*Revisão de Aguinaldo Cabral

Introdução

As células do organismo humano possuem diversos organelos interligados funcionalmente:

  • Lisossomas
  • Peroxissomas
  • Retículo endoplásmico
  • Aparelho de Golgi
  • Mitocôndrias

Os processos fisiopatológicos verificados a este nível permitem a individualização de determinadas nosologias do foro metabólico e hereditário e uma melhor compreensão dos problemas clínicos que as integram.

Lisossomas

Os lisossomas, organelos que contêm hidrolases em meio ácido, são fundamentais para a cisão intracelular de moléculas e compostos de diversas dimensões. Certas enzimas lisossómicas, sendo captadas através de endocitose por outras células, poderão ser identificadas nos fluidos orgânicos.

Como consequência de defeitos em genes que codificam as referidas enzimas lisossómicas, haverá acumulação de substratos incompletamente catabolisados nos organelos de diversos sistemas e órgãos (por ex. órgãos sólidos, tecido conjuntivo, sistema osteoarticular, sistema nervoso, etc.), cuja tradução clínica é o surgimento de organomegálias e outras disfunções de carácter progressivo.

No âmbito das doenças dos lisossomas são consideradas diversas entidades clínicas assim discriminadas:

  • Mucopolissacaridoses (MPS);
  • Oligossacaridoses;
  • Mucolipidoses (ML);
  • Esfingolipidoses;
  • Doenças lisossómicas de armazenamento ou depósito de lípidos (incluindo as lipofuscinoses), e de glicogénio (glicogenose tipo II ou doença de Pompe, já abordada);
  • Doenças por defeito de transporte lisossómico.

Neste capítulo, é dada ênfase às primeiras quatro entidades clínicas (MPS, Oligossacaridoses, ML e Esfingolipidoses), respectivamente nas alíneas 1, 2, 3, 4, adiante sistematizadas.

Na sua globalidade, as doenças lisossómicas, com uma prevalência de 1/5.000 a 1/7.700, compreendem mais de 50 entidades clínicas.

Peroxissomas

Os peroxissomas são organelos celulares que possuem funções anabólicas e catabólicas, sintetizam fosfolípidos (plasmalogénios, importantes constituintes das membranas celulares), a mielina; intervêm na beta-oxidação dos ácidos gordos de cadeia muito longa e alfa-oxidação do ácido fitânico (ácido gordo 3-metil) e na formação dos ácidos biliares; e promovem o catabolismo da lisina e do glioxilato.

Muitas reacções dependentes do oxigénio verificam-se nos peroxissomas para proteger a célula dos radicais livres, sendo que o H2O2 produzido é metabolizado pela catalase peroxissómica. Salienta-se que, para a biossíntese dos peroxissomas e transporte transmembranar, se torna fundamental o concurso das chamadas peroxinas codificadas pelo gene PEX.

Neste contexto, as doenças dos peroxissomas podem ser sucintamente sistematizadas em:

  • Defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Defeitos do metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Neste capítulo, a alínea 5. (ver adiante) aborda sucintamente o metabolismo dos peroxissomas (defeitos enzimáticos isolados).

Retículo endoplásmico e Aparelho de Golgi

Citam-se outros organelos com importância na etiopatogénese de um grupo de doenças hereditárias do metabolismo:

  • O retículo endoplásmico (RE) – estrutura do citoplasma celular constituída por um conjunto de sáculos e de túbulos achatados cuja função está associada a outro organelo, o aparelho de Golgi;
  • O aparelho de Golgi (AG) – microestrutura com pequenas bolsas e vesículas, com função importante nos processos de secreção e absorção da célula.

Para melhor compreensão das doenças relacionadas com alteração do metabolismo destes organelos RE e AG, importa recordar as seguintes noções:

  • Muitas enzimas e proteínas de membrana e de transporte, assim como certas hormonas, requerem glicosilação (glicosilação proteica) para que se tornem funcionais, formando-se glicoproteínas; salienta-se que existe também a modalidade de glicosilação lipídica;
  • Tal processo requer a participação mais de 50 enzimas localizadas nos referidos organelos (RE e AG);
  • As perturbações ao nível de múltiplos passos metabólicos relacionados com a glicosilação originam uma diversidade de síndromas designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês – congenital defects of glycosylation).

Tais perturbações são abordadas adiante neste capítulo, integrando a alínea 6. , com o título: defeitos da glicosilação (síndromas CDG).

Mitocôndrias

Uma das principais funções das mitocôndrias, organelo em forma de grão, bastonete ou filamento, é o fornecimento de energia sob a forma de ATP através da oxidação dos ácidos gordos, a oxidação de acetilCoA no ciclo do ácido tricarboxílico e a fosforilação oxidativa na cadeia respiratória. Tal processo implica o concurso de mais de 50 enzimas e complexos enzimáticos compostos por número variável de polipéptidos.

As doenças do metabolismo energético mitocondrial, ou simplesmente doenças mitocondriais, decorrem de perturbações de enzimas ou complexos enzimáticos directamente envolvidos na geração de energia química pela fosforilação oxidativa; incluem o complexo piruvato desidrogenase (PDH), o ciclo do ácido tricarboxílico, a cadeia respiratória e a ATP sintetase.

Este tópico é abordado separadamente no próximo capítulo.

1. MUCOPOLISSACARIDOSES (MPS)

Definição e etiopatogénese

AS MPS são doenças lisossómicas de sobrecarga, resultantes de deficiência de enzimas lisossómicas (hidrolases ácidas), com consequente degradação incompleta dos glicosaminoglicanos (com a abreviatura de GAG, sinónimo do termo antigo de mucopolissacáridos), os quais se depositam nos órgãos e tecidos.

Os GAG (que constituem a matriz extracelular das membranas celulares dos tecidos conjuntivo e cartilagíneo, das paredes vasculares e fluidos articulares) são açúcares de cadeia longa aminoacetilados ou sulfatados em ligação a estrutura proteica.

Trata-se de doenças crónicas, progressivas e multissistémicas, de transmissão AR, exceptuando no caso da MPS II (doença de Hunter), que é ligada ao cromossoma X. Nas formas moderadas ou atenuadas, o fenótipo e a esperança de vida aproximam-se da normalidade. O diagnóstico pré-natal é possível para todos os tipos.

Os bebés afectados têm geralmente aparência normal ao nascer, com o tempo definindo-se o fenótipo; se este for sugestivo logo ao nascer, é mais provável que a situação em causa se relacione com mucolipidose tipo II ou I-cell disease, ou gangliosidose GM1, ou doenças de aramazenamento de ácido siálico (ver adiante).

Manifestações clínicas gerais

As manifestações clínicas mais relevantes das MPS podem ser sistematizadas como se segue:

  • Dismorfia facial (fácies grotesca)
  • Alterações esqueléticas (disostose múltipla)
  • Hepatosplenomegália
  • Hérnia umbilical e inguinal
  • Rigidez articular como regra, exceptuando na doença de Mórquio
  • Hipocrescimento de grau variável (nanismo na antiga nomenclatura)
  • Surdez, opacidade da córnea
  • Deterioração mental e alterações neurológicas progressivas (variáveis)
  • Defeitos cardíacos (lesões valvulares)
  • Pele áspera e hirsutismo
  • Infecções respiratórias frequentes.

Nosologia

O Quadro 1 resume a classificação das MPS, dando ênfase a aspectos clínicos característicos.

QUADRO 1 – Síntese classificativa das MPS.

Designação dos tipos de MPS: I-Hurler; II-Hunter; III-Sanfilippo; IV-Mórquio; VI-Maroteaux-Lamy; VII-Sly. (  )=variável.
TipoDismorfia facial         Disostose múltipla         Atraso mental         Opacidade da córnea           Coração
I+++++++++
II+++(++)+++
III+++++
IV+++(+)
VI+++++
VII++(+)+(+)


O tipo IX (Natowicz) contou durante longo tempo com um caso apenas. Contudo, até 2015 foram descritos vários casos na mesma família considerados “artrite idiopática juvenil”, e correspondendo a fenótipo limitado às articulações.

Em síntese, as MPS podem ser caracterizadas do seguinte modo:

  • Síndroma dismórfica e hipocrescimento (Hurler, Hunter e Maroteaux- Lamy, Sly) (Figuras 1-A, B, C; 2; 3; 4);
  • Deficiência mental com regressão das capacidades e alterações do comportamento (Sanfilippo) (Figura 5);
  • Displasia óssea grave com inteligência normal (Mórquio) (Figura 6).

FIGURA 1A. MPS-I (Hurler): Nanismo, fácies grosseira, organomegália, mão bota. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 1B. MPS-I (Hurler): Fácies grosseira, opacidade da córnea/ tapada, pescoço curto, hirsutismo.

FIGURA 1C. MPS-I (Hurler): Aspecto das mãos, dedos grosseiros. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 2. MPS-II (Hunter): Atraso mental, fácies grosseira, organomegália, dificuldade de extensão articular. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 3. Maroteaux-Lamy (MPS-VI): Fácies grosseira, alterações esqueléticas, hérnia umbilical, dificuldade de extensão articular, nanismo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 4. Sly (MPS-VII): Fácies grosseira, hipertrofia gengival, organomegália, alterações esqueléticas, hidrocele. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 5. Sanfilippo (MPS-III): hirsutismo, fácies grosseira. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 6. Mórquio (MPS-IV-A): 2 irmãos com a doença; nanismo severo, ausência de rigidez articular e inteligência normal. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se:

  • Na detecção urinária e caracterização dos GAG parcialmente degradados (QUADRO 2);
  • Na análise (no soro, leucócitos ou fibroblastos) da actividade das enzimas específicas (QUADRO 3);
  • Na análise molecular (estudo mutacional);
  • No estudo radiológico (FIGURAS 7 a 11).

