LEUCOMALÁCIA PERIVENTRICULAR

Definição e importância do problema

A leucomalácia periventricular (LPV) é uma forma de lesão estrutural da substância branca, em geral associada a HIPV da matriz germinal; tal designação foi usada pela primeira vez em 1962 por Banker e Larroche.

Malácia significa “amolecimento ou dissolução”. Tratando-se de tal fenómeno localizado na substância branca na zona periventricular (surgindo cerca de duas semanas após actuação da noxa), fala-se em leucomalácia periventricular. De salientar que o dito fenómeno de malácia, noutro contexto etiopatogénico poderá verificar-se noutras zonas da sustância branca: tratar-se-á de leucomalácia com outra localização.

Trata-se dum problema neurológico grave verificado predominantemente no RN pré-termo, integrando diversas entidades clinicopatológicas.

A incidência é tanto maior quanto menor a idade gestacional, o que se relaciona com o grau de vulnerabilidade da estrutura da substância branca e a data da agressão dos factores lesivos (intrauterinos e/ou pós-natais). O risco é maior nos casos de HIPV grave ou ventriculomegália.

Segundo a descrição clássica, como resultado de isquémia cerebral, são verificadas zonas bilaterais de necrose na área da substância branca periventricular, disrupção de axónios, inflamação, activação glial e lesão dos pré-oligodendrócitos conduzindo a sequelas em grau variável.

A lesão da substância branca tem sido também observada em situações com componentes de infecção e inflamação, tais como hipóxia ou hipotensão pós-natal, enterocolite necrosante, prematuridade tardia ou nascimento de termo e status pós-reparação cirúrgica de cardiopatia congénita.

De acordo com estudos realizados em diversos centros especializados em populações de crianças ex-RN com peso de nascimento inferior a 1.000 gramas, tem sido apurada incidência de LPV entre 3% e 5%.

Etiopatogénese

A compreensão da etiopatogénese da LPV tem evoluído ao longo do tempo, admitindo-se a comparticipação de eventos intrauterinos e pós-natais.

Realça-se uma complexa interacção entre determinados factores: o desenvolvimento da vasculatura cerebral, a regulação do débito sanguíneo cerebral (ambos dependendo da idade gestacional), o estado de maior ou menor vulnerabilidade (dependente do grau de maturação) dos precursores dos oligodendrócitos ou pré-oligodendrócitos, fundamentais para a mielinização, e os processos de infecção e inflamação materno-fetal.

Relativamente aos pré-oligodendrócitos (considerado factor major), importa referir que, quanto maior a sua maturação, maior a resistência à toxicidade do glutamato e dos radicais livres, gerados em abundância em caso de isquémia-reperfusão.

Acontece o contrário (maior vulnerabilidade) com os pré-oligodendrócitos imaturos. Trata-se, pois, de células extremamente vulneráveis à agressão por radicais livres.

A prematuridade constitui um importante factor predisponente de LPV.

No RN pré-termo, com imaturidade estrutural, são as áreas da substância branca as mais vulneráveis e susceptíveis a isquémia-reperfusão: pequenas zonas entre a confluência ou anastomose de dois sistemas de drenagem sanguínea em continuidade (zonas “fronteira”).

Tais áreas de perfusão inadequada, subsidiárias das artérias medulares profundas, localizam-se na substância branca a alguns milímetros da parede ventricular (localização periventricular). Sendo afectados os axónios que atravessam as referidas “zonas fronteira”, de tal interrupção anatomofuncional resultará diplegia espástica, a sequela ou perturbação motora típica do RN pré-termo.

Se as lesões da substância branca forem mais extensas, poderão ser afectados os axónios que se estendem até aos membros superiores e face. As ramificações ópticas e acústicas também podem ser atingidas.

Por outro lado, no RN pré-termo o córtex cerebral é mais poupado aos efeitos da isquémia-reperfusão porque possui abundante vascularização dependente das artérias leptomeníngeas.

No RN de termo a área de maior vulnerabilidade é o córtex cerebral, podendo então surgir outro tipo de leucomalácia – chamada leucomalácia subcortical, situação pouco abordada na literatura.

Para além da prematuridade per se, menciona-se o papel de outros factores que, por sua vez, podem estar associados a prematuridade:

    • instabilidade hemodinâmica, com oscilações da pressão arterial e variações do débito sanguíneo cerebral no contexto de patologia diversa característica do RN pré-termo (dificuldade respiratória, infecção sistémica, manuseamento intempestivo, episódios de apneia, hipoglicémia, oscilações da temperatura corporal, etc.).
    • débito sanguíneo cerebral influenciado por variações da pressão de CO2 e de O2. A hipercápnia induz vasodilatação cerebral, e a hipocápnia provoca vasoconstrição com consequente diminuição do débito sanguíneo cerebral. Por sua vez, a hipóxia induz vasodilatação, e a hiperóxia leva a constrição dos pequenos vasos. Estes efeitos são mediados provavelmente através dum efeito local do pH da parede vascular.
    • deficiência do mecanismo de autorregulação circulatória (mecanismo pelo qual se mantém débito cerebral constante apesar das variações da pressão arterial sistémica) no RN pré-termo, recordando-se que o débito cerebral é regulado por variações no calibre das arteríolas intracerebrais.
    • infecção e inflamação, o que tem sido demonstrado pela associação entre infecção materna, ruptura prolongada de membranas, níveis elevados de IL-6 no sangue do cordão e incidência mais elevada de LPV; com efeito, a chamada síndroma de resposta inflamatória fetal (SRIF) é actualmente considerada como a causa major de morbilidade e mortalidade no feto/RN. E, em determinadas situações específicas, tal mecanismo é responsável por quadros clínicos simile sépsis.

Como consequência da isquémia-reperfusão e dos eventos referidos ao nível da substância branca periventricular, surge o quadro morfológico de leucomalácia, a forma mais característica de necrose axonal e glial na substância branca no RN pré-termo.

Segundo Volpe, a maior probabilidade de surgimento de LPV no contexto de hemorragia intraperiventricular (HIPV) pode relacionar-se com o aumento da concentração local de Ferro derivado da hemorragia.

A LPV constitui uma patologia sempre bilateral, com localização mais habitual na região do corpo do ventrículo lateral e do corno frontal, ao nível do buraco de Monro e do corno occipital. Pode ser difusa ou focal.

A LPV focal é classicamente descrita como áreas macroscópicas de necrose, as quais inicialmente são identificadas como lesões ecodensas na área periventricular, com ou sem sangue nos ventrículos. Algumas semanas depois, estas áreas ecodensas evoluem para áreas quísticas, quadro morfológico que traduz a chamada LPV quística, uma minoria entre as LPV (< 5% em RNMBP). A gliose cicatricial contribui, por sua vez, para a redução do volume das cavidades, podendo seguir-se microcalcificações secundárias.

A LPV difusa, na era moderna mais frequentemente explicada por maturação anormal dos neurónios e da glia do que por necrose, está associada a perda de pré-oligodendrócitos; tal facto conduz a hipomielinização e diminuição do volume da substância branca por retracção cicatricial, e à dilatação ventricular por mecanismo ex-vacuo.

No âmbito da avaliação imagiológica desta patologia está indicada a ressonância magnética (RM), tendo em conta as limitações da ecografia. (ver adiante)

Manifestações clínicas

Inicialmente, as manifestações clínicas podem ser inespecíficas. De facto, as mesmas correspondem a sequelas dos eventos descritos anteriormente: fundamentalmente, diplegia espástica (típica da LPV), alterações da motricidade fina, alterações da esfera cognitiva, problemas de memorização e atenção e, nalgumas crianças, insuficiência mental.

Para avaliação do prognóstico, torna-se necessário proceder a exame neurológico rigoroso e seriado durante o período de internamento hospitalar e após a alta.

A probabilidade de doença motora futura depende, entre outros factores, da localização e do tipo das lesões encontradas nos estudos imagiológicos.

Exames complementares

Na prática clínica corrente assume particular importância, como complemento do exame neurológico seriado, a ecografia transfontanelar (também realizada de modo seriado).

Os sinais ecográficos mais característicos de LPV são: hiperecogenicidade periventricular seguida de sinais de quistos porencefálicos (sinal do “queijo suíço”); numa fase mais tardia e nas formas mais graves passam a ser notórios sinais de atrofia cortical com alargamento dos ventrículos (Figuras 1, 2 e 3).

FIGURA 1. Aspecto ecográfico de leucomalácia não quística ao nível dos cornos frontais. Corte coronal e parassagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Leucomalácia periventricular (LPV) quística e alargamento do sistema ventricular por mecanismo ex vacuo. Corte coronal posterior. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Leucomalácia quística posterior.Corte coronal. (UCIN-HDE)

Em estudos de correlação clínico-patológica, a sensibilidade da ecografia transfontanelar é cerca de 70%, o que equivale a dizer que existe fraca capacidade discriminativa para a detecção de pequenas áreas de necrose.

