As particularidades da idade pediátrica

As crianças não são adultos pequenos a quem se administram pequenas doses de medicamentos; são, pelo contrário, seres em constante evolução, com características peculiares. Com efeito:

  1. A sua fisiologia difere da dos adultos e altera-se à medida que crescem e se desenvolvem, o que implica maior vulnerabilidade na doença e face ao estresse;
  2. As mesmas podem ser afectadas por um espectro de doenças diferente do dos adultos, com especial realce para as doenças congénitas e hereditárias;
  3. A sua capacidade de compreensão relativamente ao corpo, à doença e à morte é diversa da dos adultos, evoluindo ao longo do tempo;
  4. Utilizam os serviços de saúde geralmente acompanhados pela mãe ou outro adulto responsável que tem as suas próprias necessidades e direitos, como o de ser informado e tomar parte em decisões; destas circunstâncias decorre um estatuto legal diverso do do adulto;
  5. São fortemente influenciadas pelo ambiente ou sistema envolvente em que crescem e se desenvolvem (família, escola, grupos de amigos e a comunidade em geral);
  6. Sendo afectadas pelas doenças que também surgem na idade adulta (por exemplo mucoviscidose, drepanocitose), adultos e crianças não constituem populações comparáveis, pois em idade pediátrica existe risco mais elevado de mortalidade.

Em sintonia com o conceito global de Pediatria, a Convenção dos Direitos da Criança ratificada por todos os órgãos de soberania portugueses (1990), considera “Criança” “todo o ser humano até aos 18 anos”. A adolescência está, pois, incluída neste conceito, sendo reconhecida como uma fase da vida com necessidades e características específicas. Considerou-se arbitrariamente o fim da adolescência aquele limite de idade por razões de ordem organizativa assistencial.

Dado que cada vez mais adolescentes atingem a idade adulta com patologias até há pouco quase desconhecidas da prática da medicina do adulto, nalgumas situações específicas, a idade de 21 anos é usada como limite para o atendimento nas instituições pediátricas.

Com efeito, o processo de transição de um adolescente com doença crónica grave para os hospitais ou serviços de adultos é difícil, por vezes dramático, pela perda de acesso aos cuidados tradicionalmente mais personalizados nos serviços ou hospitais pediátricos. De facto, tais doentes estão muitas vezes ainda dependentes da família e do perfil assistencial anterior.

O ambiente pediátrico necessário

Dois modelos de prestação de cuidados pediátricos hospitalares do nível mais diferenciado se confrontam: 1) o modelo de hospital geral (prestando cuidados a todos os grupos etários), integrando serviço de pediatria; 2) o modelo de hospital pediátrico autónomo, embora integrado numa área com outras instituições ligadas à prestação de cuidados ou campus sanitário.

As experiências vividas na infância e juventude têm um impacte crucial na vida de cada indivíduo; por isso, os contactos com os serviços de saúde em tal período da vida influenciam significativamente as atitudes futuras do mesmo em relação a esses serviços.

Não dependendo a saúde apenas da prestação de cuidados, mas também do ambiente social, biofísico e ecológico, e estando estabelecido que os estímulos lúdicos, afectivos e emocionais são factores determinantes no processo terapêutico, assume a maior importância a criação do chamado ambiente pediátrico. Aliás, a criação de tal ambiente está implícita na Declaração dos Direitos da Criança Hospitalizada.

Assim, ao tipo convencional de cuidados humanizados de qualidade a cargo de profissionais especialmente preparados, o ambiente pediátrico associa: equipamentos e metodologias adaptados à condição e estádios de desenvolvimento da criança e maturidade do adolescente (por exemplo, móveis, equipamento lúdico, música, participação de artistas/palhaços, espaços apropriados com envolvência segura e integralmente reservados aos jovens utilizadores, como ludotecas, etc.).

Estas especificidades são cruciais para a garantia da excelência da prática pediátrica hospitalar centrada na criança e na família. Estando mais intrinsecamente ligadas à própria natureza dos hospitais pediátricos onde a sua exequibilidade é mais fácil, elas são também desejáveis e possíveis nos serviços de pediatria de hospitais gerais (idealmente separados dos serviços de adultos).

O ambiente pediátrico pressupõe garantia prévia de qualidade assistencial; tratando-se de instituições com cuidados de alta diferenciação, quer se trate de hospital pediátrico, quer de serviço de pediatria integrado em hospital geral, torna-se fundamental que sejam propiciadas todas as valências compatíveis com tal nível de cuidados.

