Definições e importância do problema

Incapacidade intelectual (II) é definida como o conjunto de perturbações caracterizadas por um funcionamento intelectual global inferior à média. Engloba funções como o raciocínio, solução de problemas, planeamento, pensamento abstracto, julgamento, aprendizagem através do ensino e experiência adquirida e compreensão prática.

A tradução clínica destas dificuldades repercute-se na compreensão verbal, memória de trabalho, funções perceptivas, pensamento abstracto e desempenho intelectual. Acompanha-se de limitações do funcionamento adaptativo em, pelo menos, duas das seguintes áreas: comunicação, cuidados próprios, vida doméstica, competências sociais/interpessoais, utilização de recursos comunitários, autocontrolo, competências académicas funcionais, trabalho, lazer, saúde e segurança.

O funcionamento intelectual é tipicamente medido com testes individualmente administrados, psicometricamente válidos, adaptados à compreensão e cultura da criança/jovem. Em Portugal os mais utilizados nos centros de pediatria do neurodesenvolvimento, são o teste de Griffiths (0-8 anos) e a WISC (6-16 anos).

O início da II deve ocorrer antes dos 18 anos; apresenta múltiplas etiologias e corresponde à via final comum de vários processos patológicos que afectam o funcionamento do sistema nervoso central (SNC).

Segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-IV, a incapacidade intelectual integra os seguintes graus:

  • Ligeira: QI >50-55 <70
  • Moderada: QI >35-40 <50- 55
  • Grave: QI >20-25 <35-40
  • Profunda: QI <20-25
  • Deficiência Mental, gravidade não especificada

Mais recentemente, a versão V do referido documento – DSM-V, publicada em 2013, reflecte e aproxima-se conceptualmente da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde para crianças e jovens. Com efeito, os vários níveis de gravidade passaram a ser definidos com base no funcionamento adaptativo e não pelos valores de QI, já que é o funcionamento adaptativo que determina qual o suporte requerido. Por outro lado, as medições de QI no extremo inferior do intervalo dos valores de QI têm menor validade.

Quanto à prevalência, importa referir que cerca de 1-3% da população geral apresenta II, com variações em função da idade. É importante reconhecer que a grande maioria das crianças (85%) se situa no grupo de II ligeira, crianças consideradas “educáveis”, muitas vezes apenas com “dificuldades de aprendizagem”. A II moderada representa cerca de 10% das crianças, as quais são consideradas “treináveis” e com capacidade de integração comunitária. Apenas 1% dos casos de II se classificam como graves e detectados no primeiro ano de vida; apenas 6 por 1.000 correspondem a II profunda. O diagnóstico é efectuado em idades na razão inversa da gravidade: quanto mais grave, mais precocemente detectada; por tal motivo, muitos casos da forma ligeira são diagnosticados em idade pré-escolar ou escolar.

A melhoria dos cuidados de saúde (e do respectivo acesso) tem contribuído para diminuir a prevalência de tal patologia.

Mas, se por um lado o diagnóstico pré-natal e a intervenção precoce permitiram reduzir as consequências da síndroma de Down, da fenilcetonúria e do hipotiroidismo congénito, tem-se assistido a um aumento de casos devido a um aumento da prevalência da doença crónica e da sobrevivência de crianças de alto risco perinatal (relacionado designadamente com prematuridade extrema e muito baixo peso) e aumento de exposição pré-natal a drogas de abuso.

Constituindo a patologia do neurodesenvolvimento mais frequente, sobretudo no sexo masculino (M), verificam-se as relações M/F seguintes: de 2/1 no défice cognitivo ligeiro e de 1.5/1 no défice cognitivo grave.

Factores etiológicos

Como já referimos existem muitas causas de incapacidade intelectual, frequentemente em concomitância. A identificação da causa é muitas vezes inconclusiva, pelo que não é recomendada por rotina uma investigação exaustiva de todas as causas possíveis, mas sim uma investigação orientada pela clínica.

Os factores a ter em consideração para investigar um défice cognitivo são:

  • Gravidade do défice cognitivo (quanto mais grave for, maior a possibilidade de um diagnóstico etiológico).
  • História familiar ou semiologia sugestiva de perturbação específica.
  • O desejo dos pais de uma nova gravidez o que, por si só, justifica esforços acrescidos no esclarecimento etiológico.
  • Opinião dos pais: alguns estão mais interessados no tratamento e outros estão focados na etiologia, tendo dificuldade em iniciar a intervenção antes de conhecer o diagnóstico.