Assim, outros exames de imagem evidenciando maior sensibilidade, poderão estar indicados em função do contexto clínico (RM, TAC, Eco-doppler, Espectroscopia próxima dos infravermelhos, etc.).

A RM é um método mais rigoroso identificar todas as formas de LPV, quer no lactente, quer na criança mais velha, designadamente nos casos em que há antecedentes de prematuridade e quadro de alterações cognitivas, sensoriais e ou motoras. Em função do contexto clínico poderá estar indicado o EEG.

Tratamento e prevenção

Na fase actual dos conhecimentos não existem medicações nem medidas para o tratamento específico da LPV durante o período neonatal. Nesta perspectiva, todos os esforços deverão ser dirigidos essencialmente para a prevenção da isquémia-reperfusão e da HIPV, atendendo aos factores de risco e etiopatogénese.

Assim, torna-se fundamental garantir uma perfusão cerebral normal e estável através de procedimentos e atitudes no âmbito do internamento em UCIN: monitorização da pressão arterial (evitando variações bruscas deste parâmetro),* volémia, oxigenação e ventilação com especial atenção para a hipocápnia e hipóxia, manuseamento mínimo do RN, evicção da infecção materno-fetal, antibioticoterapia atempada para tratamento da infecção materno-fetal e neonatal, etc.. Resultados da investigação experimental apontam para a utilização de antagonistas dos radicais livres, de agentes anticitocinas e antiglutamato.

*Existe controvérsia acerca dos procedimentos para manter pressão arterial normal no pré-termo, pois, de acordo com o que foi referido na alínea Etiopatogénese, face às características de disfunção do mecanismo de autorregulação cerebral no RN pré-termo, pressão arterial normal não significa necessariamente perfusão cerebral normal, o que constitui uma dificuldade para o clínico.

Prognóstico e seguimento

A LPV constitui a principal causa de disfunção cognitiva, comportamental, motora e sensorial em crianças nascidas com idade gestacional < 32 semanas. Nas formas mais graves poderá desenvolver-se epilepsia.

Como resultado da LPV, verifica-se incidência aproximada de paralisia cerebral ~10%, e de dificuldades escolares ~35%-50%, sendo que estes resultados traduzem, segundo alguns estudos, associação de HIPV e LPV. As sequelas são tanto mais frequentes quanto menor a idade gestacional.

A diplegia espástica constitui a sequela mais frequentemente associada a patologia do SNC em RN pré-termo, dado que a lesão na substância branca se localiza em geral na zona vizinha ou justaposta aos ventrículos. Se as lesões se localizarem mais perifericamente, poderão ser afectados os axónios de que dependem a face, os membros superiores e a visão (neste último caso, se a localização for dorsolateral ou contígua aos cornos occipitais).

Como se pode depreender, os casos de LPV, muitas vezes associados a outros problemas no contexto de ex-RN pré-termo, deverão ser seguidos pelo médico assistente, por sua vez, em ligação a uma equipa multidisciplinar no âmbito de um centro de desenvolvimento.

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ENFARTE CEREBRAL

Definição e aspectos epidemiológicos

Define-se enfarte cerebral como uma área de lesão do tecido cerebral confirmada por neuroimagem ou por exame anátomo-patológico, ocorrendo entre as 20 semanas gestacionais e os 28 dias de vida pós-natal. Tal lesão pode ser resultante de dois mecanismos:

  1. interrupção do fluxo sanguíneo numa artéria cerebral maior por trombose ou embolia (enfarte isquémico arterial perinatal), mais frequentemente; ou
  2. trombose duma veia cerebral maior (trombose do seio venoso cerebral) levando geralmente a enfarte hemorrágico; como regra, o enfarte hemorrágico é tipicamente venoso, localizado na zona periventricular, e habitualmente secundário a congestão venosa por hemorragia periventricular.

De salientar as seguintes associações mais frequentes:

  • o enfarte parassagital bilateral, a EHI;
  • o enfarte bilateral, a hipoglicémia; e
  • o enfarte multifocal, a infecções bacterianas ou víricas.

Etiopatogénese

Na maior parte dos casos o enfarte isquémico arterial perinatal resulta de êmbolo a partir da placenta que, atravessando o foramen ovale, atinge a aorta e os ramos da artéria carótida comum esquerda; o território mais afectado é o que corresponde à artéria cerebral média esquerda.

O enfarte parenquimatoso no contexto de trombose do seio venoso cerebral é secundário a drenagem venosa interrompida, não tendo, portanto, distribuição arterial. É em geral devido a compressão do seio sagital e a má posição cefálica e do pescoço.

São descritos os seguintes factores de risco de enfarte isquémico arterial perinatal e de trombose do seio venoso cerebral:

  • protrombóticos (explicando cerca de 40%-80% da patologia em análise), tais como: aumento da lipoproteína (a) e outras dislipoproteinémias, policitémia, mutação G1691 do factor V de Leiden, mutação G20210A do factor II, anticorpos antifosfolípidos adquiridos, défice das proteínas S e C, níveis elevados de homocisteína, etc.;
  • maternos, tais como: doenças autoimunes, pré-eclâmpsia, HTA, diabetes gestacional, consumo de cocaína, etc.;
  • fetoplacentares, tais como descolamento prematuro da placenta, infecção e hemorragia fetomaterna, gemelaridade, etc.;
  • tipo de parto, em geral, parto complicado com intervenção instrumental, etc.;
  • neonatais, em geral relacionados com hipoglicémia, desidratação, meningite, sépsis, tratamento com ECMO, etc..

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de enfarte isquémico arterial perinatal, constando de episódios de apneia e cianose, convulsões, hipotonia e irritabilidade, surgem em cerca de 90% dos casos antes dos primeiros três dias.

A trombose do seio venoso cerebral apresenta-se em cerca de 50% dos casos nos primeiros 2 dias de vida, e em 25% durante a primeira semana. As convulsões surgem como manifestação mais frequente, associada às da patologia de base anteriormente descrita.

Exames complementares

Para além dos exames laboratoriais gerais com base na história clínica e nos factores etiopatogénicos descritos, estão indicados os seguintes exames complementares:

  • rastreio protrombótico: incluindo, nos primeiros dias de vida, do foro genético – mutação do factor V Leiden, variante termolábil MTHFR e mutação protrombina G20210A; no seguimento em consulta (3-6 meses) – antitrombina III, proteína C e S, resistência à antitrombina, fibrinogénio, factor VIII, factor XII, inibidor do activador do plasminogénio, homocisteína, lipoproteína (a), anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina, e antibeta-2 glicoproteína I.

NB: estes exames devem ser realizados na mãe igualmente;

  • de imagem: ecografia transfontanelar (com baixa sensibilidade e especificidade), TAC-CE (confirmando enfarte isquémico e trombose sinovenosa, e excluindo hemorragia, também com sensibilidade e especificidade baixas), e RM (este último de 1ª linha, sendo preditivo de sequelas a longo prazo);
  • EEG: para além da recomendação de monitorização por vídeo-EEG convencional, está também indicada a realização de EEG integrado por amplitude (aEEG), este último, com interesse na avaliação do prognóstico motor em casos de lesão isquémica.

Tratamento

Citam-se como fundamentais as seguintes medidas:

  • normalização da glicémia e da temperatura, ventilação/oxigenação adequadas, manutenção da normovolémia e da normopressão arterial, e tratamento das convulsões e da febre; e
  • terapêutica anticoagulante com heparina não fraccionada ou de baixo peso molecular

→ nos casos de enfarte arterial isquémico;
→ nos casos de trombose sinovenosa sem hemorragia intracerebral e quando há
→ extensão da trombose; a trombólise não é recomendada.

Prognóstico

Globalmente, podem ser verificadas sequelas diversas (défices motores, cognitivos (associados sobretudo a hemiplegia e convulsões), da linguagem, da visão, e epilepsia.

Em cerca de 50% dos casos de crianças com enfarte da artéria cerebral média desenvolve-se hemiplegia.

Os sinais clínicos poderão não ser detectados durante vários meses, sendo que os resultados da exploração neurológica neonatal não são preditivos dos resultados tardios.

Na trombose sinovenosa, a taxa de mortalidade pode atingir os 10%-20%. A taxa de epilepsia oscila entre 15% e 40% e a de paralisia cerebral entre 6% e 7%.

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HEMORRAGIAS INTRACRANIANAS

Introdução

As hemorragias intracranianas no RN compreendem classicamente as seguintes entidades clínicas:

  1. Hemorragia cerebelosa;
  2. Hemorragia intraparenquimatosa;
  3. Hemorragia intraperiventricular (HIPV);
  4. Hemorragia subaracnoideia;
  5. Hemorragia subdural.

