*Revisão de Aguinaldo Cabral

Importância do problema

As doenças hereditárias do metabolismo (DHM), embora raras, estão associadas a morbilidade e mortalidade significativas em relação, sobretudo, com o atraso no diagnóstico e a aplicação de medidas terapêuticas indicadas, já no período neonatal.

Muitas destas doenças são provocadas por mutações em genes que codificam proteínas específicas; o resultado final de tais anomalias será o compromisso variável da capacidade funcional daquelas (enzimas, receptores, proteínas de transporte, componentes da membrana celular ou de outras estruturas celulares como ácidos nucleicos, lisossomas, peroxissomas, aparelho de Golgi, mitocôndrias, etc.) originando quadros clínicos de expressão diversa.

Até à actualidade, foram identificados mais de seis centenas de defeitos enzimáticos responsáveis por tais doenças hereditárias. Foram mapeados, clonados, isolados e sequenciados muitos dos genes envolvidos e catalogado um enorme número de mutações responsáveis por heterogeneidade bioquímica e genética.

Também os progressos impressionantes no diagnóstico e terapêutica contribuiram para mudar o perfil e o prognóstico deste tipo de patologia.

Na sua maioria (cerca de 60%), trata-se de doenças de transmissão autossómica recessiva, sendo cerca de 20% de transmissão autossómica dominante, 12% ligadas ao cromossoma X e 8% com padrão de hereditariedade mitocondrial. Salienta-se que podem ocorrer em qualquer idade, desde a vida fetal até à idade adulta.

Como se depreende, tais patologias deverão ser assistidas e orientadas inicialmente em centros especializados de referência, embora o seu seguimento se possa realizar em instituições menos diferenciadas, mas sempre em estreita ligação com aqueles.

Rastreio

A detecção no período neonatal de algumas patologias através do rastreio universal, visando a identificação de diversas situações, tem sido realizada ao longo de várias décadas. Com os avanços da tecnologia, muitas doenças genéticas/metabólicas podem ser diagnosticadas ainda antes do início das manifestações clínicas. É este o conceito de diagnóstico precoce.

A escolha das doenças a rastrear implica a obediência a um conjunto de condições básicas:

  • a possibilidade de diagnóstico confiável numa fase precoce da vida, quando os sinais são inespecíficos, inexistentes ou raros; e
  • a existência de uma terapêutica considerada eficaz.

Um rastreio implica, igualmente, a ponderação de um conjunto de questões de ordem prática, relacionadas, nomeadamente, com:

  • a tecnologia a utilizar;
  • o controlo laboratorial de qualidade; e
  • a garantia das condições, a sua realização de forma ininterrupta ao longo do tempo.

Uma vez rastreados os casos de possível doença, devem os mesmos ser encaminhados para centros de referência para confirmação diagnóstica e tratamento específico.

O Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) é um programa de saúde pública que teve o seu início em 1979 no âmbito do Instituto de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães com o rastreio da fenilcetonúria (doença hereditária do metabolismo-DHM) e, posteriormente, em 1981, com o do hipotiroidismo congénito.

A partir de 2004 passaram a ser incluídas progressivamente no Programa Nacional de Diagnóstico Precoce (PNDP) outras doenças hereditárias do metabolismo (rastreio alargado), utilizando a espectrofotometria de massa em tandem, sendo em 2008 já rastreadas 26 patologias (25 metabólicas e o hipotiroidismo congénito). Como dados globais nacionais importa referir que até final de 2015 foram rastreados mais de três milhões de recém-nascidos.

