acidúria glutárica tipo II
    Def. primária em carnitina (CUD)

Em Portugal, desde o início do PNDP até final de 2015, foram identicadas DHM com a prevalência de de 1/2.333.

No ano de 2015, em 85.058 recém-nascidos rastreados foram identificadas 30 DHM fazendo parte do painel (prevalência de 1/2.835) assim distribuídas:

  • MCAD…..12;
  • PKU/Hiperfenilalaninémia…..7;
  • MSUD…..3;
  • MAT I/III…..3;
  • MADD…..1;
  • VLCAD….1;
  • CACT…..1;
  • TIR II/III…..1;
  • MMA…..1;

Manifestações clínicas gerais

Poderá suspeitar-se de DHM nas seguintes circunstâncias:

  • no período pré-natal, existindo antecedentes familiares de doença e de mortes inexplicadas;
  • no período neonatal, verificando-se:
    • letargia, hipotonia, convulsões, deterioração neurológica, coma
    • hepatosplenenomegália, hipoglicémia, falência hepática, icterícia
    • cardiomiopatia, falência cardíaca, morte súbita, hidropisia não imune
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • acidose metabólica grave, cetose, hiperamoniémia, hiperlactacidémia
    • sinais dismórficos
    • doença grave inexplicada;
  • no período pós-neonatal, verificando-se:
    • dismorfia facial, alterações esqueléticas
    • vómitos intermitentes inexplicados
    • atraso do desenvolvimento psicomotor/sensorial
    • ataxia recorrente
    • letargia
    • coma recorrente (metabólico, neurológico ou hepático)
    • convulsões
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • icterícia
    • hepatomegália
    • acidose metabólica
    • luxação do cristalino
    • cabelo anormal
    • hipopigmentação
    • cálculos renais, etc..

Como se disse, estas doenças podem manifestar-se em qualquer idade, chamando-se a atenção para formas clínicas de apresentação tardia, no adulto, por vezes interpretadas erroneamente como processos degenerativos, vasculares, etc..

Exames laboratoriais

A suspeita de DHM com base em dados obtidos pelo clínico (anamnese e exame objectivo) implica a realização de análises laboratoriais (sempre que possível, antes de qualquer terapêutica) em regime hospitalar para avaliação de determinados parâmetros em simultâneo no sangue e urina (e LCR perante contexto clínico de encefalopatia): uma colheita, quer para estudo imediato, quer para eventual estudo ulterior mais sofisticado a que adiante se fará referência.

No sangue estão indicadas, de imediato, as seguintes análises: hemograma, ionograma, hiato iónico, glicemia, provas de função hepática, provas de função renal, estudo da coagulação, pH e gases, ácido úrico, amónia e lactato; e na urina: pesquisa de cetonúria, anotação da cor, odor e pH.

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LEUCOMALÁCIA PERIVENTRICULAR

Definição e importância do problema

A leucomalácia periventricular (LPV) é uma forma de lesão estrutural da substância branca, em geral associada a HIPV da matriz germinal; tal designação foi usada pela primeira vez em 1962 por Banker e Larroche.

Malácia significa “amolecimento ou dissolução”. Tratando-se de tal fenómeno localizado na substância branca na zona periventricular (surgindo cerca de duas semanas após actuação da noxa), fala-se em leucomalácia periventricular. De salientar que o dito fenómeno de malácia, noutro contexto etiopatogénico poderá verificar-se noutras zonas da sustância branca: tratar-se-á de leucomalácia com outra localização.

Trata-se dum problema neurológico grave verificado predominantemente no RN pré-termo, integrando diversas entidades clinicopatológicas.

A incidência é tanto maior quanto menor a idade gestacional, o que se relaciona com o grau de vulnerabilidade da estrutura da substância branca e a data da agressão dos factores lesivos (intrauterinos e/ou pós-natais). O risco é maior nos casos de HIPV grave ou ventriculomegália.

Segundo a descrição clássica, como resultado de isquémia cerebral, são verificadas zonas bilaterais de necrose na área da substância branca periventricular, disrupção de axónios, inflamação, activação glial e lesão dos pré-oligodendrócitos conduzindo a sequelas em grau variável.

A lesão da substância branca tem sido também observada em situações com componentes de infecção e inflamação, tais como hipóxia ou hipotensão pós-natal, enterocolite necrosante, prematuridade tardia ou nascimento de termo e status pós-reparação cirúrgica de cardiopatia congénita.

De acordo com estudos realizados em diversos centros especializados em populações de crianças ex-RN com peso de nascimento inferior a 1.000 gramas, tem sido apurada incidência de LPV entre 3% e 5%.

Etiopatogénese

A compreensão da etiopatogénese da LPV tem evoluído ao longo do tempo, admitindo-se a comparticipação de eventos intrauterinos e pós-natais.

Realça-se uma complexa interacção entre determinados factores: o desenvolvimento da vasculatura cerebral, a regulação do débito sanguíneo cerebral (ambos dependendo da idade gestacional), o estado de maior ou menor vulnerabilidade (dependente do grau de maturação) dos precursores dos oligodendrócitos ou pré-oligodendrócitos, fundamentais para a mielinização, e os processos de infecção e inflamação materno-fetal.

Relativamente aos pré-oligodendrócitos (considerado factor major), importa referir que, quanto maior a sua maturação, maior a resistência à toxicidade do glutamato e dos radicais livres, gerados em abundância em caso de isquémia-reperfusão.

Acontece o contrário (maior vulnerabilidade) com os pré-oligodendrócitos imaturos. Trata-se, pois, de células extremamente vulneráveis à agressão por radicais livres.

A prematuridade constitui um importante factor predisponente de LPV.

No RN pré-termo, com imaturidade estrutural, são as áreas da substância branca as mais vulneráveis e susceptíveis a isquémia-reperfusão: pequenas zonas entre a confluência ou anastomose de dois sistemas de drenagem sanguínea em continuidade (zonas “fronteira”).

Tais áreas de perfusão inadequada, subsidiárias das artérias medulares profundas, localizam-se na substância branca a alguns milímetros da parede ventricular (localização periventricular). Sendo afectados os axónios que atravessam as referidas “zonas fronteira”, de tal interrupção anatomofuncional resultará diplegia espástica, a sequela ou perturbação motora típica do RN pré-termo.

Se as lesões da substância branca forem mais extensas, poderão ser afectados os axónios que se estendem até aos membros superiores e face. As ramificações ópticas e acústicas também podem ser atingidas.

Por outro lado, no RN pré-termo o córtex cerebral é mais poupado aos efeitos da isquémia-reperfusão porque possui abundante vascularização dependente das artérias leptomeníngeas.

No RN de termo a área de maior vulnerabilidade é o córtex cerebral, podendo então surgir outro tipo de leucomalácia – chamada leucomalácia subcortical, situação pouco abordada na literatura.

Para além da prematuridade per se, menciona-se o papel de outros factores que, por sua vez, podem estar associados a prematuridade:

    • instabilidade hemodinâmica, com oscilações da pressão arterial e variações do débito sanguíneo cerebral no contexto de patologia diversa característica do RN pré-termo (dificuldade respiratória, infecção sistémica, manuseamento intempestivo, episódios de apneia, hipoglicémia, oscilações da temperatura corporal, etc.).
    • débito sanguíneo cerebral influenciado por variações da pressão de CO2 e de O2. A hipercápnia induz vasodilatação cerebral, e a hipocápnia provoca vasoconstrição com consequente diminuição do débito sanguíneo cerebral. Por sua vez, a hipóxia induz vasodilatação, e a hiperóxia leva a constrição dos pequenos vasos. Estes efeitos são mediados provavelmente através dum efeito local do pH da parede vascular.
    • deficiência do mecanismo de autorregulação circulatória (mecanismo pelo qual se mantém débito cerebral constante apesar das variações da pressão arterial sistémica) no RN pré-termo, recordando-se que o débito cerebral é regulado por variações no calibre das arteríolas intracerebrais.
    • infecção e inflamação, o que tem sido demonstrado pela associação entre infecção materna, ruptura prolongada de membranas, níveis elevados de IL-6 no sangue do cordão e incidência mais elevada de LPV; com efeito, a chamada síndroma de resposta inflamatória fetal (SRIF) é actualmente considerada como a causa major de morbilidade e mortalidade no feto/RN. E, em determinadas situações específicas, tal mecanismo é responsável por quadros clínicos simile sépsis.

Como consequência da isquémia-reperfusão e dos eventos referidos ao nível da substância branca periventricular, surge o quadro morfológico de leucomalácia, a forma mais característica de necrose axonal e glial na substância branca no RN pré-termo.

Segundo Volpe, a maior probabilidade de surgimento de LPV no contexto de hemorragia intraperiventricular (HIPV) pode relacionar-se com o aumento da concentração local de Ferro derivado da hemorragia.

A LPV constitui uma patologia sempre bilateral, com localização mais habitual na região do corpo do ventrículo lateral e do corno frontal, ao nível do buraco de Monro e do corno occipital. Pode ser difusa ou focal.

A LPV focal é classicamente descrita como áreas macroscópicas de necrose, as quais inicialmente são identificadas como lesões ecodensas na área periventricular, com ou sem sangue nos ventrículos. Algumas semanas depois, estas áreas ecodensas evoluem para áreas quísticas, quadro morfológico que traduz a chamada LPV quística, uma minoria entre as LPV (< 5% em RNMBP). A gliose cicatricial contribui, por sua vez, para a redução do volume das cavidades, podendo seguir-se microcalcificações secundárias.

A LPV difusa, na era moderna mais frequentemente explicada por maturação anormal dos neurónios e da glia do que por necrose, está associada a perda de pré-oligodendrócitos; tal facto conduz a hipomielinização e diminuição do volume da substância branca por retracção cicatricial, e à dilatação ventricular por mecanismo ex-vacuo.

No âmbito da avaliação imagiológica desta patologia está indicada a ressonância magnética (RM), tendo em conta as limitações da ecografia. (ver adiante)

Manifestações clínicas

Inicialmente, as manifestações clínicas podem ser inespecíficas. De facto, as mesmas correspondem a sequelas dos eventos descritos anteriormente: fundamentalmente, diplegia espástica (típica da LPV), alterações da motricidade fina, alterações da esfera cognitiva, problemas de memorização e atenção e, nalgumas crianças, insuficiência mental.

Para avaliação do prognóstico, torna-se necessário proceder a exame neurológico rigoroso e seriado durante o período de internamento hospitalar e após a alta.

A probabilidade de doença motora futura depende, entre outros factores, da localização e do tipo das lesões encontradas nos estudos imagiológicos.

Exames complementares

Na prática clínica corrente assume particular importância, como complemento do exame neurológico seriado, a ecografia transfontanelar (também realizada de modo seriado).

Os sinais ecográficos mais característicos de LPV são: hiperecogenicidade periventricular seguida de sinais de quistos porencefálicos (sinal do “queijo suíço”); numa fase mais tardia e nas formas mais graves passam a ser notórios sinais de atrofia cortical com alargamento dos ventrículos (Figuras 1, 2 e 3).

FIGURA 1. Aspecto ecográfico de leucomalácia não quística ao nível dos cornos frontais. Corte coronal e parassagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Leucomalácia periventricular (LPV) quística e alargamento do sistema ventricular por mecanismo ex vacuo. Corte coronal posterior. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Leucomalácia quística posterior.Corte coronal. (UCIN-HDE)

Em estudos de correlação clínico-patológica, a sensibilidade da ecografia transfontanelar é cerca de 70%, o que equivale a dizer que existe fraca capacidade discriminativa para a detecção de pequenas áreas de necrose.

Assim, outros exames de imagem evidenciando maior sensibilidade, poderão estar indicados em função do contexto clínico (RM, TAC, Eco-doppler, Espectroscopia próxima dos infravermelhos, etc.).

A RM é um método mais rigoroso identificar todas as formas de LPV, quer no lactente, quer na criança mais velha, designadamente nos casos em que há antecedentes de prematuridade e quadro de alterações cognitivas, sensoriais e ou motoras. Em função do contexto clínico poderá estar indicado o EEG.

Tratamento e prevenção

Na fase actual dos conhecimentos não existem medicações nem medidas para o tratamento específico da LPV durante o período neonatal. Nesta perspectiva, todos os esforços deverão ser dirigidos essencialmente para a prevenção da isquémia-reperfusão e da HIPV, atendendo aos factores de risco e etiopatogénese.

Assim, torna-se fundamental garantir uma perfusão cerebral normal e estável através de procedimentos e atitudes no âmbito do internamento em UCIN: monitorização da pressão arterial (evitando variações bruscas deste parâmetro),* volémia, oxigenação e ventilação com especial atenção para a hipocápnia e hipóxia, manuseamento mínimo do RN, evicção da infecção materno-fetal, antibioticoterapia atempada para tratamento da infecção materno-fetal e neonatal, etc.. Resultados da investigação experimental apontam para a utilização de antagonistas dos radicais livres, de agentes anticitocinas e antiglutamato.

*Existe controvérsia acerca dos procedimentos para manter pressão arterial normal no pré-termo, pois, de acordo com o que foi referido na alínea Etiopatogénese, face às características de disfunção do mecanismo de autorregulação cerebral no RN pré-termo, pressão arterial normal não significa necessariamente perfusão cerebral normal, o que constitui uma dificuldade para o clínico.

Prognóstico e seguimento

A LPV constitui a principal causa de disfunção cognitiva, comportamental, motora e sensorial em crianças nascidas com idade gestacional < 32 semanas. Nas formas mais graves poderá desenvolver-se epilepsia.

Como resultado da LPV, verifica-se incidência aproximada de paralisia cerebral ~10%, e de dificuldades escolares ~35%-50%, sendo que estes resultados traduzem, segundo alguns estudos, associação de HIPV e LPV. As sequelas são tanto mais frequentes quanto menor a idade gestacional.

A diplegia espástica constitui a sequela mais frequentemente associada a patologia do SNC em RN pré-termo, dado que a lesão na substância branca se localiza em geral na zona vizinha ou justaposta aos ventrículos. Se as lesões se localizarem mais perifericamente, poderão ser afectados os axónios de que dependem a face, os membros superiores e a visão (neste último caso, se a localização for dorsolateral ou contígua aos cornos occipitais).

Como se pode depreender, os casos de LPV, muitas vezes associados a outros problemas no contexto de ex-RN pré-termo, deverão ser seguidos pelo médico assistente, por sua vez, em ligação a uma equipa multidisciplinar no âmbito de um centro de desenvolvimento.

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ENFARTE CEREBRAL

Definição e aspectos epidemiológicos

Define-se enfarte cerebral como uma área de lesão do tecido cerebral confirmada por neuroimagem ou por exame anátomo-patológico, ocorrendo entre as 20 semanas gestacionais e os 28 dias de vida pós-natal. Tal lesão pode ser resultante de dois mecanismos:

  1. interrupção do fluxo sanguíneo numa artéria cerebral maior por trombose ou embolia (enfarte isquémico arterial perinatal), mais frequentemente; ou
  2. trombose duma veia cerebral maior (trombose do seio venoso cerebral) levando geralmente a enfarte hemorrágico; como regra, o enfarte hemorrágico é tipicamente venoso, localizado na zona periventricular, e habitualmente secundário a congestão venosa por hemorragia periventricular.

De salientar as seguintes associações mais frequentes:

  • o enfarte parassagital bilateral, a EHI;
  • o enfarte bilateral, a hipoglicémia; e
  • o enfarte multifocal, a infecções bacterianas ou víricas.

Etiopatogénese

Na maior parte dos casos o enfarte isquémico arterial perinatal resulta de êmbolo a partir da placenta que, atravessando o foramen ovale, atinge a aorta e os ramos da artéria carótida comum esquerda; o território mais afectado é o que corresponde à artéria cerebral média esquerda.

O enfarte parenquimatoso no contexto de trombose do seio venoso cerebral é secundário a drenagem venosa interrompida, não tendo, portanto, distribuição arterial. É em geral devido a compressão do seio sagital e a má posição cefálica e do pescoço.

São descritos os seguintes factores de risco de enfarte isquémico arterial perinatal e de trombose do seio venoso cerebral:

  • protrombóticos (explicando cerca de 40%-80% da patologia em análise), tais como: aumento da lipoproteína (a) e outras dislipoproteinémias, policitémia, mutação G1691 do factor V de Leiden, mutação G20210A do factor II, anticorpos antifosfolípidos adquiridos, défice das proteínas S e C, níveis elevados de homocisteína, etc.;
  • maternos, tais como: doenças autoimunes, pré-eclâmpsia, HTA, diabetes gestacional, consumo de cocaína, etc.;
  • fetoplacentares, tais como descolamento prematuro da placenta, infecção e hemorragia fetomaterna, gemelaridade, etc.;
  • tipo de parto, em geral, parto complicado com intervenção instrumental, etc.;
  • neonatais, em geral relacionados com hipoglicémia, desidratação, meningite, sépsis, tratamento com ECMO, etc..

