Importância do problema

A aprendizagem, uma das características fundamentais da espécie humana, processa-se ao longo de toda a vida, inclusivé pré-natal. Definida sucintamente como aquisição de conhecimentos, o seu âmbito é muito mais lato, pois o respectivo processo implica a recepção de estímulos endógenos e exógenos que são integrados, armazenados, adaptados e aplicados ulteriormente. Toda esta dinâmica depende, quer dos estímulos, quer das competências da pessoa, as quais variam com a maturação/evolução ou involução. Diversos factores intervêm na aprendizagem: 1) extrínsecos; como exemplos citam-se o ambiente e espaço físico da escola com características diversas de funcionamento e arquitecturais, a família, etc.; e 2) intrínsecos; citam-se como exemplos as competências em relação ao neurodesenvolvimento (essencialmente, motores, sensoriais, perceptivas, de linguagem/comunicação, cognitiva, e afectivas como ansiedade, auto-estima, irritação, etc..

Para avaliar o neurodesenvolvimento de uma criança em idade escolar importa considerar as seguintes áreas: atenção, memória, linguagem, organização temporal-sequencial, organização espacial, capacidade neuromotora, cognição social e funções superiores da cognição. De referir que não existem duas crianças com modos iguais de funcionamento (Ver adiante Avaliação).

O baixo desempenho numa ou mais destas áreas pode estar associado a problemas de aprendizagem culminando no insucesso escolar, em dificuldades comportamentais, de adaptação e de integração social.

A prevalência dos problemas de aprendizagem varia de país para país, o que se pode explicar pela inexistência de critérios consensuais quanto a definição e classificação.

Estima-se que cerca de 15% das crianças em idade escolar apresentam dificuldades de aprendizagem relacionáveis com perturbações do neurodesenvolvimento; todavia, a actual prevalência pode ser ainda mais elevada se forem consideradas certas disfunções ligeiras e auto-limitadas. O sexo masculino parece ser mais afectado (2/1 a 4/1).

Uma variante que traduza uma área fraca (como um problema na área da linguagem expressiva) corresponde a uma disfunção. Se tal disfunção interferir com a aquisição de uma determinada competência (como a escrita), gera-se uma incapacidade e, se esta for particularmente impeditiva de originar produtividade e gratificação, pode gerar-se um quadro de deficiência.

Mas as variantes podem também incluir áreas de raro talento e força; e, ao descrever o perfil funcional de uma criança, é importante tomar em consideração as áreas fortes que constituem os seus recursos para fazer face às próprias dificuldades (por exemplo a criatividade, a capacidade de organização ou a capacidade de resolução de problemas não-verbais).

Etiopatogénese

Para a compreensão dos problemas relacionados com o défice de aprendizagem com implicações práticas no tipo de intervenção a planear, cabe referir os principais factores etiológicos:

  • Défice cognitivo ou atraso global do desenvolvimento;
  • Alterações sensoriais (por exemplo, défice auditivo ou visual);
  • Doença motora (por exemplo, paralisia cerebral ou defeitos do tubo neural);
  • Perturbações da comunicação e da linguagem;
  • Problemas comportamentais e afectivos (por exemplo, ansiedade, inibição, défice de atenção);
  • Problemas em áreas específicas como a leitura, a escrita/ortografia, matemática, etc.;
  • Doença crónica (em relação essencialmente com efeitos acessórios de medicamentos, e absentismo, hospitalizações ou actos médicos repetidos em ambulatório).

Áreas-chave para a avaliação do insucesso escolar

Analisam-se seguidamente as áreas consideradas chave para avaliação da aprendizagem e do insucesso escolar.

Atenção

A disfunção da atenção constitui o problema de neurodesenvolvimento mais frequente em crianças, com um largo impacte no desempenho escolar diário.

Memória

Existem fundamentalmente dois tipos de memória importantes para o bom desempenho académico: a de curta duração e a de longa duração.

Muitas crianças apresentam dificuldades na memória de curta duração, nomeadamente na memória de trabalho. Esta consiste na capacidade de manter em mente, todas as diferentes componentes de uma tarefa, como por exemplo durante a resolução de um problema de matemática.

A memória de trabalho permite, por exemplo, que, após a memorização de um número, o utilizemos imediatamente (como por exemplo um número de telefone), e a memorização do início de um parágrafo ao chegar ao seu termo.

Assim, as crianças com perturbações da memória de trabalho têm dificuldade em efectuar cálculos de matemática ou em memorizar ou reproduzir o que leram.