No capítulo sobre Traumatismos de Parto foi feita referência sucinta às hemorragias subdural e subaracnoideia, entidades associadas a lesões traumáticas.

Relativamente à hemorragia subdural, rara e própria do RN de termo, é importante referir que:

  • – quanto à evolução, estão descritas: – formas rapidamente letais; e formas mais benignas;
  • – quanto à localização: – formas infratentoriais ou da fossa posterior; e – formas localizadas à convexidade cerebral.

Quanto à hemorragia subaracnoideia, a mesma pode surgir associada a alterações circulatórias em RN pré-termo sem antecedentes de traumatismo de parto.

Tal como na hemorragia subdural, quando abundante, pode também ser rapidamente fatal, descrevendo-se como manifestações típicas as convulsões.

Neste capítulo, dando ênfase à hemorragia intraperiventricular (HIPV), abordam-se também as hemorragias cerebelosa e parenquimatosa.

1. HEMORRAGIA CEREBELOSA

Definição e importância do problema

Trata-se de hemorragia de localização intracerebelosa, incluindo ambos os hemisférios e o vermis. As lesões mais pequenas podem localizar-se sob a pia-máter ou sob o epêndimo. Nos RN de termo, a hemorragia inicia-se no vermis. É mais frequente em RN pré-termo com < 32 semanas de idade gestacional (em cerca de 15%-25% da totalidade das referidas hemorragias).

Etiopatogénese

No que se refere à etiopatogénese, multifactorial, cumpre referir o papel importante do trauma relacionado com o parto no contexto de aplicação de fórceps, apresentação de nádegas e asfixia perinatal.

Manifestações clínicas

As manifestações são geralmente subtis, sendo que, nos casos mais graves, poderão iniciar-se entre o 1º dia e as 2-3 semanas de vida. Surgindo no pós-parto imediato em casos de prematuridade, a lesão é fatal.

Como sinais clínicos mais representativos apontam-se os derivados da compressão do tronco cerebral (apneia, dificuldade respiratória, bradicárdia) e da obstrução do LCR (com hipertensão da fontanela, disjunção das suturas e dilatação ventricular). Outros sinais possíveis são: estrabismo, parésia facial, extensão tónica intermitente das extremidades, opistótono e tetraparésia.

Exames complementares

Perante a suspeita clínica face aos antecedentes perinatais, importa proceder a ecografia transfontanelar, ou transasterion, havendo disjunção das suturas.

A TAC-CE tem indicação com o fundamento de avaliar a extensão e distribuição da lesão. A RM deve estar reservada para os casos em que a TAC não permite esclarecer o diagnóstico.

2. HEMORRAGIA PARENQUIMATOSA

Este tipo de hemorragias intracranianas, surgindo geralmente em RN de termo, tem um prognóstico mau pelo risco elevado: – de sequelas várias; – de mortalidade rondando os 25%; e – de associação a alta incidência de paralisia cerebral (~10%).

Como particularidade, importa referir que em cerca de 30% dos casos há antecedentes de cesariana electiva ou de partos sem complicações, sobretudo em nulíparas.

Generalidades sobre o tratamento das hemorragias intracranianas (exceptuando HIPV)

Não existem critérios uniformes quanto ao tratamento.

→ No que respeita aos hematomas da fossa posterior, os resultados são semelhantes apenas com vigilância ou com tratamento médico. A intervenção neurocirúrgica está indicada perante deterioração neurológica ou sinais de compromisso do tronco cerebral.

→ Quanto às hemorragias supratentoriais, está indicada a cirurgia se as dimensões do hematoma forem importantes e se surgirem sinais de hipertensão intracraniana.

→ Nas situações de hematoma subdural evoluindo para a cronicidade, a fim de evitar desproporção craniofacial ou hipertensão intracraniana, está indicada a realização de punções subdurais; se estas não conduzirem à regressão, procede-se a intervenção neurocirúrgica.

3. HEMORRAGIA INTRAPERIVENTRICULAR (HIPV)

Definição e importância do problema

A chamada hemorragia intraventricular (HIV) é uma situação clínica típica nos RN pré-termo, caracterizada por processo hemorrágico localizado na área cerebral da matriz germinal, contígua com o ventrículo lateral em localização lateral-ventral.

Quando se verifica ruptura do epêndimo, a hemorragia, inicialmente periventricular, estende-se ao ventrículo – que pode sofrer dilatação – passando a chamar-se intraperiventricular (HIPV).

Há duas décadas verificava-se uma incidência de 30% em RN pré-termo de peso inferior a 1.500 gramas; com os progressos na assistência perinatal tem-se assistido a diminuição da mesma (na actualidade, em países industrializados e com recursos de terapia intensiva, cerca 12% a 15% em RN com < 32 semanas gestacionais).

Salienta-se, a propósito, que a incidência global abrangendo as diversas formas de hemorragia intracraniana neonatal (subdural, epidural, subaracnoideia, parenquimatosa e da matriz germinativa/intraventricular) varia entre 2% e > 30% em função da idade gestacional.

Como resultado de tal patologia poderão surgir sequelas neurológicas graves.

Aspectos do desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC)

Para a compreensão da problemática relacionada com a HIPV, é importante abordar de modo sucinto alguns aspectos do desenvolvimento do SNC, sugerindo-se a leitura complementar de textos relativos à anatomofisiologia respectiva, e do capítulo seguinte.

 O desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) no decurso dos primeiros meses de gestação é caracterizado fundamentalmente por um processo de multiplicação e migração celulares: na sequência dum primeiro período de histogénese, na segunda metade da gravidez verifica-se marcado crescimento e diferenciação celulares, com continuidade após o nascimento.

A proliferação glial e neuronal é rápida nos primeiros meses, ocorrendo preferencialmente na zona ventricular do neuroepitélio primitivo. As células gliais radiárias estendem-se ao longo da parede ventricular até à pia-máter, servindo de guia a todos os neurónios jovens que vão surgir na zona germinativa ventricular. Todos estes eventos têm influência no número, diferenciação, e disposição da glia: qualquer noxa que actue nesta fase poderá originar alterações da migração, organização do tecido neuronal, e mielinização.

A partir da zona ventricular, uma primeira geração de neurónios em franca proliferação celular migra para a parte externa do tubo neural para formar a placa subcortical ou “sub placa”. Esta camada de células é em seguida atravessada por neurónios jovens que, em vagas sucessivas, vão formar, de dentro para fora, a placa cortical ou o futuro córtex. A migração celular termina por volta das 20-24 semanas, ficando então o capital neuronal fixado definitivamente.

A matriz germinativa é uma região transitória muito vascularizada, involuindo a partir das 34 semanas; praticamente desaparecida no termo da gestação, cabe salientar que os respectivos vasos, com características peculiares (grandes e irregulares, não exibindo características de arteríolas ou vénulas e constituídos basicamente por endotélio e membrana basal frágil), são muito vulneráveis a diversas noxas. A matriz germinativa, confinando com o ventrículo lateral, é um local de mitoses e proliferação celular, com produção de células gliais e de oligodendrócitos, os quais produzem mais tarde a mielina; a matriz germinativa produz igualmente astrócitos, que migram para a superfície externa do córtex.

A placa subcortical é uma estrutura transitória cujos neurónios, migrando, vão constituir o córtex; tais células, diferenciando-se, contribuem igualmente para a formação de receptores, de neurotransmissores e de factores de crescimento. A actividade destes neurónios processa-se a partir das 15 semanas de gestação, mantendo-se até cerca das 22-34 semanas; mediante processo de apoptose que, entretanto, se inicia e se processa até aos 6 meses de vida pós-natal, torna-se progressivamente nítido o desenvolvimento de conexões e de estruturas definitivas.

A formação dos sulcos acompanha a formação do córtex. O aspecto deste é liso cerca das 20 semanas, acelerando-se o seu crescimento no último trimestre; as etapas de formação dos sulcos são bem precisas, permitindo uma relação sequencial com a idade gestacional.

Os primeiros vasos sanguíneos provenientes da rede meníngea são alimentados por três grandes artérias cerebrais; têm um trajecto perpendicular à superfície na sua “penetração” e progressão para as camadas profundas. De salientar que a proliferação da árvore vascular é particularmente activa durante a fase de proliferação neuronal, sendo a maturação morfológica dos capilares muito precoce e muito rápida.

A mielinização constitui um fenómeno essencial para a velocidade de condução do influxo nervoso; o conjunto dos axónios mielinizados, formando um tecido branco nacarado, constitui a chamada substância branca.

Etiopatogénese e factores de risco

A HIPV, cuja etiopatogénese é multifactorial e envolve aspectos controversos, sem unanimidade entre os especialistas e investigadores, origina-se na zona da matriz germinal subependimária, zona muito vascularizada a partir da qual se geram neuroblastos e glioblastos. A mesma sofre processo de involução a partir das 34 semanas; ou seja, tal zona germinal tem tanto maior dimensão quanto menor a idade gestacional.

