Hipertrigliceridémia familiar (HTGF)/ Hiperlipoproteinémia tipo IV
A HTGF é uma doença AD de etiologia desconhecida, ocorrendo com uma frequência ~1/500 indivíduos. Traduz-se por elevação dos triglicéridos (> percentil 90, em geral entre 500 e 1.000 mg/dL); pode ser acompanhada por elevação ligeira do colesterol total com C-HDL baixo. De acordo com a experiência de vários centros, somente em cerca de 20% dos casos as manifestações surgem na idade pediátrica; ao contrário da HFC, não parece ser significativamente aterogénica (não se verifica o desenvolvimento de xantomas, nomeadamente).
As suas causas não são uniformes, pelo que não se trata de um grupo homogéneo de dislipoproteinémias. Fundamentalmente, a etiopatogénese pode relacionar-se com:
- Síntese aumentada de VLDL, devida provavelmente a uma resistência periférica à insulina, com hiperinsulinismo secundário; esta modalidade encontra-se associada a síndroma metabólica (ver atrás-HFC);
- Diminuição da destruição das VLDL, provavelmente por carência em Apo C-II, ou pela existência de variantes desta apoproteína.
Para o diagnóstico torna-se essencial que haja, pelo menos, um familiar em 1º grau com hipertrigliceridémia; o diagnóstico diferencial faz-se com a HFC e com a DBLF.
Nota: em geral, os valores de trigliceridémia na hiperlipoproteinémia de tipo V são muito superiores (> 1.000 mg/dL) aos dos verificados na HTGF.
Deficiência de lipase hepática
Esta afecção, muito rara, AR, resultante de défice de lipase hepática (LH) traduz-se por elevação de colesterol e de triglicéridos no plasma, em geral associada a elevação de c-HDL.
Recorda-se, a propósito, que a LH hidrolisa os triglicéridos e fosfolípidos em VLDL remanescentes e IDL, impedindo a conversão em LDL. A confirmação diagnóstica consiste em medir a actividade da LH em plasma heparinizado.
Antes da análise doutras dislipoproteinémias não necessariamente hiperlipémicas ou até normolipémicas, na perspectiva do diagnóstico diferencial, importa para o clínico a lista das principais hiperlipidémias secundárias, não hereditárias, em que deve ser considerado igualmente risco aterogénico (ver atrás- Quadro 2).
Alterações do metabolismo das HDL
Hipoalfalipoproteinémia primária
Esta dislipoproteinémia, a mais comum alteração do metabolismo das HDL e muitas vezes ocorrendo segundo o modo de transmissão AD, pode surgir na ausência de história familiar.
Define-se pelo padrão biológico: colesterolémia-HDL baixa (< percentil 10 para o género e idade) associada a C-LDL e trigliceridémia normais.
A etiopatogénese relaciona-se com diminuição da síntese de Apo A-I e aumento do catabolismo de HDL. Desconhecendo-se, com os dados disponíveis, o papel da doença na aterogénese, impõe-se o diagnóstico diferencial com outras afecções, como deficiência de LCAT, doença de Tangier e síndroma metabólica.
Hiperalfalipoproteinémia familiar
Trata-se duma situação rara que diminui o risco de aterosclerose e de coronariopatia, e probabilidade de sobrevida aumentada. Os níveis de colesterol-HDL excedem 80 mg/dL.
Défice da proteína de transferência colesterol-éster
A etiopatogénese relaciona-se com deficiência da proteína de transferência colesterol-éster (CETP) por mutações no respectivo gene localizado no cromossoma 16Y21. Tal facto traduz-se fundamentalmente numa desregulação do processo de transporte do colesterol para o fígado e ulterior excreção pela bílis. Na forma homozigótica (mais frequente no Japão), os valores de C-HDL poderão ser > 150 mg/dL.
Deficiência familiar de Apo A-I
Surge como resultado de mutações no gene da Apo A-I, determinando valores baixos ou vestigiais de HDL. Como consequência surge um quadro de gravidade variável em função das referidas mutações, caracterizado na maioria dos casos, por aterosclerose prematura, xantomatose, opacidade corneana e, ocasionalmente, associação a amiloidose.
O perfil laboratorial inclui diminuição de C-HDL e de Apo A-I no plasma.
Doença de Tangier
É uma doença autossómica co-dominante em que os valores de C-HDL são inferiores a 5 mg/dL. A etiopatogénese relaciona-se com mutações no gene ABCA1 de uma proteína implicada na ligação do colesterol celular à Apo A-I. A consequência é a acumulação de colesterol livre no SER, traduzida clinicamente pelos seguintes sinais e sintomas: neuropatia periférica intermitente, hepatosplenomegália, hipertrofia amigdalina com coloração alaranjada por acumulação de colesterol nas células de Schwann.