O cuidadoso estudo radiológico pode contribuir para o diagnóstico, valorizando as seguintes alterações: escafocefalia, sela turca alargada; costelas alargadas e grosseiras com afilamento proximal (costelas em remo); corpos vertebrais em anzol com esporão ântero-inferior, gibosidade, cifose dorsal, lordose lombar; metacárpicos com afilamento proximal; alteração dos ossos da bacia (grandes asas do ilíaco, como na doença de Mórquio), cavidades cotiloideias fugidias e irregulares, etc. (Figuras 7 a 11).

QUADRO 2 – Glicosaminoglicanos(•) patológicos na urina em diferentes MPS.

(•) Anteriormente designados mucopolissacáridos (GAG/MPS) e pesquisados como triagem; probabilidade de falsos negativos nos tipos III e IV.

( ) = varável; n = normal

 

Normal

Mucopolissacaridose

Achados clínicos típicos, sistemas orgânicos afectados

 

 

I

II

III

IV

VI

VII

 

Sulfato de dermatano

 

++

++

  

++

+

Esqueleto + órgãos internos

Sulfato de heparano

 

+

+

+

  

n/+

Atraso mental

Sulfato de queratano

    

+

  

Esqueleto

Sulfato de condroitina

+

   

(+)

 

+

 

QUADRO 3 – Mucopolissacaridoses e défices enzimáticos específicos.

MPS I (Hurler-Scheie) → alfa-L-iduronidase

MPS II (Hunter) iduronato-2-sulfatase

MPS III (Sanfilippo) quatro enzimas (A, B, C, D, E) do metabolismo do sulfato de heparano, respectivamente: heparano N sulfatase, N-ac-glucosaminidase, Ac-CoA-glucosamina-N-acetiltransferase, N-ac-glucosamina-6-sulfato sulfatase

MPS III E → arilsulfatase G

MPS IV (Mórquio) duas enzimas (A, B) do metabolismo do sulfato de queratano, respectivamente: N-ac-galactosamina-6-sulfatase (Mórquio A), beta-galactosidase (Mórquio B)

MPS VI (Maroteaux-Lamy) N-acetilgalactosamina-4-sulfatase (arilsulfatase B)

MPS VII (Sly) beta-glucuronidase

MPS IX (Natowicz) hialuronidase ou hialuronoglucosidase I (Hyal I)

FIGURA 7. MPS: aspecto radiológico de costelas em remo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 8. Aspecto radiológico de MPS; vista lateral da coluna vertebral: costelas alargadas, grosseiras; alteração dos corpos vertebrais (vértebras em “anzol”) com esporão anteroinferior; retrolistese. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 9. MPS: padrão radiológico (pormenor de vértebra em anzol). (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 10. MPS: radiografia do 1/3 inferior dos antebraços e das mãos: metacárpicos grosseiros, com afilamento proximal; metacárpicos em “favo de mel”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

FIGURA 11. Radiografia do crânio de MPS: vista lateral do crânio com sela turca alargada em “tamanco”. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

Tratamento

Apesar dos recentes avanços, o tratamento definitivo ou curativo na maioria das afecções que atingem o cérebro ainda não é possível. Para além do tratamento sintomático, salienta-se a importância de certas medidas que poderão retardar a progressão da doença:

  • Terapêutica enzimática de substituição (TES), disponível para alguns tipos de MPS (I, II, IV-A e VI -perfusão IV semanal de enzima recombinante);
  • Transplante de células estaminais/ stem-cells hematopoiéticas (TSCH) eventualmente associada a terapêutica enzimática; como a enzima administrada por via IV não atravessa a barreira hematoencefálica, a terapia de eleição na MPS I severa é o tratamento combinado com terapia enzimática de substituição (TES);
  • Transplante de medula óssea: nalguns casos de MPS tipos I (especialmente), II e VI tem sido realizado este procedimento com resultados variáveis, menos notórios quanto às alterações esqueléticas e oculares.

Seguimento

Dada a natureza progressiva das MPS, torna-se necessária uma avaliação clínica seriada e rigorosa abrangendo várias funções: audição, visão, cardiovascular, pulmonar, articular, neurológica, qualidade do sono, etc.. Nesta perspectiva, impõe-se a colaboração de equipas multidisciplinares para a actuação específica em determinadas situações como hidrocefalia comunicante, opacidade da córnea, degenerescência da retina, surdez, rigidez articular, síndroma do canal cárpico, profilaxia da endocardite bacteriana, da compressão medular, etc.. Há também que ter a maior atenção à anestesia a realizar nos casos de doença de Mórquio A.

2. OLIGOSSACARIDOSES

Definição e etiopatogénese

As oligossacaridoses são doenças de armazenamento lisossomial, autossómicas recessivas, resultantes da deficiência de enzimas que fazem a degradação das cadeias oligossacarídicas das glicoproteínas; daí serem também chamadas glicoproteinoses. A deficiência enzimática específica origina acumulação intracelular de glicoproteínas e/ou de oligossacáridos, parcialmente degradados, com consequente excreção aumentada na urina.

A sua frequência, inferior à das MPS, é elevada contudo em certas regiões do mundo, como é o caso da fucosidose em Itália, e da aspartilglicosaminúria na Finlândia.

Existe grande heterogeneidade clínica, em parte explicada pela vasta heterogeneidade alélica. O mesmo defeito enzimático pode dar origem a formas clínicas diferentes, com idade de início, gravidade e envolvimento de órgãos, muito variáveis, sendo responsável tanto pelas formas precoces como pelas de começo tardio. Partilham muitos aspectos clínicos com as mucolipidoses (ML), e outras doenças lisossomais, mas em particular com as mucopolissacaridoses (MPS), designadamente no que respeita a alterações esqueléticas e fácies grosseira. Dum modo geral as manifestações das oligossacaridoses surgem mais precocemente do que as das MPS (RN ou primeira infância).

Nosologia

As oligossacaridoses integram as seguintes entidades clínicas:

  • Manosidoses
  • Fucosidoses
  • Doença de Schindler
  • Aspartilglicosaminúria
  • Sialidoses e
  • Galactossialidoses, descritas de modo sucinto a seguir.

Alfa-Manosidose (McKusick 248500)

Esta doença é devida à deficiência da alfa-manosidase que causa acumulação de oligossacáridos e glicoproteínas ligadas a resíduos de manose em vários tecidos e tipos de células, incluindo neurónios. Existem mais de 60 mutações, sendo a R750W a mais comum.

As manifestações clínicas são de largo espectro, desde formas perinatais, geralmente fatais, a formas oligossintomáticas, na idade adulta. São frequentes: fácies grosseiro (simile-Hurler), disostose múltipla, atraso psicomotor, surdez, cataratas, opacidade da córnea, hepatosplenomegália e hérnias. As infecções bacterianas são comuns, possivelmente em relação com deficiência imunitária. Por vezes surgem: ataxia progressiva e hidrocefalia comunicante. A pesquisa de linfócitos com vacúolos é habitualmente positiva.

São descritos dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), ocorrendo antes do 1 ano de idade com: fácies grosseira, hipertrofia gengival, macroglossia, organomegália, surdez, atraso psicomotor evoluindo para atraso mental grave. A morte ocorre entre 3-10 anos de idade;
  • Tipo 2 (Juvenil/ Adulto), mais moderado, com início mais tardio, da infância à idade adulta, com disostose múltipla, atraso mental moderado, surdez progressiva e sintomas psiquiátricos. Os angioqueratomas são raros.

O tratamento, requerendo apoio multidisciplinar, é de suporte e preventivo das complicações. O transplante de medula óssea (TMO) ou TMO/TSCH, se efectuados precocemente, poderão estabilizar a deterioração neurológica. Em estudos experimentais de investigação animal verificou-se melhoria da ataxia com TES.

Beta-Manosidose (McKusick 248510)

Devida à deficiência da beta-manosidase, é muito menos frequente do que a doença anterior.

Como manifestações clínicas descrevem-se: graves dificuldades de aprendizagem, alterações graves de comportamento, surdez e infecções frequentes.

O fenótipo simile-Hurler tem menor incidência. A disostose múltipla é mais rara e a organomegália é inconstante. Por vezes surgem angioqueratomas.

Mais frequentemente surgem: atraso mental que pode estar associado a neuropatia periférica, convulsões, surdez e atraso de crescimento. O início surge por volta dos 1-2 anos, podendo alguns doentes viver até à idade adulta.

Fucosidose (McKusick 230000)

É devida à deficiência da alfa-L-fucosidase, com consequente acumulação de glicoesfingolípidos, glicolípidos e glicoproteínas contendo fucose em vários tecidos, originando grave doença neurodegenerativa, convulsões frequentes, e moderada disostose múltipla. Estão descritas mais de 20 mutações.

As manifestações clínicas iniciam-se-se em geral entre as idades de 1-2 anos, podendo verificar-se sobrevivência até à idade adulta. No geral verifica-se: fácies grosseira, atraso mental, infecções respiratórias frequentes, deterioração neurológica, alterações esqueléticas, hepatosplenomegália. Alguns doentes apresentam angioqueratomas proeminentes.

Estão descritos dois tipos:

  • Tipo 1, de início precoce (3-18 meses) com compromisso do SNC e medula espinal, deterioração progressiva com convulsões, rigidez de descerebração terminal, atraso mental, atraso de crescimento, disostose múltipla, alterações vertebrais, cardiomegália, hepatosplenomegália, hérnias, destacando-se o prognóstico muito reservado e morte na primeira década de vida; neste tipo 1 os doentes apresentam concentração de NaCl elevada no suor;
  • Tipo 2, de início mais tardio e curso mais lento, com angioqueratomas (aspecto típico), sendo a concentração de NaCl no suor normal.

Em ambos os tipos podem observar-se linfócitos no sangue periférico, com vacúolos.

O tratamento é de suporte, verificando-se melhoria se o TMO for efectuado precocemente.