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de enfarte isquémico arterial perinatal, constando de episódios de apneia e cianose, convulsões, hipotonia e irritabilidade, surgem em cerca de 90% dos casos antes dos primeiros três dias.

A trombose do seio venoso cerebral apresenta-se em cerca de 50% dos casos nos primeiros 2 dias de vida, e em 25% durante a primeira semana. As convulsões surgem como manifestação mais frequente, associada às da patologia de base anteriormente descrita.

Exames complementares

Para além dos exames laboratoriais gerais com base na história clínica e nos factores etiopatogénicos descritos, estão indicados os seguintes exames complementares:

  • rastreio protrombótico: incluindo, nos primeiros dias de vida, do foro genético – mutação do factor V Leiden, variante termolábil MTHFR e mutação protrombina G20210A; no seguimento em consulta (3-6 meses) – antitrombina III, proteína C e S, resistência à antitrombina, fibrinogénio, factor VIII, factor XII, inibidor do activador do plasminogénio, homocisteína, lipoproteína (a), anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina, e antibeta-2 glicoproteína I.

NB: estes exames devem ser realizados na mãe igualmente;

  • de imagem: ecografia transfontanelar (com baixa sensibilidade e especificidade), TAC-CE (confirmando enfarte isquémico e trombose sinovenosa, e excluindo hemorragia, também com sensibilidade e especificidade baixas), e RM (este último de 1ª linha, sendo preditivo de sequelas a longo prazo);
  • EEG: para além da recomendação de monitorização por vídeo-EEG convencional, está também indicada a realização de EEG integrado por amplitude (aEEG), este último, com interesse na avaliação do prognóstico motor em casos de lesão isquémica.

Tratamento

Citam-se como fundamentais as seguintes medidas:

  • normalização da glicémia e da temperatura, ventilação/oxigenação adequadas, manutenção da normovolémia e da normopressão arterial, e tratamento das convulsões e da febre; e
  • terapêutica anticoagulante com heparina não fraccionada ou de baixo peso molecular

→ nos casos de enfarte arterial isquémico;
→ nos casos de trombose sinovenosa sem hemorragia intracerebral e quando há
→ extensão da trombose; a trombólise não é recomendada.

Prognóstico

Globalmente, podem ser verificadas sequelas diversas (défices motores, cognitivos (associados sobretudo a hemiplegia e convulsões), da linguagem, da visão, e epilepsia.

Em cerca de 50% dos casos de crianças com enfarte da artéria cerebral média desenvolve-se hemiplegia.

Os sinais clínicos poderão não ser detectados durante vários meses, sendo que os resultados da exploração neurológica neonatal não são preditivos dos resultados tardios.

Na trombose sinovenosa, a taxa de mortalidade pode atingir os 10%-20%. A taxa de epilepsia oscila entre 15% e 40% e a de paralisia cerebral entre 6% e 7%.

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HEMORRAGIAS INTRACRANIANAS

Introdução

As hemorragias intracranianas no RN compreendem classicamente as seguintes entidades clínicas:

  1. Hemorragia cerebelosa;
  2. Hemorragia intraparenquimatosa;
  3. Hemorragia intraperiventricular (HIPV);
  4. Hemorragia subaracnoideia;
  5. Hemorragia subdural.

No capítulo sobre Traumatismos de Parto foi feita referência sucinta às hemorragias subdural e subaracnoideia, entidades associadas a lesões traumáticas.

Relativamente à hemorragia subdural, rara e própria do RN de termo, é importante referir que:

  • – quanto à evolução, estão descritas: – formas rapidamente letais; e formas mais benignas;
  • – quanto à localização: – formas infratentoriais ou da fossa posterior; e – formas localizadas à convexidade cerebral.

Quanto à hemorragia subaracnoideia, a mesma pode surgir associada a alterações circulatórias em RN pré-termo sem antecedentes de traumatismo de parto.

Tal como na hemorragia subdural, quando abundante, pode também ser rapidamente fatal, descrevendo-se como manifestações típicas as convulsões.

Neste capítulo, dando ênfase à hemorragia intraperiventricular (HIPV), abordam-se também as hemorragias cerebelosa e parenquimatosa.

1. HEMORRAGIA CEREBELOSA

Definição e importância do problema

Trata-se de hemorragia de localização intracerebelosa, incluindo ambos os hemisférios e o vermis. As lesões mais pequenas podem localizar-se sob a pia-máter ou sob o epêndimo. Nos RN de termo, a hemorragia inicia-se no vermis. É mais frequente em RN pré-termo com < 32 semanas de idade gestacional (em cerca de 15%-25% da totalidade das referidas hemorragias).

Etiopatogénese

No que se refere à etiopatogénese, multifactorial, cumpre referir o papel importante do trauma relacionado com o parto no contexto de aplicação de fórceps, apresentação de nádegas e asfixia perinatal.

Manifestações clínicas

As manifestações são geralmente subtis, sendo que, nos casos mais graves, poderão iniciar-se entre o 1º dia e as 2-3 semanas de vida. Surgindo no pós-parto imediato em casos de prematuridade, a lesão é fatal.

Como sinais clínicos mais representativos apontam-se os derivados da compressão do tronco cerebral (apneia, dificuldade respiratória, bradicárdia) e da obstrução do LCR (com hipertensão da fontanela, disjunção das suturas e dilatação ventricular). Outros sinais possíveis são: estrabismo, parésia facial, extensão tónica intermitente das extremidades, opistótono e tetraparésia.

Exames complementares

Perante a suspeita clínica face aos antecedentes perinatais, importa proceder a ecografia transfontanelar, ou transasterion, havendo disjunção das suturas.

A TAC-CE tem indicação com o fundamento de avaliar a extensão e distribuição da lesão. A RM deve estar reservada para os casos em que a TAC não permite esclarecer o diagnóstico.

2. HEMORRAGIA PARENQUIMATOSA

Este tipo de hemorragias intracranianas, surgindo geralmente em RN de termo, tem um prognóstico mau pelo risco elevado: – de sequelas várias; – de mortalidade rondando os 25%; e – de associação a alta incidência de paralisia cerebral (~10%).

Como particularidade, importa referir que em cerca de 30% dos casos há antecedentes de cesariana electiva ou de partos sem complicações, sobretudo em nulíparas.

Generalidades sobre o tratamento das hemorragias intracranianas (exceptuando HIPV)

Não existem critérios uniformes quanto ao tratamento.

→ No que respeita aos hematomas da fossa posterior, os resultados são semelhantes apenas com vigilância ou com tratamento médico. A intervenção neurocirúrgica está indicada perante deterioração neurológica ou sinais de compromisso do tronco cerebral.

→ Quanto às hemorragias supratentoriais, está indicada a cirurgia se as dimensões do hematoma forem importantes e se surgirem sinais de hipertensão intracraniana.

→ Nas situações de hematoma subdural evoluindo para a cronicidade, a fim de evitar desproporção craniofacial ou hipertensão intracraniana, está indicada a realização de punções subdurais; se estas não conduzirem à regressão, procede-se a intervenção neurocirúrgica.

3. HEMORRAGIA INTRAPERIVENTRICULAR (HIPV)

Definição e importância do problema

A chamada hemorragia intraventricular (HIV) é uma situação clínica típica nos RN pré-termo, caracterizada por processo hemorrágico localizado na área cerebral da matriz germinal, contígua com o ventrículo lateral em localização lateral-ventral.

Quando se verifica ruptura do epêndimo, a hemorragia, inicialmente periventricular, estende-se ao ventrículo – que pode sofrer dilatação – passando a chamar-se intraperiventricular (HIPV).

Há duas décadas verificava-se uma incidência de 30% em RN pré-termo de peso inferior a 1.500 gramas; com os progressos na assistência perinatal tem-se assistido a diminuição da mesma (na actualidade, em países industrializados e com recursos de terapia intensiva, cerca 12% a 15% em RN com < 32 semanas gestacionais).

Salienta-se, a propósito, que a incidência global abrangendo as diversas formas de hemorragia intracraniana neonatal (subdural, epidural, subaracnoideia, parenquimatosa e da matriz germinativa/intraventricular) varia entre 2% e > 30% em função da idade gestacional.

Como resultado de tal patologia poderão surgir sequelas neurológicas graves.

Aspectos do desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC)

Para a compreensão da problemática relacionada com a HIPV, é importante abordar de modo sucinto alguns aspectos do desenvolvimento do SNC, sugerindo-se a leitura complementar de textos relativos à anatomofisiologia respectiva, e do capítulo seguinte.

 O desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) no decurso dos primeiros meses de gestação é caracterizado fundamentalmente por um processo de multiplicação e migração celulares: na sequência dum primeiro período de histogénese, na segunda metade da gravidez verifica-se marcado crescimento e diferenciação celulares, com continuidade após o nascimento.

A proliferação glial e neuronal é rápida nos primeiros meses, ocorrendo preferencialmente na zona ventricular do neuroepitélio primitivo. As células gliais radiárias estendem-se ao longo da parede ventricular até à pia-máter, servindo de guia a todos os neurónios jovens que vão surgir na zona germinativa ventricular. Todos estes eventos têm influência no número, diferenciação, e disposição da glia: qualquer noxa que actue nesta fase poderá originar alterações da migração, organização do tecido neuronal, e mielinização.

A partir da zona ventricular, uma primeira geração de neurónios em franca proliferação celular migra para a parte externa do tubo neural para formar a placa subcortical ou “sub placa”. Esta camada de células é em seguida atravessada por neurónios jovens que, em vagas sucessivas, vão formar, de dentro para fora, a placa cortical ou o futuro córtex. A migração celular termina por volta das 20-24 semanas, ficando então o capital neuronal fixado definitivamente.

A matriz germinativa é uma região transitória muito vascularizada, involuindo a partir das 34 semanas; praticamente desaparecida no termo da gestação, cabe salientar que os respectivos vasos, com características peculiares (grandes e irregulares, não exibindo características de arteríolas ou vénulas e constituídos basicamente por endotélio e membrana basal frágil), são muito vulneráveis a diversas noxas. A matriz germinativa, confinando com o ventrículo lateral, é um local de mitoses e proliferação celular, com produção de células gliais e de oligodendrócitos, os quais produzem mais tarde a mielina; a matriz germinativa produz igualmente astrócitos, que migram para a superfície externa do córtex.

A placa subcortical é uma estrutura transitória cujos neurónios, migrando, vão constituir o córtex; tais células, diferenciando-se, contribuem igualmente para a formação de receptores, de neurotransmissores e de factores de crescimento. A actividade destes neurónios processa-se a partir das 15 semanas de gestação, mantendo-se até cerca das 22-34 semanas; mediante processo de apoptose que, entretanto, se inicia e se processa até aos 6 meses de vida pós-natal, torna-se progressivamente nítido o desenvolvimento de conexões e de estruturas definitivas.

A formação dos sulcos acompanha a formação do córtex. O aspecto deste é liso cerca das 20 semanas, acelerando-se o seu crescimento no último trimestre; as etapas de formação dos sulcos são bem precisas, permitindo uma relação sequencial com a idade gestacional.

Os primeiros vasos sanguíneos provenientes da rede meníngea são alimentados por três grandes artérias cerebrais; têm um trajecto perpendicular à superfície na sua “penetração” e progressão para as camadas profundas. De salientar que a proliferação da árvore vascular é particularmente activa durante a fase de proliferação neuronal, sendo a maturação morfológica dos capilares muito precoce e muito rápida.

A mielinização constitui um fenómeno essencial para a velocidade de condução do influxo nervoso; o conjunto dos axónios mielinizados, formando um tecido branco nacarado, constitui a chamada substância branca.

Etiopatogénese e factores de risco

A HIPV, cuja etiopatogénese é multifactorial e envolve aspectos controversos, sem unanimidade entre os especialistas e investigadores, origina-se na zona da matriz germinal subependimária, zona muito vascularizada a partir da qual se geram neuroblastos e glioblastos. A mesma sofre processo de involução a partir das 34 semanas; ou seja, tal zona germinal tem tanto maior dimensão quanto menor a idade gestacional.

Os vasos capilares da referida matriz são constituídos por estrutura indiferenciada: endotélio e membrana basal frágil com escassez de tecidos de suporte envolvente e muito dependentes do metabolismo oxidante; tal fragilidade estrutural predispõe à ruptura e hemorragia por acção de determinados factores determinantes, mecânicos e hipóxico-isquémicos (factores vasculares).

Para além dos factores vasculares, são descritos outros factores determinantes (intravasculares e extravasculares).

Os factores extravasculares são constituídos pelo deficiente suporte tecidual envolvente e pela actividade fibrinolítica aumentada.

Os factores intravasculares podem ser sistematizados do seguinte modo:

  • hipotensão arterial com consequente hipoxémia e isquémia, seguidas de reperfusão;
  • alterações da coagulação e das plaquetas nem sempre explicadas (trombocitopénia, disfunção plaquetar), podendo originar obstrução paulatina de ramos das artérias cerebrais, já no terceiro trimestre da gravidez;
  • pressão venosa aumentada por dificuldade do retorno venoso, determinando congestão excessiva ao nível da zona germinal (associada a situações clínicas na transição fetal para a vida extrauterina, tais como trabalho de parto laborioso por via vaginal e a dificuldade respiratória, etc.);
  • débito cerebral aumentado e situações clínicas como hipertensão arterial de etiopatogénese diversa, hipercápnia e aumento da pressão arterial de CO2, hipervolémia, diminuição do hematócrito (a diminuição de 1 mmol/L de Hb contribui para incremento de 12% do débito cerebral), hipoglicémia, etc.;
  • instabilidade hemodinâmica com flutuações da pressão arterial e do débito cerebral (por exemplo em casos de ventilação mecânica assíncrona com os movimentos respiratórios do RN, susceptível de ser revertida por acção de agentes paralisantes musculares), manuseamento intempestivo do RN, convulsões, pneumotórax, aspiração traqueal em RN ventilados, canal arterial permeável, FiO2 elevada, etc..

Os mecanismos de lesão cerebral associados a HIPV podem ser assim sintetizados:

  1. congestão venosa e isquémia periventricular;
  2. destruição da matriz (com consequente destruição dos precursores da glia, formação quística e repercussão no desenvolvimento futuro por lesão cerebral);
  3. necrose hemorrágica na substância branca periventricular (unilateralmente) por obstrução do retorno venoso por sangue coagulado.
    De salientar que tal necrose/lesão da substância branca:
    • não resulta da extensão da hemorragia ventricular para o parênquima;
    • é distinta da leucomalácia periventricular – LPV (lesão simétrica bilateral, não hemorrágica, relacionável com perturbação circulatória arterial), abordada adiante, em capítulo próprio.*

*A LPV é uma forma de lesão da substância branca, frequentemente associada a HIPV na zona da matriz germinal, e cujo mecanismo exacto não está totalmente esclarecido: admite-se que seja secundária a isquémia e inflamação, associada a activação glial e a lesão dos preoligodendrócitos.

 

  1. hidrocefalia, desenvolvendo-se de forma aguda (dias), ou de modo progressivo e lento (designada lentamente progressiva, em semanas), explicável pelo fluxo de sangue coagulado ventricular através dos buracos de Magendie e Luschka, originando obstrução ao nível do quarto ventrículo e compromisso da circulação e/ou de reabsorção do LCR; se se verificar obstrução do aqueduto de Sylvius a hidrocefalia é não comunicante. Surge em cerca de 40% das grandes hemorragias.

Notas importantes:

    • De acordo com os conceitos de Volpe, determinada área de necrose inicialmente não hemorrágica pode evoluir para necrose hemorrágica no contexto de subsequente fenómeno de reperfusão a qual, por sua vez, poderá agravar a HIPV;
    • A hidrocefalia que surge nos casos de HIPV tem uma patogénese diversa da chamada ventriculomegália, esta última compensatória de atrofia cortical (tipo ex-vacuo);
    • No RN de termo, a HIPV pode manifestar-se por convulsões, apneia, irritabilidade, ou letargia, vómitos, desidratação ou fontanela hipertensa.

 

As HIPV, em função da sua extensão e gravidade, podem ser classificadas em 4 graus de acordo com os critérios de Papile e colaboradores; tal classificação tem implicações práticas importantes na clínica pela sua correspondência com parâmetros imagiológicos (designadamente ecográficos) que, em certa medida, são preditivos das complicações e do prognóstico a curto e longo prazo (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das HIPV em função da gravidade (critérios de Papile).

Notas: Os graus III e IV comportam maior risco de sequelas neurológicas.
A hemorragia subependimária é uma lesão hemorrágica de tamanho variável localizada na matriz germinal cobrindo a cabeça do núcleo caudado, área particularmente vascularizada entre as 24 e 32 semanas; distingue-se, pela localização, da hemorragia dos plexos coroideus que nunca está localizada à frente dos buracos de Monro.