Os vasos capilares da referida matriz são constituídos por estrutura indiferenciada: endotélio e membrana basal frágil com escassez de tecidos de suporte envolvente e muito dependentes do metabolismo oxidante; tal fragilidade estrutural predispõe à ruptura e hemorragia por acção de determinados factores determinantes, mecânicos e hipóxico-isquémicos (factores vasculares).

Para além dos factores vasculares, são descritos outros factores determinantes (intravasculares e extravasculares).

Os factores extravasculares são constituídos pelo deficiente suporte tecidual envolvente e pela actividade fibrinolítica aumentada.

Os factores intravasculares podem ser sistematizados do seguinte modo:

  • hipotensão arterial com consequente hipoxémia e isquémia, seguidas de reperfusão;
  • alterações da coagulação e das plaquetas nem sempre explicadas (trombocitopénia, disfunção plaquetar), podendo originar obstrução paulatina de ramos das artérias cerebrais, já no terceiro trimestre da gravidez;
  • pressão venosa aumentada por dificuldade do retorno venoso, determinando congestão excessiva ao nível da zona germinal (associada a situações clínicas na transição fetal para a vida extrauterina, tais como trabalho de parto laborioso por via vaginal e a dificuldade respiratória, etc.);
  • débito cerebral aumentado e situações clínicas como hipertensão arterial de etiopatogénese diversa, hipercápnia e aumento da pressão arterial de CO2, hipervolémia, diminuição do hematócrito (a diminuição de 1 mmol/L de Hb contribui para incremento de 12% do débito cerebral), hipoglicémia, etc.;
  • instabilidade hemodinâmica com flutuações da pressão arterial e do débito cerebral (por exemplo em casos de ventilação mecânica assíncrona com os movimentos respiratórios do RN, susceptível de ser revertida por acção de agentes paralisantes musculares), manuseamento intempestivo do RN, convulsões, pneumotórax, aspiração traqueal em RN ventilados, canal arterial permeável, FiO2 elevada, etc..

Os mecanismos de lesão cerebral associados a HIPV podem ser assim sintetizados:

  1. congestão venosa e isquémia periventricular;
  2. destruição da matriz (com consequente destruição dos precursores da glia, formação quística e repercussão no desenvolvimento futuro por lesão cerebral);
  3. necrose hemorrágica na substância branca periventricular (unilateralmente) por obstrução do retorno venoso por sangue coagulado.
    De salientar que tal necrose/lesão da substância branca:
    • não resulta da extensão da hemorragia ventricular para o parênquima;
    • é distinta da leucomalácia periventricular – LPV (lesão simétrica bilateral, não hemorrágica, relacionável com perturbação circulatória arterial), abordada adiante, em capítulo próprio.*

*A LPV é uma forma de lesão da substância branca, frequentemente associada a HIPV na zona da matriz germinal, e cujo mecanismo exacto não está totalmente esclarecido: admite-se que seja secundária a isquémia e inflamação, associada a activação glial e a lesão dos preoligodendrócitos.

 

  1. hidrocefalia, desenvolvendo-se de forma aguda (dias), ou de modo progressivo e lento (designada lentamente progressiva, em semanas), explicável pelo fluxo de sangue coagulado ventricular através dos buracos de Magendie e Luschka, originando obstrução ao nível do quarto ventrículo e compromisso da circulação e/ou de reabsorção do LCR; se se verificar obstrução do aqueduto de Sylvius a hidrocefalia é não comunicante. Surge em cerca de 40% das grandes hemorragias.

Notas importantes:

    • De acordo com os conceitos de Volpe, determinada área de necrose inicialmente não hemorrágica pode evoluir para necrose hemorrágica no contexto de subsequente fenómeno de reperfusão a qual, por sua vez, poderá agravar a HIPV;
    • A hidrocefalia que surge nos casos de HIPV tem uma patogénese diversa da chamada ventriculomegália, esta última compensatória de atrofia cortical (tipo ex-vacuo);
    • No RN de termo, a HIPV pode manifestar-se por convulsões, apneia, irritabilidade, ou letargia, vómitos, desidratação ou fontanela hipertensa.

 

As HIPV, em função da sua extensão e gravidade, podem ser classificadas em 4 graus de acordo com os critérios de Papile e colaboradores; tal classificação tem implicações práticas importantes na clínica pela sua correspondência com parâmetros imagiológicos (designadamente ecográficos) que, em certa medida, são preditivos das complicações e do prognóstico a curto e longo prazo (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das HIPV em função da gravidade (critérios de Papile).

Notas: Os graus III e IV comportam maior risco de sequelas neurológicas.
A hemorragia subependimária é uma lesão hemorrágica de tamanho variável localizada na matriz germinal cobrindo a cabeça do núcleo caudado, área particularmente vascularizada entre as 24 e 32 semanas; distingue-se, pela localização, da hemorragia dos plexos coroideus que nunca está localizada à frente dos buracos de Monro.

Grau I
Hemorragia localizada à matriz germinal/hemorragia subependimária isolada (uni ou bilateral) – não hemorragia intraventricular

Grau II
Existência de sangue no ventrículo sem dilatação ventricular por ruptura da zona matriz – epêndimo

Grau III
Existência de sangue no ventrículo com dilatação ventricular

Grau IV
HIPV com extensão intraparenquimatosa

Volpe apresentou uma classificação baseada em critérios ecográficos, considerando três graus (Quadro 2).

QUADRO 2 – HIPV – Classificação de Volpe.

Notas: Segundo este critério, deve ser anotado se existe ou não ecodensidade periventricular (localização e extensão)
I
Hemorragia da matriz germinal não atingindo o ventrículo, ou sangue no ventrículo ocupando < 10% do seu volume
II
HIV ocupando 10%-15% do volume ventricular (visão em plano ecográfico sagital)
III
HIV ocupando > 50% do volume ventricular (visão em plano ecográfico para-sagital, com distensão lateral do ventrículo)

Manifestações clínicas e exames complementares

Cerca de 90% dos casos de HIPV surgem até às 72 horas de vida (3 dias de vida) e 50% até às 24 horas de vida. Por outro lado, a extensão das lesões ocorre em 20% a 40% dos casos em cerca de 3 a 5 dias.

Formas clínicas

As manifestações clínicas da HIPV podem assumir três formas:

Forma subclínica ou silenciosa

Nesta forma, mais frequente, os sinais neurológicos são praticamente inexistentes, sobressaindo a diminuição do hematócrito como sinal mais típico, e a dificuldade de correcção do respectivo défice após transfusão; daí a necessidade da detecção, como rotina, da HIPV em todos os RN pré-termo assistidos em UCIN.

Forma intermitente ou saltitante

Nesta forma, que corresponde a hemorragia de pequenas dimensões, os sinais surgem por fases (períodos sintomáticos de horas ou dias entrecortados por períodos de duração idêntica com aparente estabilização): hipotonia, diminuição da actividade motora espontânea, dificuldade respiratória, movimentos oculares anómalos, alteração do sensório (estado vígil, irritabilidade, estupor), ângulo poplíteo em extensão, etc.. Estes sinais podem passar despercebidos em RN pré-termo já afectados por outros problemas, neurológicos ou não.

Forma catastrófica

Esta forma, correspondente a HIPV importante, traduz-se por:

  1. um ou mais sinais de deterioração neurológica de modo rápido, em minutos a escassas horas: estupor ou coma, dificuldade respiratória (diminuição da amplitude e frequência dos movimentos respiratórios, apneia), convulsões tónicas generalizadas, pupilas não reactivas, tetraparésia flácida, postura de descerebração, etc.;
  2. um ou mais dos seguintes sinais: hipertensão da fontanela anterior, diminuição do hematócrito, hipotensão, bradicárdia, instabilidade térmica, acidose metabólica, alterações da homeostase glicémica e hidroelectrolítica, etc..

Poderá surgir quadro de hidrocefalia aguda, sendo que a mortalidade nesta forma é elevada.

No âmbito da avaliação clínica diária (implicando, entre outros gestos, medição rigorosa do perímetro cefálico), a verificação de aumento do perímetro cefálico igual ou superior a 2 cm por semana aponta para a possibilidade de hidrocefalia pós-hemorrágica.

Exames complementares

Ecografia transfontanelar e ecografia com-doppler

O exame de eleição à cabeceira do doente é a ecografia transfontanelar, susceptível de identificar os 4 graus de HIPV conforme foi referido antes (classificação de Papile).

