Introdução

Ao longo do seu desenvolvimento, a maioria das crianças adquire de forma natural uma linguagem oral. A linguagem é adquirida de forma espontânea, sem que seja necessário que os pais e adultos envolvam a criança em planos e actividades específicas para a aprendizagem da linguagem. A expectativa geral é a de que, entre o nascimento e os cinco anos de idade, a criança adquira a linguagem oral (oralidade) de maneira natural e fácil, evoluindo pelos diferentes estádios, começando primeiro por compreender e emitir sons, monossílabos, depois palavras isoladas, pseudopalavras e palavra etiqueta; mais tarde combinações simples de duas e três palavras e, por fim, frases completas e narrativas significativas decorrentes da vida da criança. De facto, a maioria das crianças cresce aprendendo naturalmente a linguagem dos seus pais e pares, e este processo faz parte do seu desenvolvimento e crescimento normais.

Definição e importância do problema

Clarificando conceitos, a comunicação é o processo pelo qual os indivíduos trocam informação e transmitem ideias, ou seja, e de acordo com Chomsky, a linguagem é o veículo do pensamento. Consiste na transmissão de informação entre um emissor e um interlocutor, que descodifica e interpreta uma determinada mensagem. Neste processo podem ser utilizados sinais, gestos e linguagem oral, sendo esta última a principal forma de comunicação entre os seres humanos. Por vezes processos para-linguísticos como a entoação, ritmo do discurso ou não linguísticos, como o gesto, a atitude corporal ou a expressão facial, podem expressar atitudes, sentimentos e emoções do emissor, complementando a informação linguística. A linguagem é um código socialmente partilhado, que expressa ideias através de símbolos, e que é usado para comunicar e pensar. É pautada por um sistema de regras que subjazem aos sons (fonologia), às palavras (morfologia), às frases (sintaxe), ao seu significado (semântica) e ao seu uso (pragmática). A fala, que envolve uma coordenação neuromuscular extremamente precisa da motricidade oro-facial, é constituída pela produção verbal, o que inclui um componente fisiológico, isto é, a capacidade de articulação verbal, e um componente linguístico, que abrange um sistema fonológico da língua.

As perturbações da comunicação constituem o problema de neurodesenvolvimento mais frequente em idade pré-escolar, com uma prevalência da perturbação específica da linguagem de cerca de 7%. Este grupo de crianças apresenta maior risco de desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem da leitura e escrita, condicionando desempenho escolar inferior ao dos pares.

Diagnóstico

As perturbações da comunicação, nomeadamente os atrasos de linguagem, constituem um motivo frequente para a consulta de pediatria do neurodesenvolvimento. Com efeito, um atraso na aquisição de linguagem pode ser o primeiro sinal (a ponta do iceberg) de que algo não está bem no que respeita ao desenvolvimento da criança. Ao avaliar uma criança com perturbação de comunicação em consulta de pediatria do neurodesenvolvimento é necessário efectuar, em primeiro lugar, uma avaliação das suas competências e comportamento, uma vez que esta perturbação pode ocorrer isoladamente ou constituir epifenómeno de outras patologias do neurodesenvolvimento, de que são exemplo o atraso global do desenvolvimento ou a incapacidade intelectual, a perturbação do espectro do autismo; as causa ecossistémicas e ambientais – fraca estimulação da criança ou défice de interacção social – podem estar na génese deste tipo de perturbação. É também importante excluir causas neurológicas, anatómicas (anomalias da anatomia oro-facial ou velo-facial, como por exemplo a fenda palatina) e sensoriais, como os défices auditivos e défices visuais graves.

Podemos falar de um atraso de linguagem quando uma criança apresenta competências linguísticas inferiores comparativamente ao desempenho dos seus pares. De uma forma geral, considera-se adequado aos 24 meses apresentar um léxico superior a 50 palavras e construir frases de duas palavras, com 65% do discurso inteligível por estranhos. Aos 3 anos deverá construir frases com três palavras e ter uma inteligibilidade do discurso de 80%. Aos 4 anos a criança já deverá falar bem, com domínio da sintaxe, com um discurso fluido, adequado e perfeitamente inteligível.

Para um desenvolvimento normal da linguagem, em primeiro lugar a criança necessita de interagir com os pais, idealmente num ambiente afectivo, calmo e estimulante. Em segundo lugar, as crianças necessitam de ouvir um amplo leque de palavras. Em terceiro lugar, necessitam de utilizar processos neurológicos e cognitivos que lhes permitam retirar sentido dos sons, e aprender as regras de combinação de sons, palavras e frases. Finalmente, necessitam de desenvolver a motricidade oro-facial e aparelho respiratório para produzir um discurso fluido.

Na idade pré-escolar é importante ter em atenção diversos tipos de atrasos de linguagem. De modo sucinto, pode afirmar-se que nos casos de atraso homogéneo nos vários domínios da linguagem, dum modo geral o prognóstico é bom; por outro lado, nas crianças com perturbações específicas da linguagem, com possibilidade de alterações de um ou vários domínios da linguagem, o prognóstico é mais reservado pela maior dificuldade na resolução, o que poderá ter implicações na aprendizagem escolar futura. Quanto mais componentes da linguagem forem afectados e quanto maior o défice, maior será a probabilidade de a criança apresentar dificuldades de aprendizagem, designadamente na leitura e escrita.

