Conceitos básicos

Na maioria dos casos as doenças genéticas e as anomalias congénitas resultam da interacção entre factores genéticos, comportamentos e estilos de vida das pessoas, e factores ambientais. As doenças genéticas com estas características são denominadas multifactoriais ou poligénicas.

Neste contexto, surgiu uma nova área do conhecimento – a Epigenética – traduzindo a interface entre a genética e os factores ambientais. Com base em dados experimentais, determinados genes (epialelos) sensíveis a influências ambientais (por ex. dieta), sofrem alterações moleculares (por ex. metilação do ADN sem alterar a respectiva sequência nucleotídica) (ver adiante).

Ao contrário das doenças mendelianas, que são doenças raras, as doenças multifactoriais são em geral frequentes, mais evidentes com a idade e encontram-se em quase todos os doentes. Estas últimas, integrando patologias cuja etiologia tem uma componente genética com interacção com factores ambientais e comportamentos, manifestam-se pela agregação familar de casos ou pela evolução clínica com características similares à de outros familiares.

Alguns genes não causam a doença por si só, mas influenciam, com outros genes a predisposição genética ou susceptibilidade individual, que contribui para causar ou manifestar clinicamente a doença. Os factores etiológicos das doenças multifactoriais, de causa genética ou ambiental, designam-se por carga genética (liability). O modelo multifactorial pressupõe que esta “carga” tem uma distribuição normal na população, que é responsável por uma grande variabilidade dos fenótipos.

É maior nos familiares dos indivíduos afectados, o que vai aumentar o risco de recorrência de acordo com a proximidade familiar.

Outro pressuposto deste modelo é o de limiar (threshold), ou seja, a doença manifesta-se quando é ultrapassado um determinado gradiente, e o fenótipo tem uma expressão clínica tanto mais grave em termos clínicos, quanto mais esse limiar for superado. Quando a carga genética não ultrapassa o limiar, a doença não se expressa em termos clínicos.

O sexo do indivíduo, a proximidade de parentesco e a existência de vários casos na família, são algumas das variáveis que influenciam o limiar, o que pode aumentar ou diminuir o risco de manifestação da doença.

A contribuição dos factores genéticos para as doenças multifactoriais resulta do efeito combinado de genes múltiplos, em locus diferentes. A contribuição individual de cada gene para a predisposição poderá ser muito reduzida. Designa-se por hereditabilidade (hereditability) a proporção da variação fenotípica que pode ser atribuída aos factores genéticos, e é determinada por estudos populacionais ou em indivíduos com características particulares como gémeos ou adoptados. A hereditabilidade varia entre 1, quando a variação depende exclusivamente da acção dos genes, e 0 se depende apenas de factores ambientais. No pé boto estima-se ser 0,8, na estatura de 0,8 e na inteligência entre 0,5 a 0,8.

O estudo com gémeos monozigóticos e dizigóticos que partilham a totalidade ou metade do material genético tem grande utilidade. A concordância ou não da doença em vários contextos, como a separação ao nascer, que não pode ser explicada por transmissão mendeliana, permite obter indicações relevantes sobre a contribuição genética para doenças ou características contínuas, de que são exemplos a altura ou a inteligência. Os estudos com indivíduos adoptados permitem igualmente obter dados importantes, em condições metodológicas rigorosas.

A componente genética que resulta da interacção de genes não se traduz por critérios compatíveis com a transmissão mendeliana, e não tem manifestação cromossómica. Têm sido identificados em doenças multifactoriais alguns genes, como é o caso do cancro, mas não explicam apenas por si a etiologia da doença. O conceito de oligogenia refere-se às situações em que um locus tem um efeito predominante no fenótipo, ainda que necessite da colaboração de outros genes para que a doença se expresse.

Os factores ambientais implicados na origem destas doenças são variados, o que decorre de os indíviduos viverem numa interacção permanente com outros indivíduos e com o ambiente físico envolvente e terem comportamentos, atitudes e crenças que influenciam a saúde e a doença. Aspectos como o comportamento alimentar, o sedentarismo ou a prática regular de exercício físico, os valores e a vivência espiritual, a capacidade de interagir socialmente, têm sido referidos como variáveis relevantes para a etiologia e a evolução clínica de algumas destas doenças.

Reportando-nos ao conceito atrás citado – Epigenética – traduzindo a interface entre a genética e os factores ambientais e, portanto, a sensibilidade de determinados genes (epialelos) a influências ambientais, os referidos genes poderão (“funcionar ou não”, isto é, estar “on ou off ”), o que se repercute na função de órgãos e tecidos do organismo. Isto é, os factores ambientais podem influenciar a expressão do ADN sem alterar a respectiva sequência dos nucleótidos (fala-se hoje em “plasticidade” do ADN).

