Definição e importância do problema

A leucomalácia periventricular (LPV) é uma forma de lesão estrutural da substância branca, em geral associada a HIPV da matriz germinal; tal designação foi usada pela primeira vez em 1962 por Banker e Larroche.

Malácia significa “amolecimento ou dissolução”. Tratando-se de tal fenómeno localizado na substância branca na zona periventricular (surgindo cerca de duas semanas após actuação da noxa), fala-se em leucomalácia periventricular. De salientar que o dito fenómeno de malácia, noutro contexto etiopatogénico poderá verificar-se noutras zonas da sustância branca: tratar-se-á de leucomalácia com outra localização.

Trata-se dum problema neurológico grave verificado predominantemente no RN pré-termo, integrando diversas entidades clinicopatológicas.

A incidência é tanto maior quanto menor a idade gestacional, o que se relaciona com o grau de vulnerabilidade da estrutura da substância branca e a data da agressão dos factores lesivos (intrauterinos e/ou pós-natais). O risco é maior nos casos de HIPV grave ou ventriculomegália.

Segundo a descrição clássica, como resultado de isquémia cerebral, são verificadas zonas bilaterais de necrose na área da substância branca periventricular, disrupção de axónios, inflamação, activação glial e lesão dos pré-oligodendrócitos conduzindo a sequelas em grau variável.

A lesão da substância branca tem sido também observada em situações com componentes de infecção e inflamação, tais como hipóxia ou hipotensão pós-natal, enterocolite necrosante, prematuridade tardia ou nascimento de termo e status pós-reparação cirúrgica de cardiopatia congénita.

De acordo com estudos realizados em diversos centros especializados em populações de crianças ex-RN com peso de nascimento inferior a 1.000 gramas, tem sido apurada incidência de LPV entre 3% e 5%.

Etiopatogénese

A compreensão da etiopatogénese da LPV tem evoluído ao longo do tempo, admitindo-se a comparticipação de eventos intrauterinos e pós-natais.

Realça-se uma complexa interacção entre determinados factores: o desenvolvimento da vasculatura cerebral, a regulação do débito sanguíneo cerebral (ambos dependendo da idade gestacional), o estado de maior ou menor vulnerabilidade (dependente do grau de maturação) dos precursores dos oligodendrócitos ou pré-oligodendrócitos, fundamentais para a mielinização, e os processos de infecção e inflamação materno-fetal.

Relativamente aos pré-oligodendrócitos (considerado factor major), importa referir que, quanto maior a sua maturação, maior a resistência à toxicidade do glutamato e dos radicais livres, gerados em abundância em caso de isquémia-reperfusão.

Acontece o contrário (maior vulnerabilidade) com os pré-oligodendrócitos imaturos. Trata-se, pois, de células extremamente vulneráveis à agressão por radicais livres.

A prematuridade constitui um importante factor predisponente de LPV.

No RN pré-termo, com imaturidade estrutural, são as áreas da substância branca as mais vulneráveis e susceptíveis a isquémia-reperfusão: pequenas zonas entre a confluência ou anastomose de dois sistemas de drenagem sanguínea em continuidade (zonas “fronteira”).

Tais áreas de perfusão inadequada, subsidiárias das artérias medulares profundas, localizam-se na substância branca a alguns milímetros da parede ventricular (localização periventricular). Sendo afectados os axónios que atravessam as referidas “zonas fronteira”, de tal interrupção anatomofuncional resultará diplegia espástica, a sequela ou perturbação motora típica do RN pré-termo.

Se as lesões da substância branca forem mais extensas, poderão ser afectados os axónios que se estendem até aos membros superiores e face. As ramificações ópticas e acústicas também podem ser atingidas.

Por outro lado, no RN pré-termo o córtex cerebral é mais poupado aos efeitos da isquémia-reperfusão porque possui abundante vascularização dependente das artérias leptomeníngeas.

No RN de termo a área de maior vulnerabilidade é o córtex cerebral, podendo então surgir outro tipo de leucomalácia – chamada leucomalácia subcortical, situação pouco abordada na literatura.