Tendo em conta a data habitual de aparecimento de HIPV atrás referida, e sem prejuízo das decisões pontuais em função do contexto clínico, é aconselhável proceder em todos os RN com idade gestacional inferior a 32 semanas, a exames ecográficos seriados no 1º, 3º e 7º dias de vida pós-natal e, depois, semanalmente.

No caso de se verificarem alterações relevantes, deve proceder-se a seguimento ecográfico mais pormenorizado e mais frequente para detecção atempada de complicações, tais como dilatação ventricular e hidrocefalia pós-hemorrágica (medição das dimensões dos ventrículos através da funcionalidade do ecógrafo, determinação do chamado índice de dilatação ventricular).

Utilizando o eco-doppler, pode determinar-se o índice de resistência (IR) através da fórmula: IR = (VFS-VFD)/VFS em que VF= velocidade de fluxo, S= sistólico, e D= diastólico; com o referido índice, pretende-se medir a resistência ao fluxo sanguíneo, sendo que um índice elevado pode indicar baixa compliance (distensibilidade) intracraniana, o que comporta risco de perfusão cerebral deficitária e, consequentemente, possibilidade de lesão isquémica.

Reportando-nos à classificação de Papile, será mais fácil interpretar os aspectos da ecografia transfontanelar. (Figuras 1, 2, 3 e 4)

FIGURA 1. Hemorragia de grau I, já em fase de quisto. Corte sagital mediano. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Hemorragia de grau II com coágulos visíveis ao nível do corno posterior. Corte sagital. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Hemorragia de grau III com coágulo de moldagem. Corte coronal. (UCIN-HDE)

FIGURA 4. Hemorragia de grau III, com extensão ao parênquima (grau IV). Corte coronal. (UCIN-HDE)

Quando a hemorragia é maciça (grau III), pode observar-se todo o ventrículo preenchido e dilatado; a dilatação é proporcional às dimensões do conteúdo intraventricular. Em situações extremas poderão verificar-se sinais hemorrágicos no 3º e 4º ventrículo e, por vezes, no espaço subaracnoideu infratentorial, ocupando a cisterna magna.

A hemorragia intraparenquimatosa (grau IV), unilateral, é detectada como lesão hiperecogénica, ocupando o parênquima (evoluindo para cavitação), em contacto íntimo com o ventrículo lateral, de forma globosa ou de forma triangular; está associada a hemorragia intraventricular abundante. Por vezes produz efeito de massa e anomalias da circulação cerebral da zona atingida. (Figura 4)

A ecografia transfontanelar poderá igualmente identificar sinais de hemorragia cerebelosa cuja destrinça com hemorragia subdural infratentorial é difícil.

Tomografia axial computadorizada (TAC)

Em situações especiais poderá estar indicado este tipo de exame imagiológico para esclarecimento etiopatogénico de lesões intraparenquimatosas mais periféricas; está também indicado em casos compatíveis com síndromas neurológicas acompanhadas de hemorragia intracraniana, havendo antecedentes de parto traumático (por ex. hematoma subdural e epidural da fossa posterior, hemorragia cerebelosa no pré-termo).

Ressonância magnética (RM)

Tendo em conta as limitações técnicas relacionadas com a sua execução, está indicada apenas em formas graves e no estudo evolutivo pós-neonatal.

Espectroscopia próxima dos infravermelhos

Nalguns centros especializados e em situações seleccionadas, utiliza-se este método para avaliar o processo de autorregulação da circulação cerebral.

Exame do líquido cefalorraquidiano (LCR)

Somente se justifica a punção lombar em RN sem condições para intervenção cirúrgica e com a finalidade de tentar reverter a dilatação ventricular (ver adiante); no caso de ser realizada, é possível verificar-se eritrorráquia, hiperproteinorráquia e hipoglicorráquia.

Diagnóstico diferencial

No RN pré-termo poderá surgir um quadro neurológico (tipificado por uma das formas clínicas atrás descritas), caracterizado fundamentalmente por convulsões e depressão respiratória, e explicado por hemorragia cerebelosa espontânea ou de causa traumática (partos de apresentação pélvica ou manobras de reanimação com máscara implicando compressão da face e região occipital); como consequência poderá surgir enfarte venoso.

Como factores predisponentes citam-se alterações hemodinâmicas e da coagulação.

Prevenção

A prevenção da HIPV implica um conjunto de medidas pré-natais, intra-parto e pós-natais.

Medidas pré-natais

As medidas pré-natais dizem respeito essencialmente à correcta assistência da grávida transferindo-a atempadamente para centros especializados se existir risco de parto pré-termo. Duas medidas pré-natais importantes dizem respeito:

  • à administração de antibioticoterapia à grávida em caso de ruptura prematura das membranas como medida eficaz de prevenção da hemorragia da matriz germinal e de parto pré-termo (com efeito, a infecção das membranas, associada à sua ruptura prematura, poderá desencadear o parto pelo facto de certos microrganismos, produtores de prostaglandinas, estimularem a contractilidade uterina);
  • à corticoterapia com betametasona como medida potencialmente útil no que respeita à maturação dos vasos da matriz germinal.

Medidas intra-parto

Estas medidas dizem respeito ao parto minimamente traumático e realizado por equipa experiente em centro especializado.

Medidas pós-natais

Reanimação neonatal
  •  minimamente traumática, em ambiente de termoneutralidade;
  • evitando a utilização de solutos hipertónicos e de expansão rápida da volémia;
  • evitando hipóxia, hiperóxia, hipercápnia, hipocápnia e oscilações da pressão arterial.
Cuidados gerais
  • mantendo a cabeça do RN em posição neutra/decúbito dorsal (a rotação da cabeça poderá aumentar a pressão venosa central);
  • promovendo a mínima manipulação, o mínimo ruído e a mínima luminosidade.

Nota importante:
A administração de fenobarbital, vitamina E, indometacina e etamcilato não evidenciaram redução da incidência de HIPV, de acordo com as conclusões de estudos meta-analíticos.

 

Tratamento

Caso se verifiquem sinais de dilatação ventricular progressiva para além das quatro semanas de vida, há que intervir com um conjunto de procedimentos e atitudes cujo objectivo é facilitar a eliminação ou a remoção do LCR; está indicada tal remoção assistida por eco-doppler caso se verifique incremento de IR > 30% em relação à linha de base, ou linha de base de IR > 0,9.

  • punção lombar periódica: em geral procede-se à extracção de parcelas de 10-15 mL/kg de LCR em cada punção lombar, dependendo o número e duração das mesmas da evolução e resultado conseguido; este método tem riscos, tais como meningite e ventriculite;
  • drenagem ventricular: a drenagem ventricular recomendada é a drenagem definitiva ventriculoperitoneal por equipa de neurocirurgia pediátrica; como técnica invasiva, indicada em cerca de 10% das HIPV, comporta também riscos relacionados com morbilidade infecciosa; como alternativa provisória, em certos casos, pode utilizar-se a derivação externa para correcção emergente de hipertensão intracraniana ou nos casos de obstrução da derivação definitiva.

Como se pode depreender, em todas as circunstâncias torna-se obrigatória a vigilância seriada ecográfica (enquanto a fontanela anterior persistir) e/ou através de TAC.

  • inibidores da anidrase carbónica: em geral utiliza-se a acetazolamida, que também comporta riscos como aparecimento de acidose metabólica e efeito desmielinizante; caso se associe ao furosemido, existe ainda o risco de nefrocalcinose por hipercalciúria.

Prognóstico

O prognóstico da HIPV é, em princípio, reservado, designadamente nas situações correspondentes aos graus III e IV; tal circunstância implica um esquema organizado de seguimento multidisciplinar a longo prazo. Contudo, em RN pré-termo com formas de grau I-II, em comparação com idêntica população sem HIPV, existe maior probabilidade de paralisia cerebral e de alterações do foro cognitivo.

As sequelas mais frequentemente surgidas, dependentes das lesões associadas, são as seguintes: epilepsia, sequelas motoras, hemiplegia espástica, e alterações cognitivas por lesões de diversas estruturas como axónios, dendritos, sinapses e mielina.

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ENCEFALOPATIA NEONATAL

Definições e importância do problema

A encefalopatia neonatal é uma síndroma definida clinicamente por disfunção neurológica no RN de termo no período neonatal precoce. Manifesta-se por uma combinação de sinais incluindo alteração do estado de consciência, tono muscular ou reflexos anormais, alterações da função autonómica, ou convulsões.

A importância deste problema clínico, relacionado com lesão neonatal do SNC, pode ser tipificada por números: em todo o mundo, anualmente, letalidade de 1 milhão de crianças e 1 milhão de casos com sequelas permanentes e invalidantes.