Deficiência de lecitina-colesterol aciltransferase familiar (LCAT)/ Doença fish-eye
A etiopatogénese desta doença rara relaciona-se com mutações nos genes que expressam a LCAT com deficiência total ou parcial desta enzima. Tal interfere com o processo de esterificação do colesterol e impede a formação de partículas de HDL e promove catabolismo de Apo A-I. Clinicamente verifica-se opacificação corneana (dado isolado na forma clínica designada por doença eye fish, em que a deficiência é parcial), anemia hemolítica e insuficiência renal progressiva a partir da adolescência e adultícia. Admite-se que não é aterogénica.
Para confirmação diagnóstica, os exames laboratoriais evidenciam diminuição de c-HDL, de Apo A-I, aumento de triglicéridos e relação colesterol livre/ colesterol total > 0,7.
Hipocolesterolémias
As situações associadas a alterações do metabolismo do colesterol intracelular das lipoproteínas com Apo B acompanham-se de hipocolesterolémia.
Abetalipoproteinémia
Esta anomalia rara, AR, origina-se por mutações no gene que codifica uma proteína microssómica de transporte de triglicéridos para o retículo endoplásmico, a qual é deficiente; como consequência, há produção deficiente de lipoproteínas contendo Apo B, necessárias para a transferência de lípidos no intestino delgado para as Qm nascentes e, no fígado, para as VLDL.
As manifestações clínicas incluem má absorção de gorduras com diarreia, carência de vitamina E, hipocrescimento, e sinais neurológicos (degenerescência espinocelular, hiporreflexia, ataxia, espasticidade na idade adulta, retinite pigmentar). Muitos dos sinais são o resultado de má absorção de vitaminas lipossolúveis. Os sinais neurológicos implicam o diagnóstico diferencial com a ataxia de Friedreich.
O perfil laboratorial inclui: ausência de Qm, VLDL, LDL e Apo B, com valores baixos de colesterol e triglicéridos; e disfunção eritrocitária (acantocitose).
Hipobetalipoproteinémia familiar
Esta doença familiar autossómica co-dominante, relacionada com mutações no gene que codifica a síntese de Apo B-100, na forma homozigótica evidencia sintomatologia semelhante à da abetalipoproteinémia.
Distingue-se da abetalipoproteinémia pelo facto de os progenitores heterozigóticos nos casos da doença em epígrafe evidenciarem diminuição do colesterol-LDL, de triglicéridos e de Apo B.
Doença de Anderson
Esta doença, com fenótipo sobreponível aos da abetalipoproteinémia e hipobetalipoproteinémia homozigótica, deve-se à incapacidade de secreção de Apo B-48 no intestino delgado.
A não absorção de Qm origina esteatorreia e carência de vitaminas lipossolúveis. O perfil bioquímico evidencia valor sanguíneo normal de Apo B-100 como resultado da sua secreção normal pelo hepatócito.
Síndroma de Smith-Lemli-Opitz (SSLO)
A etiopatogénese desta síndroma rara (incidência oscilando entre 1/20.000 – 1/60.000 RN caucasianos) está relacionada com mutações no gene DHCR7, do que resulta deficiência da enzima microssómica DHCR7 (7-di-hidrocolesterol redutase), a qual se traduz em défice da síntese de colesterol na sua fase final.
Desconhece-se até que ponto a síntese deficitária de colesterol poderá contribuir para a patogénese de defeitos congénitos, embora se conheça o papel importante da mielina no neurodesenvolvimento.
Recorda-se que as manifestações clínicas da SSLO integram em mais de metade dos casos anomalias craniofaciais, esqueléticas, genitais e do desenvolvimento; ao nível dos órgãos internos, podem estar afectados o SNC (holoprosencefalia, agenésia do corpo caloso, etc.), o sistema cardiovascular (canal atrioventricular, etc.), o tracto urinário (hipoplasia ou aplasia renal, etc.), tubo digestivo (doença de Hirschprung, etc.), sistema respiratório (hipoplasia pulmonar, anomalia dos lobos), sistema endócrino (insuficiência suprarrenal, etc.) e sindactilia cutânea (2º – 3º dedos do pé > 97%).
Nos casos de colesterolémia inferior a 20 mg/dL, a sobrevivência é improvável. O diagnóstico definitivo pode ser levado a cabo através da identificação de precursores do colesterol através da técnica de cromatografia gasosa e da análise mutacional.
Alterações do metabolismo intracelular do colesterol
Recorda-se que os ácidos biliares, sintetizados no fígado a partir do colesterol, são essenciais para a absorção lipídica no intestino, regulam a síntese do colesterol hepático e são necessários para a produção adequada de bílis.