Em síntese, poderemos considerar que as principais características do modelo multifactorial para explicar a etiologia das doenças complexas embora frequentes, com contribuição de factores genéticos para a etiologia, são as seguintes:

  • Todos os genes têm um efeito no fenótipo, com importância variável;
  • O efeito dos genes é aditivo ou sinérgico;
  • Os genes individualmente não exprimem dominância ou recessividade;
  • O efeito da “carga genética” exprime-se a partir de um limiar;
  • A variação dos fenótipos tem uma distribuição normal.

Epidemiologia

Não existe uma definição consensual sobre “doença comum” embora, de acordo com Harper em 2004, possa corresponder às patologias com expressão clínica cuja frequência seja superior a 1 em cada 1.000. Porém, Portugal adoptou o critério para definir doença rara utilizado pela União Europeia de 1 em cada 2.000, o que poderá ser tido em conta por exclusão. Ao nascer, cerca de 70% das doenças genéticas têm uma etiologia multifactorial, em comparação com 2,4% para as doenças mendelianas e 0,4% para as cromossómicas. De acordo com Baird et al, no Canadá, a frequência destas patologias é de 46,4 por 1.000 indivíduos com idade inferior a 25 anos.

Relativamente às anomalias congénitas, estima-se que sejam responsáveis, pelo menos, por 50% dos casos. Nalgumas doenças multifactoriais a incidência varia de acordo com o género, como é o caso da estenose do piloro, que é 5 vezes mais frequente no sexo masculino. As anomalias do tubo neural, pelo contrário, são mais frequentes no sexo feminino. Na doença arterial coronária, sabe-se que é mais frequente nos homens, e ao considerar a origem étnica, mais frequente em indivíduos com origem africana do que em caucasianos ou asiáticos.

Com recurso a tecnologias recentes como os estudos GWAS (genome-wide association studies), foi avaliada a influência do sexo na frequência de doenças comuns como a hipertensão arterial, a diabetes tipos I e II e a artrite reumatóide, entre outras.

Foram encontradas associações específicas entre doença arterial coronária e o género masculino, e entre doença de Crohn e o feminino. Estas tecnologias inovadoras poderão trazer novos contributos ao conhecimento das doenças multifactoriais. Relativamente a algumas doenças que foram inicialmente consideradas multifactoriais, comprovou-se mais tarde terem outra etiologia. É o caso da úlcera péptica antes da descoberta de um agente infeccioso, o Helicobacter pylori, que se associa à etiologia desta doença.

Nem sempre é possível distinguir entre o que é genético ou herdado pelo facto de os indivíduos partilharem condições de vida, cultura e valores, e estarem incorporados na vida quotidiana das comunidades. Um exemplo clássico é o Kuru, uma variante da doença de Creutzfeldt-Jakob identificada em nativos da Nova Guiné, cuja etiologia não foi compreendida inicialmente; mais tarde foi relacionda com canibalismo ritual, o que explicava a distribuição e as características dos indivíduos afectados.

Predisposição

A associação entre a doença e factores genéticos pode manifestar-se em diferentes contextos e tem suscitado um redobrado interesse. Uma das formas mais bem conhecidas e mais estudadas é a associação entre algumas doenças com componente imunológico e os antigénios HLA, cujo locus se encontra no cromossoma 6. Entre outros exemplos, destacam-se as associações entre o HLA B27 e a espondilite anquilosante, o DR4 e a artrite reumatoide e o DR2 na narcolepsia.

Ainda não são conhecidos os mecanismos implicados na associação, mas deve ter-se em conta que a simples presença do marcador HLA não significa que o indivíduo venha a manifestar a doença.

Nos últimos anos, na sequência do Projecto do Genoma Humano e das tecnologias de estudo molecular que foram desenvolvidas, foram identificadas diversas associações entre genes e marcadores para doenças comuns. Muitos destes trabalhos não foram posteriormente confirmados por outros autores em populações diversas, o que releva questões de ordem metodológica, incluindo o tipo de estudos, a definição de caso ou a homogeneidade dos fenótipos. Novas tecnologias como a GWAS e instrumentos bioestatísticos complexos, têm permitido reapreciar os resultados de estudos anteriores e reavaliar o interesse científico de algumas conclusões.

Uma patologia muito estudada é a doença de Alzheimer, doença muito complexa cuja natureza genética não está totalmente esclarecida. Os casos com manifestação precoce correspondem a mutações dominantes, mas a sua frequência é rara, enquanto os casos com manifestação tardia poderão explicar-se pela presença de variantes genéticas com uma frequência elevada, mas com baixa penetrância.

Num estudo de meta-análise foram identificados 20 polimorfismos em 13 genes relacionados com esta patologia, com um OR para o risco entre 1,1 e 1,38, e com um efeito protector entre 0,92 e 0,67 (Beltram et al), o que sugere não terem utilidade clínica. As toxidependências, incluindo a estupefacientes e álcool, são patologias complexas de outra natureza, mas cada vez é mais evidente o contributo de factores genéticos para a sua etiologia.

