Definições e importância do problema

A fala tem várias componentes e qualidades: a articulação, que está relacionada com o som produzido pelos movimentos das estruturas orais; a voz, ou fonação, que resulta da produção de som pela vibração das cordas vocais; a ressonância, que resulta da amplificação ou filtração do som emitido pela vibração das cordas vocais (cavidade oral e nasal); a fluência que se refere ao ritmo e fluxo apropriados da fala (um exemplo de disfluência é a gaguez); e a prosódia, que se refere à entoação, inflexão e cadência da fala.

A elevada prevalência de perturbações da linguagem e problemas de aprendizagem nas famílias de crianças com perturbações da linguagem condicionou a hipótese de etiopatogénese genética para os problemas evolutivos da linguagem.

Mais de metade das crianças com perturbações da comunicação apresenta problemas emocionais ou comportamentais. Alguns autores reportaram que cerca de dois terços de crianças recorrendo à consulta de pedopsiquiatria apresentavam problemas relacionados com linguagem.

Para compreender melhor a complexidade desta patologia é importante abordar a terminologia: linguagem é um sistema de representação simbólica usado para comunicar sentimentos, ideias e intenções; a fala é a expressão da linguagem na forma verbal pela emissão de sinais acústicos; os fonemas são as unidades de som na fala; a fonologia refere-se à forma como os sons se organizam para formar palavras; a semântica refere-se ao significado das palavras; a sintaxe refere-se à ordem por que as palavras são agrupadas para formar frases, segundo as regras gramaticais das diferentes línguas; a pragmática refere-se ao uso social e aplicação dos significados nos diferentes contextos, exigindo capacidade de antecipação e sensibilidade ao outro.

A linguagem é o veículo do pensamento. Sem linguagem é difícil comunicar ideias, pensamentos e emoções; e sem um pensamento estruturado é impossível transmitir verbalmente uma ideia ou pensamento de forma perceptível.

A comunicação e interacção estão presentes desde o início da vida extra-uterina, manifestando-se, sobretudo, a partir do final do primeiro mês, através da troca de sons, contacto físico e visual. A comunicação engloba linguagem nas suas componentes verbal, gestual e de código social, ultrapassando-a e tornando-a extensiva aos afectos e emoções. Os animais interagem e comunicam entre si; no entanto, a linguagem é uma competência única e característica da mente humana e uma das mais vulneráveis.

As perturbações da comunicação constituem os problemas de desenvolvimento mais frequentes na idade pré-escolar, com 7 a 10% das crianças funcionando abaixo da média. Três a 6% das crianças têm uma perturbação específica da linguagem, receptiva ou expressiva e maior risco de desenvolvimento posterior de dificuldades na leitura e escrita.

Diagnóstico

Há diversas abordagens e sistemas de classificação diferentes para as perturbações da linguagem e fala, variando de acordo com a formação profissional dos autores. As classificações ditas médicas tendem a centrar-se mais nas causas e as ditas linguísticas nos padrões de alteração obser- vados.

O diagnóstico diferencial destas perturbações é igualmente complexo uma vez que um amplo espectro de patologias pode resultar em disfunção do sistema neural e de estruturas periféricas, responsáveis pela percepção, processamento e produção da linguagem.

Assim, por exemplo, há que considerar os problemas relacionados com défice auditivo ou dificuldades de percepção / discriminação auditiva.

Torna-se, pois, fundamental que estas crianças tenham uma avaliação completa da audição.

É importante perceber se a perturbação corresponde apenas à área da linguagem e fala, se faz parte de uma perturbação mais generalizada, ou se está associada a perturbações neurológicas ou comportamentais. Com efeito, é frequente tratar-se duma primeira manifestação de uma deficiência mental, inserir-se num contexto de patologia do espectro do autismo, ou associar-se a patologias como a síndroma do X Frágil, a síndroma de Landau-Kleffner, ou ainda resultar de lesão cerebral (afasia adquirida).

Excluídas estas situações o clínico fica confrontado com perturbações específicas do desenvolvimento da linguagem que, segundo a classificação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition – DSM IV se designam por Perturbações da Comunicação e se dividem em grandes grupos: 1. Perturbação da Linguagem Expressiva; 2. Perturbação Mista da Linguagem Receptiva-Expressiva (mista); 3. Perturbação Fonológica (ou de articulação verbal); 4. Gaguez. É tradicional a distinção entre a disfunção da linguagem expressiva (que compromete a verbalização) e a perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva.

Reportando-nos às definições caberá reiterar que a linguagem expressiva engloba a capacidade de formar palavras com os sons (fonologia), de combinar palavras com um significado adequado (semântica), em frases gramaticalmente correctas (sintaxe), e que são apropriadas ao contexto social (pragmática).

Seguidamente são sintetizados aspectos relativos às principais perturbações da comunicação.

Perturbação da linguagem expressiva

As crianças com disfunção da linguagem expressiva podem evidenciar capacidade para um número limitado de palavras, vocabulário reduzido, dificuldades na aprendizagem de novas palavras e no acesso lexical, frases encurtadas, com estrutura gramatical simplificada, por vezes com perturbação da sintaxe. As crianças com perturbação do tipo evolutivo geralmente começam a falar tarde e progridem mais lentamente, embora seguindo as sequências normais de desenvolvimento. Nos casos menos frequentes de lesão adquirida (por patologia neurológica) a perturbação surge após um período de desenvolvimento normal. 
Problemas como a memorização e recrutamento de palavras podem prejudicar a fluência da linguagem; apesar de as crianças apresentarem um vocabulário adequado, têm dificuldade em encontrar as palavras exactas quando delas necessitam, utilizando definições substitutivas (circunlocução).

Esta perturbação está frequentemente associada a perturbação fonológica.

Perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva

As crianças com perturbação mista da linguagem receptiva-expressiva podem ter, para além das dificuldades já referidas de expressão verbal, dificuldade em seguir instruções, compreender explicações verbalizadas e interpretar o que leram. No entanto, habitualmente a expressão está mais afectada do que a compreensão, não alteração significativa da comunicação não verbal ou empatia, o que permite o diagnóstico diferencial com as per- turbações do espectro do autismo.

A perturbação mista também se associa frequentemente a perturbação fonológica ou a perturbações da aprendizagem. Pode também estar associada a perturbação de hiperactividade e défice de atenção, a perturbação da coordenação ou a enurese.

Perturbação fonológica

A perturbação fonológica, anteriormente designada por perturbação da articulação verbal, engloba, não apenas os problemas de coordenação das estruturas que produzem e modulam os sons, mas também os problemas de défice da consciência fonológica (noção dos fonemas e sua corres- pondente representação gráfica), que resultam mais tarde em dificuldade na aprendizagem da leitura e escrita (dislexia). Inclui alterações da fonação, articulação, ressonância e prosódia (ou seja, a leitura é lenta, sincopada sílaba a sílaba, ou com erros). Este tipo de perturbação pode estar presente em crianças com perturbação da coordenação motora, as quais apresentam também défices na motricidade fina e grosseira; pressupõe-se que a mesma não resulta de défice de ensino, de défice cognitivo, nem de factores socioculturais.

A gaguez inclui os problemas de disfluências, conforme é indicado nos critérios apresentados a seguir e surge, como a maioria das perturbações da linguagem, na idade pré-escolar, quando se dá o franco crescimento da linguagem. Nestas situações é fundamental um diagnóstico precoce e uma intervenção em tempo oportuno para que o problema não se torne persistente.

Gaguez

Trata-se de uma perturbação da fluência normal e da organização temporal normal da fala (inadequadas para a idade do sujeito), caracterizada por ocorrências frequentes de um ou mais dos seguintes fenómenos: repetições de sons e sílabas; prolongamentos de sons; interjeições; palavras fragmentadas; bloqueios audíveis ou silenciosos; circunlocuções; palavras produzidas com um excesso de tensão física; repetições de palavras monossilábicas.

A alteração na fluência interfere significativamente com o rendimento escolar ou laboral ou com a comunicação social.

Se coexistirem défice motor da fala ou défice sensorial, o problema tem maior relevância.

Diagnóstico diferencial

No diagnóstico diferencial tem sido sublinhada a importância, não só dos estádios da linguagem, mas também das competências sociais da criança no desenvolvimento da linguagem.

A ausência, atraso ou desadequação destas competências pré-verbais ou pré-linguísticas (mostrar e imitar), apontam para a possibilidade de autismo.

Apesar de nem todas as crianças com dificuldades de aprendizagem apresentarem perturbações da linguagem, uma elevada proporção de crianças com perturbações específicas de linguagem apresentam dificuldades de aprendizagem, particularmente na leitura e escrita.

As perturbações adquiridas da comunicação podem ser secundárias a lesões focais, lesões associadas a convulsões (Landau-Kleffner), lesões associadas a tumores, infecção ou radiação, e traumatismo crânio-encefálico.

Por sua vez, as crianças expostas no período pré-natal a cocaína ou outras drogas de abuso podem apresentar perturbações da linguagem. Tal se verifica também em crianças com baixo peso de nascimento, prematuridade, restrição de crescimento intrauterino, ou reduzido perímetro cefálico.

Intervenção e prognóstico

Como foi referido, o diagnóstico das perturbações da comunicação não é fácil e exige um grande conhecimento sobre a patologia do desenvolvimento, para permitir a exclusão de outros diagnósticos e a avaliação das perturbações associadas.

Cabe ao pediatra e aos clínicos gerais, médicos assistentes de crianças e adolescentes, fazerem a detecção o mais precoce possível destas situações. Testes de rastreio como o Denver II ou o ELM (Early Language Milestones) são simples e podem ser usados pelos clínicos na consulta de saúde infantil. É importante estar atento ao cumprimento dos marcos de desenvolvimento e aos sinais de alarme não adiando uma avaliação mais pormenorizada ou o envio à consulta de desenvolvimento quando estes surgem.

A ausência do palrar aos 10 meses, do uso de palavras isoladas aos 18 meses ou de frases aos 24 meses, ou a presença de padrões atípicos de linguagem com ecolália e discurso ininteligível aos 4 anos, obrigam a um pronto encaminhamento para centro especializado. A noção que durante muito tempo perdurou, de que a criança “iria libertar-se quando entrasse para o infantário” tem-se mostrado muito prejudicial e deverá ser abandonada. A criança deve ser avaliada por uma equipa multidisciplinar que inclua terapeuta da fala para uma avaliação completa da linguagem. Esta avaliação pretende esclarecer o diagnóstico diferencial, avaliar comorbilidade, e competências cognitivas, e excluir problemas médicos associados. Quando for justificado pode ser necessário proceder a avaliação por neurologista ou otorrinolaringologista, sendo em todos os casos recomendada uma avaliação formal da audição. Deve ser, em suma, planeada uma intervenção adequada às dificuldades de cada criança, que abranja as perturbações associadas, um plano de seguimento e reavaliações periódicas.

O prognóstico será dependente das dificuldades encontradas, da patologia associada e da resposta à intervenção. No entanto, não se deve esquecer que a chave para um sucesso nas crianças com perturbações da linguagem reside na detecção precoce dos problemas, no diagnós- tico preciso e na aplicação de intervenções apropriadas.

GLOSSÁRIO

Para as definições de agnosia, disartria, dislexia, afasia e síndroma de Landau-Kleffner sugere-se a consulta do Glossário Geral no início de cada volume.

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