Doença de Schindler (McKusick 104170)

Trata-se de doença muito rara resultante de deficiência de α-N-acetilgalactosaminidase que provoca acumulação anormal de glicoesfingolípidos, glicopéptidos e oligossacáridos em vários tecidos. Descrevem-se dois tipos:

  • Tipo 1 (Infantil), de início por volta do 1 ano de idade, em crianças até aí aparentemente normais; depois verifica-se deterioração neurológica com convulsões, hipotonia axial, espasticidade, atrofia óptica, nistagmo, surdez e atraso psicomotor grave.

Tipicamente há pois um quadro de distrofia neuroaxonal e crises mioclónicas sem alterações viscerais, as quais são típicas noutras doenças dos lisossomas. Outros doentes apresentam síndroma piramidal e cerebelosa; alguns têm hiperacúsia, oftalmoplegia e estrabismo.
Nas fases terminais: cegueira, espasticidade, mioclonias, postura de descorticação, atraso psicomotor profundo, contracturas em flexão e imobilidade.
Através da neuroimagem demonstra-se atrofia do córtex cerebral, cerebelo e tronco: a electromiografia evidencia sinais de degenerescência axonal e o electrorretinograma é normal. O EEG evidencia sinais de compromisso cerebral difuso, e de irritabilidade multifocal, especialmente nas regiões central, parietal e occipital.
A mutação E25K é a mais comum nesta forma grave, especialmente em homozigotia.

A marca anátomo-patológica evidencia axónios terminais e pré-terminais esferóides:

  • Tipo 2 (Adulto), ou doença de Kansaki; todos os doentes apresentam telangiectasias, angioqueratomas, vasos sanguíneos tortuosos nas conjuntivas, atraso mental ligeiro e degenerescência axonal periférica; por vezes, fácies grosseira e lábios grossos. Os sinais clínicos mais chamativos são a ausência da fala e de interactividade com o ambiente, o que leva muitas vezes ao diagnóstico de autismo.

Pela neuroimagem comprovam-se sinais de enfartes lacunares sem atrofia cortical. O electromiograma permite evidenciar redução de amplitude e velocidade de condução normal. Não ocorre degenerescência progressiva. Estão descritos quadros intermédios sem organomegália ou alterações ósseas. Existe discrepância genótipo-fenótipo admitindo-se que outros factores contribuam para o quadro neurológico tão grave das formas precoces.

Aspartilglicosaminúria (McKusick 208400)

Trata-se duma doença causada pela deficiência da aspartilglicosaminidase que leva ao armazenamento de aspartilglicosamina nos tecidos, e à sua excreção elevada na urina. É frequente na Finlândia (1/17.000), e rara noutras regiões.

Como manifestações clínicas destacam-se: atraso do neurodesenvolvimento, diminuição da coordenação dos movimentos finos, atraso da linguagem (dado fundamental), alterações psiquiátricas, hiperactividade, infecções recorrentes nos primeiros anos de vida, diarreia e hérnias.

Salientam-se atraso da linguagem, alterações do comportamento, dismorfias, cifose, baixa estatura, fraqueza ligamentar, macroglossia, voz rouca, acne, fotossensibilidade, angioqueratomas e telangiectasias.

O desenvolvimento motor é menos afectado do que a fala e as capacidades intelectuais.

Contudo, estas últimas vão-se deteriorando com a idade.

A hepatomegália é rara, excepto nos doentes finlandeses. No adolescente pode surgir macrorquidismo. A disostose é ligeira e não há alterações visuais (excepto, por vezes, um ponteado semelhante a cristal na córnea).

Alguns autores referem um aspecto facial característico: hipertelorismo, nariz pequeno e grosseiro, pavilhões auriculares com lobos pequenos ou ausentes e lábios grossos. A morte pode ocorrer na terceira década, fase em que o adulto emite já poucas palavras, tem marcha atáxica e incoordenação motora.

Alguns doentes podem apresentar microcefalia, opacidade da córnea, espasticidade, hipotonia, hipertrofia das válvulas cardíacas e sinais de artrite inflamatória.

A marca anátomo-patológica é a extensa vacuolização celular em vários órgãos como o cérebro; no sangue periférico podem ser observados linfócitos com vacúolos. Na Finlândia a mutação mais frequente é a C163S.

O tratamento com o TMO permite normalização bioquímica e ligeira melhoria da capacidade intelectual; contudo, poderão surgir complicações; para o tratamento das convulsões utiliza-se a carbamazepina.

Sialidoses (McKusick 256550)

As sialidoses são devidas à deficiência da α-neuraminidase responsável pela remoção dos resíduos de ácido siálico dos sialoconjugados, com consequente excreção urinária elevada de sialoligossacáridos. O espectro clínico é amplo, desde formas precoces com hidropisia fetal, até formas de progressão lenta de síndroma mioclónica e mancha cor de cereja ou cherry-red spot detectável por fundoscopia.

Descrevem-se dois tipos principais:

  • Tipo 1, de início na infância/ adolescência, com perda visual progressiva, cherry-red spot na mácula (constante), convulsões, mioclonias de difícil controlo, que se agravam com os estímulos emocionais/ sensoriais e ataxia. Mais tarde: atrofia óptica, opacidade punctiforme da córnea e cegueira. Não ocorrem: dismorfias, alterações esqueléticas nem atraso mental significativo.

Em geral, nas 2-3 primeiras décadas de vida, os doentes podem apresentar desenvolvimento e aspecto físico normais, embora com marcha anómala.

Pela neuroimagem detecta-se atrofia cerebral e do cerebelo. Por vezes são observados linfócitos vacuolizados no sangue periférico.

  • Tipo 2, de início muito mais precoce, com fácies grosseira, disostose múltipla e hepatosplenomegália.
    Este tipo integra duas formas:
    • Congénita, com hidropisia fetal, ascite, hérnias, displasia óssea, opacidade da córnea e telangiectasias; a morte é precoce (pré-natal ou nas primeiras semanas de vida); e
    • Infantil, com grave atraso do desenvolvimento neurológico, hepatosplenomegália; edema; a ascite pode observar-se ao nascer ou mais tarde; o fenótipo like-Hurler vai-se acentuando; são comuns: cherry-red spot na mácula, opacidade punctiforme na córnea e cristalino, surdez, convulsões, atraso de crescimento e disfunção motora; pode verificar-se macrocefalia nalguns casos.

Os doentes podem sobreviver até à segunda década, mas, geralmente a morte ocorre na infância (1-7 anos). Como achados radiológicos destacam-se: disostose múltipla que pode ser grave e sinis de condrodisplasia puntacta epifisária.

Verifica-se intensa vacuolização dos leucócitos em diferentes tecidos e órgãos, incluindo fígado e cérebro. O diagnóstico pode ser difícil: por defeito isolado da neuraminidase, ou por defeito combinado com a deficiência da β- galactosidase.

Para confirmação, devem ser usados de preferência tecidos frescos (fibroblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas); leucócitos ou tecidos congelados não devem ser usados.

Galactossialidoses (McKusick 256540)

Trata-se de doenças devidas a defeito combinado da neuraminidase e da β-galactosidase, o qual é causado por falta duma proteína protectora, a catepsina A, responsável pela estabilidade do complexo enzimático dentro dos lisossomas.

Há vários sialoligossacáridos excretados pela urina.

As manifestações clínicas são dominadas por fácies grosseira, cherry-red spot na mácula, e alterações ósseas. O exame do esfregaço do sangue periférico evidencia linfócitos vacuolizados.

Distinguem-se três tipos:

  • Tipo infantil precoce, com as seguintes manifestações, já no RN: hidropisia fetal, ou edema, ascite, hérnia inguinal, fácies grosseira, fígado e baço aumentados, insuficiência renal com proteinúria maciça, cardiomegália, e telangiectasias. A morte é precoce por insuficiência cardíaca e renal;
  • Tipo infantil tardio, manifestando-se até aos 2 anos por fácies grosseira, hepatosplenomegália, hérnia inguinal, disostose múltipla, cherry-red spot e opacidade da córnea e, por vezes, convulsões. Como complicações descreve-se insuficiência cardíaca devida ao encerramento das válvulas aórtica e mitral. Nalguns doentes verificam-se macrocefalia e surdez neurossensorial;
  • Tipo juvenil/ adulto, ocorrendo com maior incidência no Japão e em idade média de início aos 15 anos. Neste tipo são evidentes: fácies grosseira, opacidade da córnea, angioqueratomas, envolvimento cardíaco e alterações da coluna vertebral (platispondilia); nalguns casos são verificados: deterioração neurológica progressiva com ataxia, mioclonias, convulsões, sinais piramidais, insuficiência mental e ausência de visceromegália.

Estão descritos quadros atípicos em que se verificam crises de dor neuropática e ausência de sialoligossacaridúria.

Para confirmar o diagnóstico procede-se:

  • À execução de cromatografia da urina em camada fina a qual evidenciará excreção elevada de sialoligossacáridos;
  • À determinação da actividade enzimática da neuraminidase e da beta-glucosidase.

Como complemento destes exames pode dosear-se a catepsina A e proceder-se à análise mutacional.

Não existe tratamento específico; apenas é possível executar medidas de suporte.

O transplante renal, a fazer-se em caso de insuficiência renal, não impede a progressão da doença. O TMO nesta patologia está em fase de investigação experimental.

Diagnóstico diferencial, definitivo e pré-natal

Do ponto de vista clínico, as oligossacaridoses partilham muitos sinais e sintomas, não só com as mucolipidoses (ML) II e III como, principalmente, com as mucopolissacaridoses (MPS). Os pacientes portadores destas últimas, contudo, excretam na urina GAG (mucopolissacáridos) e não oligossacáridos.

Assim, perante um doente com fácies grosseira (semelhante à da síndroma de Hurler), alterações esqueléticas, com (ou sem) atraso mental, torna-se fundamental proceder, de imediato, a cromatografia em camada fina em urina de 24 horas (a única prova de rastreio útil e fiável para pesquisa de oligossacáridos e mucopolissacáridos).