De acordo com o Relatório do PNDP de 2015, o painel de rastreio das DHM em Portugal abrange as seguintes doenças:

  1. Aminoacidopatias/Doenças do ciclo da ureia
    Fenilcetonúria/hiperfenilalaninémias
    Tirosinémia tipo I
    Tirosinémia tipos II/III
    Leucinose (MSUD)
    Homocistinúria clássica
    Hipermetioninémia (def. MATI/III)
    Citrulinémia tipo I
    Acidúria arginino-succínica
    Hiperargininémia
  2. Acidúrias orgânicas
    Acidúria propiónica (PA)
    Acidúria metilmalónica (MMA, Mut-)
    Acidúria isovalérica (IVA)
    Acidúria 3 – hidroxi-3-metilglutárica (3-HMG)
    Acidúria glutárica tipo I (GA I)
    3-Metilcrotonilglicinúria (def. 3-MCC)
    Acidúria malónica
  3. Doenças da Beta-oxidação mitocondrial dos ácidos gordos
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia curta (SCHAD)
    Def. desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia média (MCAD)
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia longa (LCHAD)/TFP
    Def. desidrogenase de 3-hidroxi-acilCoA de cadeia muito longa (VLCAD)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase I (CPT I)
    Def. Carnitina-palmitoil transferase II (CPT II)/CACT
    Def. múltipla das desidrogenases dos ác. gordos (MADD)/Acidúria glutárica tipo II
    Def. primária em carnitina (CUD)

Em Portugal, desde o início do PNDP até final de 2015, foram identicadas DHM com a prevalência de de 1/2.333.

No ano de 2015, em 85.058 recém-nascidos rastreados foram identificadas 30 DHM fazendo parte do painel (prevalência de 1/2.835) assim distribuídas:

  • MCAD…..12;
  • PKU/Hiperfenilalaninémia…..7;
  • MSUD…..3;
  • MAT I/III…..3;
  • MADD…..1;
  • VLCAD….1;
  • CACT…..1;
  • TIR II/III…..1;
  • MMA…..1;

Manifestações clínicas gerais

Poderá suspeitar-se de DHM nas seguintes circunstâncias:

  • no período pré-natal, existindo antecedentes familiares de doença e de mortes inexplicadas;
  • no período neonatal, verificando-se:
    • letargia, hipotonia, convulsões, deterioração neurológica, coma
    • hepatosplenenomegália, hipoglicémia, falência hepática, icterícia
    • cardiomiopatia, falência cardíaca, morte súbita, hidropisia não imune
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • acidose metabólica grave, cetose, hiperamoniémia, hiperlactacidémia
    • sinais dismórficos
    • doença grave inexplicada;
  • no período pós-neonatal, verificando-se:
    • dismorfia facial, alterações esqueléticas
    • vómitos intermitentes inexplicados
    • atraso do desenvolvimento psicomotor/sensorial
    • ataxia recorrente
    • letargia
    • coma recorrente (metabólico, neurológico ou hepático)
    • convulsões
    • odor anormal, corporal ou urinário
    • icterícia
    • hepatomegália
    • acidose metabólica
    • luxação do cristalino
    • cabelo anormal
    • hipopigmentação
    • cálculos renais, etc..

Como se disse, estas doenças podem manifestar-se em qualquer idade, chamando-se a atenção para formas clínicas de apresentação tardia, no adulto, por vezes interpretadas erroneamente como processos degenerativos, vasculares, etc..

Exames laboratoriais

A suspeita de DHM com base em dados obtidos pelo clínico (anamnese e exame objectivo) implica a realização de análises laboratoriais (sempre que possível, antes de qualquer terapêutica) em regime hospitalar para avaliação de determinados parâmetros em simultâneo no sangue e urina (e LCR perante contexto clínico de encefalopatia): uma colheita, quer para estudo imediato, quer para eventual estudo ulterior mais sofisticado a que adiante se fará referência.

No sangue estão indicadas, de imediato, as seguintes análises: hemograma, ionograma, hiato iónico, glicemia, provas de função hepática, provas de função renal, estudo da coagulação, pH e gases, ácido úrico, amónia e lactato; e na urina: pesquisa de cetonúria, anotação da cor, odor e pH.

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