Para além da prematuridade per se, menciona-se o papel de outros factores que, por sua vez, podem estar associados a prematuridade:

    • instabilidade hemodinâmica, com oscilações da pressão arterial e variações do débito sanguíneo cerebral no contexto de patologia diversa característica do RN pré-termo (dificuldade respiratória, infecção sistémica, manuseamento intempestivo, episódios de apneia, hipoglicémia, oscilações da temperatura corporal, etc.).
    • débito sanguíneo cerebral influenciado por variações da pressão de CO2 e de O2. A hipercápnia induz vasodilatação cerebral, e a hipocápnia provoca vasoconstrição com consequente diminuição do débito sanguíneo cerebral. Por sua vez, a hipóxia induz vasodilatação, e a hiperóxia leva a constrição dos pequenos vasos. Estes efeitos são mediados provavelmente através dum efeito local do pH da parede vascular.
    • deficiência do mecanismo de autorregulação circulatória (mecanismo pelo qual se mantém débito cerebral constante apesar das variações da pressão arterial sistémica) no RN pré-termo, recordando-se que o débito cerebral é regulado por variações no calibre das arteríolas intracerebrais.
    • infecção e inflamação, o que tem sido demonstrado pela associação entre infecção materna, ruptura prolongada de membranas, níveis elevados de IL-6 no sangue do cordão e incidência mais elevada de LPV; com efeito, a chamada síndroma de resposta inflamatória fetal (SRIF) é actualmente considerada como a causa major de morbilidade e mortalidade no feto/RN. E, em determinadas situações específicas, tal mecanismo é responsável por quadros clínicos simile sépsis.

Como consequência da isquémia-reperfusão e dos eventos referidos ao nível da substância branca periventricular, surge o quadro morfológico de leucomalácia, a forma mais característica de necrose axonal e glial na substância branca no RN pré-termo.

Segundo Volpe, a maior probabilidade de surgimento de LPV no contexto de hemorragia intraperiventricular (HIPV) pode relacionar-se com o aumento da concentração local de Ferro derivado da hemorragia.

A LPV constitui uma patologia sempre bilateral, com localização mais habitual na região do corpo do ventrículo lateral e do corno frontal, ao nível do buraco de Monro e do corno occipital. Pode ser difusa ou focal.

A LPV focal é classicamente descrita como áreas macroscópicas de necrose, as quais inicialmente são identificadas como lesões ecodensas na área periventricular, com ou sem sangue nos ventrículos. Algumas semanas depois, estas áreas ecodensas evoluem para áreas quísticas, quadro morfológico que traduz a chamada LPV quística, uma minoria entre as LPV (< 5% em RNMBP). A gliose cicatricial contribui, por sua vez, para a redução do volume das cavidades, podendo seguir-se microcalcificações secundárias.

A LPV difusa, na era moderna mais frequentemente explicada por maturação anormal dos neurónios e da glia do que por necrose, está associada a perda de pré-oligodendrócitos; tal facto conduz a hipomielinização e diminuição do volume da substância branca por retracção cicatricial, e à dilatação ventricular por mecanismo ex-vacuo.

No âmbito da avaliação imagiológica desta patologia está indicada a ressonância magnética (RM), tendo em conta as limitações da ecografia. (ver adiante)

Manifestações clínicas

Inicialmente, as manifestações clínicas podem ser inespecíficas. De facto, as mesmas correspondem a sequelas dos eventos descritos anteriormente: fundamentalmente, diplegia espástica (típica da LPV), alterações da motricidade fina, alterações da esfera cognitiva, problemas de memorização e atenção e, nalgumas crianças, insuficiência mental.

Para avaliação do prognóstico, torna-se necessário proceder a exame neurológico rigoroso e seriado durante o período de internamento hospitalar e após a alta.

A probabilidade de doença motora futura depende, entre outros factores, da localização e do tipo das lesões encontradas nos estudos imagiológicos.