Se se comprovar mucopolissacaridúria, tal apontará, em princípio, para MPS; se se verificar oligossacaridúria, há que admitir a possibilidade de oligossacaridose, ou de doenças relacionadas, como ML, ou ainda doutras doenças lisossomais que apresentam oligossacaridúria como: GM1, GM2, e doença de armazenamento de ácido siálico infantil.

Chama-se a atenção para o facto de outras doenças, não metabólicas poderem apresentar alteração na excreção de oligossacáridos, tais como: síndromas de: Coffin-Lowry, Coffin-Siris, displasia frontometafisária, Sotos, Williams, Costello, e outras, não esquecendo o hipotiroidismo congénito.

Será importante dosear, no plasma, a quitotriosidase, que está elevada não só na doença de Gaucher, mas também nas doenças: GM1, Krabbe, MPS IV-B, NP-B, NP-C, doença de armazenamento de ésteres do colesterol, Wolman, fucosidose, galactosialidose e glicogenose IV.

A pesquisa de linfócitos vacuolizados no sangue periférico, quando positiva, constitui um elemento adjuvante da suspeição clínica.

O exame radiológico dos ossos, particularmente da coluna vertebral, em dois planos, é fundamental para provar (ou não) a existência de disostose múltipla.

A confirmação diagnóstica faz-se pela determinação da actividade das enzimas lisossómicas específicas nos leucócitos, fibroblastos, linfoblastos, amniócitos, vilosidades coriónicas, e raramente no plasma. Nas sialidoses e galactosialidoses não devem ser usados, para esse fim, os leucócitos, sendo preferível a cultura de células. Na galactossialidose é possível determinar a actividade da catepsina A nos fibroblastos.

A análise do DNA está disponível para todas estas patologias.

Para o diagnóstico pré-natal podem ser usadas as vilosidades coriónicas em todas as doenças, excepto na sialidose e galactossialidose (para as quais se dá preferência, respectivamente, ao líquido amniótico e à cultura de células).

Tratamento e prognóstico das oligossacaridoses

Para o tratamento das oligossacaridoses, como já foi referido, torna-se fundamental o apoio multidisciplinar de centros especializados em doenças hereditárias do metabolismo.

Deve ser dada atenção às possíveis perturbações do sono e do comportamento, assim como às situações que necessitem de anestesia. A dismorfia facial, a displasia esquelética, a obstrução das vias aéreas superiores podem dificultar grandemente as manobras de anestesia.

O transplante de células estaminais hematopoiéticas (TSCH), a terapêutica enzimática de substituição (TES), e de redução do substrato estão em evolução.

O transplante de medula óssea (TMO) tem sido realizado em número reduzido de casos, não sendo a sua eficácia definida com exactidão: na alfa– manosidose parece favorável quando realizado muito precocemente; na fucosidose os resultados têm sido inconclusivos, referindo-se que alguns doentes finlandeses com aspartilglicosaminúria tiveram importantes complicações após o referido TMO.

O êxito da TES na doença de Gaucher, na doença de Fabry e nalgumas MPS, faz prever que as oligossacaridoses possam vir a beneficiar dessa terapêutica, assim como da terapia génica.

3. MUCOLIPIDOSES (ML)

As mucolipidoses (ML), outro tipo de doenças lisossómicas, partilham características clínicas e bioquímicas das MPS e das esfingolipidoses.

Nosologia

As ML integram os seguintes tipos: ML I (sialidose do tipo II), ML II (doença da célula-I ou I-cell disease), ML III (distrofia pseudo-Hurler), e a ML IV.

A ML I, considerada por alguns como oligossacaridose, é devida a deficiência da enzima lisossómica alfa-neuraminidase. As manifestações clínicas são variáveis: hidropisia fetal, défice visual, convulsões mioclónicas, alterações da marcha, fundoscopia evidenciando mancha cor de cereja e disostose múltipla.

As ML II e ML III são devidas a deficiência da enzima: N-acetilglicosamil fosfotransferase.

A ML II, por defeito completo da enzima N-acetilglicosamil fosfotransferase é semelhante à doença de Hurler, mas com início muito precoce e com evolução grave: dismorfia facial, macroglossia, cifoscoliose, gibosidade lombar, visceromegália, cardiomiopatia, coronariopatia, rigidez articular, hipertrofia gengival, atraso psicomotor em geral grave e morte precoce (2-8 anos). É frequente a ocorrência de hidropisia fetal.

A ML III, por defeito parcial da mesma enzima – N-acetilglicosamil fosfotransferase-, comportando maior sobrevivência, evidencia quadro clínico menos exuberante, embora alguns doentes evidenciem displasia óssea progressivamente incapacitante; outras manifestações: escassos ou nenhuns problemas de aprendizagem, dores articulares por vezes intensas, e limitação motora semelhante à verificada na artrite reumatóide juvenil; compromisso das vávulas cardíacas; e sobrevivência até à idade adulta.

Na ML II e III existe vacuolização em vários tipos de células de vários órgãos. Existem também inclusões citoplásmicas nos fibroblastos [daí o nome de célula i (I) ].

Estas doenças resultam do defeito na captação e localização intracelular das enzimas lisossómicas por falta do marcador do reconhecimento – a manose-6-fosfato; por esta razão, os doentes têm elevada concentração no plasma de várias enzimas lisossómicas, e baixa concentração intracelular das mesmas enzimas, aspecto importante para o diagnóstico. O doseamento da N-acetilglicosamil fosfotransferase faz-se nos leucócitos ou fibroblastos.

 

A ML IV, devida a deficiência de mucolipidina 1 (proteína de canal do cálcio com papel importante na endocitose) caracteriza-se fundamentalmente por alteração progressiva do neurodesenvolvimento, opacidade da córnea e elevação da gastrina na maioria dos casos (parâmetro que poderá ser utilizado como triagem).

Tratamento

O tratamento das ML é sintomático. Quanto a TMO, se for precoce, pode ser benéfico. O TCSH está em estudo. Por vezes está indicada intervenção cirúrgica ortopédica em patologia da articulação coxofemoral; nos casos de dor óssea e hipomobilidade consequente pode utilizar-se o pamidronato.

4. ESFINGOLIPIDOSES

Definição e etiopatogénese

As esfingolipidoses são doenças dos lisossomas afectando um ou mais órgãos através da acumulação de esfingolípidos, por deficiência primária de enzimas ou de proteínas activadoras envolvidas no respectivo catabolismo.

Os esfingolípidos, localizados predominantemente no sistema nervoso, estão distribuídos por todo o organismo. Incluem fundamentalmente:

  • Os galactocerebrosídeos, sulfatídeos e esfingomielina, componentes essenciais das camadas de mielina; e
  • Os gangliosídeos, encontrados particularmente na substância cinzenta do cérebro.

Deste modo, as esfingolipidoses surgem como doenças primárias do SNC ou periférico; contudo, as manifestações também poderão decorrer da acumulação de esfingolípidos no sistema reticuloendotelial (SRE) ou noutras células.

Manifestações clínicas gerais

Como manifestações clínicas gerais das esfingolipidoses citam-se: atraso progressivo do neurodesenvolvimento, epilepsia, ataxia e/ou espasticidade. Poderá verificar-se hepatosplenomegália, sendo que alterações esqueléticas e dismórficas são raras (excepto na GM1 – ver adiante).

Outros achados incluem: o aspecto fundoscópico de mancha cor de cereja na mácula, medula óssea com células espumosas, e linfócitos vacuolados.

Nosologia

As entidades clínicas que fazem parte das esfingolipidoses são:

  • Doença de Gaucher
  • Doença de Niemann-Pick A e B
  • Gangliosidoses GM1
  • Gangliosidoses GM2
  • Doença de Krabbe
  • Leucodistrofia metacromática
  • Doença de Fabry
  • Doença de Farber
  • Doença de Niemann-Pick C
  • Defeito da prosaposina.

Todas, excepto a doença de Fabry (recessiva, ligada ao X), são doenças autossómicas recessivas.

Seguidamente, procede-se à abordagem sucinta das primeiras quatro doenças citadas.

Doença de Gaucher

É uma das doenças lisossómicas mais comuns.

A etiopatogénese da doença de Gaucher (DG) relaciona-se a deficiência de beta-glucosidase (ou glucocerebrosidase). Embora se admita hoje que existe um espectro clínico contínuo e diversificado, a tradicional subdivisão em 3 fenótipos é útil e tem cunho didáctico:

  • Tipo 1 (doença não neuropática ou tipo adulto), mais frequente, correspondendo a 80-90% dos casos de doença de Gaucher;
  • Tipo 2 (doença neuropática aguda ou infantil); e
  • Tipo 3 (doença neuropática subaguda, crónica ou juvenil).

Todos os tipos são pan-étnicos, realçando-se que o tipo 1 é particularmente prevalente nos judeus Ashkenazi (1/450).

DG do tipo 1: conquanto seja geralmente diagnosticada na idade adulta, pode aparecer em qualquer idade, com manifestações muito variáveis, desde formas assintomáticas a formas extremamente incapacitantes. Salientando-se que não ocorrem, em geral, alterações neurológicas significativas, cabe referir que os sintomas prevalentes são viscerais, hematológicos e ósseos.

Na criança surge esplenomegália, geralmente acompanhada de hepatomegália, anemia, trombocitopénia, tendência hemorrágica, crises agudas de dor abdominal (estas últimas, relacionadas com enfartes esplénicos), crises dolorosas ósseas (por enfartes medulares nos ossos longos). O envolvimento ósseo é, nos mais velhos, uma causa maior de morbilidade; a necrose asséptica da cabeça do fémur e as fracturas espontâneas são comuns. Poderá ocorrer infiltração pulmonar e, nos adultos, poderá surgir quadro de hipertensão pulmonar.

DG do tipo 2: a sintomatologia torna-se notória na infância precoce com disfunção do tronco cerebral, disfagia, alteração da motilidade ocular (oftalmoplegia), espleno-hepatomegália, retroflexão do pescoço, espasticidade marcada, hipocrescimento e caquexia. A evolução é geralmente rápida: poucos doentes sobrevivem até aos 2 anos de idade, sendo que outros têm curso mais lento e sobrevivem até aos 5 anos. Estão descritas variantes fetais e neonatais com elevada incidência de óbitos por hidropisia. Estas formas clínicas são por vezes descritas como de “bébé colódio”.