O Hospital de Dona Estefânia – Aspectos históricos, organizativos e demográficos

O Hospital de Dona Estefânia (HDE), integrado no Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC), foi sede da primeira escola pediátrica no nosso país e o primeiro hospital construído de raiz em Portugal pela mão do arquitecto britânico Humbert (como foi referido, inaugurado em 1877 com a placa identificativa da Pedra de Armas Reais de Dom Pedro e Dona Estefânia – HRE).

Em 1969, com a integração da Maternidade Magalhães Coutinho, concretizou-se a sua transformação em hospital materno-infantil médico-cirúrgico. Por ocasião da entrada em funcionamento na área da grande Lisboa dum novo hospital com maternidade (Hospital Fernando da Fonseca/Amadora-Sintra), entre 1996 e 2001 o HDE funcionou sem maternidade até 2001, ano em que foi inaugurada no edifício Dom Pedro V do mesmo uma moderna maternidade dando assistência a situações de alto risco com ligação directa ao edifício principal na sequência de obras de requalificação levadas a cabo no referido pavilhão.

Esta nova maternidade, colaborando com a Maternidade Alfredo da Costa (MAC), e admitindo grávidas de alto risco devidamente referenciadas, viria a fechar as suas portas em 2014 no meio de grande controvérsia, passando os partos a ser realizados na MAC, entretanto integrada no CHLC.

Na década de 80 teve início no HDE o intensivismo neonatal e pediátrico e, em 1992, aquele recebeu o antigo Serviço de Saúde Mental Infantil de Lisboa, integrando hoje o novo Departamento de Pedopsiquiatria.

Na sequência do forte impulso reformista iniciado nos anos 60 acompanhado de obras de remodelação arquitectónica e de ampliação, surgiu um primeiro ciclo de diferenciação com a criação das unidades de Hematologia, de Endocrinologia, de Gastrenterologia, de Pneumologia, e de Nefrologia. No âmbito da Cirurgia Pediátrica outras áreas subespecializadas também foram surgindo, tais como a Cirurgia Neonatal, Nefro-urologia, Ortopedia, Patologia Clínica, Fisiatria, Imagiologia, etc..

É já no contexto de um segundo ciclo de inovação nas décadas de 80-90 que se inscreve a criação e consolidação de outras áreas devotadas à criança e adolescente, salientando-se as seguintes: Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Estomatologia, Neurocirurgia, Cirurgia Oncológica, Cirurgia Endoscópica, Cirurgia em Ambulatório, Implantes Cocleares, Reumatologia, Ortotraumatologia, o Isolamento de Alta Infecciosidade (unidade de referência pediátrica no sul do País), Imunoalergologia, Função Respiratória desde o período de recém-nascido, Ventilação Crónica Domiciliária, Rastreio Auditivo Universal ao RN, Doenças Metabólicas, Medicina do Viajante, etc..

O HDE tem um corpo de cerca de 1.500 funcionários dos quais, aproximadamente, 400 são efermeiros, 250 são médicos distribuídos por 20 especialidades médicas e cirúrgicas que, por sua vez, se diferenciam em subespecialidades e competências. A Pediatria Médica constitui o maior contingente com cerca de 75 especialistas, dos quais 25% estão dedicados ao intensivismo neonatal e pediátrico, com equipas independentes.

Trata-se de um hospital de média dimensão com uma lotação de cerca de 180 camas para a idade pediátrica, incluindo as atribuídas a UCIN, UCIP, Pedopsiquiatria e Cirurgia Pediátrica.

Os recursos assistenciais do hospital integram áreas departamentais, serviços, unidades funcionais e núcleos técnicos sob responsabilidade de um corpo clínico hierarquizado (diretores, chefes de serviço, coordenadores e outros responsáveis). Prestando o HDE o nível mais elevado de cuidados à comunidade, a vertente de assistência está implicitamente ligada às vertentes de ensino pré e pós-graduado, e de investigação.

Trata-se dum modelo transversal de cuidados em obediência a uma filosofia de abordagem multidisciplinar e multiprofissional coordenada, centrada nas necessidades e expectativas do doente/família e na garantia de continuidade dos cuidados prestados a cada criança e adolescente.

No âmbito da humanização cabe salientar um conjunto de actividades específicas muitas delas desenvolvidas com o apoio em mecenato, tais como: Núcleo contra a Dor, Núcleo de Apoio à Criança e Família, Unidade de Apoio Domiciliário, humanização dos espaços através de pinturas de parede em todo o hospital (programa internacional “Paint a Smile”), Apoio de alojamento a famílias de crianças deslocadas com doença crónica e tratamento prolongado (Casa Ronald Mac Donald – a primeira em Portugal), a integração e socialização de crianças doentes particularmente carenciadas (parceria com a Fundação Gil), a valorização dos tempos lúdicos na vida da criança internada (Programa “Nariz vermelho – Palhaços no Hospital”, Programas “Música no Hospital”, Programa lúdico mensal “A hora do conto” do “Rotary Club”, Serviço de Educadoras de Infância, Ludoteca Lyon’s), a informação geral à comunidade (sítio na Internet), o apoio humano e espiritual (Serviço de Voluntariado, Serviço Religioso), a atenção às expectativas e necessidades especiais das famílias (Gabinete do Utente, Serviço Social) e à suas necessidades de comunicação (Gabinete de Comunicação), campos de férias para crianças diabéticas e asmáticas, etc..