Como factores etiológicos descrevem-se os seguintes:

  1. combinação de hipóxia e isquémia intra ou pré-parto (encefalopatia hipóxico-isquémica/EHI) que pode ser acompanhada por sinais de sofrimento fetal, e diversas patologias do foro vascular, incluindo hemorragia intracraniana e acidente vascular cerebral;
  2. lesão secundária a traumatismo de nascimento;
  3. infecções;
  4. alterações genéticas;
  5. alterações metabólicas; e
  6. anomalias congénitas cerebrais.

Neste capítulo é dada ênfase à EHI em RN de termo. Nos capítulos seguintes são abordadas as seguintes nosologias: Hemorragias Intracranianas, Enfarte Cerebral e Leucomalácia Periventricular, esta última associada a determinado grupo de hemorragias intracranianas, como paradigma de lesão da substância branca.

Na literatura médica, relativamente à patologia parenquimatosa (adquirida) do SNC no RN, é adoptada uma sistematização nosológica diversa. Como alternativa ao termo Encefalopatia Neonatal, emprega-se o termo Lesão Cerebral Neonatal. Assim, neste conceito, são englobadas as seguintes entidades: Encefalopatia Hipóxico-Isquémica, Enfarte Cerebral, Hemorragia Intracraniana, Lesão da Substância Branca, Abcessos Cerebrais e Tumores Cerebrais.

ENCEFALOPATIA HIPÓXICO-ISQUÉMICA

Introdução

A EHI pressupõe a existência de lesão cerebral atribuída a hipóxa-isquémia.

O défice de oxigenação tecidual pode ser causado, quer por hipoxémia (diminuição do conteúdo em oxigénio no sangue), quer por isquémia (redução da perfusão sanguínea em determinado território); em geral, estes dois eventos ocorrem em simultâneo ou de modo sequencial.

Asfixia define-se como o compromisso das trocas gasosas, correspondendo, não só ao défice de oxigenação sanguínea, mas igualmente ao excesso de CO2 (hipercápnia), com consequente acidose.

O diagnóstico de asfixia perinatal implica a presença de 4 critérios:

  1. pH arterial umbilical <7,0;
  2. índice de Apgar 0-3 aos 5 minutos;
  3. sinais neurológicos no pós-parto;
  4. disfunção multiorgânica no período neonatal imediato (pulmonar, renal, cardiovascular, metabólico, gastrintestinal, hematológico), ou morte.

Uma situação de asfixia perinatal mantida, determinando a hipotensão e isquémia e conduzindo a alteração do débito sanguíneo cerebral, é a causa mais frequente de encefalopatia hipóxico-isquémica (EHI).

A designação de depressão neonatal corresponde à situação clínica de RN de termo com adaptação prolongada à vida extrauterina, geralmente associada a índice de Apgar baixo ao 1 e 5 minutos.

Aspectos epidemiológicos

A incidência de EHI (causa importante de morbilidade e de mortalidade) é cerca de 2 a 9/1.000 nados-vivos, em proporção muito maior nos países em desenvolvimento.

A mortalidade global por asfixia perinatal oscila entre 10% e 30%; a frequência de sequelas no âmbito do neurodesenvolvimento em sobreviventes com tal patologia é da ordem de 15% a 45%.

O risco de paralisia cerebral (PC), havendo antecedentes de asfixia perinatal, é 5%-10% em comparação com 0,2% na população geral. De acordo com estudo nacional sobre PC aos 5 anos, foi possível atribuir a etiologia “asfixia perinatal e neonatal” em 11% dos casos.

Importa referir-se, a propósito, que qualquer anomalia neurológica detectada após o período neonatal (designadamente na 1ª e 2ª infância) somente poderá ser atribuída a asfixia perinatal se se tiver verificado quadro compatível com EHI no período neonatal imediato.

Nota importante:
A maioria das situações de PC não se relaciona com asfixia perinatal e a maioria das situações de asfixia perinatal não causa PC.

Etiopatogénese

A agressão hipóxico-isquémica pode verificar-se de maneira aguda ou crónica, e em qualquer momento da gestação. Actualmente, admite-se que a lesão neuronal conduzindo à necrose, e relacionada com asfixia, surge após fase inicial de hipóxia-isquémia, isto é, na fase de reperfusão cerebral.

Durante os eventos de asfixia (que, em 90% dos casos, ocorrem ante- ou intra-parto), o metabolismo cerebral altera-se substancialmente; na falta de O2, entra em acção a glicólise anaeróbia como fonte energética de alternativa para a célula nervosa o que, por sua vez, conduz a depleção rápida da ATP neuronal, acumulação de lactato, e falência dos mecanismos de “bomba” da membrana, o que leva ao aparecimento de acidose. Desta última falência resultam influxo e acumulação intracelular de Na+ e Ca++ e de aminoácidos excitatórios tais como o aspartato e glutamato, levando a edema citotóxico e a vasospasmo.

Sendo restaurado o débito sanguíneo cerebral (reperfusão), são produzidos radicais livres de oxigénio e de óxido nítrico, o que leva ao agravamento do vasospasmo e a lesão mitocondrial. Estes, juntamente com o edema citotóxico, conduzem à morte neuronal, que pode ser imediata ou processar-se de modo progressivo em diversas áreas.

O óxido nítrico (nas células e nos endotélios), considerado inicialmente factor protector pelo efeito vasodilatador e antiagregante das plaquetas, reage com o superóxido produzindo peroxinitrito, de cuja degradação resulta o radical hidroxilo, potente agente oxidante.

Outro efeito da elevação do cálcio intracelular é a estimulação das fosfolipases que promovem a destruição das membranas fosfolipídicas das membranas neuronais com libertação de ácido araquidónico cuja metabolização – quer pela via da cicloxigenase, quer pela da lipoxigenase – leva à formação de compostos vasoconstritores (por ex. leucotrienos e tromboxanos) agravando a isquémia inicial.

No recém-nascido de termo, a necrose neuronal é selectiva, sendo atingidas as seguintes zonas: os hemisférios, o córtex visual, o hipocampo, os núcleos cinzentos centrais, o tálamo e o hipotálamo. No tronco cerebral são afectados os tubérculos quadrigémeos, os núcleos oculomotores, a formação reticulada, os núcleos da protuberância e os núcleos bulbares.

A gravidade das lesões exprime-se em geral de forma descendente; nas formas moderadas, as lesões são restritas ao córtex; e, nas formas graves, são afectados os núcleos cinzentos centrais.

A propósito dos mecanismos de lesão cerebral no RN de termo cabe salietar os resultados da investigação de Ferriero. Este autor chamou a atenção para uma particularidade do efeito do estresse oxidativo e da excitotoxicidade: simultaneamente inflamação e fenómeno de reparação. A morte celular inicia-se imediatamente após a agressão, continuando durante dias ou semanas. Verifica-se, contudo, uma mudança no fenótipo da morte celular variando entre padrão de morfologia necrótica precoce e patologia assemelhando-se a apoptose. A este tipo de evolução chama-se continuum de necrose-apoptose.

A nova modalidade de tratamento com hipotermia (ver adiante) permite reduzir o metabolismo cerebral, o edema citotóxico, a pressão intracraniana e a apoptose. De referir também como efeitos benéficos limitar a extensão da lesão neuronal através de mecanismos diversos tais como inibição de radicais livres.

Para além do SNC, outros órgãos podem evidenciar repercussões da asfixia, tais como:

  • rim, o órgão mais frequentemente afectado no contexto de asfixia perinatal (necrose tubular aguda ou cortical);
  • miocárdio e músculo estriado (isquémia, diminuição da contractilidade ventricular, insuficiência tricúspide, frequência cardíaca fixa, com ausência de variabilidade);*
  • sistema digestivo (isquémia intestinal e ECN);
  • sangue periférico, medula óssea e fígado (disfunção hepática, deficiente produção de factores de coagulação, deficiente produção de plaquetas);
  • sistema respiratório (aumento da resistência vascular pulmonar, disfunção e destruição do surfactante, hemorragia);
  • suprarrenal (hemorragia suprarrenal).

Etiopatogénese

A agressão hipóxico-isquémica pode verificar-se de maneira aguda ou crónica, e em qualquer momento da gestação. Actualmente, admite-se que a lesão neuronal conduzindo à necrose, e relacionada com asfixia, surge após fase inicial de hipóxia-isquémia, isto é, na fase de reperfusão cerebral.

Durante os eventos de asfixia (que, em 90% dos casos, ocorrem ante- ou intra-parto), o metabolismo cerebral altera-se substancialmente; na falta de O2, entra em acção a glicólise anaeróbia como fonte energética de alternativa para a célula nervosa o que, por sua vez, conduz a depleção rápida da ATP neuronal, acumulação de lactato, e falência dos mecanismos de “bomba” da membrana, o que leva ao aparecimento de acidose. Desta última falência resultam influxo e acumulação intracelular de Na+ e Ca++ e de aminoácidos excitatórios tais como o aspartato e glutamato, levando a edema citotóxico e a vasospasmo.