DG do tipo 3: é muito heterogénea. As manifestações clínicas mais frequentes e mais graves traduzem compromisso do SNC (tronco cerebral): paralisias dos músculos oculares (compromisso da motilidade para cima e horizontal), surdez e, por vezes, atraso do neurodesenvolvimento. Pode haver quadro de epilepsia mioclónica progressiva com demência e morte. Em doentes mais velhos pode surgir sintomatologia simile doença de Parkinson. Pode também verificar-se compromisso cardíaco e esplenomegália.

Salienta-se que nos casos de DG:

    • é comum o surgimento de gamapatias e malignidade, como mieloma múltiplo, linfoma, leucemia linfoblástica, etc.;
    • a qualidade de vida dos doentes e da família é muito precária.


O diagnóstico assenta essencialmente:

  • Na demonstração de células de Gaucher em esfregaço da medula óssea;
  • Na verificação de níveis elevados de quitotriosidase (igualmente importante para a monitorização do tratamento);
  • Na demonstração da deficiência enzimática ~30% do normal (em leucócitos, linfócitos, fibroblastos, células do fígado e baço;
  • Na análise mutacional (sendo que mais de 300 mutações já foram identificadas).

Actualmente existem dois tipos fundamentais de tratamento:

  • A terapêutica enzimática de substituição (TES); e
  • A terapêutica de redução do substrato (TRS).

A TES com administração IV lenta de enzima recombinante foi já usada em milhares de doentes, tendo-se comprovado eficácia e segurança, especialmente na DG do tipo 1.

Alguns centros têm utilizado com resultados promissores a alglucerase, a imiglucerase, a velaglucerase e a taliglucerase, medicamentos já autorizados na União Europeia. No geral a TES é eficaz no controlo dos sintomas clássicos – organomegália, trombocitopénia, anemia – mas menos satisfatória nos casos com manifestações ósseas, em que o miglustat é muito útil.

A TRS é uma terapêutica oral (miglustat) que pretende reduzir a acumulação de células de Gaucher nos vários tecidos, incluindo o ósseo. Pode usar-se isoladamente ou em associação a TES. Estão ainda disponíveis algumas drogas-órfão para a TRS e uso de chaperones farmacológicos.

Doença de Niemann-Pick (tipos A e B)

Esta entidade clínica engloba um grupo heterogéneo de doenças, actualmente divididas em dois subgrupos:

  • Os tipos A e B, em que existe deficiência da enzima lisossómica esfingomielinase (mais acentuada no tipo A), com consequente acumulação progressiva de esfingomielina e colesterol não esterificado nos órgãos sistémicos e no cérebro (menos acentuada no tipo B); e
  • O tipo C devido, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu cofactor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída de colesterol do lisossoma com consequente depósito de esfingomielina).

O tipo A é uma forma neuropática aguda e mais prevalente nos judeus Ashkenazi; o tipo B é uma forma não neuropática com incidência étnica mais alargada.

Quanto a manifestações clínicas e laboratoriais, importa salientar:

O tipo A clássico caracteriza-se fundamentalmente pelo surgimento dos primeiros sintomas nas primeiras semanas de vida com vómitos e/ou diarreia e estabilização do crescimento. Pode surgir icterícia colestática neonatal raramente.

Antes dos 3-4 meses verifica-se hipotonia e fraqueza musculares, hepatosplenomegália e linfadenopatias progressivas. Pelos 6 meses torna-se evidente atraso do neurodesenvolvimento. Entretanto, a par do quadro de hipotonia axial inicial, que é substituído por espasticidade e rigidez, surge frequentemente caquexia.

Por fundoscopia, em cerca de 50% dos casos verifica-se a presença de mancha cor de cereja na mácula.

A deterioração motora e cognitiva é progressiva, ocorrendo em geral a morte entre os 18 e 36 meses. Estão descritos, no entanto, quadros clínicos de gravidade intermédia, com início do quadro neurológico no período infantil tardio, juvenil, ou até na idade adulta.

O tipo B corresponde a uma doença crónica que tipicamente se inicia com esplenomegália ou hepatosplenomegália na infância, mas que pode ocorrer em qualquer idade. Existe raramente doença hepática grave.

Os achados mais comuns são: infiltração reticulonodular no pulmão e doença pulmonar intersticial com repercussão funcional variável. Os doentes evidenciam também um perfil lipídico anormal, transaminases elevadas e trombocitopénia. No adulto a fibrose pulmonar com sintomatogia acompanhante leva à necessidade de oxigenoterapia. Nos casos “puros” de tipo B não se verificam alterações neurológicas nem défice cognitivo (Figura 12).

FIGURA 12. Criança do sexo feminino com doença de Niemann-Pick do tipo B em cujo quadro sobressai hepatosplenomegália; ausência de défice cognitivo. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

O curso da doença é marcado por hiperesplenismo progressivo (implicando raramente esplenectomia), perfil lipídico aterogénico e deterioração da função pulmonar. Nalguns casos a esperança de vida é quase normal.

No tipo C verifica-se grande heterogeneidade de manifestações clínicas. Em cerca de metade dos doentes surge icterícia colestática neonatal prolongada, desaparecendo espontaneamente nos primeiros 3 meses de vida; noutra metade existe quadro de doença hepática grave. É comum haver insuficiência mental, epilepsia e cataplexia; embora o neurodesenvolvimento seja inicialmente normal, surge regressão ulteriormente. Um sinal típico não habitual no início da doença, é “paralisia do olhar para cima”. Hepatosplenomegália inconstante.

Nas formas de início tardio, os sinais principais são ataxia e demência lentamente progressiva.

O diagnóstico pode ser suspeitado pela verificação de histiócitos esponjosos na medula óssea (células de Niemann-Pick), de histiócitos “azul-marinho”, e pela determinação da concentração do biomarcador quitotriosidase, moderadamente aumentada.

O diagnóstico definitivo baseia-se na determinação da actividade enzimática nos fibroblastos (de preferência, pela maior confiabilidade), ou nos leucócitos. Nos fibroblastos em cultura demonstra-se esterificação do colesterol deficiente. O estudo mutacional é importante.

No âmbito do tratamento, a experiência com o transplante de medula óssea (TMO), limitada, não parece trazer benefícios para os doentes do tipo A. A esplenectomia pode ter efeitos deletérios nos casos de doença pulmonar. Está disponível a terapêutica enzimática de substituição (TES) com enzima humana recombinante para o tipo B. A oxigenoterapia nos doentes com doença pulmonar crónica faz parte das medidas de tratamento sintomático.

O miglustat pode melhorar os sintomas neurológicos e em especial a ataxia. Nos casos de cataplexia: clomipramina. Recentemente têm-se tentado a ciclodextrina e a “heat shock protein 70” humana recombinante.

Gangliosidose GM1

Trata-se duma esfingolipidose devida a defeito da enzima lisossómica beta-galactosidase, com manifestações fenotípicas muito diversas. A enzima normal catalisa, não só glicoconjugados, gangliósidos GM1 e outros glicosfingolípidos, mas também oligossacáridos contendo galactose, e o sulfato de queratano. Deste modo, as formas mais graves são uma combinação de aspectos observados nas neurolipidoses, MPS e oligossacaridoses.

A deficiência da enzima vem associada a duas doenças clinicamente distintas:

  • As gangliosidoses GM1 (com anomalias que as aproximam mais das esfingolipidoses) e – a doença de Mórquio B, com anomalias que a torna mais próxima das MPS.

Em Portugal esta patologia é frequente na etnia cigana.

Quanto a manifestações clínicas, distinguem-se 3 tipos de GM1:

  • Tipo 1: neste tipo (infantil-precoce) verifica-se hipotonia nos primeiros dias/ semanas de vida, instabilidade cérvico-cefálica, estabilização do neurodesenvolvimento pelos 3-6 meses, dificuldade alimentar, hipocrescimento e, por vezes, edema da face e periférico.

As características dismórficas poderão ser notórias logo ao nascer, ou paulatinamente ao longo do tempo: fácies grosseira, edema palpebral, macroglóssia, hipertrofia gengival, achatamento da raiz nasal e filtro longo.

A hepatosplenomegália está quase sempre presente, assim como a cifoscoliose. Com o tempo surge défice visual, nistagmo pendular, sendo que em cerca de 50% dos casos por fundoscopia observa-se a cherry-red spot ou mancha cor de cereja da mácula.

Por outro lado, a hipotonia dá lugar a espasticidade e verifica-se deterioração neurológica pelos 12 meses com evolução fatal até cerca dos 2 anos de idade. Uma variante mais grave de expressão fetal/ neonatal inclui hidropisia e cardiomiopatia. As alterações esqueléticas dos ossos longos e coluna têm tradução radiológica semelhante às das MPS (Hurler) (Figura 13);

FIGURA 13. Criança de etnia cigana com gangliosidose GM1. Fácies grosseira, edema da face, achatamento da raiz nasal e filtro longo. Hipotonia e atraso psicomotor. (Cortesia do Dr. Aguinaldo Cabral)

  • Tipo 2 (infantil-tardio), cujas manifestações surgem em geral entre os 12-18 meses, com disfunção motora, sobretudo no sentar-se, pôr-se de pé, dificuldades da marcha, ataxia, etc.. A breve trecho surge tetraparésia espástica e quadro de convulsões. Não há sinais dismórficos, nem alterações visuais ou visceromegália;
  • Tipo 3 (crónico, tipo adulto, de início tardio), com início de manifestações no final da infância, adolescência, ou na idade adulta, a evolução é muito lenta: disartria e distonia frequentes, inteligência normal ou ligeiramente afectada. Não existem anomalias oculares.