Grau I
Hemorragia localizada à matriz germinal/hemorragia subependimária isolada (uni ou bilateral) – não hemorragia intraventricular

Grau II
Existência de sangue no ventrículo sem dilatação ventricular por ruptura da zona matriz – epêndimo

Grau III
Existência de sangue no ventrículo com dilatação ventricular

Grau IV
HIPV com extensão intraparenquimatosa

Volpe apresentou uma classificação baseada em critérios ecográficos, considerando três graus (Quadro 2).

QUADRO 2 – HIPV – Classificação de Volpe.

Notas: Segundo este critério, deve ser anotado se existe ou não ecodensidade periventricular (localização e extensão)
I
Hemorragia da matriz germinal não atingindo o ventrículo, ou sangue no ventrículo ocupando < 10% do seu volume
II
HIV ocupando 10%-15% do volume ventricular (visão em plano ecográfico sagital)
III
HIV ocupando > 50% do volume ventricular (visão em plano ecográfico para-sagital, com distensão lateral do ventrículo)

Manifestações clínicas e exames complementares

Cerca de 90% dos casos de HIPV surgem até às 72 horas de vida (3 dias de vida) e 50% até às 24 horas de vida. Por outro lado, a extensão das lesões ocorre em 20% a 40% dos casos em cerca de 3 a 5 dias.

Formas clínicas

As manifestações clínicas da HIPV podem assumir três formas:

Forma subclínica ou silenciosa

Nesta forma, mais frequente, os sinais neurológicos são praticamente inexistentes, sobressaindo a diminuição do hematócrito como sinal mais típico, e a dificuldade de correcção do respectivo défice após transfusão; daí a necessidade da detecção, como rotina, da HIPV em todos os RN pré-termo assistidos em UCIN.

Forma intermitente ou saltitante

Nesta forma, que corresponde a hemorragia de pequenas dimensões, os sinais surgem por fases (períodos sintomáticos de horas ou dias entrecortados por períodos de duração idêntica com aparente estabilização): hipotonia, diminuição da actividade motora espontânea, dificuldade respiratória, movimentos oculares anómalos, alteração do sensório (estado vígil, irritabilidade, estupor), ângulo poplíteo em extensão, etc.. Estes sinais podem passar despercebidos em RN pré-termo já afectados por outros problemas, neurológicos ou não.

Forma catastrófica

Esta forma, correspondente a HIPV importante, traduz-se por:

  1. um ou mais sinais de deterioração neurológica de modo rápido, em minutos a escassas horas: estupor ou coma, dificuldade respiratória (diminuição da amplitude e frequência dos movimentos respiratórios, apneia), convulsões tónicas generalizadas, pupilas não reactivas, tetraparésia flácida, postura de descerebração, etc.;
  2. um ou mais dos seguintes sinais: hipertensão da fontanela anterior, diminuição do hematócrito, hipotensão, bradicárdia, instabilidade térmica, acidose metabólica, alterações da homeostase glicémica e hidroelectrolítica, etc..

Poderá surgir quadro de hidrocefalia aguda, sendo que a mortalidade nesta forma é elevada.

No âmbito da avaliação clínica diária (implicando, entre outros gestos, medição rigorosa do perímetro cefálico), a verificação de aumento do perímetro cefálico igual ou superior a 2 cm por semana aponta para a possibilidade de hidrocefalia pós-hemorrágica.

Exames complementares

Ecografia transfontanelar e ecografia com-doppler

O exame de eleição à cabeceira do doente é a ecografia transfontanelar, susceptível de identificar os 4 graus de HIPV conforme foi referido antes (classificação de Papile).

Tendo em conta a data habitual de aparecimento de HIPV atrás referida, e sem prejuízo das decisões pontuais em função do contexto clínico, é aconselhável proceder em todos os RN com idade gestacional inferior a 32 semanas, a exames ecográficos seriados no 1º, 3º e 7º dias de vida pós-natal e, depois, semanalmente.

No caso de se verificarem alterações relevantes, deve proceder-se a seguimento ecográfico mais pormenorizado e mais frequente para detecção atempada de complicações, tais como dilatação ventricular e hidrocefalia pós-hemorrágica (medição das dimensões dos ventrículos através da funcionalidade do ecógrafo, determinação do chamado índice de dilatação ventricular).

Utilizando o eco-doppler, pode determinar-se o índice de resistência (IR) através da fórmula: IR = (VFS-VFD)/VFS em que VF= velocidade de fluxo, S= sistólico, e D= diastólico; com o referido índice, pretende-se medir a resistência ao fluxo sanguíneo, sendo que um índice elevado pode indicar baixa compliance (distensibilidade) intracraniana, o que comporta risco de perfusão cerebral deficitária e, consequentemente, possibilidade de lesão isquémica.

Reportando-nos à classificação de Papile, será mais fácil interpretar os aspectos da ecografia transfontanelar. (Figuras 1, 2, 3 e 4)

FIGURA 1. Hemorragia de grau I, já em fase de quisto. Corte sagital mediano. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Hemorragia de grau II com coágulos visíveis ao nível do corno posterior. Corte sagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Hemorragia de grau III com coágulo de moldagem. Corte coronal. (UCIN-HDE)

FIGURA 4. Hemorragia de grau III, com extensão ao parênquima (grau IV). Corte coronal. (UCIN-HDE)

Quando a hemorragia é maciça (grau III), pode observar-se todo o ventrículo preenchido e dilatado; a dilatação é proporcional às dimensões do conteúdo intraventricular. Em situações extremas poderão verificar-se sinais hemorrágicos no 3º e 4º ventrículo e, por vezes, no espaço subaracnoideu infratentorial, ocupando a cisterna magna.

A hemorragia intraparenquimatosa (grau IV), unilateral, é detectada como lesão hiperecogénica, ocupando o parênquima (evoluindo para cavitação), em contacto íntimo com o ventrículo lateral, de forma globosa ou de forma triangular; está associada a hemorragia intraventricular abundante. Por vezes produz efeito de massa e anomalias da circulação cerebral da zona atingida. (Figura 4)

A ecografia transfontanelar poderá igualmente identificar sinais de hemorragia cerebelosa cuja destrinça com hemorragia subdural infratentorial é difícil.

Tomografia axial computadorizada (TAC)

Em situações especiais poderá estar indicado este tipo de exame imagiológico para esclarecimento etiopatogénico de lesões intraparenquimatosas mais periféricas; está também indicado em casos compatíveis com síndromas neurológicas acompanhadas de hemorragia intracraniana, havendo antecedentes de parto traumático (por ex. hematoma subdural e epidural da fossa posterior, hemorragia cerebelosa no pré-termo).

Ressonância magnética (RM)

Tendo em conta as limitações técnicas relacionadas com a sua execução, está indicada apenas em formas graves e no estudo evolutivo pós-neonatal.

Espectroscopia próxima dos infravermelhos

Nalguns centros especializados e em situações seleccionadas, utiliza-se este método para avaliar o processo de autorregulação da circulação cerebral.

Exame do líquido cefalorraquidiano (LCR)

Somente se justifica a punção lombar em RN sem condições para intervenção cirúrgica e com a finalidade de tentar reverter a dilatação ventricular (ver adiante); no caso de ser realizada, é possível verificar-se eritrorráquia, hiperproteinorráquia e hipoglicorráquia.

Diagnóstico diferencial

No RN pré-termo poderá surgir um quadro neurológico (tipificado por uma das formas clínicas atrás descritas), caracterizado fundamentalmente por convulsões e depressão respiratória, e explicado por hemorragia cerebelosa espontânea ou de causa traumática (partos de apresentação pélvica ou manobras de reanimação com máscara implicando compressão da face e região occipital); como consequência poderá surgir enfarte venoso.

Como factores predisponentes citam-se alterações hemodinâmicas e da coagulação.

Prevenção

A prevenção da HIPV implica um conjunto de medidas pré-natais, intra-parto e pós-natais.

Medidas pré-natais

As medidas pré-natais dizem respeito essencialmente à correcta assistência da grávida transferindo-a atempadamente para centros especializados se existir risco de parto pré-termo. Duas medidas pré-natais importantes dizem respeito:

  • à administração de antibioticoterapia à grávida em caso de ruptura prematura das membranas como medida eficaz de prevenção da hemorragia da matriz germinal e de parto pré-termo (com efeito, a infecção das membranas, associada à sua ruptura prematura, poderá desencadear o parto pelo facto de certos microrganismos, produtores de prostaglandinas, estimularem a contractilidade uterina);
  • à corticoterapia com betametasona como medida potencialmente útil no que respeita à maturação dos vasos da matriz germinal.

Medidas intra-parto

Estas medidas dizem respeito ao parto minimamente traumático e realizado por equipa experiente em centro especializado.

Medidas pós-natais

Reanimação neonatal
  •  minimamente traumática, em ambiente de termoneutralidade;
  • evitando a utilização de solutos hipertónicos e de expansão rápida da volémia;
  • evitando hipóxia, hiperóxia, hipercápnia, hipocápnia e oscilações da pressão arterial.
Cuidados gerais
  • mantendo a cabeça do RN em posição neutra/decúbito dorsal (a rotação da cabeça poderá aumentar a pressão venosa central);
  • promovendo a mínima manipulação, o mínimo ruído e a mínima luminosidade.

Nota importante:
A administração de fenobarbital, vitamina E, indometacina e etamcilato não evidenciaram redução da incidência de HIPV, de acordo com as conclusões de estudos meta-analíticos.

 

Tratamento

Caso se verifiquem sinais de dilatação ventricular progressiva para além das quatro semanas de vida, há que intervir com um conjunto de procedimentos e atitudes cujo objectivo é facilitar a eliminação ou a remoção do LCR; está indicada tal remoção assistida por eco-doppler caso se verifique incremento de IR > 30% em relação à linha de base, ou linha de base de IR > 0,9.

  • punção lombar periódica: em geral procede-se à extracção de parcelas de 10-15 mL/kg de LCR em cada punção lombar, dependendo o número e duração das mesmas da evolução e resultado conseguido; este método tem riscos, tais como meningite e ventriculite;
  • drenagem ventricular: a drenagem ventricular recomendada é a drenagem definitiva ventriculoperitoneal por equipa de neurocirurgia pediátrica; como técnica invasiva, indicada em cerca de 10% das HIPV, comporta também riscos relacionados com morbilidade infecciosa; como alternativa provisória, em certos casos, pode utilizar-se a derivação externa para correcção emergente de hipertensão intracraniana ou nos casos de obstrução da derivação definitiva.

Como se pode depreender, em todas as circunstâncias torna-se obrigatória a vigilância seriada ecográfica (enquanto a fontanela anterior persistir) e/ou através de TAC.

  • inibidores da anidrase carbónica: em geral utiliza-se a acetazolamida, que também comporta riscos como aparecimento de acidose metabólica e efeito desmielinizante; caso se associe ao furosemido, existe ainda o risco de nefrocalcinose por hipercalciúria.

Prognóstico

O prognóstico da HIPV é, em princípio, reservado, designadamente nas situações correspondentes aos graus III e IV; tal circunstância implica um esquema organizado de seguimento multidisciplinar a longo prazo. Contudo, em RN pré-termo com formas de grau I-II, em comparação com idêntica população sem HIPV, existe maior probabilidade de paralisia cerebral e de alterações do foro cognitivo.

As sequelas mais frequentemente surgidas, dependentes das lesões associadas, são as seguintes: epilepsia, sequelas motoras, hemiplegia espástica, e alterações cognitivas por lesões de diversas estruturas como axónios, dendritos, sinapses e mielina.

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ENCEFALOPATIA NEONATAL

Definições e importância do problema

A encefalopatia neonatal é uma síndroma definida clinicamente por disfunção neurológica no RN de termo no período neonatal precoce. Manifesta-se por uma combinação de sinais incluindo alteração do estado de consciência, tono muscular ou reflexos anormais, alterações da função autonómica, ou convulsões.

A importância deste problema clínico, relacionado com lesão neonatal do SNC, pode ser tipificada por números: em todo o mundo, anualmente, letalidade de 1 milhão de crianças e 1 milhão de casos com sequelas permanentes e invalidantes.

Como factores etiológicos descrevem-se os seguintes:

  1. combinação de hipóxia e isquémia intra ou pré-parto (encefalopatia hipóxico-isquémica/EHI) que pode ser acompanhada por sinais de sofrimento fetal, e diversas patologias do foro vascular, incluindo hemorragia intracraniana e acidente vascular cerebral;
  2. lesão secundária a traumatismo de nascimento;
  3. infecções;
  4. alterações genéticas;
  5. alterações metabólicas; e
  6. anomalias congénitas cerebrais.

Neste capítulo é dada ênfase à EHI em RN de termo. Nos capítulos seguintes são abordadas as seguintes nosologias: Hemorragias Intracranianas, Enfarte Cerebral e Leucomalácia Periventricular, esta última associada a determinado grupo de hemorragias intracranianas, como paradigma de lesão da substância branca.

Na literatura médica, relativamente à patologia parenquimatosa (adquirida) do SNC no RN, é adoptada uma sistematização nosológica diversa. Como alternativa ao termo Encefalopatia Neonatal, emprega-se o termo Lesão Cerebral Neonatal. Assim, neste conceito, são englobadas as seguintes entidades: Encefalopatia Hipóxico-Isquémica, Enfarte Cerebral, Hemorragia Intracraniana, Lesão da Substância Branca, Abcessos Cerebrais e Tumores Cerebrais.

ENCEFALOPATIA HIPÓXICO-ISQUÉMICA

Introdução

A EHI pressupõe a existência de lesão cerebral atribuída a hipóxa-isquémia.

O défice de oxigenação tecidual pode ser causado, quer por hipoxémia (diminuição do conteúdo em oxigénio no sangue), quer por isquémia (redução da perfusão sanguínea em determinado território); em geral, estes dois eventos ocorrem em simultâneo ou de modo sequencial.

Asfixia define-se como o compromisso das trocas gasosas, correspondendo, não só ao défice de oxigenação sanguínea, mas igualmente ao excesso de CO2 (hipercápnia), com consequente acidose.

O diagnóstico de asfixia perinatal implica a presença de 4 critérios:

  1. pH arterial umbilical <7,0;
  2. índice de Apgar 0-3 aos 5 minutos;
  3. sinais neurológicos no pós-parto;
  4. disfunção multiorgânica no período neonatal imediato (pulmonar, renal, cardiovascular, metabólico, gastrintestinal, hematológico), ou morte.

Uma situação de asfixia perinatal mantida, determinando a hipotensão e isquémia e conduzindo a alteração do débito sanguíneo cerebral, é a causa mais frequente de encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI).

A designação de depressão neonatal corresponde à situação clínica de RN de termo com adaptação prolongada à vida extrauterina, geralmente associada a índice de Apgar baixo ao 1 e 5 minutos.

Aspectos epidemiológicos

A incidência de EHI (causa importante de morbilidade e de mortalidade) é cerca de 2 a 9/1.000 nados-vivos, em proporção muito maior nos países em desenvolvimento.

A mortalidade global por asfixia perinatal oscila entre 10% e 30%; a frequência de sequelas no âmbito do neurodesenvolvimento em sobreviventes com tal patologia é da ordem de 15% a 45%.

O risco de paralisia cerebral (PC), havendo antecedentes de asfixia perinatal, é 5%-10% em comparação com 0,2% na população geral. De acordo com estudo nacional sobre PC aos 5 anos, foi possível atribuir a etiologia “asfixia perinatal e neonatal” em 11% dos casos.

Importa referir-se, a propósito, que qualquer anomalia neurológica detectada após o período neonatal (designadamente na 1ª e 2ª infância) somente poderá ser atribuída a asfixia perinatal se se tiver verificado quadro compatível com EHI no período neonatal imediato.

Nota importante:
A maioria das situações de PC não se relaciona com asfixia perinatal e a maioria das situações de asfixia perinatal não causa PC.

Etiopatogénese

A agressão hipóxico-isquémica pode verificar-se de maneira aguda ou crónica, e em qualquer momento da gestação. Actualmente, admite-se que a lesão neuronal conduzindo à necrose, e relacionada com asfixia, surge após fase inicial de hipóxia-isquémia, isto é, na fase de reperfusão cerebral.

Durante os eventos de asfixia (que, em 90% dos casos, ocorrem ante- ou intra-parto), o metabolismo cerebral altera-se substancialmente; na falta de O2, entra em acção a glicólise anaeróbia como fonte energética de alternativa para a célula nervosa o que, por sua vez, conduz a depleção rápida da ATP neuronal, acumulação de lactato, e falência dos mecanismos de “bomba” da membrana, o que leva ao aparecimento de acidose. Desta última falência resultam influxo e acumulação intracelular de Na+ e Ca++ e de aminoácidos excitatórios tais como o aspartato e glutamato, levando a edema citotóxico e a vasospasmo.

