«The proper exercise of the five senses is often far more valuable in diagnosis than a handful of laboratory reports and radiographs»

L Norrlin,1960

Importância do problema

Numa perspectiva prática, como introdução à abordagem dos casos clínicos, será pertinente veicular algumas ideias-chave relacionadas com a Semiologia, classicamente definida como o estudo dos métodos de colheita dos sintomas e sinais de doença, de lesão de órgão ou de perturbação de função.

Aquela integra duas partes: 1) a Semiotécnica ou técnica da pesquisa dos sintomas e sinais (considerada a «arte» de abordar o doente ou pessoa); e 2) a Clínica Propedêutica (a ciência da introdução à observação clínica, ao raciocínio crítico e à síntese), através da qual se integram os elementos obtidos pela Semiotécnica para se chegar ao diagnóstico e deduzir o prognóstico.

O processo de integração dos dados colhidos deve fazer-se numa sequência lógica, por fases, em crescendo; 1) anamnese; 2) exame objectivo; 3) síntese dos dados colhidos pela anamnese e pelo exame objectivo, com formulação justificada de hipóteses de diagnóstico, ponderando sempre devidamente os dados que as favorecem, assim como os dados que as contrariam; 4) solicitação de exames complementares indispensáveis segundo uma escala de prioridades e sempre em concordância com as hipóteses formuladas, para as confirmar ou excluir; 5) diagnóstico definitivo; 6) actuação, incluindo terapêutica e os cuidados gerais a prestar; 7) prognóstico.

Embora, segundo o conceito expresso, todas as fases devam ser seguidas, sem qualquer omissão ou «hiato», poderá haver situações clínicas em que, dado o peso da anamnese e do exame objectivo é dispensada a realização de exames complementares, para se atingir o diagnóstico definitivo; e outras, pelo contrário, em que o diagnóstico definitivo somente poderá ser estabelecido post-mortem ou com exames inacessíveis ao clínico em determinado contexto.

O objectivo deste capítulo é analisar e discutir sucintamente algumas tendências manifestadas pelos estudantes de medicina e médicos em formação pós-graduada (internos) durante os estágios de prática clínica, as quais, contrariando os princípios atrás expostos, poderão ser consideradas erros metodológicos na abordagem dos casos clínicos com eventuais repercussões negativas na qualidade assistencial.

Exemplos

  1. Em relação à metodologia da abordagem dos casos clínicos na área de internamento (ou ambulatório) tem-se comprovado que nem sempre é aplicado o esquema sequencial «em crescendo» atrás referido. Com efeito, no âmbito da apresentação dos casos, verifica-se muitas vezes a tendência para não explicitar, de modo fundamentado, as hipóteses de diagnóstico e/ou lista de problemas nos registos clínicos, sendo frequente, ao ser descrito o caso (oralmente ou por escrito) a “passagem” da anamnese e do exame objectivo para a solicitação dum conjunto de exames complementares, por vezes com uma lista excessiva, sem prioridades, e desajustada ao caso real. Quantas vezes, somente após a verificação de dados muito notórios colhidos pelo exame objectivo (por exemplo, icterícia, dispneia ou palidez acentuadas) se vai aprofundar a anamnese? Quantas vezes se solicita uma ecografia abdominal ou outro exame complementar sem prévia e minuciosa palpação do abdómen e sem justificar o pedido? Quantas vezes se procede a pedidos de exames sem definir uma estratégia de prioridades, envolvendo riscos vários e “agressividade” (por exemplo exames radiológicos excessivos, ou ausência de programação visando reduzir ao mínimo o número de colheitas de sangue e outros produtos biológicos) com possíveis repercussões no tempo médio de internamento, nos custos e no número de consultas?
  2. Outro exemplo diz respeito à criança em estado crítico internada em unidade de cuidados intensivos, submetida a terapia complexa e assistida por aparelhagem sofisticada. Nesta circunstância, como se depreende, a criança terá que ser manuseada com extrema cautela, pois a mesma está «submersa» em aparelhos. Face à imensidão de dados fornecidos pelos diversos tipos de monitorização biofísica e bioquímica, uma tendência, nestes casos, é minimizar certos passos fundamentais do exame objectivo, sem tirar partido de certas regras da semiologia clássica aplicável aos casos especiais dos doentes em cuidados intensivos.
  3. É também frequente assistir-se ao início do relato formal do caso começando pelo fim (por exemplo, descrição dos resultados analíticos, imagiológicos, ou dos dados fornecidos pelos monitores), antes de se dar a conhecer os eventos clínicos das últimas horas assim como os dados fornecidos pela observação convencional exequível com instrumentos clássicos que, mesmo neste contexto, continuam a ter o seu papel. A este propósito valerá a pena citar uma autoridade em intensivismo, Swyer, afirmando que a monitorização humana em unidades de cuidados especiais e intensivos é tão importante como as monitorizações biofísica e bioquímica.

Análise crítica

Tendo como base o conceito actual da Pediatria, não como especialidade, mas como Medicina integral de uma época da vida que se inicia com a fecundação e se conclui com o fim da adolescência, Ballabriga chamou a atenção para o risco da perda da unidade da Pediatria com a multiplicação das especialidades pediátricas (áreas específicas cujo desempenho implica a aplicação de determinadas técnicas). Este panorama é susceptível de gerar, segundo o autor, a chamada síndroma do super especialista, traduzida pela tendência de transferir a prática de tecnicismo exagerado para o período de formação básica do clínico geral ou pediatra geral, o que constitui uma perversão do respectivo processo educativo.