Na população com II Ligeira há frequentemente um envolvimento de componentes genéticos e ambientais (sócio-económicos, culturais, etc.) salientando-se que as causas específicas de

II ligeira/moderada são diagnosticáveis em menos de 30% dos casos.

Na população com II grave e profunda é mais provável a possibilidade de identificação de

causas orgânicas e, uma vez que o impacte na família pode ser determinante, devem ser desenvolvidos mais esforços no sentido de identificar uma possível etiologia; neste grupo as etiologias pré-natais são predominantes. As causas perinatais e pós-natais comparticipam apenas 10-25% dos casos nas formas mais graves de défice cognitivo. Exemplos de factores causais referentes ao período pré-natal incluem as anomalias cromossómicas e doenças genéticas com múltiplas anomalias congénitas major/minor, e causas não genéticas como a exposição a tóxicos (álcool ou drogas de abuso), infecções maternas (rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus), alterações estruturais do SNC (perturbações da migração neuronal, agenésia do corpo caloso, hidrocefalia). Exemplos de etiologia perinatal incluem o sofrimento fetal, hipóxia ou complicações da prematuridade. As causas de II pós-natal incluem as infecções do SNC, hipotiroidismo, má nutrição, trauma e exposição a toxinas (chumbo), etc.. Em geral, quanto mais precocemente ocorrer a noxa, mais graves as consequências como é o caso das perturbações que afectam a embriogénese precoce: anomalias cromossómicas (trissomia 21, X frágil), doenças hereditárias do metabolismo/perturbações neurodegenerativas (mucopolissacaridose) e anomalias do desenvolvimento do SNC (défice de migração neuronal, lisencefalia) (Parte XXXII).

 

Manifestações clínicas e diagnóstico

 

Excluindo as situações de dismorfia (síndroma genética, como por exemplo a trissomia 21 ou

microcefalia isolada), patologia já identificada ou situações de risco (como a prematuridade), a maior parte das crianças com II recorre ao pediatra ou médico de família por não cumprir as metas de desenvolvimento nas idades esperadas. Nalguns casos em que não há estigma físico que permita uma orientação etiológica, os pais podem sentir que algo está errado com a sua criança, cabendo ao pediatra e médico de família na sua vigilância regular de saúde infantil perceber se os desempenhos são próprios da idade cronológica. As perturbações do comportamento adaptativo são também frequentemente o sintoma revelador da II. O comportamento adaptativo refere-se à maneira como as crianças lidam com as necessidades da vida diária e ao grau de independência pessoal em relação ao esperado para um indivíduo do seu grupo etário. O médico deve inquirir e observar a criança em relação ao seu comportamento e desenvolvimento de forma a fazer uma detecção precoce e orientação adequada. Pode usar testes simples de rastreio (como o Denver II) ou questionários dirigidos aos pais. Entre os 6 e os 18 meses são mais frequentemente detectados problemas nas áreas motoras, hipotonia ou hipertonia, com atraso nas aquisição de competências como o sentar-se, gatinhar ou andar. Os problemas de linguagem e comportamentais, são queixas referidas, sobretudo, após os 18 meses. Algumas situações mais ligeiras, podem só ser detectadas com o início do infantário ou mesmo da escolaridade. Por outro lado, quanto mais grave for o défice cognitivo, mais precoce será o diagnóstico e maior a necessidade imediata de intervenção.

Assim, numa criança em que se verifique a suspeita de II (com ou sem orientação etiológica definida), deve ser programada uma avaliação completa do desenvolvimento por profissionais

especializados, idealmente numa equipa multidisciplinar. Esta avaliação não se limita apenas à realização de testes psicológicos individuais, que permitem a definição do QI e consequentemente a classificação nosológica, mas deve resultar na definição de um perfil funcional individual. É, pois, possível diagnosticar II em crianças com QI≥70 e ≤75 se existirem concomitantemente défices significativos no comportamento adaptativo. Inversamente, não será diagnosticada II em criança com QI≤70 se não coexistirem défices ou perturbações significativas do comportamento adaptativo. Naturalmente, os instrumentos de avaliação deverão ter em conta factores limitantes como por exemplo o nível sócio-cultural, língua materna e a associação de limitações nas áreas da comunicação, motora e sensorial.