Sendo restaurado o débito sanguíneo cerebral (reperfusão), são produzidos radicais livres de oxigénio e de óxido nítrico, o que leva ao agravamento do vasospasmo e a lesão mitocondrial. Estes, juntamente com o edema citotóxico, conduzem à morte neuronal, que pode ser imediata ou processar-se de modo progressivo em diversas áreas.

O óxido nítrico (nas células e nos endotélios), considerado inicialmente factor protector pelo efeito vasodilatador e antiagregante das plaquetas, reage com o superóxido produzindo peroxinitrito, de cuja degradação resulta o radical hidroxilo, potente agente oxidante.

Outro efeito da elevação do cálcio intracelular é a estimulação das fosfolipases que promovem a destruição das membranas fosfolipídicas das membranas neuronais com libertação de ácido araquidónico cuja metabolização – quer pela via da cicloxigenase, quer pela da lipoxigenase – leva à formação de compostos vasoconstritores (por ex. leucotrienos e tromboxanos) agravando a isquémia inicial.

No recém-nascido de termo, a necrose neuronal é selectiva, sendo atingidas as seguintes zonas: os hemisférios, o córtex visual, o hipocampo, os núcleos cinzentos centrais, o tálamo e o hipotálamo. No tronco cerebral são afectados os tubérculos quadrigémeos, os núcleos oculomotores, a formação reticulada, os núcleos da protuberância e os núcleos bulbares.

A gravidade das lesões exprime-se em geral de forma descendente; nas formas moderadas, as lesões são restritas ao córtex; e, nas formas graves, são afectados os núcleos cinzentos centrais.

A propósito dos mecanismos de lesão cerebral no RN de termo cabe salietar os resultados da investigação de Ferriero. Este autor chamou a atenção para uma particularidade do efeito do estresse oxidativo e da excitotoxicidade: simultaneamente inflamação e fenómeno de reparação. A morte celular inicia-se imediatamente após a agressão, continuando durante dias ou semanas. Verifica-se, contudo, uma mudança no fenótipo da morte celular variando entre padrão de morfologia necrótica precoce e patologia assemelhando-se a apoptose. A este tipo de evolução chama-se continuum de necrose-apoptose.

A nova modalidade de tratamento com hipotermia (ver adiante) permite reduzir o metabolismo cerebral, o edema citotóxico, a pressão intracraniana e a apoptose. De referir também como efeitos benéficos limitar a extensão da lesão neuronal através de mecanismos diversos tais como inibição de radicais livres.

Para além do SNC, outros órgãos podem evidenciar repercussões da asfixia, tais como:

  • rim, o órgão mais frequentemente afectado no contexto de asfixia perinatal (necrose tubular aguda ou cortical);
  • miocárdio e músculo estriado (isquémia, diminuição da contractilidade ventricular, insuficiência tricúspide, frequência cardíaca fixa, com ausência de variabilidade);*
  • sistema digestivo (isquémia intestinal e ECN);
  • sangue periférico, medula óssea e fígado (disfunção hepática, deficiente produção de factores de coagulação, deficiente produção de plaquetas);
  • sistema respiratório (aumento da resistência vascular pulmonar, disfunção e destruição do surfactante, hemorragia);
  • suprarrenal (hemorragia suprarrenal).

Etiopatogénese

A agressão hipóxico-isquémica pode verificar-se de maneira aguda ou crónica, e em qualquer momento da gestação. Actualmente, admite-se que a lesão neuronal conduzindo à necrose, e relacionada com asfixia, surge após fase inicial de hipóxia-isquémia, isto é, na fase de reperfusão cerebral.

Durante os eventos de asfixia (que, em 90% dos casos, ocorrem ante- ou intra-parto), o metabolismo cerebral altera-se substancialmente; na falta de O2, entra em acção a glicólise anaeróbia como fonte energética de alternativa para a célula nervosa o que, por sua vez, conduz a depleção rápida da ATP neuronal, acumulação de lactato, e falência dos mecanismos de “bomba” da membrana, o que leva ao aparecimento de acidose. Desta última falência resultam influxo e acumulação intracelular de Na+ e Ca++ e de aminoácidos excitatórios tais como o aspartato e glutamato, levando a edema citotóxico e a vasospasmo.

Sendo restaurado o débito sanguíneo cerebral (reperfusão), são produzidos radicais livres de oxigénio e de óxido nítrico, o que leva ao agravamento do vasospasmo e a lesão mitocondrial. Estes, juntamente com o edema citotóxico, conduzem à morte neuronal, que pode ser imediata ou processar-se de modo progressivo em diversas áreas.

O óxido nítrico (nas células e nos endotélios), considerado inicialmente factor protector pelo efeito vasodilatador e antiagregante das plaquetas, reage com o superóxido produzindo peroxinitrito, de cuja degradação resulta o radical hidroxilo, potente agente oxidante.

Outro efeito da elevação do cálcio intracelular é a estimulação das fosfolipases que promovem a destruição das membranas fosfolipídicas das membranas neuronais com libertação de ácido araquidónico cuja metabolização – quer pela via da cicloxigenase, quer pela da lipoxigenase – leva à formação de compostos vasoconstritores (por ex. leucotrienos e tromboxanos) agravando a isquémia inicial.

No recém-nascido de termo, a necrose neuronal é selectiva, sendo atingidas as seguintes zonas: os hemisférios, o córtex visual, o hipocampo, os núcleos cinzentos centrais, o tálamo e o hipotálamo. No tronco cerebral são afectados os tubérculos quadrigémeos, os núcleos oculomotores, a formação reticulada, os núcleos da protuberância e os núcleos bulbares.

A gravidade das lesões exprime-se em geral de forma descendente; nas formas moderadas, as lesões são restritas ao córtex; e, nas formas graves, são afectados os núcleos cinzentos centrais.

A propósito dos mecanismos de lesão cerebral no RN de termo cabe salietar os resultados da investigação de Ferriero. Este autor chamou a atenção para uma particularidade do efeito do estresse oxidativo e da excitotoxicidade: simultaneamente inflamação e fenómeno de reparação. A morte celular inicia-se imediatamente após a agressão, continuando durante dias ou semanas. Verifica-se, contudo, uma mudança no fenótipo da morte celular variando entre padrão de morfologia necrótica precoce e patologia assemelhando-se a apoptose. A este tipo de evolução chama-se continuum de necrose-apoptose.

A nova modalidade de tratamento com hipotermia (ver adiante) permite reduzir o metabolismo cerebral, o edema citotóxico, a pressão intracraniana e a apoptose. De referir também como efeitos benéficos limitar a extensão da lesão neuronal através de mecanismos diversos tais como inibição de radicais livres.

Para além do SNC, outros órgãos podem evidenciar repercussões da asfixia, tais como:

  • rim, o órgão mais frequentemente afectado no contexto de asfixia perinatal (necrose tubular aguda ou cortical);
  • miocárdio e músculo estriado (isquémia, diminuição da contractilidade ventricular, insuficiência tricúspide, frequência cardíaca fixa, com ausência de variabilidade);*
  • sistema digestivo (isquémia intestinal e ECN);
  • sangue periférico, medula óssea e fígado (disfunção hepática, deficiente produção de factores de coagulação, deficiente produção de plaquetas);
  • sistema respiratório (aumento da resistência vascular pulmonar, disfunção e destruição do surfactante, hemorragia);
  • suprarrenal (hemorragia suprarrenal).

*De facto a hipóxia-isquémia leva a lesão da membrana e libertação de substâncias intracelulares para a corrente sanguínea como troponina cardíaca I (cTNI) e péptido natriurético (N-Terminal PRO-BNP) que podem servir de marcadores de disfunção miocárdica. A creatina-quinase (CK-MB) elevada traduz estresse ao nível do músculo liso (ver adiante).

Manifestações clÍnicas

Quanto aos antecedentes há a referir: problemas obstétricos associados a dificuldade mecânica no parto e a difícil adaptação do feto à vida extrauterina com depressão grave traduzida por índice de Apgar baixo; e dificuldade na iniciação e manutenção da respiração espontânea obrigando a manobras de reanimação na sala de partos.

O quadro de EHI integra um conjunto de sinais neurológicos acompanhados ou não, em grau variável, doutras manifestações ao nível doutros sistemas (disfunção multiorgânica): disfunção renal, dificuldade respiratória, hipertensão pulmonar, hipoglicémia, hipocalcémia, acidose, disfunção hepática, enterocolite necrosante, trombocitopénia, CIVD, etc.. Os referidos sinais podem surgir no pós-parto imediato ou mais tarde.

O espectro de manifestações varia entre o grau I ou forma ligeira, grau II ou forma moderada e grau III ou forma grave (Quadro 1, adaptado de M Levene).

QUADRO 1 – Gravidade da EHI.

(adaptado de M Levene, 1985)
Grau I
(ligeira)
Grau II
(moderada)
Grau III
(grave)
Irritabilidade
Hiperalerta
Hipotonia ligeira
Sucção débil
Não convulsões

Letargia

Hipotonia moderada
Sonda de alimentação
Convulsões

Coma

Hipotonia grave
Não respiração espontânea
Convulsões prolongadas

Adoptando os critérios clássicos de Sarnat & Sarnat na EHI (englobando mais parâmetros do que os da classificação de M Levene) podem ser considerados três estádios evolutivos designados respectivamente por estádio 1 (manifestações ligeiras), estádio 2 (manifestações moderadas) e estádio 3 (manifestações graves) (Quadro 2).

QUADRO 2 – EHI – Critérios de Sarnat & Sarnat (Estádios 1, 2 e 3).

Abreviaturas: > = aumentado; < = diminuído; Mov espont = movimentos espontâneos; N = normal; ROT = reflexos ósteo-tendinosos; FC = frequência cardíaca; EEG = electroencefalograma; d = dias; h = horas; episód. = episódios de; GI = gastrintestinal.
Parâmetros 123
Consciência
Mov espont
Tono muscular
Postura
Irritabilidade
Aumentados
N ou > ligeiro
Flexão discreta das extremidades
Letargia
Diminuídos
< ligeiro
Flexão acentuada das extremidades
Estupor ou coma
Diminuídos ou ausentes
Flacidez
Extensão dos membros superiores e inferiores
ROT
Pupilas
N
Midríase
<
Miose ou anisocória
Arreflexia
Hipo/arreflexia à luz
RespiraçãoEspontâneaEspontânea ou apneia episód.Periódica ou apneia
FC
Secreção salivar, brônquica
Motilidade GI
Convulsões
EEG 
>
Escassa
N ou <
Não
N
<
Abundante
>
Frequentes
Amplitude < Espículas focais
Variável
Variável
Variável
Variável
Padrão periódico com fases isoeléctricas ou isoeléctrico
Duração
Prognóstico
< 24 h
Bom
2-14 d
Bom (80%) se < 5 d
Reservado se > 5 d
Horas a semanas
Mortalidade ~50%
Sequelas ~50%

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da EHI faz-se designadamente com outras situações acompanhadas de convulsões.

Nesta alínea cabe uma referência especial a um quadro relacionado com enfarte cerebral de território irrigado pela artéria cerebral média. É caracterizado clinicamente por convulsões de manifestação precoce, tal como acontece em certas formas de EHI.

Com efeito, estes acidentes vasculares podem ocorrer já no período de vida fetal ou intraparto; situações como a gemelaridade e anomalias congénitas cardíacas podem constituir factores predisponentes. Em cerca de 50% dos casos surgem como consequência de asfixia perinatal. Outros mecanismos patogénicos incluem arteriopatia, tromboembolismo/hipercoagulabilidade, vasospasmo e acção traumática.

Exames complementares

Salientando-se a noção de que o diagnóstico de EHI é fundamentalmente clínico, cabe referir alguns exames complementares com interesse para o estudo evolutivo e para avaliação prognóstica e diagnóstico diferencial; a sua escolha deverá ser criteriosa em função dos antecedentes e da evolução clínica.

Genericamente, pode ser evidenciada por critérios bioquímicos (CK-MB, CK-BB), electrofisiológicos (ECG, EEG), imagiológicos (ecografia transfontanelar), TAC, RM, ou anomalias detectadas post-mortem.

Sintetizando:

  • Exame do LCR – poderá estar indicado se existir suspeita de quadro infeccioso.
  • ECG – no âmbito deste exame, segundo estudos recentes, valoriza-se o parâmetro variabilidade da frequência cardíaca (VFC ou HRV) como possível marcador de lesão cerebral, com valor prognóstico. De salientar que a HRV permite avaliar a actividade do sistema nervoso autónomo (simpático e parassimpático), recordando-se que a elevada FC no RN traduz predomínio da actividade simpática associada a diminuição da actividade vagal.
  • EEG – reportando-nos ao Quadro 2, cabe salientar que o traçado se relaciona com a gravidade da situação.
  • aEEG – actualmente, está disponível uma nova modalidade de EEG (designada EEG de amplitude integrada) com vantagens no que respeita à monitorização dos efeitos do tratamento efectuado em situações com convulsões e/ou submetidas a hipotermia como terapêutica (ver adiante).
  • Ecografia transfontanelar – técnica com limitações, a realizar sistematicamente em todos os casos de asfixia perinatal na perspectiva de selecção de casos para outros exames; na fase inicial, a contribuição é escassa, podendo ser detectados sinais de edema; o eco-Doppler permite medir os fluxos arteriais e o chamado índice de resistência (Figuras 1 e 2).
  • TAC – poderá fornecer dados representativos de lesões do córtex cerebral, tálamo, gânglios da base e região periventricular; indicada na 2ª-4ª semana de vida, poderá dar contributo quanto ao prognóstico; igualmente com interesse nos casos em que se admite a hipótese de enfarte cerebral;
  • Espectroscopia de protões – trata-se duma técnica que permite avaliar a concentração de vários substratos do cérebro cujo perfil se altera após episódio de hipóxia-isquémia-reperfusão.

FIGURA 1. Imagem de ecografia transfontanelar de RN com EHI. Aspecto de enfarte na região têmporo-occipital (corte sagital). (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Imagem de ecografia transfontanelar de RN com EHI. Aspecto de enfartes na região da fenda e zona cortical (corte coronal). (UCIN-HDE)

No que respeita à avaliação dos efeitos da asfixia em diversos órgãos e sistemas, cabe referir os seguintes exames:

Coração

  • Troponina cardíaca I (cTNI) e troponina cardíaca T (cTnT), proteínas que são marcadores de lesão do miocárdio, com efeito sobre a interacção entre actina e miosina, mediada pelo cálcio. Valores normais: I= 0-0,28 ±0,42 mcg/L; T= 0-0,097 mcg/L. Valores elevados associam-se situações de asfixia comprovada.
  • Creatinacinase, fracção MB (CK-MB). Valores elevados >5-10% poderão indicar lesão miocárdica.
  • NT-pro BNP (valores de referência entre as 24 e 48 horas de vida: mediana de 3300 pg/mL, diminuindo para 1180 pg/mL após 48 horas). Valores superiores devem ser avaliados em função do contexto clínico (ver Glossário Geral).

SNC

  • CK, fracção BB (CK-BB). Valores elevados em situação de asfixia ao cabo de ~12 horas; contudo não tem valor prognóstico.
  • Proteína S-100 + CK-BB. Valores elevados de proteína S-100 (>8,5 mcg/L) + de CK-BB, associados a pH arterial baixo são preditivos de encefalopatia moderada a grave (sensibilidade ~70% e especificidade ~90-95%).

Rim

  • Beta-2 microglobulina urinária (proteína de baixo peso molecular filtrada pelo glomérulo e quase reabsorvida na totalidade no túbulo proximal). Valores elevados são indicadores de disfunção tubular proximal.
  • FENa pode igualmente demonstrar a repercussão sobre a função renal.
  • CysC/cistatina C urinária e NGAL (Neutrophil gelatinase-associated lipocalin) sérica e urinária elevados são também marcadores preditivos precoces de lesão renal aguda secundária a encefalopatia neonatal (consultar bibliografia).
  • Ecografia renal. Anomalias detectadas correlacionam-se com oligúria.

Tratamento

Os princípios gerais do tratamento da EHI – não consensuais em centros internacionais idóneos – obedecem à noção de que a lesão neuronal pode ser minorada se a actuação no periparto for adequada e atempada.

Seguidamente resumem-se os tópicos principais de tal actuação:

  • Ventilação mecânica desde o pós-parto, e por período variando entre 48 a 72 horas em função do contexto clínico, com o objectivo de normalização dos parâmetros de pH e gases no sangue na tentativa de manutenção dos seguintes valores: pH (7,25-7,40), PaO2 (50-70 mmHg), PaCO2 (45-60 mmHg), SpO2 (90-93%);
  • Estabilização hemodinâmica, metabólica e hidroelectrolítica; ou seja, manutenção dos valores normais da pressão arterial, da glicémia, da natrémia, da potassémia com monitorização da diurese e dos parâmetros da função renal (osmolalidades sérica e urinária, creatinina sérica, ionogramas urinário e sérico, etc.);
  • Tratamento das convulsões;
  • Tratamento do edema cerebral através da administração de corticóides e manitol.