Quando tentam escrever experimentam uma sobrecarga exagerada que se traduz, nomeadamente, em ilegibilidade, pontuação incorrecta, deficiente soletração, etc..

Outras crianças têm dificuldade em consolidar a informação na memória de longa duração.

Este problema pode ter consequências graves no que diz respeito à escrita, que necessita de memorização de curta e longa duração quanto a soletração, formação das letras, pontuação, factos, ideias, vocabulário, para dar alguns exemplos.

Os progressos académicos desenvolvem a memória ao criar estratégias compensadoras (mnemónicas, técnicas facilitadoras do registo e de consolidação de dados em múltiplas categorias pré-existentes de conhecimento), para visualizarem o que se ouviu ou verbalizarem o que se viu, preparando e facilitando o seu armazenamento na mesma.

Linguagem

A linguagem é o veículo do pensamento e muitas capacidades da mente e pensamento humanos são organizadas e transmitidas através da linguagem.

As crianças linguisticamente (ou verbalmente) competentes representam um grupo de sucesso escolar, porque todas as capacidades académicas convergem para a linguagem verbalizada, e muito do que aprendem é codificado em linguagem escrita.

Há muitas formas de disfunção da linguagem: algumas crianças têm problemas com a fonologia, apreciação e manipulação dos diferentes sons da linguagem, outras na discriminação e associação de sons; mais recentemente foram descritos problemas na memorização de fonemas (sons da linguagem), grafemas (combinações específicas de letras) e palavras (consciência fonológica), apontados como a causa mais comum de problemas de leitura e escrita. Estas crianças têm dificuldade em descodificar palavras durante a leitura e a codificá-las durante a soletração. Para muitas delas é difícil reter sons na memória, decompor palavras nos respectivos sons, e reutilizar estes para descodificar novos vocábulos.

A semântica pode constituir outra dificuldade: repertório rígido e limitado do significado das palavras e difícil aquisição de vocabulário novo, importante em fases académicas mais diferenciadas em que a linguagem tecnológica é fundamental para a compreensão de diferentes matérias.

Outros problemas da linguagem são a compreensão e utilização da sintaxe (ordenação de palavras), a limitada compreensão das regras linguísticas (metalinguística), a utilização de linguagem abstracta, a linguagem simbólica (metáforas, analogias) na formação de conceitos abstractos, e o domínio de uma segunda língua.

A falta de aquisição de um determinado nível de sofisticação da linguagem condiciona o insucesso académico e está frequentemente associada a dificuldades de comportamento adaptativo.

Organização espacial

Grande parte dos dados referentes ao espaço são adquiridos através de sensações propriocinéticas e de concepção abstracta, não verbal: o tamanho, posição, forma, constância da forma (independentemente da sua posição no espaço), as relações entre os corpos, são alguns dos pilares da organização visual-espacial. É evidente a repercussão que as perturbações nesta área podem ter, por exemplo, na aprendizagem da leitura e escrita.

As crianças com este tipo de disfunção evidenciam dificuldades de discriminação direita-esquerda a que se associam frequentemente dificuldades de coordenação motora fina e coordenação motora global (crianças desajeitadas).

Organização temporal-sequencial

A incapacidade de soletração, narrativa e sequenciação (do maior para o menor e vice-versa) pode ter consequências a diferentes níveis e áreas académicas como a escrita, matemática, tempo, hierarquização de tarefas por prioridades, ou limitação de tempos para a sua execução.

Função neuromotora

As competências motoras da criança podem ter um papel significativo num largo repertório de actividades.

Ao aspecto motor da escrita denomina-se função grafo-motora, que assenta numa boa coordenação motora fina, embora distinta desta; efectivamente, há crianças com bom desempenho na área da coordenação motora fina e que apresentam um mau funcionamento na escrita.

A escrita exige uma rápida e precisa coordenação grafo-motora e a disfunção desta pode condicionar perturbações importantes do desempenho académico.

Desenvolvimento cognitivo superior

Sob esta designação incluem-se a capacidade de abstracção (da qual depende a aquisição de conceitos), a solução de problemas, o pensamento crítico, a metacognição, várias formas de raciocínio, o reconhecimento de regras e a sua aplicação.