Vários estudos mostram a associação de variantes genéticas com significado estatístico. A influência da variação genética na adição poderá verificar-se a vários níveis do processo comportamental, das vias metabólicas e da biodistribuição dos produtos.

No caso do cancro da mama, a predisposição tem características diferentes, com a identificação de dois genes o BRCA1 e BRCA2. O risco relativo de cancro da mama nas mulheres com mutações no BRCA1 é superior ao das que as têm no BRCA2, mas em ambos, é maior do que se não forem identificadas mutações. O risco para cancro da mama numa mulher ao longo do seu ciclo de vida, se tiver uma mutação nestes genes, é de 50 a 80%, 5 a 8 vezes superior em relação às restantes mulheres. Em 40% das mulheres com mutação no BRCA1 e 20% no BRCA2 é diagnosticado cancro do ovário, o que constitui um risco significativo face ao da população em geral.

Mas encontra-se uma mutação nestes genes em apenas metade dos casos familiares. Estão identificados outros genes de predisposição para o cancro da mama, mas raramente são identificadas mutações. Estes dados contribuem para o entendimento de que existem diferentes mecanismos envolvidos na etiologia desta forma de cancro, envolvendo factores genéticos e ambientais.

Outra área de investigação tem a ver com a circunstância de a predisposição poder ter implicações para os trabalhadores expostos a situações de risco no local de trabalho. Alguns estudos indiciam correlações entre polimorfismos e o risco profissional, mas ainda se torna necessário mais investigação para se obter prova científica. O interesse desta linha de investigação é interessante na perspectiva da segurança dos postos de trabalho.

Em termos moleculares, a predisposição é complexa e ainda muito mal compreendida pela interferência de inúmeros processos que se interligam. Alguns modelos computacionais com aplicações gráficas avançadas apontam para provável predisposição, mas actualmente ainda sem conduzirem a um esclarecimento cabal. Com efeito, a predisposição não pode ser explicada por simples mutação ou polimorfismo dos genes, havendo que contar com factores biológicos como o número de cópias (copy number variation – CNV), variações epistáticas (epistatic interactions), efeitos modificadores e epigenéticos e outras interacções mal conhecidas com o ambiente.

Risco

Nas doenças multifactoriais, o risco empírico representa a probabilidade de ocorrer uma doença genética particular na população. Esse risco obtém-se, em grande parte, a partir dos resultados encontrados em estudos epidemiológicos de base populacional em condições quase naturais.

O risco empírico tem grande importância para o aconselhamento genético e reprodutivo, por exemplo, quando um casal já tem um filho afectado ou um dos progenitores é portador de uma doença genética.

O risco empírico da ocorrência de uma doença multifactorial depende de vários factores, nomeadamente:

  • Frequência da doença na população;
  • Grau de parentesco com a pessoa afectada (maior risco nos parentes em primeiro grau);
  • Número de familiares afectados;
  • Gravidade clínica do caso índex;
  • Sexo da pessoa afectada.

Os resultados de estudos efectuados em populações e em períodos temporais diferentes mostraram variações na estimativa do risco, o que deve ser tomado em consideração pelo médico. Para além das diferenças genéticas eventualmente existentes entre populações, questões metodológicas como a “definição de caso”, a nomenclatura e a classificação das doenças ao longo do tempo devem ser ponderadas.

Alguns exemplos práticos da utilização do risco empírico de recorrência no aconselhamento genético em situações comuns, são:

  • Lábio leporino e fenda palatina: risco global de 4% numa futura gestação se o casal tiver um filho afectado e de 10% se tiver dois afectados, na condição de nenhum dos progenitores ter doença; risco de 2,2% para a primeira gestação se um dos progenitores tiver a doença;
  • Comunicação interventricular: 3,5% se o casal tiver um filho afectado e os pais forem saudáveis; 3-5% se um dos progenitores tiver a cardiopatia;
  • Luxação congénita da anca: risco global de 6%, mas variando entre 1% para o sexo masculino e 11% para o feminino; se um dos progenitores for afectado, o risco de recorrência é 12%.

Prevenção

Quando são conhecidos os factores ambientais associados com a etiologia de uma doença genética, a estratégia de prevenção passa pelo afastamento de factores nefastos, pela suplementação, ou pela modificação dos comportamentos e estilos de vida. Um exemplo que demonstra a possibilidade de se intervir na prevenção das doenças multifactoriais corresponde à descoberta da relação entre o ácido fólico e as anomalias do tubo neural. Nas famílias de risco, a suplementação com ácido fólico no período pré-concepcional e pré-natal reduziu a incidência destas anomalias de forma significativa.

Actualmente, a suplementação em ácido fólico no período pré concepcional e pré-natal faz parte das recomendações de vigilância de saúde durante a gravidez para todas as grávidas em Portugal, existindo campanhas a nível internacional para que seja possível generalizar a suplementação de todas as mulheres.

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