Outras medidas têm por finalidade prevenir a morte neuronal tardia por mecanismos diversos tais como administração de barbitúricos (tiopental), bloqueantes dos canais do cálcio, bloqueantes dos receptores dos neurotransmissores, inibidores da sintetase do óxido nítrico e células histaminais obtidas do cordão umbilical.

A hipotermia corporal iniciada antes das 6 horas de vida (providenciando temperaturas ~33-34ºC durante 72 horas, com reaquecimento ulterior progressivo), constitui um método já aplicado no nosso país com as seguintes indicações: < 6 horas de vida, > 36 semanas de idade gestacional, evidência de asfixia perinatal, EHI moderada ou grave e exclusão de defeitos congénitos.

O grau de EHI deve ser avaliado até 1 hora de vida no sentido de identificar forma ligeira (obrigando a hipotermia passiva), ou forma moderada a grave (obrigando a hipotermia induzida). Na forma moderada a grave está indicada transferência para hospital onde possa ser aplicada hipotermia induzida/terapêutica.

Os pormenores desta técnica ultrapassam os objectivos deste livro.

Como terapêuticas emergentes, em fase de investigação, citam-se a administração de eritropoietina e de células estaminais.

Prognóstico

Em complemento do que foi descrito no Quadro 2, e de acordo com diversos estudos multicêntricos, salienta-se que a mortalidade por EHI oscila entre 10 e 15%. As principais sequelas (15-20%) detectadas são: paralisia cerebral (formas discinéticas e tetraplegia), epilepsia, insuficiência mental, microcefalia, cegueira cortical, surdez e perturbações da linguagem.

Em suma, quanto mais precocemente se manifestarem os sinais neurológicos, maior duração tiverem, e mais exuberantes os achados do EEG, pior o prognóstico.

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CONVULSÕES NO RECÉM-NASCIDO

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

As convulsões são anomalias paroxísticas traduzidas por manifestações motoras, comportamentais ou autonómicas. Não se trata duma doença específica, mas seguramente de um importante epifenómeno de disfunção neurológica.

No conceito global de convulsão neonatal são englobados dois grandes grupos:

  • as convulsões epilépticas ou manifestações relacionadas com descargas eléctricas excessivas e síncronas de neurónios cerebrais, associadas a sinais electroencefalográficos; e
  • as convulsões não epilépticas ou manifestações paroxísticas estereotipadas, não acompanhadas de alterações electroencefalográficas.

Estabelecendo comparação com alterações paroxísticas doutros grupos etários, cabe referir as seguintes destrinças:

  • devido à imaturidade do córtex cerebral no RN e à incompleta mielinização do sistema nervoso, as convulsões tónico-clónicas generalizadas são raras no período neonatal;
  • tendo em conta, por outro lado, o maior desenvolvimento das áreas subcorticais (designadamente diencéfalo e tronco cerebral) no RN, os fenómenos oculomotores, oro-buco-linguais e os sinais de disfunção autonómica são mais frequentes.

A incidência de convulsões neonatais varia muito em função da idade gestacional, das populações estudadas (com situações de risco variáveis) e dos critérios utilizados para a sua definição (clínicos ou electroencefalográficos).

Considerando o peso de nascimento, é estimada a seguinte incidência: – RN de peso < 1.500 g: 57,5/1.000; – RN de peso entre 2.500 e 3.999 g: 2,8/1.000.

Devido à possibilidade de tal disfunção (relacionável com múltiplos factores) poder originar, por sua vez, danos subsequentes ao nível do sistema nervoso, deverá existir da parte do clínico que presta cuidados a RN um elevado nível de suspeita, o que implica diagnóstico e tratamento realizados com celeridade e, muitas vezes, aplicação de medidas sintomáticas antes do diagnóstico etiológico.

Etiopatogénese

Existindo ainda muitas dúvidas quanto à patogénese das convulsões em geral há, contudo, mecanismos básicos que importa realçar:

  • imaturidade cerebral associada a predomínio do papel dos neurotransmissores excitatórios (primariamente glutamato, com maior expressão dos respectivos receptores e escassez relativa dos respectivos transportadores) em relação aos neurotransmissores inibitórios (primariamente GABA/ácido gama aminobutírico); de tal resulta mais intenso e prolongado contacto do glutamato com os receptores pós-sinápticos; uma vez que a vitamina B6 ou piridoxina é um cofactor para a síntese de GABA, deduz-se que o défice ou ausência desta última constitui factor predisponente de convulsões;
  • as características de imaturidade dos receptores do glutamato anteriormente referidas facilitam o influxo catiónico e a despolarização da membrana, activando o fenómeno de convulsão;
  • hipofuncionamento dos neurotransmissores inibitórios no cérebro imaturo, o que se relaciona com a fraca expressão dos respectivos canais iónicos;
  • disfunção da bomba de Na/K com repercussão negativa na produção de energia celular, o que é favorecido em situações de hipóxia-isquémia e hipoglicémia;
  • disfunção ao nível da membrana celular do neurónio, traduzida nomeadamente por maior permeabilidade, o que é favorecido por situações acompanhadas de hipocalcémia e hipomagnesiémia.

Para além destes factores celulares, as características do desenvolvimento do SNC no cérebro imaturo também favorecem o predomínio do estado excitatório, predispondo a convulsões; por exemplo, ao nível da substantia nigra, as vias excitatórias desenvolvem-se antes das vias inibitórias.

Na perspectiva da prática clínica, os factores etiológicos mais frequentemente implicados são mencionados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Convulsões neonatais. Factores etiológicos.

Encefalopatia hipóxico-isquémica
Encefalopatia hipertensiva
Infecções (grupo TORCHS, meningite, meningoencefalite, etc.)
Anomalias congénitas (agenésia cerebral, etc.)
Lesões cérebro-vasculares (enfartes arteriais e venosos, etc.)
Lesões traumáticas (hematoma subdural, hemorragia intraperiventricular, etc.)
Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas (hiponatrémia, hipernatrémia, hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesémia, etc.)
Doenças hereditárias do metabolismo (galactosémia, frutosémia, aminoacidopatias, anomalias do ciclo da ureia, hiperglicinémia cetótica e não cetótica, etc.)
Convulsões familiares (esclerose tuberosa, síndromas neurocutâneas, etc.)
Privação de drogas (heroína, etc.)
Efeito de fármacos, “tóxicos e toxinas” (isoniazida, bilirrubina, etc.)
Síndromas genéticas (síndroma de Smith-Lemli-Opitz, síndroma de Zellweger, etc.)
Outros

Manifestações clínicas

A classificação das convulsões neonatais mais utilizada é a que foi descrita por JJ Volpe em 1989.

De acordo com a semiologia clínica são discriminados quatro tipos (subtis, clónicas, tónicas e mioclónicas.

Na classificação que integra o Quadro 2, a sistematização geral, variante da classificação de JJ Volpe considera: as convulsões com ou sem alterações electroencefalográficas, respectivamente epilépticas e não epilépticas e as chamadas convulsões traduzidas apenas por anomalias no EEG (assintomáticas).

A convulsão subtil corresponde a uma alteração motora, autonómica ou comportamental que surge mais frequentemente em RN pré-termo, nem sempre acompanhada de alterações do EEG.

QUADRO 2 – Tipos de convulsões neonatais.

Convulsões epilépticas (associadas a anomalias no EEG)

    • Subtis (predominantemente no RN pré-termo)
    • Clónicas focais e multifocais
    • Mioclónicas generalizadas e focais
    • Tónicas focais

 Convulsões não epilépticas (não associadas a anomalias no EEG)

    • Mioclónicas focais e multifocais
    • Tónicas generalizadas
    • Subtis
Convulsões “electroencefalográficas” ou anomalias do EEG assintomáticas

As respectivas manifestações podem ser sistematizadas do seguinte modo: movimentos de mastigação, desvio horizontal do globo ocular com ou sem tremor ocular, fixação ocular mantida, movimentos de pedalagem, movimentos dos membros superiores semelhantes a gestos de boxeur ou de nadador, fenómenos autonómicos como alterações vasomotoras hipertensão arterial, crises de hiperpneia ou apneia, etc.. A convulsão subtil acompanhada de alterações no EEG surge mais frequentemente no RN pré-termo.

Na convulsão clónica o RN evidencia movimentos rítmicos de grupos musculares em duas fases: uma, de contracção mais rápida, e outra mais lenta, voltando à posição inicial; podem verificar-se num grupo muscular (focal) ou em vários grupos musculares (multifocal) sendo que, por ex. o diafragma e a musculatura faríngea podem ser afectados, o que tem implicações na função respiratória. A convulsão focal está mais frequentemente associada a lesão localizada do SNC do que a alterações metabólicas.

A convulsão tónica caracteriza-se: por extensão ou flexão mantida dos membros superiores ou inferiores (tónica generalizada), sendo mais frequente em RN pré-termo; ou por postura mantida de um membro ou postura assimétrica do tronco em relação ao pescoço (tónica focal); ocorre com frequência semelhante no RN de termo e no pré-termo.

A convulsão mioclónica caracteriza-se por movimentos desordenados, síncronos ou assíncronos e rápidos, tendendo a ocorrer sobretudo em grupos musculares flexores; pode ser generalizada (flexão dos membros superiores – mais frequentemente –, ou dos membros inferiores), focal (com manifestação ao nível da musculatura flexora de um membro superior), ou multifocal (contracções musculares assíncronas de várias partes do corpo).

Na classificação de Mizrahi & Kellaway, com base em estudo vídeo-electroencefalográfico contínuo, considera-se ainda uma quinta modalidade de convulsão neonatal: os espasmos. Tais manifestações consistem em movimentos ou abalos muito rápidos e curtos de extensão, flexão ou flexão/extensão, durando não mais que 1-2 segundos, não provocados por estimulação, nem parados pela pressão ao toque.

De acordo com os referidos autores (M&K):

  • as convulsões clónicas focais, tónicas focais e mioclónicas generalizadas, assim como os espasmos são em regra associados a descargas electrográficas (convulsões epilépticas);
  • os automatismos motores subtis, as generalizadas, as tónicas generalizadas e os episódios mioclónicos multifocais traduzem mais frequentemente fenómenos de libertação secundários a lesão cerebral, do que verdadeiras convulsões epilépticas.

Salienta-se que muitas vezes, pela complexidade do quadro clínico e dos factores potencialmente lesivos para o SNC, a destrinça entre convulsões epilépticas e não epilépticas é difícil, tornando-se necessário proceder à utilização do EEG contínuo à cabeceira do doente.

Exames complementares

Perante uma convulsão, há pois que caracterizar as manifestações clínicas e proceder a exames complementares para esclarecimento etiológico tendo em conta a história clínica e as hipóteses que podem ser sugeridas pela consulta do Quadro 1. Alguns destes exames (prioritários) são abordados a propósito da actuação prática. (ver adiante)

Nesta alínea cabe uma referência especial aos seguintes:

  • EEG contínuo para se poder apreciar o traçado de base e a existência ou não de actividade paroxística; importa referir que pode haver actividade eléctrica paroxística detectada pelo EEG sem qualquer manifestação clínica. É a chamada “dissociação electroclínica”, relacionada com a imaturidade das conexões corticais;
  • aEEG (EEG de amplitude integrada) utilizável em situações especiais; no capítulo seguinte, relacionado com hipóxia-isquémia como causa de convulsões, é abordada esta modalidade;
  • Vídeo-EEG para o esclarecimento de casos recorrentes e hospitalizados (correlação entre as manifestações clínicas e o traçado electroencefalográfico) – técnica ainda não disponível em todos os serviços hospitalares;
  • RM (Ressonância Magnética) com particular interesse admitindo a hipótese de enfarte cerebral (na sua forma típica em território da artéria cerebral média).

Nota importante:
O enfarte de um território arterial na sua forma típica é decorrente duma artéria importante (artéria cerebral média). Começa por edema seguido de isquémia, sendo por vezes secundário a hemorragia. Semanas mais tarde a zona é substituída por quistos. Estes acidentes podem ocorrer no período de vida fetal ou intraparto. Situações como a gemelaridade e defeitos cardíacos podem condicionar esta patologia. Manifestam-se precocemente por convulsões precoces. A RM detecta a lesão com muito pormenor e permite definir o prognóstico quanto à função motora.

Diagnóstico diferencial

Ao abordar o tema “convulsões no RN” importa estabelecer a destrinça entre estas e outras perturbações paroxísticas/fenómenos motores de origem não epiléptica: tremores, mioclonias neonatais benignas do sono profundo e hiperecplexia.

Eis alguns sinais que permitem tal destrinça com:

Tremores

  • Os tremores são movimentos rítmicos de pequena amplitude, assim como de amplitude e frequência regulares; na convulsão (clónica) existe uma componente de movimento rápido e uma componente de movimento lento;
  • Os tremores são sensíveis a estímulos externos; são interrompidos com uma flexão passiva e suave do membro onde se verificam, o que não acontece na convulsão;
  • Os tremores não se acompanham de fenómenos oculares como fixação ou desvio ocular nem de alterações autonómicas (por ex. taquicárdia, crises de apneia, fenómenos vasomotores cutâneos, sialorreia ou alterações pupilares), ao contrário da convulsão.

Mioclonias neonatais benignas do sono profundo

  •  Esta situação, associada a exame neurológico normal e consistindo em abalos repetidos das extremidades somente durante o sono – mais frequentemente durante o sono calmo (REM) – cessa com o despertar e após os 2 meses.

Hiperecplexia (na língua inglesa denominada startle disease)

  • Este quadro, raro, traduz-se por espasmo tónico símile “sobressalto” induzido por estímulo externo.

Tratamento

Tendo em consideração que a convulsão, independentemente do factor etiológico, poderá resultar em lesão do SNC, sobretudo se for mantida, há que estabelecer prioridades na actuação, a qual deve ser precoce, urgente e, por vezes emergente; salienta-se, a propósito, que uma convulsão mantida origina incremento do consumo de glucose, substrato fundamental para o metabolismo da célula cerebral.

Embora, para fins didácticos, se estabeleça um esquema sequencial de actuação, por vezes torna-se necessário levar a cabo certas medidas quase em simultâneo, o que implica a colaboração de uma equipa especializada e experiente (por conseguinte, mais do que uma pessoa).

Aspectos gerais

  • promover ventilação (RCR inicial e eventual ventilação mecânica ulteriormente em função do quadro clínico) e perfusão adequadas, estabilidade hemodinâmica e aplicação de venoclise com soluto glucosado;
  • detectar factores etiológicos susceptíveis de correcção (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia, outras alterações hidro-electrolíticas e do equilíbrio ácido-base, infecção, etc.);
  • iniciar tratamento com fármacos anticonvulsantes adiante especificados;
  • monitorizçaão de sinais vitais;
  • realização doutros exames complementares em função da história clínica incluindo exames neuroimagiológicos, com prioridade para a ecografia transfontanelar;
  • nos casos em que não seja detectada etiologia específica, haverá que admitir a possibilidalidade de doença hereditária do metabolismo, o que obriga a ulterior análise de sangue para doseamento de lactato, amónia, aminoácidos séricos, e de urina para pesquisa e doseamento de ácidos orgânicos, etc..

Tratamento anticonvulsante

As opiniões dos autores especialistas e investigadores em neurologia neonatal dividem-se quanto à indicação de tratamento anticonvulsante: enquanto alguns recomendam que somente os RN com convulsões clínicas devem ser tratados com fármacos anticonvulsantes, outros opinam que, não só na situação anterior, mas também nos casos de alterações do EEG sem manifestações clínicas se deve proceder a tal tratamento, tendo em consideração o efeito adverso das alterações ao nível da célula do sistema nervoso sobre o metabolismo do cérebro imaturo.

Na prática, os fármacos antiepilépticos mais usados, são o fenobarbital, a fenitoína e as benzodiazepinas.

Fenobarbital

Este fármaco é em geral utilizado em 1ª linha; com vida média oscilando entre 45 e 173 horas, são habitualmente utilizadas as seguintes doses:

  • dose inicial de sobrecarga: 20 mg/kg IM ou IM, em cerca de 10-15 minutos se o RN estiver ventilado; em RN não ventilado a dose total de 20 mg é desdobrada em duas de 10 mg administradas sequencialmente com intervalo de 20 minutos.
    No caso de a dose inicial não ser efectiva, doses subsequentes de 5 ou 10 mg/kg em intervalos de 10 ou 15 minutos até ser atingida dose total de 40 mg/kg.
  • dose de manutenção: 5 mg/kg/dia (IM, IV ou oral a dividir por duas doses diárias), sendo recomendados níveis séricos terapêuticos/vale entre 16 e 40 mcg/mL; a colheita de sangue para doseamento do fármaco deverá ser feita antes da primeira dose diária.