A este propósito, Charney afirmou que, se não proporcionarmos aos internos em formação as oportunidades para a concretização de determinados objectivos (os quais podem ser sintetizados no saber, no saber estar, no saber fazer com justificação, no saber comunicar e no saber investigar), e não promovermos o desenvolvimento de qualidades essenciais de perspicácia, de rigor e de sentido crítico, estaremos a criar-lhes frustrações, podendo os respectivos formadores ser culpados de negligência educativa.

A elaboração da história clínica em moldes clássicos, quer na versão de relatório escrito, quer na de exposição oral, constitui uma modalidade ímpar de treino clínico, sendo fundamental para o desempenho profissional futuro, pois permite a abordagem global de cada caso – problema; por outro lado, dá resposta a grande número de objectivos educativos no âmbito da formação do interno.

As tendências manifestadas, por vezes pelos internos através dos exemplos relatados, correspondendo a aparentes desvios da metodologia clássica de abordagem de casos clínicos, são decorrentes duma experiência pessoal e institucional, não devendo ser consideradas, por isso, representativas do panorama nacional.

Poderão ser apontadas várias explicações para as mesmas. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da tecnologia que, pelo rigoroso manancial de informação proporcionada em tempo real, leva à tentação de o clínico subvalorizar a semiologia clássica, condicionando menor investimento na metodologia do «crescendo» atrás referida. Fala-se hoje, inclusivamente, numa cultura da tecnologia pela tecnologia, para utilizar a terminologia de KelIy o qual afirma que a tecnologia tomou conta da cultura.

Mesmo que se invoque o enorme potencial dos exames complementares como meio de prevenir a chamada má-prática clínica por omissão de determinadas atitudes no acto médico, neste campo os formadores têm uma grande responsabilidade no sentido de educarem os seus estagiários a raciocinar em termos de custo-eficácia e a estabelecer prioridades quanto aos exames complementares a solicitar, sempre em obediência à anamnese, ao exame objectivo e às hipóteses de diagnóstico formuladas, numa atitude permanente de humanização. Aliás, esta noção de necessidade de procedimento metódico e correcto, com uma boa relação custo-eficácia, está implícita numa frase de Oski, traduzindo o grande saber, o bom senso, a ironia e o espírito crítico que caracterizavam este mestre: «Before ordering a test, decide what you will do if it is positive or negative. If both answers are the same, don’t do the test».

Outras explicações estarão relacionadas com a deficiente preparação durante o período de ensino pré-graduado e com a abolição da clássica prova clínica (quer na versão de relatório escrito, quer na versão de desempenho «ao vivo» com exposição oral perante o júri) da maioria dos concursos da carreira hospitalar. Tais provas constituíam, de facto, um forte estímulo, quer para os formadores, quer para os estagiários, e permitiam, por outro lado, uma selecção mais rigorosa de competências e de vocações.

Estratégia

Entre várias estratégias de abordagem e registo de dados de casos clínicos, cabe salientar uma modalidade baseada na orientação por problemas, conhecida pela sigla SOAP com o seguinte significado.

S = subjectivo (registo de sinais, sintomas, ocorrências, eventos);
O = objectivo (registo de dados objectivos comprovados através do exame físico ou de exames complementares realizados com justificação);
A = avaliação (registo dos dados disponíveis com interpretação – por ex. esplenomegália porquê?; anemia porquê?; sopro cardíaco porquê?; diarreia porquê?; rectorragias porquê?);
P = plano (registo do plano de actuação incluindo neste conceito, não só a terapêutica e esquema nutricional, como os cuidados a prestar em geral, e eventuais novos exames complementares), sempre em função dos dados disponíveis, da lista de problemas e da actualização do diagnóstico.

Esta estratégia, de acordo com a nossa experiência, tem diversas vantagens: obedece ao princípio do “crescendo” atrás referido, contribui para a prática do raciocínio clínico, cria hábitos de registo mais rigorosos facilitando o processo de comunicação e as tarefas do interno, quer nas apresentações em reuniões de discussão de casos, quer na visita clínica.

A prática destes gestos no dia-a-dia sob a orientação do sénior-tutor, facilitam a aquisição de competência clínica, em obediência aos princípios fundamentais da antiquíssima tradição Hipocrática, os quais podem ser sintetizados no Quadro 1.

Lá diz o ditado: «Oiço e esqueço; vejo e lembro-me; faço e compreendo».

QUADRO 1 – Competência clínica e pressupostos

Em suma, se no quotidiano da enfermaria ou ambulatório, junto dos internos, se investir na abordagem correcta dos casos clínicos, estar-se-á a contribuir para a formação de médicos competentes, o que se traduzirá num serviço a prestar à comunidade de melhor qualidade e mais humanizado.

Competência clínicaPressupostos/condições indispensáveis
Colheita da história clínicaFormação básica/
Aquisição de conhecimentos
Exame físico/observaçãoFormação básica/
Aquisição de conhecimentos
DiagnósticoLógica indutiva/Raciocínio hipotético-dedutivo
Actuação/tratamentoAquisição de atitudes
PrognósticoExperiência

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