Definição e aspectos epidemiológicos

Define-se enfarte cerebral como uma área de lesão do tecido cerebral confirmada por neuroimagem ou por exame anátomo-patológico, ocorrendo entre as 20 semanas gestacionais e os 28 dias de vida pós-natal. Tal lesão pode ser resultante de dois mecanismos:

  1. interrupção do fluxo sanguíneo numa artéria cerebral maior por trombose ou embolia (enfarte isquémico arterial perinatal), mais frequentemente; ou
  2. trombose duma veia cerebral maior (trombose do seio venoso cerebral) levando geralmente a enfarte hemorrágico; como regra, o enfarte hemorrágico é tipicamente venoso, localizado na zona periventricular, e habitualmente secundário a congestão venosa por hemorragia periventricular.

De salientar as seguintes associações mais frequentes:

  • o enfarte parassagital bilateral, a EHI;
  • o enfarte bilateral, a hipoglicémia; e
  • o enfarte multifocal, a infecções bacterianas ou víricas.

Etiopatogénese

Na maior parte dos casos o enfarte isquémico arterial perinatal resulta de êmbolo a partir da placenta que, atravessando o foramen ovale, atinge a aorta e os ramos da artéria carótida comum esquerda; o território mais afectado é o que corresponde à artéria cerebral média esquerda.

O enfarte parenquimatoso no contexto de trombose do seio venoso cerebral é secundário a drenagem venosa interrompida, não tendo, portanto, distribuição arterial. É em geral devido a compressão do seio sagital e a má posição cefálica e do pescoço.

São descritos os seguintes factores de risco de enfarte isquémico arterial perinatal e de trombose do seio venoso cerebral:

  • protrombóticos (explicando cerca de 40%-80% da patologia em análise), tais como: aumento da lipoproteína (a) e outras dislipoproteinémias, policitémia, mutação G1691 do factor V de Leiden, mutação G20210A do factor II, anticorpos antifosfolípidos adquiridos, défice das proteínas S e C, níveis elevados de homocisteína, etc.;
  • maternos, tais como: doenças autoimunes, pré-eclâmpsia, HTA, diabetes gestacional, consumo de cocaína, etc.;
  • fetoplacentares, tais como descolamento prematuro da placenta, infecção e hemorragia fetomaterna, gemelaridade, etc.;
  • tipo de parto, em geral, parto complicado com intervenção instrumental, etc.;
  • neonatais, em geral relacionados com hipoglicémia, desidratação, meningite, sépsis, tratamento com ECMO, etc..

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de enfarte isquémico arterial perinatal, constando de episódios de apneia e cianose, convulsões, hipotonia e irritabilidade, surgem em cerca de 90% dos casos antes dos primeiros três dias.

A trombose do seio venoso cerebral apresenta-se em cerca de 50% dos casos nos primeiros 2 dias de vida, e em 25% durante a primeira semana. As convulsões surgem como manifestação mais frequente, associada às da patologia de base anteriormente descrita.

Exames complementares

Para além dos exames laboratoriais gerais com base na história clínica e nos factores etiopatogénicos descritos, estão indicados os seguintes exames complementares:

  • rastreio protrombótico: incluindo, nos primeiros dias de vida, do foro genético – mutação do factor V Leiden, variante termolábil MTHFR e mutação protrombina G20210A; no seguimento em consulta (3-6 meses) – antitrombina III, proteína C e S, resistência à antitrombina, fibrinogénio, factor VIII, factor XII, inibidor do activador do plasminogénio, homocisteína, lipoproteína (a), anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina, e antibeta-2 glicoproteína I.

NB: estes exames devem ser realizados na mãe igualmente;

  • de imagem: ecografia transfontanelar (com baixa sensibilidade e especificidade), TAC-CE (confirmando enfarte isquémico e trombose sinovenosa, e excluindo hemorragia, também com sensibilidade e especificidade baixas), e RM (este último de 1ª linha, sendo preditivo de sequelas a longo prazo);
  • EEG: para além da recomendação de monitorização por vídeo-EEG convencional, está também indicada a realização de EEG integrado por amplitude (aEEG), este último, com interesse na avaliação do prognóstico motor em casos de lesão isquémica.

Tratamento

Citam-se como fundamentais as seguintes medidas:

  • normalização da glicémia e da temperatura, ventilação/oxigenação adequadas, manutenção da normovolémia e da normopressão arterial, e tratamento das convulsões e da febre; e
  • terapêutica anticoagulante com heparina não fraccionada ou de baixo peso molecular

→ nos casos de enfarte arterial isquémico;
→ nos casos de trombose sinovenosa sem hemorragia intracerebral e quando há
→ extensão da trombose; a trombólise não é recomendada.

Prognóstico

Globalmente, podem ser verificadas sequelas diversas (défices motores, cognitivos (associados sobretudo a hemiplegia e convulsões), da linguagem, da visão, e epilepsia.

Em cerca de 50% dos casos de crianças com enfarte da artéria cerebral média desenvolve-se hemiplegia.

Os sinais clínicos poderão não ser detectados durante vários meses, sendo que os resultados da exploração neurológica neonatal não são preditivos dos resultados tardios.

Na trombose sinovenosa, a taxa de mortalidade pode atingir os 10%-20%. A taxa de epilepsia oscila entre 15% e 40% e a de paralisia cerebral entre 6% e 7%.

BIBLIOGRAFIA

Cnossen M, Ommen C, Appel I. Etiology and treatment of perinatal stroke; a role for prothrombotic factors? Semin Fetal Neonatal Med 2009;14:311-317

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Gleason CA, Juul SE (eds). Avery’s Diseases of the Newborn. Philadelphia: Elsevier, 2018

Golomb M. Outcomes of perinatal ischemic stroke and cerebral sinovenous thrombosis. Semin Fetal Neonatal Med 2009;14:318-322

Guimarães JC, Carneiro MJ, Loio P, Macedo A, Tuna ML, et al. Manual Prático de Neonatologia. Lisboa: Hospital de São Francisco Xavier/Saninter, 2012

Gupta SN, Kechli AM, Kanamalla US. Intracranial hemorrhage in term newborns: management and outcomes. Pediatr Neurol 2009;40:1-12

Harteman JC, Groenendaal F, Kwee A, et al. Risk factors for perinatal ischaemic stroke in full-term infants: a case-control study. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2012;97:F411-F416

Inder TE, Perlman JM, Volpe JJ. Volpe’s Neurology of the Newborn. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

MacDonald MG, Seshia MMK (eds). Avery’s Neonatology: Pathophysiology and Management of the Newborn. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Polin RA, Yoder MC. Workbook in Practical Neonatology. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Polin RA, Abman SH, Rowitch DH, Benitz WE, Fox WW (eds). Fetal and Neonatal Physiology. Philadelphia: Elsevier, 2017

Ramenghi L, Govaert P, Fumagalli M, et al. Neonatal cerebral sinovenous thrombosis. Semin Fetal Neonatal Med 2009;14:278-283

Wilson CB, Nizet V, Maldonado Y, et al (eds). Remington and Kline’s Diseases of the Fetus and Newborn. Philadelphia: Elsevier, 2016