O fenobarbital é eficaz em cerca de 70% a 80% das convulsões neonatais.

Fenitoína

Se após dose de 40 mg/kg de fenobarbital as crises de convulsões persistirem, deve iniciar-se a administração (concomitante) de fenitoína:

  • dose inicial de sobrecarga: 15 a 20 mg/kg IV (0,5-1 mg/kg/minuto) ou 7,5 a 10 mg/kg com intervalo de 20 minutos, de modo a atingir nível sérico entre 15 a 20 mcg/mL;
  • dose de manutenção: 4-8 mg/kg/dia (IV a dividir por duas doses diárias), sendo o início da manutenção 12 horas após a dose inicial.

A fenitoína é eficaz em cerca de 15% dos casos de convulsões que não cederam ao fenobarbital. Os níveis séricos são difíceis de manter porque o fármaco se redistribui rapidamente pelos tecidos, problema que é potenciado se a administração for por via oral; por isso, a manutenção não pode ser mantida por via oral. A absorção por via IM é irregular. Assim, como regra prática, não é recomendada a continuação do fármaco uma vez cessadas as convulsões e/ou removida venoclise.

Chama-se a atenção para o efeito secundário de cardiotoxicidade.

Benzodiazepinas

O diazepam, com uma vida média de cerca de 54 horas no RN pré-termo e de 18 horas no RN de termo, é a benzodiazepina mais frequentemente utilizada; a via aconselhada é a IV, pois a via IM condiciona absorção muito lenta.

Como limitações da sua utilização são citadas as seguintes: maior probabilidade de hipotonia e de depressão respiratória, sobretudo se utilizado em associação com barbitúricos; níveis terapêuticos próximos dos tóxicos; pela forte ligação às proteínas verifica-se tempo de impregnação no SNC fugaz, razão pela qual não está indicado em regime de manutenção; o benzoato de sódio, seu veículo para uso IV, compete com a bilirrubina na sua ligação à albumina, o que aumenta o risco de kernicterus.

  • dose em situação aguda (não seguida de manutenção): 0,1-0,2 mg/kg IV em administração lenta (2 minutos), seguindo-se perfusão ao ritmo de 0,5 mcg/kg/minuto, com incrementos de 0,5-1 mcg/kg cada 2 minutos até resposta favorável, não ultrapassando 7 mcg/kg/minuto.; pode ser repetida 15 a 30 minutos depois.

Como efeito secundário significativo cita-se a hipotensão.

O lorazepam IV (não disponível em todos os países), pode ser utilizado como alternativa ao diazepam na dose de 0,05-0,1 mg em 2 a 5 minutos, também podendo ser repetida a sua administração; a probabilidade de depressão respiratória é menor.

O midazolam IV utiliza-se na dose inicial de 0,15 mg/kg seguida da dose de 0,1-0,4 mg/kg/hora em regime de manutenção.

Nos casos de convulsões recorrentes verificadas nas primeiras horas de vida, e sem achados complementares esclarecedores, está indicado proceder a prova terapêutica com piridoxina endovenosa (50-100 mg/kg) durante a convulsão com monitorização simultânea de EEG; em situação de carência de piridoxina verifica-se cessação da crise e do traçado anómalo do EEG, o que implica ulterior terapêutica de manutenção na dose de 50-100 mg/dia por via oral ou endovenosa.

Mais raramente, sobretudo no contexto de convulsões refractárias e/ou associadas a patologia de base grave (por ex. defeitos congénitos do SNC, infecções, hipóxia-isquémia grave, hemorragia intracraniana e outras modalidades de AVC, etc.), implicando cooperação de neurologista-pediatra, são utilizados os fármacos levetiracetam e o topiramato, considerados de segunda e terceira escolha.

Duração do tratamento anticonvulsante

Para decidir sobre a duração do referido tratamento, foram consideradas:

  • a possibilidade de efeitos adversos do tratamento anticonvulsante prolongado sobre a morfologia e metabolismo das células neuronais;
  • que a duração do período de “lua de mel” ou livre de convulsões após o período neonatal é imprevisível – meses a anos.

Nesta perspectiva, foram definidos critérios que legitimam a interrupção do tratamento iniciado no período neonatal, mesmo nos casos de risco elevado de recorrência; como regra geral, o fenobarbital poderá ser suspenso se o exame neurológico e o EEG não revelarem alterações.

O processo de suspensão do fenobarbital deve ser gradual, em duas semanas.

Salienta-se que nos casos de antecedentes de EHI e de depressão importante nos traçados do EEG, existe probabilidade de recorrência de cerca de 30%-50%; nos casos de hipoglicémia e hipocalcémia, e na ausência de doença hereditária do metabolismo, tal probabilidade é praticamente nula.

Seguimento e prognóstico

Desde que as crises sejam controladas, o tratamento na data da alta depende fundamentalmente do diagnóstico, do resultado do exame neurológico e do EEG intercrise.

Se o resultado do exame neurológico evidenciar alterações, deverá ser mantida a terapêutica com anticonvulsante oral, mais frequentemente fenobarbital, e o paciente ser encaminhado para consulta de Neurologia pediátrica ao cabo de 4-5 semanas.

Como factores preditivos do prognóstico, apontam-se fundamentalmente as características das convulsões, a resposta ao tratamento inicial, a doença de base, e as alterações do EEG.

Com efeito, as crises de início mais precoce, tónicas, prolongadas (> 10 minutos/hora) e refractárias ao tratamento, assim como sinais do EEG evidenciando actividade eléctrica de baixa voltagem e padrão de “surto-supressão” na fase intercrise, são associados a prognóstico mais reservado.

Ao longo dos anos, o prognóstico das síndromas acompanhadas de convulsões tem melhorado graças aos progressos na assistência perinatal. No que respeita à morbilidade, os estudos epidemiológicos apontam proporção de sequelas entre 20% a 35% dos casos (principalmente insuficiência mental e doença motora não progressiva), sendo que, em muitas situações, aquelas se relacionam mais com a doença de base do que com as próprias convulsões; as convulsões recorrentes são referidas com uma frequência entre 15% e 20%.

Comparando as alterações do desenvolvimento em RN de termo e pré-termo, a médio e longo prazo, a proporção daquelas é muito maior no segundo caso (cerca de 75%) do que no primeiro (cerca de 40%).

Quanto à mortalidade, considerando globalmente RN pré-termo e de termo (~ 20%-25%), salienta-se que mais de metade dos óbitos ocorre nos RN pré-termo.

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TRAUMATISMO DE PARTO

Definição e importância do problema

Os traumatismos de parto (traumatismos de nascimento ou tocotraumatismos) são lesões ocorridas no feto aquando do parto por acção de forças mecânicas de tracção ou pressão relacionadas em geral com situações muito diversas, evitáveis ou não, tais como partos obrigando ao recurso instrumental, quer com nascimento normal e sem relação causal aparente.

Actualmente, nos países industrializados a morte por traumatismo de parto, apesar de rara, contribui com uma proporção importante para a morbilidade neonatal. A incidência de tal patologia oscila, conforme diversos estudos epidemiológicos e diferentes locais de parto, entre 2 e 5/1.000 nados-vivos, valor que comparticipa entre 1% a 3% a mortalidade infantil.

Nesta perspectiva, o médico ou outro profissional de saúde que presta assistência ao parto (idealmente integrado em equipa) deve estar preparado para prevenir, enfrentar e resolver os problemas decorrentes deste tipo de lesões traumáticas potencialmente fatais ou podendo originar sequelas de gravidade variável.

Etiopatogénese e classificação

São considerados factores predisponentes de lesões traumáticas: macrossomia, desproporção feto-pélvica, prematuridade, distócia, trabalho de parto prolongado, parto vaginal com apresentação pélvica, anomalias de apresentação, manobras de versão intra ou extrauterina e utilização de instrumentos (ventosa, fórceps).

Com base na sua etiopatogénese, os traumatismos de parto (ante ou intraparto) podem ser divididos em duas categorias:

  1. Lesões provocadas por hipóxia-isquémia;
  2. Lesões decorrentes de aplicação de forças mecânicas.

Durante o trabalho de parto, a cabeça e o corpo do feto estão sujeitos à pressão cérvico-vaginal podendo, por isso, sofrer acção traumática da qual poderão resultar lesões. E sempre que haja necessidade de recurso a instrumentos ou a manobras de versão fetal, aumenta a probabilidade das mesmas.

As lesões por hipóxia-isquémia são provocadas por alterações placentares, estiramento do cordão umbilical, administração excessiva de fármacos à mãe, ou lesões provocadas pela manipulação fetal externa ou interna.

A ventosa, quando aplicada incorrectamente, pode alongar o crânio na direcção occípito-frontal provocando o estiramento da tenda do cerebelo, susceptível de provocar a ruptura da veia de Galeno ou dos seios recto ou transverso. O recém-nascido poderá inicialmente apresentar-se assintomático ou com lesões de gravidade variável (escoriações, abrasões, lacerações cutâneas, hematomas, fracturas, designadamente do crânio, com afundamento ou em bola de pingue-pongue, etc.), as quais poderão originar sequelas.

A aplicação do fórceps, procedimento mais difícil do que a ventosa e exigindo eficaz analgesia materna, pode originar quer lesões dos tecidos moles da mãe, quer das estruturas osteomusculares e cutâneas do feto (couro cabeludo e crânio, face, olhos e massa cerebral). As fracturas do crânio são mais frequentes com o fórceps do que com a ventosa.

Quando as colheres do fórceps são aplicadas de modo simétrico, a curva cefálica da colher do fórceps adapta-se à curva craniana fetal e torna possível a aplicação da força na maior superfície possível. Por consequência, se as colheres do referido instrumento não forem aplicadas de modo simétrico em relação ao plano sagital, a curva cefálica da colher, não se adaptando ao crânio fetal, gera forças tensionais que provocam a deformação e a eventual fractura do osso onde a colher estiver apoiada. Esta situação pode igualmente provocar a ruptura das veias perfurantes, levando a hemorragia intracraniana.

A monitorização fetal intra-parto (no caso de aplicação de eléctrodo no coiro cabeludo ou na parte corporal apresentada, por vezes em posição incorrecta), pode também ter consequências várias: abrasões e lacerações ao nível do crânio, face, globo ocular ou outro local. E da colheita de sangue fetal para estudo analítico poderá resultar hemorragia. Tal conjunto de sinais clínicos integra-se no conceito lesões iatrogénicas.

Manifestações clínicas e actuação

Seguidamente são descritas as principais formas clínicas de lesões traumáticas associadas às condições do nascimento, assim como a actuação essencial em tais circunstâncias, relacionando alguns tipos daquelas com a aplicação instrumental (fórceps ou ventosa). Determinadas situações referidas no Quadro 1 são objecto de descrição noutros capítulos do livro.

QUADRO 1 – Classificação das lesões traumáticas do parto relacionáveis com forças mecânicas.

Lesões extracranianas
Caput succedaneum; Cefalo-hematoma; Hemorragia subaponevrótica

Lesões cranianas
Fracturas; Escoriações; Outras

Lesões intracranianas
Hemorragia epidural; Hemorragia subdural; Hemorragia subaracnoideia

Lesões de nervos e espinhal medula
Lesão do plexo braquial; Paralisia do nervo facial; Lesão do nervo frénico; Lesão do nervo recorrente; Lesão da espinhal medula

Lesões dos ossos
Clavícula; Úmero; Fémur; Outras

Lesões dos músculos
Hematoma/Fibroma do esternocleidomastoideu

Lesões da face
Luxação do septo nasal; Lesões oculares

Lesões da pele
Equimoses; Escoriações; Hematomas; Esteatonecrose

Lesões viscerais
Hemorragia suprarrenal; Ruptura do baço; Ruptura do fígado; Outras

Lesões extracranianas

As lesões cranianas mais frequentes são o caput succedaneum e o céfalo-hematoma, por vezes associadas a parto instrumental; as mesmas manifestam-se por tumefacção com características, cronologia de aparecimento e evolução distintos (consultar capítulo sobre “Exame clínico do Recém-nascido”).

Caput succedaneum

O caput succedaneum (vulgo bossa sero-sanguínea, tratando-se de lesão na cabeça) apresenta-se no pós-parto imediato como uma zona de edema mole e superficial (ao nível do tecido celular subcutâneo) que ultrapassa o limite das suturas ósseas.

Acompanha-se de acentuada moldagem craniana e regride ao fim de alguns dias; não se torna, dum modo geral, necessária qualquer intervenção, exceptuando nos casos de diátese hemorrágica concomitante.

Cabe referir, a propósito, que a noção de caput succedaneum é lata, dizendo respeito, de facto à zona de apresentação que, na maior parte dos casos, é a cabeça. Portanto, conceptualmente, a designação de caput pode aplicar-se também a outras áreas de apresentação tais como face, fronte, nádegas (Figura 1) e extremidades.

FIGURA 1. Lesão traumática da nádega em RN (apresentação de nádegas) com escara. (URN-HDE)

O chamado caput vacuum é uma modalidade de caput succedaneum, de contornos bem demarcados pela aplicação dos bordos da ventosa.

Quanto à actuação, deverá adoptar-se atitude de vigilância, sem necessidade de qualquer terapêutica (não se devendo proceder à drenagem pelo risco de infecção).

Céfalo-hematoma

O céfalo-hematoma, ocorrendo em cerca de 1% a 2% dos nascimentos, é uma colecção hemática, dos tecidos não superficiais (localização subperióstica). Sendo subperióstica, não ultrapassa os limites de cada sutura óssea, ao contrário do que acontece no caput succedaneum. A localização mais frequente é parietal, podendo ser uni ou bilateral. Esta tumefacção resulta da lesão dos capilares e vasos diplóicos, que acompanha a separação do periósteo do osso respectivo, sendo que, não evidente no momento do nascimento, somente passa a ser notada ao cabo de alguns dias, com tendência para aumentar: passa, então, a palpar-se (e, por vezes, a ver-se) uma tumefacção esferóide sob tensão, por vezes com sinal de flutuação. Dada tal cronologia de aparecimento, muitas vezes é a mãe que nota a anomalia quando a criança já terá tido alta da maternidade.

No caso de o céfalo-hematoma se manifestar atipicamente, no pós-parto imediato e no contexto de parto laborioso e instrumental, pela etiopatogénese explanada anteriormente (colecção hemática subperióstica), tal facto poderá traduzir a presença de fractura óssea no contexto de paciente com quadro de diátese hemorrágica (constituindo esta última, factor predisponente.

A verificação de céfalo-hematoma não tem relação com o prognóstico neurológico a não ser que em simultâneo exista uma lesão do sistema nervoso central. Por isso, não obriga, em princípio, a qualquer terapêutica específica e não necessita de qualquer intervenção cirúrgica.

Se se tratar de lesão de grande dimensão (aspecto relacionável, por exemplo, com parto complicado ou diátese hemorrágica como situação de base), poderá verificar-se no pós-parto imediato um quadro de anemia por perda ou, ulteriormente, de icterícia por hemólise de quantidade significativa de sangue localizado.

A actuação nestas circunstâncias dependerá do grau de anemia e da hiperbilirrubinémia verificada. A médio prazo, poderá ocorrer calcificação, o que se traduz em tumefacção dura nas semanas e meses subsequentes, a qual passará a ser menos notória com o crescimento do crânio, não agravando o prognóstico na ausência doutras lesões.

Neste tipo de lesão, também não se deve proceder à drenagem.

Hemorragia subaponevrótica

As complicações hemorrágicas associadas ao parto por ventosa têm uma incidência de cerca de 0,7% e uma mortalidade ~ 0,2%. A hemorragia pode ocorrer em diferentes planos teciduais, desde a pele ao osso do crânio. A complicação mais grave derivada da aplicação da ventosa é a hemorragia subaponevrótica (entre a pele e o periósteo) caracterizada por uma “massa flutuante” que pode evidenciar sinais de “onda líquida” e que ultrapassa as suturas cranianas.

A hemorragia subaponevrótica pode ser acompanhada de palidez (anemia por perda), taquicárdia e hipotonia. Em estudos anátomo-patológicos estimou-se que o espaço subaponevrótico, quando preenchido por uma colecção de sangue com cerca de 1 cm de espessura, poderá acomodar um volume de sangue de 260 mL, o que excede a volémia total de alguns recém-nascidos.

A sua incidência é cerca de 4/10.000 em partos eutócicos e de 60/10.000 em partos por ventosa; a mortalidade é muito significativa (cerca de 22%).

Com efeito, sob a aponevrose, mais densa, existe uma outra camada fibrosa, menos densa, contendo grandes veias emissárias com ligação aos seios durais e veias do couro cabeludo. A lesão da referida aponevrose está associada a um conjunto de factores como a compressão externa com movimento de tracção, e a eventual défice de coagulação, que é particularmente grave na presença de hemofilia.