O diagnóstico da GM1 baseia-se na presença de linfócitos com vacúolos no sangue periférico e de histiócitos espumosos na medula óssea, assim como de alterações radiológicas ósseas. Como foi referido, no caso da GM1 do tipo 1, tais alterações são semelhantes às que se associam à MPS (Hurler).

Através de fundoscopia pode ser detectado o já referido sinal de mancha cor de cereja na mácula nas GM1 do tipo 1.

Para o diagnóstico definitivo torna-se fundamental determinar a actividade enzimática nos leucócitos. O doseamento da neuraminidase em leucócitos ou fibroblastos deve ser feito sistematicamente em todos os casos de deficiência de beta-galactosidase para se excluir galactossialidose.

O tratamento inclui a utilização do fármaco miglustat, administrado por via oral com o objectivo de redução do substrato.

Gangliosidose GM2

Distinguem-se três subtipos desta esfingolipidose:

  • Doença de Tay-Sachs (mais comum, por deficiência da beta-hexosaminidase A);
  • Doença de Sandhoff (por deficiência da beta-hexosaminidase A e B); e
  • Deficiência do activador GM2, subtipo raro.

Em todos os subtipos existe alteração do catabolismo dos gangliósidos GM2 nos lisossomas, acumulando-se nos neurónios.

A forma clássica da doença de Tay-Sachs (T-S) tem elevada incidência entre judeus Ashkenazi; uma variante especial de T-S (variante B1) tem elevada incidência no norte de Portugal e sul da Europa.

No que respeita a cronologia das manifestações clínicas, qualquer dos subtipos pode evidenciar formas infantis, formas infantis tardias ou juvenis e formas crónicas ou do adulto.

As formas infantis dos 3 subtipos têm uma apresentação similar: por volta dos 4-6 meses de idade nota-se fraqueza muscular e hipotonia, assim como típica resposta de sobressalto aos sons com hiperextensão dos membros superiores (reacção por hiperacúsia).

À medida que a hipotonia se acentua, verifica-se de modo progressivo regressão das capacidades psicomotoras, dificuldades de deglutição, convulsões, deficiência visual progressiva com amaurose, tetraplegia espástica e macrocefalia, com descerebração pelos 3 anos. A mancha cor de cereja na mácula é inconstante. Na doença de Sandhoff pode verificar-se hepatosplenomegália.

Nas formas infantis tardias ou juvenis, particularmente T-S, o início dos sintomas tem lugar entre os 2 e 10 anos com ataxia, disartria, involução psicomotora, espasticidade e convulsões. A mancha cor de cereja é inconstante.

As formas crónicas ou do adulto apresentam-se de modo muito diverso: distonia, ataxia, atetose, psicose (em 30-50% dos adultos doentes), síndroma do neurónio motor inferior, disfunção espinocerebelosa com oftalmoplegia supranuclear, disfunção autonómica, etc..

Quanto ao diagnóstico, quer na forma infantil, quer na forma infantil tardia ou juvenil, está indicada a fundoscopia para detecção da mancha cor de cereja na mácula que, conforme foi referido, é inconstante.

Torna-se igualmente fundamental a determinação da actividade enzimática nos leucócitos ou fibroblastos. O estudo anátomo-patológico ultraestrutural da pele ou conjuntiva pode contribuir para o diagnóstico através da identificação de corpos lamelares concêntricos nas terminações nervosas.

Para o diagnóstico definitivo é importante o estudo genético; por exemplo, a mutação R178H em homozigotia é frequente na forma juvenil da variante B1.

Tal como no caso da GM1, tem sido utilizado o miglustat oral como tratamento para restrição de substrato.

5. DEFEITOS DO METABOLISMO DOS PEROXISSOMAS

Manifestações clínicas gerais

Os defeitos do metabolismo dos peroxissomas causam, em geral, doenças multissistémicas progressivas e graves.

As doenças do peroxissoma podem ser reconhecidas por um conjunto de manifestações clínicas, traduzidas fundamentalmente por sinais dismórficos, anomalias neurológicas, disfunção hepática, gastrintestinal e por vezes renal, a saber:

  • Dismorfia craniofacial, anomalias esqueléticas, encurtamento proximal (rizomélico) dos membros, calcificações das epífises, etc.;
  • Encefalopatia, convulsões, neuropatia periférica, marcha anormal, hipotonia;
  • Anomalias auditivas e oculares (retinopatia, cataratas, desmielinização do nervo óptico, cegueira);
  • Doença hepática com hepatomegália, icterícia e colestase;
  • Nefrolitíase, nefrocalcinose;
  • Alteração do comportamento e deterioração cognitiva;
  • Falência do crescimento.

Em função da idade, os sintomas e sinais podem ser assim discriminados:

  1. RN: hipotonia, hipoactividade, convulsões, dismorfia craniofacial, alterações esqueléticas, e icterícia colestática (prolongada);
  2. 1-6 meses: hipocrescimento, hepatomegália, icterícia prolongada, anomalias gastrintestinais, hipocolesterolémia, défice de vitamina E, e anomalias visuais;
  3. > 6 meses – 4 anos: hipocrescimento, problemas neurológicos, atraso no neurodesenvolvimento, deficiência visual e auditiva, osteoporose;
  4. > 4 anos: alterações do comportamento, deterioração cognitiva, sinais de desmielinização da substância branca, paraparésia espástica, deficiência visual e auditiva, neuropatia periférica, anomalias da marcha; sintomas psiquiátricos no adolescente e adulto.

Nosologia

O Quadro 4 resume a classificação das doenças do peroxissoma.

QUADRO 4 – Classificação das doenças dos peroxissomas.

Defeitos da biogénese dos peroxissomas

    • Síndroma de Zellweger (ZS)
    • Adrenoleucodistrofia neonatal (NALD)
    • Doença de Refsum infantil (IRD)
    • Condrodisplasia punctata rizomélica tipo 1 (RCDP1)

Defeitos enzimáticos isolados

    • Adrenoleucodistrofia ligada ao X (X-ALD)
    • Adrenomieloneuropatia (AMN)
    • Pseudoadrenoleucodistrofia neonatal
    • Deficiência da proteína D-bifuncional
    • RCDP tipo 2 e tipo 3
    • Deficiência de 2-metilacil-CoA racemase
    • Doença de Refsum do adulto
    • Hiperoxalúria tipo 1
    • Acidémia glutárica tipo 3
    • Acatalasémia
    • Nanismo de Mulibrey


Seguidamente são descritas algumas das formas clínicas mais representativas das doenças dos peroxissomas.

Síndroma de Zellweger-ZS (ou cérebro-hepato-renal)

As principais manifestações clínicas desta afecção incluem: fácies peculiar (simile Down), fronte elevada, epicanto, fontanela anterior muito grande, hipotonia muscular acentuada, convulsões neonatais, anomalias oculares (glaucoma, catarata, retinopatia pigmentar, displasia do nervo óptico), pavilhões auriculares displásicos, surdez neurossensorial, doença hepática, quistos renais, calcificações epifisárias.

A morte ocorre habitualmente no primeiro ano de vida.

Adrenoleucodistrofia neonatal-NALD

Nesta situação, em que se verifica progressiva alteração da substância branca, os achados dismórficos podem estar ausentes ou ser menos acentuados que na ZS. Alguns doentes exibem fenótipo sugestivo de doença de Werdnig-Hoffman. No RN são habituais convulsões e hipotonia. Não se verificam calcificações epifisárias e a morte surge em geral na infância tardia.

Doença de Refsum infantil-IRD

Trata-se da forma mais ligeira do espectro de Zellweger, com sobrevivência possível até à idade adulta. Os doentes poderão evidenciar início tardio de sintomas e ausência, quer de anomalias de migração neuronal, quer de doença progressiva da substância branca. A dismorfia facial, ligeira (ou inconstante), é semelhante à que se verifica na ZS. O desenvolvimento cognitivo e motor é muito variável, desde quadro muito severo a moderada dificuldade de aprendizagem com surdez, deficiência visual devida a retinopatia.

A síndroma de Zellweger (ZS), a adrenoleucodistrofia neonatal (NALD) e a doença de Refsum infantil (IRD) constituem, em continuum, o chamado espectro Zellweger, ou seja, diversidade de manifestações duma mesma entidade, desde a forma mais grave à mais ligeira.

Condrodisplasia punctata rizomélica clássica (RCDP)

Esta condrodisplasia caracteriza-se por encurtamento dos segmentos proximais dos membros, dismorfia facial típica, calcificações epifisárias que podem desaparecer depois dos 2 anos, contracturas, cataratas, atraso psicomotor grave, restrição de crescimento e, por vezes, ictiose.

No fenótipo estão implicados muitos genes, o que determina grande heterogeneidade na tipologia clínica (por exemplo, tipos 1, 2 e 3, indistiguíveis no plano clínico). As variantes mais moderadas devem ser destrinçadas de outras formas de condrodisplasia punctata como a forma AD de Conradi-Hunermann (sem atraso mental), e as formas AR e ligadas ao X (recessivas ou dominantes).

Lembra-se, a propósito, que uma forma de condrodisplasia, de etiopatogénese desconhecida, foi documentada no âmbito do capítulo desta obra sobre osteocondrodisplasias (Parte XXIV-volume 2).

Doença de Refsum clássica

Nesta doença, que tem início na idade escolar ou adolescência, ou mais tardiamente na 5ª década de vida, os aspectos clínicos mais relevantes são: retinopatia, neuropatia periférica, ataxia cerebelosa. O sintoma mais precoce parece ser cegueira nocturna na idade escolar.

Sem tratamento, verifica-se deterioração do quadro clínico. Menos frequentemente: surdez neurossensorial, alterações cutâneas, anósmia, anomalias esqueléticas e cardíacas. Não se observam dismorfias, disfunção hepática, nem atraso mental.

Existe hiperproteinorráquia sem aumento do número de células no LCR.

Nalguns casos poderá ser sugerido o diagnóstico de doença de Charcot-Marie-Tooth.

Adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X (X-ALD)

Esta doença manifesta-se com grande variabilidade clínica, inclusivamente dentro da mesma família. A forma cerebral da criança constitui o fenótipo mais grave: início de sintomas entre os 5 e 12 anos, levando a estado vegetativo e morte em poucos anos.

Os rapazes afectados poderão apresentar como primeiras manifestações: défice da atenção, alterações comportamentais, mau aproveitamento escolar, deficiência visual-espacial e/ou surdez. Posteriormente: deficiência visual e auditiva graves, quadriplegia, ataxia cerebelosa, convulsões e, por vezes, hipertensão intracraniana.

Sintomas de insuficiência suprarrenal (hipoglicémia, crises de perda de sal, pigmentação cutânea) poderão preceder, coexistir ou seguir o quadro neurológico.

Adrenomieloneuropatia (AMN)

Pode considerar-se uma variante da X-ALD. Afecta cerca de 60% dos homens com ALD entre os 20 e 50 anos e 60% das mulheres heterozigóticas com mais de 40 anos. Em ambos os sexos a doença apresenta-se com paraparésia espástica progressiva e, nalguns homens, desenvolve-se posteriormente desmielinização cerebral lentamente fatal, o que não acontece no sexo feminino.

Diagnóstico

No âmbito do diagnóstico das doenças do metabolismo dos peroxissomas, para além de exames de imagem do SNC (TAC, RM, etc.) em todas as doenças deste foro, está indicada a realização sistemática do doseamento do colesterol total (normal ou baixo), da bilirrubinémia total e conjugada (existe hiperbilirrubinémia conjugada) e das provas de função hepática (resultados indicadores de disfunção).

Quanto a análises específicas (doseamentos) cabe referir as seguintes:

  • Ácidos gordos de cadeia muito longa (AGCML) no plasma – análise fundamental: valores elevados nas doenças com deficiência de beta-oxidação nos peroxissomas; valores normais na doença de Refsum, deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase e RCDP;
  • Plasmalogénios eritrocitários: valor baixo aponta para doenças do espectro Zellweger e RCDP;
  • Ácido fitânico no soro e LCR: aumentado nos defeitos de biogénese e na doença de Refsum;
  • Ácido pristânico no soro: aumentado nas doenças em que está afectada a beta-oxidação nos peroxissomas; elevação isolada indica deficiência de alfa-meti-acil-CoA racemase;
  • Intermediários dos ácidos biliares (soro, urina): elevados na deficiência de alfa-metil-acil-CoA racemase, e normais ou elevados nos defeitos da biogénese dos peroxissomas;
  • Glioxalato, oxalato e glicolato urinários: excreção elevada na hiperoxalúria primária tipo 1;
  • Ácido pipecólico: os valores determinados permitem fazer a destrinça das várias formas;
  • Exame do LCR: hiperproteinorráquia sem aumento de células (LCR) na doença de Refsum clássica.

Após estas análises:

  • Estudo enzimático (fibroblastos); e
  • Análise mutacional.

O exame ultraestrutural do fígado evidencia ausência de peroxissomas na ZS.

Tratamento

As bases essenciais do tratamento das doenças do metabolismo dos peroxissomas incluem dieta com restrição de ácido fitânico (proibição de carnes de ruminantes e de gorduras), com ou sem plasmaférese na doença de Refsum clássica.

Na ALD ligada ao X, o transplante de células hematopoiéticas (TCSH) pode estabilizar, ou até reverter, a desmielinização cerebral, desde que realizado muito precocemente e em doentes seleccionados.

Não existe tratamento eficaz para a forma inflamatória cerebral de ALD.

O óleo de Lorenzo (mistura na proporção respectiva de 4/1 de trioleato de gliceril e de trierucato de gliceril) parece não ter efeito curativo nem preventivo.

Na hiperoxalúria tipo I alguns centros têm experiência com a realização de transplante renal e hepático.

6. DEFEITOS DA GLICOSILAÇÃO (SÍNDROMAS CDG)

Definição e etiopatogénese

Reiterando o que atrás foi referido no início do capítulo, a glicosilação [um passo metabólico ocorrendo no retículo endoplásmico (RE) e no aparelho de Golgi (AG)] consiste no processo de síntese de glicanos (oligossacáridos) e na sua ligação covalente a outros compostos, designadamente, proteínas (produzindo as glicoproteínas).

Salientando-se que o processo de glicosilação se pode verificar igualmente nos lípidos, neste capítulo é dada ênfase à glicosilação proteica.

 

Cerca de metade das proteínas corporais [tais como muitas proteínas do soro (transferrinas, factores de coagulação, etc.), de membrana, intracelulares como enzimas e também hormonas] são glicoproteínas que requerem glicosilação para serem glicoproteínas funcionais.

Em diversos passos do processo metabólico de glicosilação intervêm mais de 100 enzimas conhecidas, localizadas nos referidos organelos (RE e AG).

As perturbações ao nível de diversos passos metabólicos em relação com defeitos enzimáticos comprometendo a glicosilação proteica originam uma diversidade de afecções multissistémicas, genéticas familiares, designadas genericamente por síndromas CDG (da sigla em inglês- congenital defects of glycosylation).

Do vasto leque de doenças (em expansão crescente acompanhando com o tempo a investigação) destaca-se a seguinte tipologia: as anomalias estruturais e de funções em distintas combinações, o compromisso neurológico e o espectro de gravidade muito variável.

Manifestações clínicas de alerta

Seguidamente são referidas algumas manifestações clínicas sugestivas de CDG:

  • Distribuição anormal da gordura corporal e/ou mamilos invertidos;
  • Ictiose; cutis laxa;
  • Diarreia crónica; fibrose hepática;
  • Cataratas e/ou coloboma;
  • Sinostose rádio-cubital;
  • Surdez neurossensorial;
  • Síndroma neurológica e grupo sanguíneo bombay; síndroma cerebrocostomandibular;
  • Síndroma neurológica e hipertermia episódica;
  • Anemia diseritropoiética congénita ii;
  • Cardiomiopatia sindrómica;
  • Infecções recorrentes com hiperleucocitose.

Outra sintomatologia específica, associada a certas formas clínicas, é descrita na alínea Nosologia.

Genética

Quanto a padrões genéticos, importa salientar:

  • Todas as CDG conhecidas são doenças autossómicas recessivas;
  • Com excepção da EXT1/EXT2-CDG, já citada, que é autossómica dominante, e a MAGT1-CDG que é ligada ao cromossoma X, e apresenta atraso mental puro, e um padrão normal na focagem isoeléctrica da transferrina sérica (ver adiante).

Nosologia

A primeira CDG foi descrita por Jaak Jacken em 1980. A nomenclatura existente até 2009, usando números romanos e letras árabes (por ex: CDG-Ia a Ip, CDG-IIa a IIL) tornou-se, devido ao número crescente de novas doenças e ao melhor conhecimento da etiopatogénese.

Foi então proposta uma classificação mais simples que englobasse os defeitos da N- e O-glicosilação, e também os defeitos da glicosilação dos lípidos e da glicofosfatidilinositol.

Actualmente cada CDG é identificada pelo nome do gene envolvido, seguido pelo “sufixo” CDG (a designação clássica que se mantém); alguns exemplos: PMM2-CDG (antiga CDG-Ia), e PMI-CDG (antiga CDG-Ib), em que PMM2 significa fosfomanomutase 2, e MPI fosfomanose-isomerase.

Assim, a nova classificação das CDG (de 2009), de acordo com o defeito da glicosilação, é a seguinte (Quadro 5):

  1. Defeitos da N-glicosilação proteica;
  2. Defeitos da O-glicosilação proteica;
  3. Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI);
  4. Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias.

QUADRO 5 – Defeitos congénitos da glicosilação segundo a nova nomenclatura.*

Def <> Defeitos

 *Adaptado de Theodore M & Morava E, 2011

Def N-glicosilação proteica Def O-glicosilação proteicaDef glicosilação lipídica e GPIDef múltiplos glicosilação
PMM2-CDG (CDG-Ia)
MPI-CDG (CDG-Ib)
ALG6-CDG (CDG-Ic)
ALG3-CDG (CDG-Id)
ALG12-CDG (CDG-Ig)
ALG8-CDG (CDG-Ih)
ALG2-CDG (CDGIi)
DPAGT1-CDG (CDG-Ij)
ALG1-CDG (CDG-Ik)
ALG9-CDG (CDG-IL)
RFT1-CDG (CDG-In)
ALG11-CDG (CDG-Ip)
TUSC3-CDG
MAGT1-CDG
MGAT2-CDG (CDG-IIa)
GCS1-CDG (CDG-IIb)
EXT1/EXT2-CDG
B4GALT7-CDG
GALNT3-CDG
SLC35D1-CDG
POMGNT1-CDG
SCDO3-CDG
B3GALTL-CDG
DK1-CDG (CDG-Im)
SIAT9-CDG
PIGM-CDG
PIGV-CDG
DPM1-CDG (CDG-Ie)
DPM3-CDG (CDG-Io)
MPDU1-CDG (CDG-If)
GNE-CDG
B4GALT1-CDG (CDG-IId)
SLC35A1-CDG (CDG-IIf)
SLC35C1-CDG (GDG-IIc)
SRD5A3-CDG (CDG-Iq)
COG-CDG (COG1,4-8)
ATP6V0A2-CDG
SEC23B-CDG

I- Defeitos da N-glicosilação proteica

As CDG resultantes de defeitos da N-glicosilação proteica são o grupo mais comum (só em 2013 foram descritas mais oito novas CDG).
Na N-glicosilação estão envolvidos três compartimentos celulares: citosol, retículo endoplásmico (RE) e o aparelho de Golgi (AG).
Trata-se de doenças fenotipicamente muito diversas, afectando múltiplos sistemas e funções, como o SNC, as funções musculares, de transporte, de regulação, a imunidade, o sistema endócrino, a coagulação, e outros.