Exames complementares

Na prática clínica corrente assume particular importância, como complemento do exame neurológico seriado, a ecografia transfontanelar (também realizada de modo seriado).

Os sinais ecográficos mais característicos de LPV são: hiperecogenicidade periventricular seguida de sinais de quistos porencefálicos (sinal do “queijo suíço”); numa fase mais tardia e nas formas mais graves passam a ser notórios sinais de atrofia cortical com alargamento dos ventrículos (Figuras 1, 2 e 3).

FIGURA 1. Aspecto ecográfico de leucomalácia não quística ao nível dos cornos frontais. Corte coronal e parassagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Leucomalácia periventricular (LPV) quística e alargamento do sistema ventricular por mecanismo ex vacuo. Corte coronal posterior. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Leucomalácia quística posterior.Corte coronal. (UCIN-HDE)

Em estudos de correlação clínico-patológica, a sensibilidade da ecografia transfontanelar é cerca de 70%, o que equivale a dizer que existe fraca capacidade discriminativa para a detecção de pequenas áreas de necrose.

Assim, outros exames de imagem evidenciando maior sensibilidade, poderão estar indicados em função do contexto clínico (RM, TAC, Eco-doppler, Espectroscopia próxima dos infravermelhos, etc.).

A RM é um método mais rigoroso identificar todas as formas de LPV, quer no lactente, quer na criança mais velha, designadamente nos casos em que há antecedentes de prematuridade e quadro de alterações cognitivas, sensoriais e ou motoras. Em função do contexto clínico poderá estar indicado o EEG.

Tratamento e prevenção

Na fase actual dos conhecimentos não existem medicações nem medidas para o tratamento específico da LPV durante o período neonatal. Nesta perspectiva, todos os esforços deverão ser dirigidos essencialmente para a prevenção da isquémia-reperfusão e da HIPV, atendendo aos factores de risco e etiopatogénese.

Assim, torna-se fundamental garantir uma perfusão cerebral normal e estável através de procedimentos e atitudes no âmbito do internamento em UCIN: monitorização da pressão arterial (evitando variações bruscas deste parâmetro),* volémia, oxigenação e ventilação com especial atenção para a hipocápnia e hipóxia, manuseamento mínimo do RN, evicção da infecção materno-fetal, antibioticoterapia atempada para tratamento da infecção materno-fetal e neonatal, etc.. Resultados da investigação experimental apontam para a utilização de antagonistas dos radicais livres, de agentes anticitocinas e antiglutamato.

*Existe controvérsia acerca dos procedimentos para manter pressão arterial normal no pré-termo, pois, de acordo com o que foi referido na alínea Etiopatogénese, face às características de disfunção do mecanismo de autorregulação cerebral no RN pré-termo, pressão arterial normal não significa necessariamente perfusão cerebral normal, o que constitui uma dificuldade para o clínico.

Prognóstico e seguimento

A LPV constitui a principal causa de disfunção cognitiva, comportamental, motora e sensorial em crianças nascidas com idade gestacional < 32 semanas. Nas formas mais graves poderá desenvolver-se epilepsia.

Como resultado da LPV, verifica-se incidência aproximada de paralisia cerebral ~10%, e de dificuldades escolares ~35%-50%, sendo que estes resultados traduzem, segundo alguns estudos, associação de HIPV e LPV. As sequelas são tanto mais frequentes quanto menor a idade gestacional.

A diplegia espástica constitui a sequela mais frequentemente associada a patologia do SNC em RN pré-termo, dado que a lesão na substância branca se localiza em geral na zona vizinha ou justaposta aos ventrículos. Se as lesões se localizarem mais perifericamente, poderão ser afectados os axónios de que dependem a face, os membros superiores e a visão (neste último caso, se a localização for dorsolateral ou contígua aos cornos occipitais).

Como se pode depreender, os casos de LPV, muitas vezes associados a outros problemas no contexto de ex-RN pré-termo, deverão ser seguidos pelo médico assistente, por sua vez, em ligação a uma equipa multidisciplinar no âmbito de um centro de desenvolvimento.

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