É mais rara do que a bossa sero-sanguínea, da qual difere por aumentar após o nascimento e se acompanhar de importante perda de sangue. Assim, os recém-nascidos de sexo masculino, que apresentem hemorragia subaponevrótica extensa após partos difíceis, devem ser avaliados quanto ao sistema de coagulação, em especial com doseamento dos factores VII e VIII. Embora rara, a hemofilia A deve ser admitida como hipótese face ao contexto clínico referido. Nos casos de hemofilia comprovada, e perante situações emergentes implicando necessidade de intervenção cirúrgica, deve ser efectuada terapêutica substitutiva com o factor em défice para prevenir a hemorragia pós-operatória.

O diagnóstico da hemorragia subaponevrótica reveste-se, por vezes, de grande dificuldade. Uma vez que o sangue não forma um coágulo, mas uma camada extensa e difusa nos tecidos moles, é frequente passar despercebida nas primeiras horas de vida. Têm sido referidas formas silenciosas responsáveis pela morte neonatal sem sinais clínicos evidentes numa fase inicial de observação.

A actuação consiste em vigiar a anemia – que poderá obrigar a transfusão de sangue – e a hiperbilirrubinémia. Em geral aquela regride ao fim da 3ª ou 4ª semana de vida, não estando indicada a drenagem.

Notas importantes:

    1. Dada a possibilidade de ocorrência de lesão traumática e a necessidade de um rápido diagnóstico e terapêutica, torna-se obrigatória a presença do neonatologista quando se realiza um parto por fórceps.
    2. Como será fácil depreender, a utilização sequencial da ventosa e fórceps está associada a maior frequência de lesões traumáticas (tais como lesão do plexo braquial, lesão do nervo facial, hemorragia intracraniana) e de asfixia perinatal. (ver adiante)
    3. O diagnóstico das lesões por fórceps ou ventosa efectua-se pela clínica, confirmada por ecografia transfontanelar, e por TAC ou RM se houver necessidade de detectar com mais rigor a presença de hemorragia na fossa posterior e nas estruturas cerebelosas.
    4. O prognóstico da fractura induzida pela aplicação do fórceps depende das lesões associadas, salientando-se que em cerca de 4% dos casos as sequelas a longo prazo poderão ser graves.

Lesões cranianas

Descrevem-se os seguintes tipos de lesões ósseas cranianas:

  • fracturas (lineares e com afundamento, também chamadas “em bola de ping pong, mais tipicamente associadas a ventosa);
  • formas de osteodiastase occipital (separação traumática da junção cartilagínea entre a escama do occipital e o osso parietal, situação hoje rara); e
  • fracturas espontâneas, raramente associadas a lesões cerebrais, ao contrário do que acontece nos partos com instrumentos. A sua incidência, difícil de determinar, depende da suspeita clínica e da realização da radiografia craniana (Figuras 2 e 3).

O diagnóstico da fractura craniana é confirmado por radiografia simples ou ecografia transfontanelar. Contudo, é frequente a ocorrência simultânea de acentuado edema do couro cabeludo, tal como acontece na presença da hemorragia subaponevrótica: nestes casos deve recorrer-se à TAC ou à RM crânio-encefálica. Esta última tem sido cada vez mais utilizada para avaliar as lesões hemorrágicas e parenquimatosas nos casos de traumatismos cranianos perinatais.

Tais situações implicam a colaboração indispensável das equipas de neurocirurgia e de cuidados intensivos neonatais.

A fractura linear não requer terapêutica específica, mas deve ser vigiada no plano clínico e imagiológico.

Lesões intracranianas

A hemorragia intracraniana no recém-nascido de termo pode ser uma complicação grave de traumatismo de parto. A sua frequência tem vindo a diminuir devido aos progressos relacionados com o número crescente de casos submetidos a monitorização contínua do bem-estar fetal e de partos por cesariana.

Os factores de risco estão relacionados com a aplicação do fórceps, da ventosa, do parto precipitado e da macrossomia fetal com parto por via vaginal.

A incidência da hemorragia intracraniana sintomática nos recém-nascidos de termo é cerca de 5 a 6/10.000.

De acordo com a sua localização, podem ser considerados os seguintes tipos: hemorragia subdural, epidural e subaracnoideia. Segundo Volpe, é muito importante ter em consideração:

  1. os factores de risco tais como a idade de gestação, o trabalho de parto, o parto, a ocorrência de eventos como a asfixia e a necessidade de reanimação;
  2. os sinais neurológicos de alarme, os quais deverão ser identificados o mais precocemente possível;
  3. a imagiologia para localização da hemorragia, com recurso à ecografia transfontanelar, TAC e RM; e
  4. o exame do líquido cefalorraquidiano.
Hemorragia epidural

Este tipo de lesão, consequência da ruptura da artéria meníngea média, está frequentemente associado a cefalo-hematoma ou a fractura craniana. A raridade desta situação no recém nascido deve-se à ausência do sulco da artéria meníngea média nos ossos cranianos, tornando a artéria menos susceptível à lesão.

FIGURA 2. Radiografia do crânio de RN (parto de fórcepes) com sinal de traço de fractura.

FIGURA 3. Radiografia do crânio de RN: osteodiastase traumática.

As manifestações clínicas podem incluir alterações neurológicas difusas com hipertensão intracraniana, fontanela hipertensa e alterações focais como convulsões e estrabismo.

O diagnóstico é confirmado pela ecografia transfontanelar e TAC cranioencefálica ou RM.

O tratamento inclui a correcção do choque hipovolémico e das alterações da coagulação. Na maioria dos casos está indicada drenagem cirúrgica, a cargo de equipa especializada.

Hemorragia subdural

É a menos frequente das hemorragias intracranianas, mas a mais frequentemente relacionada com evento traumático; pode afectar igualmente RN de termo e pré-termo. A sua incidência é cerca de 2 a 3 por 10.000 nados-vivos nos partos vaginais espontâneos, e cerca de 8 a 10 por 10.000 nos partos por ventosa e fórceps. Trata-se duma lesão traumática cuja incidência tem diminuído à medida que melhora a qualidade dos cuidados pré-natais.

O diagnóstico é determinante dado que a intervenção cirúrgica é decisiva para ultrapassar o risco de vida. Salienta-se que a presença de hemorragia subdural não corresponde necessariamente a traumatismo de parto grave.

Uma vez que a drenagem profunda do cérebro desagua na grande veia de Galeno, na junção da tenda do cerebelo com a foice do cérebro, a localização mais comum é a tentorial e a inter-hemisférica.

As manifestações clínicas dependem da localização da hemorragia. Esta, quando localizada na convexidade cerebral, produz alterações neurológicas focais; na fossa posterior, os sinais mais frequentes (apneia, assimetria pupilar, desvio ocular e coma) estão associados ao aumento da pressão intracraniana. De referir que a sintomatologia tem o seu início em geral nas primeiras 24 horas, mas nalguns casos, pode ocorrer no 4º ou 5º dia após o parto.

A ecografia transfontanelar pode constituir uma contribuição muito útil para o diagnóstico; contudo, a técnica de eleição é a TAC cranioencefálica.

A indicação para intervenção cirúrgica dependerá da localização da hemorragia e dos sinais de compressão do tronco cerebral.

O prognóstico depende da presença de enfarte cerebral e da localização da lesão. Trata-se duma situação que implica, evidentemente, apoio das equipas de neurocirurgia e de cuidados intensivos neonatais.

Hemorragia subaracnoideia

A incidência desta hemorragia é cerca de 1,3 por 10.000 nados-vivos de partos vaginais espontâneos; nos casos de partos por ventosa e fórceps, a mesma sobe para 2 a 3 por 10.000 nados-vivos.

Este problema clínico é originado pela ruptura das veias perfurantes do espaço subaracnoideu ou das pequenas veias leptomeníngeas. Pode ser assintomática ou manifestar-se por convulsões que ocorrem por volta do 2º dia de vida. O risco é mais significativo nos partos instrumentais. (ventosa)

O diagnóstico mais preciso é feito por TAC, pois a ecografia transfontanelar não propicia informação suficiente. Exceptuando os casos em que é muito extensa, nos recém-nascidos de termo tal hemorragia é reabsorvida, não exigindo qualquer intervenção. Se não houver lesão cortical ou encefalopatia, não surgirão sequelas. (ver adiante, nesta Parte XXXI, o capítulo sobre Hemorragias Intracranianas)

Como medidas gerais mais importantes aplicáveis a situações de hemorragias intracranianas, apontam-se:

    1. Monitorização dos sinais vitais, temperatura, PO2, PCO2, SpO2, pressão arterial, glicémia, balanço hidroelectrolítico, estudo da coagulação, etc.;
    2. Por vezes, torna-se necessário tratar o edema cerebral, utilizar anticonvulsantes, restringir o suprimento inicial de fluidos tendo em conta designadamente a eventualidade de surgimento de quadro de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH) e ainda, a necessidade de algaliação.

Lesões dos nervos e espinhal medula

As lesões do plexo braquial, hoje mais raras com os progressos na prática obstétrica, ocorriam há três décadas, aproximadamente entre 0,5 a 2,6/1.000 nascimentos. Na maior parte dos casos (80%-90%), verifica-se recuperação em semanas ou meses, conquanto nos restantes 10%-20% haja necessidade de tratamento complexo e multidisciplinar.

Os factores de risco de lesão do plexo braquial são: macrossomia fetal (peso de nascimento > 4.000 gramas), microssomia (peso < 2.500 gramas) em apresentação pélvica, prolongamento do 2º estádio do trabalho de parto, distócia de ombros, má apresentação fetal e necessidade de parto com instrumentos.

Podem ser observados três tipos de lesão do plexo:

  • Paralisia de Erb-Duchenne, a mais frequente (cerca de 90% dos casos), envolvendo as raízes C5 e C6;
  • Paralisia de Klumpke, secundária a lesão das raízes inferiores de C8 e T1; e
  • Paralisia braquial total por lesão nas raízes de C5, C6, C8 e T1).

Para explicar este tipo de lesões têm sido admitidas várias hipóteses tais como:

  • tracção lateral do pescoço para libertar o ombro anterior, levando a edema;
  • hemorragia, ou mesmo ruptura, das raízes do plexo braquial; e
  • estiramento do plexo na sequência de rotações iguais ou superiores a 90º.

Na paralisia de Erb-Duchenne, o membro superior afectado evidencia posição em extensão, adução e rotação interna (um autor inglês chamou, com alguma ironia, a esta posição, o “sinal do empregado de café que pede discretamente gorgeta). O reflexo de preensão está presente, mas o reflexo de Moro é assimétrico à custa da parésia do lado afectado. À movimentação passiva, o membro evidencia flacidez e, quando solto, cai facilmente ao longo do tronco (Figura 4).

Neste tipo de lesão poderá verificar-se concomitantemente lesão do nervo frénico originando paralisia do diafragma, dada a sua relação com o plexo braquial (origem nas raízes de C3, C4, C5); tal situação poderá ter repercussão na mecânica ventilatória do diafragma. Tal pode ser demonstrado em cinerradioscopia ou ecografia (hemicúpula elevada e ausência de abaixamento do diafragma na inspiração) (Figura 5).

Na paralisia de Klumpke (Figura 6), mais rara, os músculos flexores do punho são atingidos, observando-se paralisia da mão; são notórias mão pendente, ausência de reflexo de preensão e de mobilidade do punho. A este tipo de lesão poderá associar-se a síndroma de Claude-Bernard-Horner (enoftalmia, miose e ptose palpebral por lesão do simpático) assim como paralisia de Erb-Duchenne paralisia braquial total).

FIGURA 4. Paralisia de Erb-Duchenne (lado direito). (NIHDE)

FIGURA 5. Lesão do frénico à direita originando paralisia da cúpula diafragmática direita. Concomitante fractura da clavícula homolateral. (URN-HDE)

FIGURA 6. Paralisia de Klumpke.

Deve ter-se em consideração a possibilidade de lesões associadas como o hematoma do músculo esternocleidomastoideu, fractura da clavícula, do úmero ou costelas, lesão do facial, do hipoglosso e, mesmo, da medula espinhal.

Em função do contexto clínico e antecedentes do parto poderão estar indicadas radiografia do ombro e membro superior afectados (para exclusão de fractura), radiografia do tórax e, eventualmente, ecografia ou cinerradioscopia se se verificar dificuldade respiratória relacionável com lesão do nervo frénico.

O tratamento das paralisias do plexo braquial deve incluir a fisioterapia precoce com o objectivo de evitar as contracturas e deformidades articulares, sendo o prognóstico favorável quando a recuperação dos movimentos dos músculos bicípete e adutor do ombro, aos 3 meses, for total.

Perante o diagnóstico de paralisia do frénico a actuação consiste em medidas de suporte, tais como, decúbito lateral sobre o lado afectado e oxigenoterapia. Na maioria dos casos verifica-se recuperação espontânea, sendo que a intervenção cirúrgica fica reservada para situações especiais de infecções respiratórias de repetição e insuficiência respiratória.

Lesão do nervo facial

A lesão do nervo facial (7º par craniano), que ocorre em cerca de 0,20%-0,30% dos nascimentos, é em geral causada pela compressão da porção periférica do nervo (paralisia periférica) no percurso exterior ao forâmen estilomastoideu ou no seu trajecto à frente do ramo da mandíbula (por exemplo por compressão in utero ou por aplicação de fórceps). O nervo é mais frequentemente afectado por compressão pelo fórceps ou pelo promontório materno (em partos laboriosos).

A paralisia do tipo central é menos frequente, estando relacionada com lesão traumática do SNC.

Os sinais clínicos da paralisia periférica (flácida) manifestam-se por sulco nasolabial menos notório no lado afectado, não encerramento completo das pálpebras do olho do lado afectado (o que não acontece na paralisia central) e desvio da comissura labial, mais aproximada da linha média (por vezes só detectado durante o choro ficando imóvel), em contraste com o lado oposto (são) em que a mesma se afasta da linha média.

Nas formas completas pode manifestar-se em toda a hemiface, o que se traduz por ausência de pregueamento da hemifronte afectada coincidindo com o choro da criança (Figura 7).

A paralisia central é espástica, atingindo apenas a metade inferior da face contralateral. Os movimentos das pálpebras e da fronte estão intactos. Está frequentemente associada a paralisia do 6º par e a hemorragia intracraniana.

O diagnóstico diferencial da paralisia facial traumática faz-se com:

    1. situações de paralisia (central) congénita relacionadas, por exemplo, com agenésia do núcleo do nervo facial (síndroma de Moebius);
    2. determinadas síndromas malformativas como síndroma de Goldenhar, trissomias 13 e 18, etc.; 3) e;
    3. outra situação congénita e benigna que consiste na ausência dos músculos depressores da boca.

FIGURA 7. Paralisia facial periférica à direita. (UCIN-HDE)

A evolução em geral é favorável, para a cura, em cerca de 2 a 3 semanas (na circunstância de existir apenas compressão e edema locais). A ausência de encerramento palpebral nos casos de paralisia periférica implica cuidados com a humidificação da córnea com soro fisiológico. O tratamento limita-se à protecção do olho afectado; a intervenção neurocirúgica (neuroplastia) somente está indicada nas situações persistentes.

Lesão do nervo recorrente

A lesão unilateral pode ser causada por tracção excessiva da cabeça fetal durante o parto com apresentação pélvica, ou por tracção lateral da cabeça provocada por aplicação de fórceps. A lesão bilateral pode ser causada por traumatismo, hipóxia–isquémia ou hemorragia do tronco cerebral.

Nos casos de paralisia unilateral, o RN poderá estar assintomático ou evidenciar disfonia ou estridor inspiratório durante o choro. Muitas vezes o traumatismo atinge também o nervo grande hipoglosso, o que originará dificuldade alimentar e acumulação de secreções na orofaringe por compromisso da deglutição. A paralisia bilateral origina estridor, dificuldade respiratória e cianose.

Na paralisia unilateral, as manifestações podem obrigar a diagnóstico diferencial com defeitos laríngeos congénitos; verificando-se sinais de paralisia bilateral, em função da história clínica (possível trauma não evidente), deverão ser excluídos defeitos congénitos do SNC incluindo anomalia de Arnold-Chiari, anomalias cardiovasculares e massas mediastínicas.

O diagnóstico pode ser feito através de laringoscopia flexível com fibra óptica.

A paralisia unilateral regride em geral ao cabo de 6-8 semanas, não necessitando de qualquer tratamento ou intervenção. Nalguns casos de paralisia bilateral o prognóstico é reservado, podendo ser necessária a traqueostomia.

Lesão da espinhal-medula

As lesões da espinhal-medula, cujas formas graves são raras, poderão surgir no contexto de hiperextensão da cabeça e pescoço, apresentação pélvica e distócia de ombros. As formas clínicas habituais são: hematoma espinhal epidural, lesão da artéria vertebral, hematomielia cervical traumática, oclusão da artéria espinhal e secção transversal.