Xantomatose cerebrotendinosa
Esta doença AR pode manifestar-se no RN como icterícia colestática (hepatite autolimitada). Em geral surge sintomatologia no fim da adolescência: inicialmente insuficiência mental, seguindo-se cataratas e deterioração neurológica progressiva, diarreia e aparecimento de xantomas tendinosos pelos 20-40 casos.
Outro dado clínico é o aparecimento de aterosclerose prematura podendo levar à morte por enfarte do miocárdio.
Segundo alguns autores, incluída no capítulo sobre perturbações da síntese dos ácidos biliares por mutação de gene, a referida xantomatose resulta em défice da enzima esterol-27 hidroxilase, necessário para a síntese mitocondrial de ácidos biliares no fígado. O resultado é a acumulação de colestanol e colesterol, sobretudo no sistema nervoso.
O diagnóstico faz-se pela demonstração de colestanol (e, por vezes, colesterol) elevado no plasma, assim como de álcoois biliares específicos na urina, também elevados. A deficiência enzimática pode demonstrar-se em fibroblastos; em certas populações, a análise de ADN pode ser um método rápido de diagnóstico.
Doença de Wolman
De transmissão AR, deve-se à falta da lipase ácida lisossómica, com consequente acumulação de ésteres de colesterol nas células por falência de hidrólise (doença de armazenamento).
As manifestações clínicas incluem hepatosplenomegália, esteatorreia, hipocrescimento; a morte surge em geral antes do 1 ano. O prognóstico é muito reservado (fatal).
Doença de Niemann-Pick tipo C
Trata-se duma esfingolipidose (doença AR) caracterizada pela acumulação de colesterol e esfingomielina no SNC e SRE. É devida, não a deficiência enzimática do lisossoma ou do seu co-factor, mas a defeito do tráfico de lípidos (perturbação da saída do colesterol do lisossoma, com consequente depósito de esfingomielina).
O prognóstico é reservado, com morte durante a 2ª infância ou adolescência.
Actualmente, é possível o tratamento com miglustat evidenciando resultados promissores.
Nota: os tipos A e B desta doença dos organelos foram tratados no capítulo sobre doenças do metabolismo dos organelos, incluído nesta Parte do livro.
Hiperlipoproteinémia (a) [Lp(a)]
A lipoproteína (a) [Lp(a)] tem constituição lipídica muito semelhante à das LDL. Identificada em 1963, o seu metabolismo não está completamente esclarecido na actualidade.
Contém uma molécula de apolipoproteína B-100 (como todas as LDL) ligada à apoproteína (a). Ou seja, é um tipo de LDL em que há adição doutra molécula, a Apo(a), o que lhe confere diferentes características e funções. Por sua vez, a estrutura molecular da Apo(a) é muito semelhante à do plasminogénio, uma proteína fundamental no processo de fibrinólise. Por outro lado, é mais aterogénica do que a LDL pelas suas propriedades pró- inflamatórias e pró-trombogénicas.
O gene da Apo(a), designado por LPA, localiza-se no cromossoma 6 e apresenta vários polimorfismos que determinam a concentração de Lp(a) no sangue. É reconhecida pelos receptores para Apo B e Apo E (receptores BE).
Demonstrou-se que existe uma relação inversa entre o tamanho da Apo(a) e os níveis sanguíneos ou plasmáticos da Lp(a) avaliados por métodos imunoquímicos.
Admite-se que concentrações de Lp(a) superiores a 50 mg/dL sejam relacionados com factores hereditários e comportem risco elevado de doença cardiovascular aterosclerótica prematura nalgumas famílias. Trata-se dum factor de risco independente.
O Expert Panel on Integrated Guidelines for Cardiovascular Health and Risk Reduction in Children and Adolescents da AHA (USA) não recomenda a determinação dos níveis de Lp(a) como rotina nos rastreios em jovens, excepto nos casos de antecedentes AVC isquémico ou hemorrágico não explicável pelos factores de risco clássicos.
A niacina constitui o único tratamento susceptível de promover diminuição dos valores de Lp(a). Desconhece-se se a diminuição dos níveis elevados de Lp(a) contribui para prevenir futura ou recorrente doença cardiovascular.