Alguns doentes podem ter uma sobrevivência longa, e outros apenas uma deficiência intelectual sem sinais dismórficos como a TUSC3-CDG.

II- Defeitos da O-glicosilação proteica

Já os defeitos da O-glicosilação proteica são geralmente específicos de tecido e clinicamente diferentes das doenças da N-glicosilação, como:
EXT1/EXT2-CDG (exostoses cartilagíneas múltiplas); a B4GALT7-CDG (variante da síndroma de Ehlers-Danlos simile progéria); a POMTI-CDG (síndroma de Walker-Warburg); a POMGNT1-CDG (doença músculo-olho-cérebro, e o espectro da distrofia muscular congénita; a GALNT3-CDG (calcinose tumoral familiar); a SLC35D1-CDG (displasia de Schneckenbecken); a FKTN-CDG (distrofia muscular congénita de Fukuyama) e outras.

III- Defeitos da glicosilação dos lípidos e do glicofosfatidilinositol (GPI)

Os defeitos da glicosilação dos lípidos (o primeiro foi descrito em 2004) são, em termos clínicos, semelhantes ao fenótipo da N-glicosilação, como a SIAT9-CDG (epilepsia infantil Amish);
Os defeitos do glicofosfatidilinositol incluem algumas síndromas conhecidas como a doença de Mabry ou a hemoglobinúria paroxística nocturna, com apresentação específica de órgão ou tecido.

Nota importante: Um grupo crescente de doentes com padrão alterado de glicosilação, mas ainda sem defeito enzimático ou molecular definido, constitui o tipo CDGx, admitindo-se assim que muitas formas de CDG estão ainda por descobrir.

IV- Defeitos múltiplos da glicosilação e de outras vias

No grupo dos defeitos múltiplos da glicosilação e outras vias estão actualmente incluídas algumas CDG anteriormente classificadas como Ie, If, Im, Io, Iq, IIc, IId, IIf e outras, como os defeitos do complexo COG (conserved oligomeric Golgi): COG1, COG4, COG5, COG6, COG7 e COG8.
O COG é um complexo oligomérico do aparelho de Golgi, constituído por 8 unidades; o defeito de qualquer delas pode produzir alteração em ambas as vias de glicosilação no aparelho de Golgi, porquanto o complexo é crucial no controlo da N- e O- glicosilação e na ligação entre o RE e o aparelho de Golgi.

 

Nesta alínea, é dada ênfase a duas formas mais frequentes, sendo a última tratável

  • PMM2-CDG
  • PMI-CDG

PMM2-CDG (antiga CDG Ia)

Esta doença, a forma mais comum no âmbito dos defeitos em análise (identificados mais de 550 casos), é devida à deficiência de fosfomanomutase 2 (PMM2).

Os sintomas e sinais são distintos consoante a idade, salientando-se que o SNC está afectado na generalidade dos casos, sendo o compromisso doutros órgãos variável.

No feto surge hidropisia detectável por ecografia pré-natal; no RN são notórios derrame pericárdico e ascite. Pode ocorrer falência multiorgânica e morte.

No lactente, verifica-se distribuição anómala da gordura subcutânea, mamilos invertidos, estrabismo, aracnodactilia, hipotonia axial (podendo desaparecer mais tarde), hipocrescimento, dificuldade alimentar (vómitos, diarreia, anorexia), atraso no neurodesenvolvimento, ataxia, hiporreflexia, hepatomegália, diátese hemorrágica, doença tromboembólica, etc.. Alguns doentes evidenciam sinais de renomegália, derrame pericárdico e/ou cardiomiopatia. A mortalidade ocorre em cerca de 25% dos casos por insuficiência hepática, cardíaca ou renal.

Na segunda infância e adolescência, são evidentes alterações neurológicas, endócrinas, insuficiência mental, disfunção cerebelosa, retinite pigmentar, convulsões ou AVC recorrentes. Poderão também surgir anomalias esqueléticas e osteopénia.

No adulto, surge ataxia, insuficiência mental não progressiva, neuropatia periférica e alterações esqueléticas (tórax e coluna) com impotência funcional obrigando ao recurso a cadeira de rodas. No geral, os doentes são extrovertidos e alegres. É frequente o hipogonadismo hipergonadotrófico -puberdade ausente – no sexo feminino.

Estão descritas formas ligeiras, sem dismorfismo e com atraso psicomotor moderado.

PMI-CDG (antiga CDG Ib)

Esta forma, devida a deficiência de fosfomanose-isomerase (PMI), é fundamentalmente dominada por sintomatologia do foro hepatointestinal. São frequentes enteropatia com perda de proteínas, fibrose hepática congénita, coagulopatia, e doença trombótica. Alguns doentes evidenciam vómitos persistentes, e/ou sinais de hipoglicémia com hiperinsulinismo.

Não existem alterações neurológicas nem sinais dismórficos, e o neurodesenvolvimento é em geral normal.

Nota importante: O diagnóstico de síndroma CDG deverá ser considerado em todo e qualquer quadro clínico sem explicação etiopatogénica aparente, multissistémico ou não, com ou sem compromisso neurológico.

Exames complementares e diagnóstico

Perante uma suspeita de CDG está indicada como rastreio a electroforese da transferrina sérica por focagem isoeléctrica (FIE), tandem MS, ou por electroforese capilar. Para a colheita de sangue não devem ser usados tubos EDTA.

Os padrões anormais da FIE são de dois tipos:

  • Padrão tipo 1- aumento da disialotransferrina e/ou da assialotransferrina, e diminuição da tetrasialotransferrina; e o
  • Padrão tipo 2: aumento da trisialotransferrina, di-, mono- e/ou assialotransferrina.

Uma vez detectado um padrão anormal são necessários, conforme os casos, estudos adicionais:

  • Análise dos oligossacáridos por HPLC, enzimologia, imunocitoquímica, espectrometria de massa com electrospray e estudos mutacionais para confirmação diagnóstica.

Um padrão normal da FIE das transferrinas não exclui síndroma CDG, porquanto o mesmo resultado ocorre nas seguintes situações: GCSI-CDG (CDG-IIb), SLC35C1 (CDG-IIc), SLC35A1 (CDG IIf), TUSC3-CDG e, ainda por vezes, em doentes adolescentes e adultos.

Poderá estar indicado fazer-se a FIE utilizando outras glicoproteínas como: haptoglobina, tiroglobulina e alfa-1-antitripsina.

Quanto a diagnóstico diferencial, importa referir que padrões relacionados com alterações secundárias da glicosilação podem ser detectados noutras afecções como galactosémia, intolerância hereditária à frutose, hepatite e alcoolismo crónico.

Algumas doenças da O-glicosilação podem ser detectadas:

  • No soro, pela FIE da apolipoproteína CIII no soro (casos da síndroma de Walker-Warburg);
  • No músculo através de biópsia, por coloração apropriada do complexo da alfa-distroglicano nos casos de síndroma músculo-olho-cérebro.

O dois tipos de CDG descritos [PMM2 e PMI-CDG] apresentam um padrão do tipo 1 da FIE da transferrina sérica.

São comuns as alterações da coagulação:

  • Em todos os casos de CDG: défice do Factor XI
  • Nalguns casos de CDG: défice das proteínas C, S, antitrombina III-AT III, hipoalbuminémia, elevação de ALT e AST, hipocolesterolémia e proteinúria tubular.

A imagiologia do SNC na PMM2-CDG evidencia sinais de hipoplasia cerebelosa (constante), hipoplasia cerebral (inconstante), e de hipomielinização do SN periférico (frequente); no fígado são observados sinais de fibrose e esteatose.

O doseamento da actividade enzimática da PMM2 pode efectuar-se nos leucócitos ou fibroblastos.

O estudo mutacional (mais de 70 mutações identificadas) é fundamental; a mutação mais frequente é a Rl41H, letal em homozigotia.

Na PMI-CDG podem ser comprovadas as seguintes alterações: hipoglicémia com hiperinsulinismo e alterações bioquímicas e da coagulação já descritas na PMM2-GDG.

O doseamento da actividade da PMI pode realizar-se nos leucócitos e fibroblastos.

Tratamento

No caso da PMM2-CDG não existe tratamento específico.

Discute-se o interesse da dieta cetogénica. Para além do tratamento anticonvulsante, importa ter em conta a prevenção dos AVC com ácido acetilsalicílico na dose de 0,5-1 mg/kg/dia. Se surgirem fracturas frequentes, estão indicados os bifosfonatos.

Recentemente tem sido feita a proposta de terapia com chaperones farmacológicos.

Quanto à PMI-CDG, é essencial o diagnóstico precoce, pois existe tratamento disponível com manose oral em doses elevadas; com efeito, os sintomas regridem rapidamente, embora o padrão alterado das transferrinas leve alguns meses a melhorar ou a normalizar.

A terapia com heparina parece eficaz para a enteropatia com perda de proteínas. Será de encarar o recurso ao TH nos doentes resistentes ao tratamento com manose que apresentem icterícia hemolítica, fibrose hepática progressiva, dispneia acentuada e intolerância ao exercício (por envolvimento pulmonar); após o TH muitas destas manifestações melhoram dramaticamente.

Para além desta CDG tratável, algumas outras, a seguir discriminadas, têm actualmente algum tipo de terapia:

  • A SLC35C1 (antiga CDG-iic) por défice de transportador GDP-fucose pode ser parcialmente tratada com fucose, que é eficaz nas típicas infecções recorrentes com hiperleucocitose;
  • Na PIGM-CDG (convulsões intratáveis e trombose venosa, portal e hepática) a administração de butirato parece controlar;
  • As convulsões;
  • Na DPAGT1-CDG, o tratamento com colinesterase melhora a fraqueza muscular;
  • Na PCM1-CDG, com deficiente galactosilação, a terapia com galactose oral:
    • melhora a função hepática, a hepatomegália e a hipoglicémia;
    • normaliza a coagulação; e
    • pode permitir uma puberdade normal nas raparigas com hipogonadismo hipogonadotrópico.

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