Sendo restaurado o débito sanguíneo cerebral (reperfusão), são produzidos radicais livres de oxigénio e de óxido nítrico, o que leva ao agravamento do vasospasmo e a lesão mitocondrial. Estes, juntamente com o edema citotóxico, conduzem à morte neuronal, que pode ser imediata ou processar-se de modo progressivo em diversas áreas.

O óxido nítrico (nas células e nos endotélios), considerado inicialmente factor protector pelo efeito vasodilatador e antiagregante das plaquetas, reage com o superóxido produzindo peroxinitrito, de cuja degradação resulta o radical hidroxilo, potente agente oxidante.

Outro efeito da elevação do cálcio intracelular é a estimulação das fosfolipases que promovem a destruição das membranas fosfolipídicas das membranas neuronais com libertação de ácido araquidónico cuja metabolização – quer pela via da cicloxigenase, quer pela da lipoxigenase – leva à formação de compostos vasoconstritores (por ex. leucotrienos e tromboxanos) agravando a isquémia inicial.

No recém-nascido de termo, a necrose neuronal é selectiva, sendo atingidas as seguintes zonas: os hemisférios, o córtex visual, o hipocampo, os núcleos cinzentos centrais, o tálamo e o hipotálamo. No tronco cerebral são afectados os tubérculos quadrigémeos, os núcleos oculomotores, a formação reticulada, os núcleos da protuberância e os núcleos bulbares.

A gravidade das lesões exprime-se em geral de forma descendente; nas formas moderadas, as lesões são restritas ao córtex; e, nas formas graves, são afectados os núcleos cinzentos centrais.

A propósito dos mecanismos de lesão cerebral no RN de termo cabe salietar os resultados da investigação de Ferriero. Este autor chamou a atenção para uma particularidade do efeito do estresse oxidativo e da excitotoxicidade: simultaneamente inflamação e fenómeno de reparação. A morte celular inicia-se imediatamente após a agressão, continuando durante dias ou semanas. Verifica-se, contudo, uma mudança no fenótipo da morte celular variando entre padrão de morfologia necrótica precoce e patologia assemelhando-se a apoptose. A este tipo de evolução chama-se continuum de necrose-apoptose.

A nova modalidade de tratamento com hipotermia (ver adiante) permite reduzir o metabolismo cerebral, o edema citotóxico, a pressão intracraniana e a apoptose. De referir também como efeitos benéficos limitar a extensão da lesão neuronal através de mecanismos diversos tais como inibição de radicais livres.

Para além do SNC, outros órgãos podem evidenciar repercussões da asfixia, tais como:

  • rim, o órgão mais frequentemente afectado no contexto de asfixia perinatal (necrose tubular aguda ou cortical);
  • miocárdio e músculo estriado (isquémia, diminuição da contractilidade ventricular, insuficiência tricúspide, frequência cardíaca fixa, com ausência de variabilidade);*
  • sistema digestivo (isquémia intestinal e ECN);
  • sangue periférico, medula óssea e fígado (disfunção hepática, deficiente produção de factores de coagulação, deficiente produção de plaquetas);
  • sistema respiratório (aumento da resistência vascular pulmonar, disfunção e destruição do surfactante, hemorragia);
  • suprarrenal (hemorragia suprarrenal).

*De facto a hipóxia-isquémia leva a lesão da membrana e libertação de substâncias intracelulares para a corrente sanguínea como troponina cardíaca I (cTNI) e péptido natriurético (N-Terminal PRO-BNP) que podem servir de marcadores de disfunção miocárdica. A creatina-quinase (CK-MB) elevada traduz estresse ao nível do músculo liso (ver adiante).

Manifestações clÍnicas

Quanto aos antecedentes há a referir: problemas obstétricos associados a dificuldade mecânica no parto e a difícil adaptação do feto à vida extrauterina com depressão grave traduzida por índice de Apgar baixo; e dificuldade na iniciação e manutenção da respiração espontânea obrigando a manobras de reanimação na sala de partos.

O quadro de EHI integra um conjunto de sinais neurológicos acompanhados ou não, em grau variável, doutras manifestações ao nível doutros sistemas (disfunção multiorgânica): disfunção renal, dificuldade respiratória, hipertensão pulmonar, hipoglicémia, hipocalcémia, acidose, disfunção hepática, enterocolite necrosante, trombocitopénia, CIVD, etc.. Os referidos sinais podem surgir no pós-parto imediato ou mais tarde.

O espectro de manifestações varia entre o grau I ou forma ligeira, grau II ou forma moderada e grau III ou forma grave (Quadro 1, adaptado de M Levene).

QUADRO 1 – Gravidade da EHI.

(adaptado de M Levene, 1985)
Grau I
(ligeira)
Grau II
(moderada)
Grau III
(grave)
Irritabilidade
Hiperalerta
Hipotonia ligeira
Sucção débil
Não convulsões

Letargia

Hipotonia moderada
Sonda de alimentação
Convulsões

Coma

Hipotonia grave
Não respiração espontânea
Convulsões prolongadas

Adoptando os critérios clássicos de Sarnat & Sarnat na EHI (englobando mais parâmetros do que os da classificação de M Levene) podem ser considerados três estádios evolutivos designados respectivamente por estádio 1 (manifestações ligeiras), estádio 2 (manifestações moderadas) e estádio 3 (manifestações graves) (Quadro 2).

QUADRO 2 – EHI – Critérios de Sarnat & Sarnat (Estádios 1, 2 e 3).

Abreviaturas: > = aumentado; < = diminuído; Mov espont = movimentos espontâneos; N = normal; ROT = reflexos ósteo-tendinosos; FC = frequência cardíaca; EEG = electroencefalograma; d = dias; h = horas; episód. = episódios de; GI = gastrintestinal.
Parâmetros 123
Consciência
Mov espont
Tono muscular
Postura
Irritabilidade
Aumentados
N ou > ligeiro
Flexão discreta das extremidades
Letargia
Diminuídos
< ligeiro
Flexão acentuada das extremidades
Estupor ou coma
Diminuídos ou ausentes
Flacidez
Extensão dos membros superiores e inferiores
ROT
Pupilas
N
Midríase
<
Miose ou anisocória
Arreflexia
Hipo/arreflexia à luz
RespiraçãoEspontâneaEspontânea ou apneia episód.Periódica ou apneia
FC
Secreção salivar, brônquica
Motilidade GI
Convulsões
EEG 
>
Escassa
N ou <
Não
N
<
Abundante
>
Frequentes
Amplitude < Espículas focais
Variável
Variável
Variável
Variável
Padrão periódico com fases isoeléctricas ou isoeléctrico
Duração
Prognóstico
< 24 h
Bom
2-14 d
Bom (80%) se < 5 d
Reservado se > 5 d
Horas a semanas
Mortalidade ~50%
Sequelas ~50%

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da EHI faz-se designadamente com outras situações acompanhadas de convulsões.

Nesta alínea cabe uma referência especial a um quadro relacionado com enfarte cerebral de território irrigado pela artéria cerebral média. É caracterizado clinicamente por convulsões de manifestação precoce, tal como acontece em certas formas de EHI.

Com efeito, estes acidentes vasculares podem ocorrer já no período de vida fetal ou intraparto; situações como a gemelaridade e anomalias congénitas cardíacas podem constituir factores predisponentes. Em cerca de 50% dos casos surgem como consequência de asfixia perinatal. Outros mecanismos patogénicos incluem arteriopatia, tromboembolismo/hipercoagulabilidade, vasospasmo e acção traumática.

Exames complementares

Salientando-se a noção de que o diagnóstico de EHI é fundamentalmente clínico, cabe referir alguns exames complementares com interesse para o estudo evolutivo e para avaliação prognóstica e diagnóstico diferencial; a sua escolha deverá ser criteriosa em função dos antecedentes e da evolução clínica.

Genericamente, pode ser evidenciada por critérios bioquímicos (CK-MB, CK-BB), electrofisiológicos (ECG, EEG), imagiológicos (ecografia transfontanelar), TAC, RM, ou anomalias detectadas post-mortem.