Quanto à valência da formação salienta-se: o Ensino Universitário da Pediatria (4º, 5.° e 6.° anos do Mestrado Integrado em Medicina) em ligação à Faculdade de Ciências Médicas (FCM)/Nova Medical School (NMS) da Universidade Nova de Lisboa (UNL); a valência de formação pré-graduada engloba o Centro Universitário, com biblioteca própria, e o Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria-CSTP.

No que respeita à valência de formação pós-graduada, importa salientar: o Centro de Formação pós-graduada multiprofissional (designadamente cursos anuais para internos sob a égide da Direcção do Internato Médico); a Biblioteca do HDE englobando Biblioteca – on-line; o Núcleo Iconográfico (acervo de milhares de imagens fotográficas de patologia assistida no HDE, as quais são classificadas e organizadas permitindo a sua utilização no ensino pré e pós-graduado); o Gabinete de Telemedicina; o Centro de Treino em Cirurgia Endoscópica; Programa de intercâmbio de estudantes de medicina estrangeiros, etc..

No âmbito da investigação salienta-se: o Centro de Investigação integrando parceria hospital-faculdade; a publicação (acompanhada de evento científico anual) do chamado Anuário do HDE contemplando todos os estudos realizados no HDE com atribuição de prémios segundo regulamento; área de investigação opcional aberta a estudantes de medicina da FCM/NMS/UNL e outras universidades, etc..

A área de governação clínica (clinical governance) segue uma orientação baseada em determinados vectores tais como: a melhor evidência científica disponível para o desenvolvimento de políticas de intervenção e recomendações de boas práticas sob forma de Normas de Orientação Clínica; a realização de auditorias clínicas sistemáticas por pares; e a avaliação e redução do risco profissional e dos doentes.

O Arquivo Clínico é centralizado, dispondo de uma zona específica de alta segurança para processos que a requeiram; com a informatização de todos os serviços do HDE é utilizado o processo clínico informatizado.

O HDE desenvolve um Programa de Melhoria Contínua de Qualidade organizacional cuja avaliação externa lhe conferiu a acreditação internacional (Fig. 1) de qualidade global (Health Quality Service/Instituto da Qualidade em Saúde).

FIGURA 1. Hospital com Acreditação Internacional/HQS

A instituição privilegia formas actuantes de convivência com a comunidade, designadamente a unidade coordenadora funcional, os centros de saúde, serviços de segurança social, autarquias locais, instituições académicas, escolas de formação profissional, instituições particulares de solidariedade social, associações de doentes, entidades nacionais e internacionais de interesse público, mecenas e instituições beneméritas privadas. A qualidade das parcerias estabelecidas com este último sector conferiu ao Hospital o prémio “Hospital do Futuro – 2005”.

O Quadro 1 resume alguns aspectos demográficos (valores médios referentes a 2015).

QUADRO 1 – Aspectos demográficos do HDE (2015)

Anos 20142015201620172018
Internamento4.4194.2444.3414.3444.110
Lotação131125123126124
Internamento
Demora Média (dias)
7,97,98,469,029,5
Taxa de Ocupação (%)73,572,779,682,184,2
Intervenções Cirúrgicas4.3263.9113.5783.5553.264
Cirurgias em Regime Ambulatório1.7341.4081.1291.070887
Hospital de Dia (sessões)4.4314.9285.1725.2894.284
Episódios de Urgência76.48275.01878.38574.08674.773
Consultas Externas117.320120.036109.201109.034108.189

A clínica pediátrica hospitalar no futuro

Se, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), os sistemas de saúde e as instituições que prestam cuidados à criança e adolescente forem centrados no “melhor interesse” destes cidadãos, os países e os profissionais devem preparar-se para os desafios que se esperam no futuro em diversas vertentes:

Demográfica

Haverá que encarar as consequências das alterações demográficas tendo em conta a redução continuada da natalidade e fecundidade, a idade mais tardia da mulher no primeiro parto e as novas formas de organização familiar; aumentarão as tensões para a adopção de políticas migratórias mais liberais com risco de alargamento de bolsas de exclusão e de degradação das respectivas condições de saúde.