As manifestações clínicas podem englobar-se em 4 modalidades, dependendo da localização:

  1. Lesão cervical alta e/ou do tronco cerebral: morte fetal, depressão neonatal, SDR, choque, e hipotermia, sendo o prognóstico mau, com óbito neonatal precoce;
  2. Lesão cervical média/alta: depressão neonatal, SDR, paralisia das extremidades inferiores, arreflexia tendinosa, perda da sensibilidade na metade inferior corporal, retenção urinária e obstipação; pode haver associação a paralisia braquial;
  3. Lesão ao nível de C7 ou inferior, por vezes reversível: atrofia muscular, deformidades ósseas, contracturas e incontinência urinária;
  4. Lesão espinhal parcial ou oclusão da artéria espinhal: espasticidade e sinais neurológicos subtis.

O diagnóstico diferencial inclui fundamentalmente amiotonia congénita, mielodisplasia associada a spina bifida, tumores da espinhal medula, etc.. A imagiologia, através de radiografia convencional da coluna vertebral, TAC e RM podem contribuir para o diagnóstico.

O prognóstico depende da gravidade e localização da lesão.

A actuação compreende, entre outras medidas, manobras de ressuscitação e imobilização da cabeça-pescoço-tronco, o que implica colaboração de centro especializado.

Lesões dos ossos

A distócia de ombros surge em 0,5% a 2% dos partos por via vaginal, representando, por vezes, uma verdadeira emergência obstétrica. Felizmente, a maior parte das distócias de ombros é resolvida sem morbilidade materna ou fetal; como complicações podem surgir vários tipos de fracturas (da clavícula, úmero, fémur) e/ou lesão do plexo braquial.

A clavícula é o osso que mais frequentemente se fractura no contexto de traumatismo do parto, variando a sua frequência entre 0,3% a 2,3 % dos casos; de salientar que o seu significado clínico é limitado, não reflectindo a qualidade dos cuidados prestados.

Como manifestações clínicas da fractura da clavícula citam-se: hipomobilidade do membro superior do lado correspondente, crepitação e irregularidade ou saliência notada pela palpação da região clavicular, reflexo de Moro ausente ou incompleto do mesmo lado, e diminuição da depressão supraclavicular resultante do espasmo do esternocleidomastoideu.

Dum modo geral (exceptuando nos casos de lesões traumáticas associadas), perante a suspeita de fractura simples, não se torna necessário proceder à radiografia da clavícula. Por vezes o diagnóstico de fractura é feito a posteriori pela mãe da criança ao prestar-lhe os cuidados: saliência indolor ovóide que corresponde ao calo ósseo, traduzindo a excelência do prognóstico e a rapidez da consolidação (Figura 8).

Se forem detectados sinais de fractura (a palpação da região clavicular constitui um procedimento obrigatório do primeiro exame físico do RN no pós-parto), deverá proceder-se a uma imobilização do membro superior e ombro no sentido de minorar a dor pelo manuseamento da criança (por exemplo fixar a manga do casaco à roupa que cobre o tronco com um alfinete de segurança).

As fracturas dos ossos longos dos membros são, em geral, em ramo verde, podendo, no entanto, ser completas. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, a fractura do úmero é, a seguir à da clavícula, a segunda mais frequente, comparticipando cerca de 4,2% dos casos de lesões traumáticas; relaciona-se, na sua maioria, com manipulação fetal para extracção do membro superior em posição posterior.

FIGURA 8. Fractura da clavícula direita. (URN-HDE)

As fracturas do fémur e do rádio são hoje muito raras devido aos progressos na assistência ao parto; estão relacionadas, sobretudo, com partos de apresentação pélvica ou em cesarianas com extracção fetal muito difícil.

As fracturas metafisárias e descolamentos epifisários dos ossos longos surgem habitualmente no contexto de manobras de versão externa ou na extracção fetal durante a distócia de ombros.

O diagnóstico de fractura dos ossos longos implica imobilização de imediato, com a indispensável actuação pelo ortopedista.

Lesão dos músculos

Hematoma/Fibroma do esternocleidomastoideu

Este tipo de lesão cuja etiopatogénese é controversa surge, em geral, no contexto de partos distócicos com rotação e extensão excessivas do pescoço, do que resulta ruptura das fibras musculares do esternocleidomastoideu com hematoma ou trombose venosa e ulterior desenvolvimento de tecido fibroso; poderá também estar em relação com má-posição intrauterina.

As manifestações surgem, na maior parte das vezes, entre a primeira e a segunda semana de vida, quando a criança já está em casa. Observa-se tumoração ou nódulo em forma de azeitona, de consistência firme com cerca de 2 a 5 cm de diâmetro, fazendo corpo com o músculo em questão; por vezes verifica-se apenas um endurecimento localizado do músculo relacionado com fibrose difusa. Em ambas as circunstâncias pode verificar-se concomitantemente torcicolo, constituindo este o primeiro sinal de alerta (Figura 9).

São descritos dois tipos de evolução: – ou regressão pelo 5º-6º mês de vida; – ou fibrose residual com torcicolo, escoliose cervical e deformação craniofacial.

A actuação nestes casos implica encaminhamento para consulta de cirurgia pediátrica na eventualidade de ser necessário proceder a exames complementares (ecografia muscular, radiografia da coluna cervical, etc.) e fisioterapia. Entretanto, deverá promover-se o ensino a quem cuida da criança no sentido de se realizarem exercícios passivos (inclinação da cabeça para o lado oposto ao mesmo tempo que se volta o mento para o lado afectado). Durante o sono, a criança deverá ficar em posição que se oponha à posição viciosa, com o auxílio de saco de areia ou almofada especial.

Nos casos de evolução não favorável com a actuação conservadora, está indicada intervenção cirúrgica, idealmente não depois dos 4 anos (ver Parte XXV, sobre Ortopedia).

Lesão da face

Para além das fracturas dos ossos da face e maxilar inferior (hoje raras devido aos progressos da medicina materno-fetal e obstetrícia), cabe dar realce às fracturas dos ossos próprios do nariz e à luxação da cartilagem nasal; esta última, a mais frequente lesão nasal traumática, traduz-se por desvio do septo, que poderá comprometer a respiração por obstrução nasal. Trata-se duma situação que implicará correcção precoce a cargo da equipa de ORL pelo risco de sequelas (deformação permanente).

As lesões oculares foram abordadas na Parte XXVI – Oftalmologia.

A Figura 10 mostra o aspecto de um RN com um quadro de lesão traumática da fronte e face traduzida essencialmente por edema generalizado, no contexto de apresentação de face e asfixia perinatal. Trata-se duma situação evitável, hoje rara, que se apresenta por razões didácticas.

Lesão da pele e tecidos moles

Para além de equimoses, hematomas e feridas contusas, salientam-se dois quadros clínicos clássicos, raros:

Esteatonecrose

A esteatonecrose é uma lesão circunscrita da pele e tecido celular subcutâneo (do tipo placa), com certo grau de dureza à palpação, de cor avermelhada ou arroxeada.

FIGURA 9. Hematoma/fibroma do esternocleidomastoideu à direita. (URN-HDE)

FIGURA 10. Lesão traumática da fonte e face resultante de apresentação de face. (URN-HDE)

Os casos descritos na literatura englobam sobretudo antecedentes de macrossomia; as alterações descritas anteriormente surgem em geral entre a 1ª semana e a 2ª semana, após partos laboriosos e/ou traumáticos, em áreas com maior deposição de gordura tais como nádegas, dorso, coxas, membros superiores e face.

A etiopatogénese relaciona-se com trauma, hipóxia-isquémia e hipotermia, conduzindo a processo necrótico do tecido adiposo subcutâneo com ulceração ocasional. Estudos anátomo-patológicos demonstraram cristais de gordura neutra por solidificação da gordura originando ulteriormente “reacções de corpo estranho” (cristais de palmitina no citoplasma de células “gigantes”).

A evolução natural é no sentido de regressão espontânea lenta, em semanas a meses. Como sequelas poderá verificar-se atrofia residual, cicatrizes e, raramente, calcificações.

Não existe tratamento específico. Esta entidade foi abordada no capítulo sobre Paniculites, na Parte XXIII.

Máscara equimótica

Este quadro clínico, cuja designação é histórica, traduz-se por aspecto azulado da fronte, face e pescoço como consequência de petéquias e sufusões pequenas confluentes, em geral com hemorragia subconjuntival associada.

O mesmo resulta de hipertensão venosa no território da veia cava superior nos casos de circular do cordão apertada. Idêntico quadro pode surgir nos casos de partos com período expulsivo rápido, levando a descompressão brusca do tórax (patogénese semelhante à dos traumatismos torácicos verificados noutros grupos etários).

Em geral, o prognóstico é favorável na ausência de hipóxia-isquémia perinatal e boa adaptação à vida extrauterina (Figuras 11 e 12).

As lesões viscerais são mais frequentes nos partos pélvicos, em RN macrossómicos e nos casos de patologia de base acompanhada de visceromegália.

O fígado é o órgão mais frequentemente afectado, variando as manifestações clínicas do tipo de lesão (por ex. fractura, hematoma subcapsular, etc.). Na sua forma mais típica verifica-se palidez explicada por anemia por perda, diminuição progressiva do hematócrito e possível evolução para choque hipovolémico.

Como nota importante refere-se que a hepatomegália (resultante de hemorragia subcapsular) pode ser um sinal de alerta no contexto de parto laborioso. A ecografia ou radiografia simples abdominais poderão evidenciar sinais de conteúdo líquido intraperitoneal.

FIGURA 11. Máscara equimótica em RN (efeito resultante de circular apertada ao pescoço). (URN-HDE

FIGURA 12. Hemorragia subconjuntival em RN com máscara equimótica. (URN-HDE)

A ruptura do baço, menos frequente, poderá ter manifestações semelhantes às descritas para a lesão hepática; a radiografia abdominal simples poderá evidenciar sinais indirectos de hemoperitoneu (designadamente opacidade difusa, desvio da “bolha” gasosa gástrica para a linha média, etc.).

A lesão das suprarrenais (hemorragia) é, em regra, subclínica; nos casos de manifestações evidentes, poderão ser detectados sinais inespecíficos de modo progressivo em relação com:

  • anemia por perda (taquipneia, taquicárdia, palidez, etc.), ou com
  • insuficiência suprarrenal (vómitos, hipoglicémia, irritabilidade, coma, convulsões, diarreia, etc.).

A confirmação da hemorragia suprarrenal (a posteriori) pode ser obtida procedendo a ecografia ou radiografia simples: identificação de sinais localizados de calcificação.

A actuação engloba: – medidas de suporte; – eventualmente, terapêutica de substituição hormonal ou intervenção cirúrgica.

Aspectos importantes da actuação geral e prevenção

As lesões devem ser alvo de observação atenta, sendo papel do médico prever a sua evolução e orientar a atitude terapêutica de modo a facilitar, sempre que possível, a permanência do recém-nascido junto da sua mãe.

Se as lesões forem muito importantes, torna-se indispensável falar com os pais o mais precocemente possível, explicando-lhes a causa e a evolução a curto prazo da situação. Embora muitas lesões que ocorrem após partos laboriosos sejam transitórias, as mesmas poderão interferir com o processo de vinculação precoce entre o recém-nascido e seus pais. Por outro lado, a ansiedade que surge na mãe poderá perturbar, não apenas o aleitamento materno, mas também o modo como irá perspectivar toda a sua relação com o bebé.

Por isso, tendo em consideração a segurança do recém-nascido e da sua família, torna-se necessário promover uma relação de confiança com o médico e a equipa em geral, somente possível através da comunicação e disponibilidade dos profissionais durante a permanência do RN na unidade neonatal.

A avaliação cuidadosa da gravidez e apresentação fetal, do trabalho de parto e do modo de descida da apresentação, assim como a decisão do obstetra quanto ao tipo de parto, serão aspectos determinantes para a prevenção do traumatismo parto.

No que respeita a aspectos técnicos prevenivos quanto a parto instrumental do âmbito do especialista de obstetrícia, torna-se importante relevar que este deverá seguir cuidadosamente as boas práticas quanto à aplicação do fórceps, assim como as instruções do fabricante em relação ao manejo da ventosa (por ex. força de vácuo a utilizar, a duração da aplicação, etc.).

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INFECÇÃO DE ORIGEM HOSPITALAR

Especificidade do período perinatal

Modernamente, é comum usar-se o título “Infecção associada à prestação de cuidados de saúde” como substituto de “Infecção hospitalar”. No entanto, aquele é um conceito mais amplo, englobando não só a infecção de origem hospitalar mas também a infecção adquirida em ambulatório, onde muitos doentes recebem cuidados de saúde.

Cabe salientar, a propósito, que a infecção associada à prestação de cuidados de saúde na comunidade é raríssima no período neonatal. Entendemos, por isso, que neste grupo etário, somente terá pertinência dar ênfase ao conceito clássico de infecção de origem hospitalar (IH).

Importância do problema

Os RN gravemente doentes admitidos em UCIN têm risco de IH, tanto mais elevado quanto mais grave for a doença de base, menor a idade de gestação, mais manobras invasivas forem realizadas, e maior tempo de internamento. Trata-se, pois, de problema comportando genericamente morbilidade e mortalidade evitáveis.

Por outro lado, tal problema é susceptível de agravar a doença de base, provado que está o seu efeito muito deletério sobre a própria doença de base, mais frequentemente sobre a patologia do SNC e do sistema respiratório.

Em termos quantitativos, o impacte pode ser tipificado pela seguinte realidade: a frequência das IH em unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN) só é ultrapassada pela frequência de infecção nas unidades de queimados, o que determina custos acrescidos.

Manifestações clínicas

A septicémia relacionada com cateter venoso central (CVC) é muito frequente; mais rara é a pneumonia relacionada com o tubo traqueal nos RN submetidos a ventilação invasiva.

Ao contrário do que acontece em unidades de adultos em que a infecção mais frequente é a urinária, a infecção mais frequentemente encontrada nas UCIN é a sépsis (com hemocultura positiva ou negativa).

A lista dos agentes mais frequentemente isolados inclui Staphylococcus coagulase negativa, dos quais se destacam Staphylococcus epidermidis, frequentemente meticilinorresistentes – seguidos, de longe, pelas bactérias de Gram negativo de origem entérica ou não entérica, muitas vezes multirresistentes.

De notar, contudo, que a infecção que surge num RN admitido em UCIN, pode também ser de origem materna, pelo que tal hipótese deve estar sempre presente.

Prevenção

A atitude mais importante no que respeita às IH é a prevenção, e a medida isolada mais eficaz na prevenção é a lavagem das mãos. Depois, outros factores podem influenciar e ser melhorados no sentido de diminuir as taxas da referida morbilidade.

Uma correcta relação enfermeiro/doente, espaço físico e arquitectura adequados, equipas médica e de enfermagem estáveis, são alguns desse factores.

Outro factor de importância primordial é a política de antibióticos de uma unidade hospitalar. Dela depende a ecologia dos serviços e unidades. A multirresistência é, quer se queira aceitar ou não, uma consequência do uso desregrado de antibióticos, muitas vezes prescritos sem razão, para “alívio da consciência, por insegurança ou por ignorância”.

Se a lavagem das mãos é um procedimento fulcral no controlo de infecção, outras medidas não devem ser desprezadas, as quais fazem parte dos procedimentos escritos das unidades neonatais e da avaliação diária do doente. Referimo-nos aos seguintes procedimentos:

Notas importantes:

    • avaliação diária da necessidade de ventilação mecânica (se o doente puder ser extubado hoje não adiar para amanhã);
    • avaliação diária da necessidade de manter um cateter venoso central, ou de o colocar, que tipo de cateter, local de inserção, e se é colocado na UCIN ou no bloco operatório; (se o CVC puder ser retirado hoje não adiar para amanhã);
    • programação da alta, logo que possível (se o doente puder sair hoje, não adiar para amanhã).

Para além das precauções a ter com os dispositivos invasivos, devem ser tomadas em atenção as medidas de isolamento adequadas a determinadas situações. Assim,

  • um RN colonizado com bactéria multirresistente deve ser colocado em isolamento de contacto;
  • um RN admitido do domicílio com infecção respiratória aparentemente vírica, em contexto de epidemia, deve ser colocado também em isolamento de contacto.

Numa perspectiva preventiva, é sempre importante reiterar certas noções consubstanciando regras básicas de não adiamento de certas atitudes:

  • Retirar um CVC. Amanhã poderá já ser tarde, ter ocorrido um incidente – infecção, exteriorização, fractura, trombo;
  • Extubar um doente. Neste intervalo o doente poderá contrair uma pneumonia, ou o tubo traqueal ficar obstruído e o doente falecer;
  • Interromper antibioticoterapia;
  • Dar alta ao doente. Em mais um dia de internamento muitos eventos adversos poderão ocorrer.

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