Avaliação do risco e tratamento das hiperlipidémias
Avaliação do risco associado
Em todas as crianças e jovens com dislipidémia devem ser avaliados os níveis de risco (risco elevado e risco moderado) em função de determinados parâmetros associados, o que tem implicações nas estratégias de actuação:
- Risco elevado: hipertensão arterial/HTA requerendo tratamento com fármacos (PA > percentil 99 + 5 mmHg), hábitos tabágicos, IMC > percentil 97, diabetes mellitus dos tipos 1 ou 2, doença renal crónica, status pós-transplante cardíaco e/ou pós-Kawasaki com aneurismas;
- Risco moderado: HTA não requerendo tratamento com fármacos, IMC entre percentis 95 e 97, colesterol-HDL < 40 mg/dL, status pós-Kawasaki sem aneurismas, doença inflamatória crónica, infecção por VIH, síndroma nefrótica.
A intervenção terapêutica propriamente dita compreende medidas gerais (algumas já referidas a propósito da doença aterosclerótica) dirigidas predominantemente às situações acompanhadas de hipercolesterolémia) e farmacoterapia.
Medidas gerais
- Modificação do estilo de vida e exercício físico mantidos, como prioridade
Este procedimento (idealmente a aplicar em toda e qualquer criança ou jovem saudável, sem dislipidémia), deverá ter lugar, durante pelo menos 6 meses, antes de outras medidas a aplicar eventualmente. - Regime alimentar
Fazendo parte do estilo de vida saudável e considerando o parâmetro percentagem do valor calórico total para a quantificação do suprimento alimentar, nas situações de dislipidémia, tal medida diz respeito:
- à redução do suprimento em gorduras: inferior a 30% (sendo gorduras saturadas inferior a 7-10%, poli-insaturadas 10% e mono-insaturadas 10-15 %),
- à ingestão de alimentos com teor de colesterol inferior a 200-300 mg/dia,
- ao incremento da ingestão de hidratos de carbono (50-60%, aumentando o teor em hidratos de carbono complexos e reduzindo o teor de açúcares) e de proteínas (15-20%).
A restrição dietética somente deverá ser posta em prática em crianças com mais de dois anos, exceptuando nos casos de HF homozigótica (e ponderada nas formas heterozigóticas).
O regime deverá igualmente ter suprimento rico em fibras, frutos e vegetais.
Relativamente ao suprimento em fibras solúveis, o mesmo deve ser calculado em gramas (gramas a administrar = idade em anos + 5 a 10 até à idade de 15 anos) até máximo de 25 gramas por dia). Com esta estratégia é possível a diminuição da colesterolémia em cerca de 10-15%.
- Exames clínicos planeados
A avaliação clínica global periódica, incluindo a do peso e altura para determinação do IMC (índice de massa corporal) é fundamental, designadamente nos casos associados a hipertrigliceridémia, com tendência para obesidade.
Farmacoterapia
De acordo com as recomendações gerais do NCEP/USA (National Cholesterol Education Program) o tratamento farmacológico das hiperlipémias está indicado nas crianças com idade de 10 anos ou superior, após período mínimo de 6 meses de regime alimentar dietético e de mudança para estilo de vida mais saudável sem terem sido atingidos os objectivos terapêuticos.
Assim, para além das medidas gerais – que deverão continuar – deve ser considerada a administração de fármacos nas seguintes circunstâncias:
- manutenção do colesterol-LDL > 190 mg/dL;
- manutenção do colesterol-LDL > 160 mg/dL associado a 1 ou mais factores de risco elevado e/ou a 2 ou mais factores de risco moderado;
- manutenção do colesterol-LDL > 130 mg/dL associado a 2 ou mais factores de risco elevado; ou a 1 factor de risco elevado + 2 ou mais factores de risco moderado, ou evidência de coronariopatia.
Estas normas, que têm vigorado ao longo de mais de 20 anos com algumas modificações, baseiam-se na probabilidade estatística de o caso em questão poder corresponder a uma forma hereditária de dislipoproteinémia, tal como HF. A idade de 10 anos foi seleccionada por corresponder à idade em que se tem verificado, em estudos, a formação das estrias gordas nas artérias coronárias e aorta.
De acordo com os peritos do NCEP, está previsto que, em casos específicos, correspondendo a valores muito elevados de colesterol, a terapêutica com fármacos possa ser antecipada.
Assim, por exemplo, a partir dos 3-4 anos poderão utilizar-se resinas fixadoras de ácidos biliares, como a colestiramina (entre 4-32 gramas/dia) em duas tomas ou o colestipol (5-40 gramas/dia), associados ao ácido fólico (5 mg 1 vez por semana).
Com a utilização de fármacos, é possível redução dos valores da colesterolémia cerca de 30%.
Não está indicada a intervenção farmacológica nos casos de hipertrigliceridémia isolada, devendo ser ponderada se os valores de triglicéridos ultrapassarem > 1.000 mg/dL no período pós-prandial pelo risco de pancreatite.
Os principais fármacos a utilizar no contexto das dislipoproteinémias em geral distribuem-se pelos seguintes grupos (Quadro 3):