Técnico-profissional

A prática clínica respeitará cada vez mais as recomendações emanadas de comissões de peritos e de sociedades científicas; crescerá a exigência social e institucional sobre a qualidade e diferenciação dos profissionais. A certificação regular das competências profissionais e a presença assídua de advogados na relação médico-doente e instituição-doente serão provavelmente realidades muito próximas.

Formativa

Será em breve realidade o ensino com recurso aos simuladores médico-cirúrgicos e à endonavegação virtual; a especialização será apenas uma parte do processo de formação e a educação médica contínua ganhará decisiva importância nos processos de manutenção e actualização das competências; os especialistas generalistas, como por exemplo os pediatras, incluirão cada vez mais competências tecnológicas na sua formação e desempenho.

Inovação tecnológica

Num contexto de contínua explosão tecnológica será dada especial atenção às áreas de grande potencial e rápido desenvolvimento como a investigação genómica, a neuropsicobiologia e a biologia molecular; transplantações e terapêutica com linhas celulares estaminais; surgirão novos veículos terapêuticos a nível celular; crescerão exponencialmente os meios de diagnóstico e intervenção pela imagem; estarão disponíveis novas técnicas anestésicas e equipamentos de ventilação inteligentes; continuarão os problemas de resistência aos antimicrobianos e de infecção nosocomial; a prevenção das doenças pediátricas com repercussão no adulto e a pediatria preditiva constituirão áreas de forte investigação e desenvolvimento; a robótica tenderá a revolucionar as metodologias de treino técnico e autoformação; a globalização da informação científica, a comunicação em telemedicina e teleconsulta irão trazer novos desafios ao nível da segurança de dados informáticos dos doentes e da deontologia médica; e o nível de aceitação dos riscos iatrogénicos e o avanço nos suportes de vida levarão a novos dilemas éticos e de responsabilidade médica e institucional.

Sistema de saúde

Haverá maior desenvolvimento das redes nacionais e internacionais de referenciação de doentes; desenvolver-se-á o transporte pediátrico e a rede de trauma; generalizar-se-á o uso de sistemas e índices de monitorização clínica para comparação de centros diferenciados; crescerá a diversidade e diferenciação dos profissionais que participam nos cuidados à criança; o financiamento hospitalar estará em progressiva correspondência com a produção de actos facturáveis; e aumentará a pressão de aliciamento das entidades privadas sobre os técnicos formados nos serviços públicos.

Filosofia e estrutura dos hospitais

O hospital irá integrar-se em redes e ele próprio funcionará com redes baseadas nas suas especialidades; a maior proporção de doentes crónicos levará à necessidade de substituir encontros técnicos com especialistas durante episódios de doença por programas de relacionamento consistentes e duradouros; ampliação das áreas de hospital de dia, ambulatório e cirurgia do ambulatório; a par da redução das áreas de internamento os novos hospitais não serão como os grandes edifícios dos anos 60-70 e irão adoptar dimensões geríveis e rendíveis com arquitecturas seguras, em especial para doentes com limitações de mobilidade; as áreas de medicina materno-fetal e obstétricas serão programadas para uma carga anual ideal entre 1.500 e 3.000 partos; cada vez mais os equilíbrios entre volume do edifício, a facilidade de acesso, a relação com a cidade em que se implanta o hospital e o conhecimento das necessidades das crianças condicionarão a concepção arquitectónica; a importância de um ambiente adequado à criança; sendo a habitual atmosfera familiar (homelike) e a privacidade factores terapêuticos importantes, os arquitectos e engenheiros hospitalares tomá-los-ão em conta nos novos projectos de construção e reabilitação dos hospitais pediátricos; crescerá o conceito de “hospital verde” tirando o máximo partido das fontes energéticas naturais; será concretizada uma significativa redução do uso de papel e uma menor produção de resíduos com importantes repercussões sobre as formas de registo clínico, o acesso a dados do doente e a informação médica em geral.

Prestação de cuidados e governação clínica

O internamento será quase residual e apenas para os casos muito complexos; será impulsionada a figura do médico ou enfermeiro gestor do doente crónico; a informatização dos dados clínicos e a prescrição por computador serão regra; a efectivação de programas específicos de transição dos adolescentes para unidades de adultos será inevitável; o controlo da qualidade passará da apreciação entre pares para a análise de resultados.

Exigência institucional e expectativas da comunidade

O padrão de qualidade a adoptar será fortemente influenciado pela interpretação da utilidade dos cuidados prestados às famílias que acedem ao hospital; com o desenvolvimento dos sistemas de qualidade organizativa e de prevenção de riscos, a meta de excelência clínica será a prioridade entre os objectivos da prestação de cuidados numa perspectiva de forte regulação económica e financeira, e de influência crescente dos operadores privados.

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