 

Na maioria dos testes são avaliadas diferentes sub-áreas: motricidade grosseira, motricidade fina, socialização, autonomia pessoal e comunitária, a linguagem e a comunicação verbal e não verbal, a cognição verbal e não verbal, o comportamento e a atenção, etc..

É através de uma caracterização extensa e pormenorizada destes múltiplos desempenhos que é possível construir um perfil quanto ao desenvolvimento. Este perfil permite, não apenas confirmar o diagnóstico e avaliar a presença de co-morbilidades (de notar que pode haver II associada a défices específicos em determinadas áreas), mas conhecer as áreas “fortes e fracas” da criança, o que é imprescindível para a elaboração de um programa de intervenção adequado e eficaz.

A investigação etiológica inclui, geralmente estudos neuroimagiológicos (anomalias do SNC, doenças neurodegenerativas, anomalias de desenvolvimento do SNC), estudos cromossómicos (cromossomopatias), moleculares (X frágil) e metabólicos (mucopolissacaridoses, doenças do ciclo da ureia, outras doenças metabólicas). As crianças com II apresentam frequentemente problemas de visão, audição, emocionais e comportamentais associados. Se não forem atempada e adequadamente diagnosticados e tratados tais problemas associados potenciam adversamente a evolução destes casos.

Por outro lado, conhecer a etiologia do défice cognitivo pode ajudar a diagnosticar problemas associados na medida em são habituais em determinados casos: por exemplo na trissomia 21 é frequente a coexistência de hipotiroidismo, subluxação atlantoaxial e défices sensoriais; e na síndroma de X frágil e síndroma fetal-alcoólica são frequentes os problemas comportamentais.

O Quadro 1 refere-se a anomalias cromossómicas frequentemente associadas a II (três exemplos). (ver Parte III)

QUADRO 1 – Anomalias cromossómicas associadas a défice cognitivo

SÍNDROMA DO X FRÁGIL
Quadro clínico
    • Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial característica (QI:20-80; média ~50).
    • Macrocrânia, pavilhões auriculares proeminentes.
    • Hiperextensibilidade articular/hipotonia.
    • Macrorquidismo
    • Prolapso da válvula mitral.
    • Perturbação da comunicação
    • Hiperactividade

NB – Nas crianças pequenas os sinais dismórficos faciais poderão não ser evidentes; as orelhas salientes poderão ser a única característica mais exuberante.

SÍNDROMA DE TURNER (XO)
SÍNDROMA DE KLINEFELTER (XXY)

Intervenção 

Independentemente do maior ou menor sucesso na identificação da etiologia, a intervenção na II deve ser iniciada imediatamente uma vez feito o diagnóstico de II e definido o perfil de funcionalidade da criança.

Quando o diagnóstico é precoce, deve ser de imediato sinalizada para uma equipa em centro especializado e iniciar-se um programa de intervenção definido de acordo com as dificuldades e

potencialidades da criança. A intervenção deve ser feita no domicílio ou na instituição que a criança frequenta e ser sobretudo centrada no apoio indirecto aos pais, que deverão sempre ser considerados parceiros fundamentais na estimulação da criança.

De acordo com o modelo inclusivo que é actualmente defendido a nível mundial, as crianças devem ser integradas em estabelecimentos de ensino regular, com apoio de educação especial. Só este modelo de integração permite que elas desenvolvam um comportamento convencional e adaptativo, que é a chave para a sua aceitação na comunidade. O programa de intervenção deve ser reavaliado e reajustado periodicamente; por isso o pediatra do neurodesenvolvimento deve elaborar um plano de vigilância e seguimento, em colaboração com o pediatra geral ou médico de família, a equipa de técnicos, e os pais.

Um diagnóstico em tempo oportuno e uma intervenção, o mais precoce possível, poderão permitir minorar as dificuldades da criança ajudando-a a rendibilizar as suas potencialidades e a encontrar o seu lugar na comunidade. Em Portugal são fundamentais o Sistema Nacional de Intervenção Precoce (SNIPI), sustentado pelos DL 281/2009 e o DL 3/2008, os quais regulam o apoio às crianças com necessidades educativas especiais, numa perspectiva inclusiva.

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