As perturbações da linguagem, se não forem atempadamente diagnosticadas e tratadas, podem afectar outras áreas de funcionamento, e, nomeadamente, levarem a perturbações da aprendizagem, fraca auto-estima e alterações na socialização.

Intervenção

Perante uma suspeita por parte da família, do médico assistente, ou da escola, de uma perturbação da comunicação, a criança deve ser referenciada para uma consulta de pediatria do neurodesenvolvimento, a fim ser avaliada e orientada o mais precocemente possível, tendo como base a importância do diagnóstico diferencial. Na consulta de pediatria do neurodesenvolvimento será efectuada uma avaliação global, afim de esclarecer se estamos perante um problema de linguagem, de uma perturbação do espectro do autismo, de um atraso global do desenvolvimento, de uma incapacidade intelectual, ou de um défice auditivo.

A avaliação da linguagem, efectuada por um terapeuta da fala, engloba uma entrevista com os pais e com a criança, na qual se pretende recolher informação alargada que permita precisar quais as dificuldades de linguagem, compreender como cada elemento da família as vivencia e, dessa forma, estabelecer um diagnóstico ao nível do desenvolvimento linguístico. Segue-se uma avaliação da criança, se possível, em sessão separada dos pais, onde são aplicados testes padronizados que permitem identificar e descrever aspectos formais (semântica, pragmática, morfologia, sintaxe e fonologia) da linguagem da criança.

Tratando-se de uma criança pequena, com atraso na aquisição da linguagem, o primeiro foco de acção é criar um ambiente estimulante e adequado à aprendizagem da linguagem em contexto. Assim, poderá ser sugerido para os atrasos de linguagem, uma integração em jardim de infância e programa de intervenção precoce com a família, criança e educadora. O Sistema Nacional de Intervenção Precoce para a Infância (SNIPI – DL nº 281 de 2009) preconiza uma rede nacional de educadores com formação específica na área do neurodesenvolvimento da criança que poderá apoiar e ensinar às famílias destas crianças estratégias de estimulação da linguagem em contexto. Os pais deverão ser incentivados a adquirir hábitos de conversação com a criança, de forma pausada e correcta, articulando bem as palavras; tal atitude contribuirá para incrementar o léxico dos seus filhos através de jogos e outras actividades lúdicas, criando oportunidades acrescidas para a criança comunicar.

Caso este apoio seja insuficiente poderá ser desencadeado apoio de terapia da fala, a qual deverá ser personalizada, tendo em consideração as dificuldades específicas da criança. A intervenção da terapia da fala é mais eficaz se for iniciada precocemente, resultando melhor nas situações menos graves e sem co-morbilidades.

A terapia da fala inclui vários objectivos. Quando as alterações se verificam ao nível da linguagem procura-se trabalhar no sentido de expandir o vocabulário (léxico), melhorar a compreensão do significado das palavras (semântica), melhorar a sintaxe utilizando frases gramaticalmente correctas, expandindo frases, e procurando adequar o uso social da linguagem (pragmática). Quando as dificuldades se relacionam com o nível da produção da fala, procura-se trabalhar a aquisição de um discurso mais inteligível e trabalhar mais a musculatura oro-facial.

A referida terapia pode incluir sessões individuais, em grupo ou integradas na sala de aula. Nas sessões individuais, trabalham-se os aspectos formais da linguagem através de actividades e jogos adequados a cada criança. Nas sessões de grupo incluem-se várias crianças com objectivos de linguagem semelhantes; o terapeuta da fala medeia, só ou em conjunto com outro terapeuta, um grupo. Através de várias actividades, como jogos, expressão plástica, dramática, música, etc., procura-se que a criança ou o adolescente trabalhe a sua linguagem, tome consciência das suas dificuldades, das suas competências e, desta forma, melhore o seu desempenho linguístico. As sessões integradas em sala de aula incluem a orientação do professor da sala, de forma a facilitar a utilização da linguagem pela criança, em ambiente académico.

Nas crianças com perturbações da comunicação muito graves, são incluídos na terapia métodos alternativos ou aumentativos de comunicação, como linguagem gestual, uso de imagens e apoio de programas informáticos. O objectivo final é a aquisição de uma linguagem oral (oralidade). O uso precoce de gestos e imagens pode ajudar a criança a estabelecer uma comunicação funcional e a compreender o significado simbólico das palavras, diminuindo a sua frustração e promovendo a comunicação e socialização. Não está provado cientificamente que a utilização de gestos ou imagens interfira com o desenvolvimento da oralidade se a criança tiver capacidade para falar. Pelo contrário, vários autores defendem que o uso de métodos alternativos/aumentativos acelera a aprendizagem da linguagem; tais métodos têm ainda a vantagem de reduzir a frustração dos pais e das crianças que não conseguem comunicar as suas necessidades mais básicas.

Outro aspecto importante na terapia da fala diz respeito às indicações e orientação de actividades sugeridas aos pais pelo terapeuta de forma a que estes possam trabalhar com os seus filhos e estimular o desenvolvimento da linguagem em contexto familiar.

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