A variabilidade no funcionamento de cada criança determina que a aquisição de novos conceitos dependa de conceitos pré-existentes e, ao longo da maturação destes, do desenvolvimento da capacidade de destrinça e relação entre uma ideia e um conceito. Infelizmente muitas crianças adquirindo poucos conceitos, na maior parte das vezes por deficiente estruturação do meio (famílias com elevado grau de iliteracia, condições socio-económicas pouco propícias à troca de informação e interacção e ao consequente desenvolvimento cognitivo) apresentarão naturalmente maiores dificuldades nas aprendizagens escolares.

A capacidade de resolver problemas é fundamental para todos os conteúdos e actividades escolares. As crianças com esta capacidade bem desenvolvida mostram a sua criatividade na selecção e monitorização das várias técnicas possíveis para a solução de um problema, diferentes ideias e valores, permeabilizando-as à mudança, inovação ou diferença, fundamentais ao respeito para com os seus pares e a sociedade em geral, permitindo-lhe flexibilizar ideias, regras e atitudes.

Uma vez que todas as áreas referidas apresentam diferente expressividade na mesma criança, sucesso académico pressupõe que as mais fortes compensam e equilibram as mais fracas.

Intervenção

Durante muito tempo a Pediatria avaliou o desenvolvimento psicomotor e cognitivo das crianças em idade pré-escolar, monitorizando a progressão nas áreas motora, cognitiva, adaptativa, linguística e social, com vista ao diagnóstico e orientação dos problemas de desenvolvimento.

Mas o desenvolvimento infantil não termina aos 5 anos de idade e a diminuição de prevalência de outro tipo de patologia permitiu ao pediatra estar mais disponível para outras áreas como as dificuldades de aprendizagem, comportamento de desadaptação, desajustamento social, comportamental e perturbação da atenção, potencialmente responsáveis pelo insucesso escolar.

O diagnóstico e proposta terapêutica do insucesso escolar exigem uma equipa multidisciplinar que inclui o médico-pediatra, o psicólogo clínico e educacional, o pedopsiquiatra, o neuropediatra, o médico de família, entre outros.

A observação inclui a aplicação de determinados testes designados PEEP, PEER, PEEX 2, e PEERAMID 2, através dos quais se observa e avalia directamente funções chave nas áreas do neurodesenvolvimento como a atenção, linguagem e capacidades motoras. Com os referidos testes será possível obter o perfil funcional da criança (força e dificuldades nas diversas áreas académicas) como base para intervenção psico-educacional.

As formas de apoiar e atenuar estes problemas compreendem os seguintes passos:

  • Desmistificação;
  • Utilizar estratégias de acomodação (dar mais tempo, simplificando explicações e orientações, reduzindo a carga académica nas áreas de menor desempenho, apresentando a informação de forma mais atractiva;
  • Terapias específicas: terapia da fala, ocupacional e comportamental. Modificação dos currícula e conteúdos programáticos escolares e respectiva adequação às reais capacidades da criança (plano educativo individual);
  • Fortalecimento das áreas “fortes” como compensação das “fracas”, condicionando um reforço da auto-estima;
  • Medicação adaptada a cada caso e reajustada em avaliações periódicas.

A ideia de aprendizagem activa, por contraposição à passiva apontada por autores como Piaget, revolucionou a metodologia de ensino; aplicando tal estratégia, a criança condicionada à exploração e descoberta, constrói o seu próprio conhecimento. O papel do professor ou educador seria o de facilitador da aprendizagem, encorajando a criança a questionar, especular e experimentar, fomentando o espírito crítico relativamente à informação.

De acordo com Piaget é a criança que condiciona todo o processo de aquisição do conhecimento; o professor fomenta situações que desafiam a criança a pôr questões, a formular hipóteses e a descobrir novos conceitos.

Vygotsky ultrapassou as ideias de Piaget atribuindo papel igualmente relevante à interacção social e à comunicação e linguagem. Para ele a aprendizagem é conseguida através da cooperação com um largo repertório de interlocutores sociais – pares, professores, pais e outros intervenientes – bem como através dos símbolos representativos da cultura da criança, como a arte, linguagem, jogo, canções, metáforas e modelos.

A teoria de Vygotsky assenta essencialmente no papel dos processos interpessoais e no papel da sociedade em que se enquadra a criança.

Prevenção

A prevenção dos problemas de aprendizagem em geral, e do insucesso escolar em especial, implica entre outras medidas melhoria dos cuidados primários e das condições, socioeconómicas, prevenção da prematuridade extrema e detecção precoce das alterações do desenvolvimento. Trata-se duma tarefa difícil para a qual todos os profissionais de saúde, e em especial o pediatra e o médico de família, devem estar sensibilizados.

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