Sintetizando:

  • Exame do LCR – poderá estar indicado se existir suspeita de quadro infeccioso.
  • ECG – no âmbito deste exame, segundo estudos recentes, valoriza-se o parâmetro variabilidade da frequência cardíaca (VFC ou HRV) como possível marcador de lesão cerebral, com valor prognóstico. De salientar que a HRV permite avaliar a actividade do sistema nervoso autónomo (simpático e parassimpático), recordando-se que a elevada FC no RN traduz predomínio da actividade simpática associada a diminuição da actividade vagal.
  • EEG – reportando-nos ao Quadro 2, cabe salientar que o traçado se relaciona com a gravidade da situação.
  • aEEG – actualmente, está disponível uma nova modalidade de EEG (designada EEG de amplitude integrada) com vantagens no que respeita à monitorização dos efeitos do tratamento efectuado em situações com convulsões e/ou submetidas a hipotermia como terapêutica (ver adiante).
  • Ecografia transfontanelar – técnica com limitações, a realizar sistematicamente em todos os casos de asfixia perinatal na perspectiva de selecção de casos para outros exames; na fase inicial, a contribuição é escassa, podendo ser detectados sinais de edema; o eco-Doppler permite medir os fluxos arteriais e o chamado índice de resistência (Figuras 1 e 2).
  • TAC – poderá fornecer dados representativos de lesões do córtex cerebral, tálamo, gânglios da base e região periventricular; indicada na 2ª-4ª semana de vida, poderá dar contributo quanto ao prognóstico; igualmente com interesse nos casos em que se admite a hipótese de enfarte cerebral;
  • Espectroscopia de protões – trata-se duma técnica que permite avaliar a concentração de vários substratos do cérebro cujo perfil se altera após episódio de hipóxia-isquémia-reperfusão.

FIGURA 1. Imagem de ecografia transfontanelar de RN com EHI. Aspecto de enfarte na região têmporo-occipital (corte sagital). (UCIN-HDE)

FIGURA 2. Imagem de ecografia transfontanelar de RN com EHI. Aspecto de enfartes na região da fenda e zona cortical (corte coronal). (UCIN-HDE)

No que respeita à avaliação dos efeitos da asfixia em diversos órgãos e sistemas, cabe referir os seguintes exames:

Coração

  • Troponina cardíaca I (cTNI) e troponina cardíaca T (cTnT), proteínas que são marcadores de lesão do miocárdio, com efeito sobre a interacção entre actina e miosina, mediada pelo cálcio. Valores normais: I= 0-0,28 ±0,42 mcg/L; T= 0-0,097 mcg/L. Valores elevados associam-se situações de asfixia comprovada.
  • Creatinacinase, fracção MB (CK-MB). Valores elevados >5-10% poderão indicar lesão miocárdica.
  • NT-pro BNP (valores de referência entre as 24 e 48 horas de vida: mediana de 3300 pg/mL, diminuindo para 1180 pg/mL após 48 horas). Valores superiores devem ser avaliados em função do contexto clínico (ver Glossário Geral).

SNC

  • CK, fracção BB (CK-BB). Valores elevados em situação de asfixia ao cabo de ~12 horas; contudo não tem valor prognóstico.
  • Proteína S-100 + CK-BB. Valores elevados de proteína S-100 (>8,5 mcg/L) + de CK-BB, associados a pH arterial baixo são preditivos de encefalopatia moderada a grave (sensibilidade ~70% e especificidade ~90-95%).

Rim

  • Beta-2 microglobulina urinária (proteína de baixo peso molecular filtrada pelo glomérulo e quase reabsorvida na totalidade no túbulo proximal). Valores elevados são indicadores de disfunção tubular proximal.
  • FENa pode igualmente demonstrar a repercussão sobre a função renal.
  • CysC/cistatina C urinária e NGAL (Neutrophil gelatinase-associated lipocalin) sérica e urinária elevados são também marcadores preditivos precoces de lesão renal aguda secundária a encefalopatia neonatal (consultar bibliografia).
  • Ecografia renal. Anomalias detectadas correlacionam-se com oligúria.

Tratamento

Os princípios gerais do tratamento da EHI – não consensuais em centros internacionais idóneos – obedecem à noção de que a lesão neuronal pode ser minorada se a actuação no periparto for adequada e atempada.

Seguidamente resumem-se os tópicos principais de tal actuação:

  • Ventilação mecânica desde o pós-parto, e por período variando entre 48 a 72 horas em função do contexto clínico, com o objectivo de normalização dos parâmetros de pH e gases no sangue na tentativa de manutenção dos seguintes valores: pH (7,25-7,40), PaO2 (50-70 mmHg), PaCO2 (45-60 mmHg), SpO2 (90-93%);
  • Estabilização hemodinâmica, metabólica e hidroelectrolítica; ou seja, manutenção dos valores normais da pressão arterial, da glicémia, da natrémia, da potassémia com monitorização da diurese e dos parâmetros da função renal (osmolalidades sérica e urinária, creatinina sérica, ionogramas urinário e sérico, etc.);
  • Tratamento das convulsões;
  • Tratamento do edema cerebral através da administração de corticóides e manitol.

Outras medidas têm por finalidade prevenir a morte neuronal tardia por mecanismos diversos tais como administração de barbitúricos (tiopental), bloqueantes dos canais do cálcio, bloqueantes dos receptores dos neurotransmissores, inibidores da sintetase do óxido nítrico e células histaminais obtidas do cordão umbilical.

A hipotermia corporal iniciada antes das 6 horas de vida (providenciando temperaturas ~33-34ºC durante 72 horas, com reaquecimento ulterior progressivo), constitui um método já aplicado no nosso país com as seguintes indicações: < 6 horas de vida, > 36 semanas de idade gestacional, evidência de asfixia perinatal, EHI moderada ou grave e exclusão de defeitos congénitos.

O grau de EHI deve ser avaliado até 1 hora de vida no sentido de identificar forma ligeira (obrigando a hipotermia passiva), ou forma moderada a grave (obrigando a hipotermia induzida). Na forma moderada a grave está indicada transferência para hospital onde possa ser aplicada hipotermia induzida/terapêutica.

Os pormenores desta técnica ultrapassam os objectivos deste livro.

Como terapêuticas emergentes, em fase de investigação, citam-se a administração de eritropoietina e de células estaminais.

Prognóstico

Em complemento do que foi descrito no Quadro 2, e de acordo com diversos estudos multicêntricos, salienta-se que a mortalidade por EHI oscila entre 10 e 15%. As principais sequelas (15-20%) detectadas são: paralisia cerebral (formas discinéticas e tetraplegia), epilepsia, insuficiência mental, microcefalia, cegueira cortical, surdez e perturbações da linguagem.

Em suma, quanto mais precocemente se manifestarem os sinais neurológicos, maior duração tiverem, e mais exuberantes os achados do EEG, pior o prognóstico.

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CONVULSÕES NO RECÉM-NASCIDO

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

As convulsões são anomalias paroxísticas traduzidas por manifestações motoras, comportamentais ou autonómicas. Não se trata duma doença específica, mas seguramente de um importante epifenómeno de disfunção neurológica.

No conceito global de convulsão neonatal são englobados dois grandes grupos:

  • as convulsões epilépticas ou manifestações relacionadas com descargas eléctricas excessivas e síncronas de neurónios cerebrais, associadas a sinais electroencefalográficos; e
  • as convulsões não epilépticas ou manifestações paroxísticas estereotipadas, não acompanhadas de alterações electroencefalográficas.

Estabelecendo comparação com alterações paroxísticas doutros grupos etários, cabe referir as seguintes destrinças:

  • devido à imaturidade do córtex cerebral no RN e à incompleta mielinização do sistema nervoso, as convulsões tónico-clónicas generalizadas são raras no período neonatal;
  • tendo em conta, por outro lado, o maior desenvolvimento das áreas subcorticais (designadamente diencéfalo e tronco cerebral) no RN, os fenómenos oculomotores, oro-buco-linguais e os sinais de disfunção autonómica são mais frequentes.

A incidência de convulsões neonatais varia muito em função da idade gestacional, das populações estudadas (com situações de risco variáveis) e dos critérios utilizados para a sua definição (clínicos ou electroencefalográficos).

Considerando o peso de nascimento, é estimada a seguinte incidência: – RN de peso < 1.500 g: 57,5/1.000; – RN de peso entre 2.500 e 3.999 g: 2,8/1.000.

Devido à possibilidade de tal disfunção (relacionável com múltiplos factores) poder originar, por sua vez, danos subsequentes ao nível do sistema nervoso, deverá existir da parte do clínico que presta cuidados a RN um elevado nível de suspeita, o que implica diagnóstico e tratamento realizados com celeridade e, muitas vezes, aplicação de medidas sintomáticas antes do diagnóstico etiológico.

Etiopatogénese

Existindo ainda muitas dúvidas quanto à patogénese das convulsões em geral há, contudo, mecanismos básicos que importa realçar:

  • imaturidade cerebral associada a predomínio do papel dos neurotransmissores excitatórios (primariamente glutamato, com maior expressão dos respectivos receptores e escassez relativa dos respectivos transportadores) em relação aos neurotransmissores inibitórios (primariamente GABA/ácido gama aminobutírico); de tal resulta mais intenso e prolongado contacto do glutamato com os receptores pós-sinápticos; uma vez que a vitamina B6 ou piridoxina é um cofactor para a síntese de GABA, deduz-se que o défice ou ausência desta última constitui factor predisponente de convulsões;
  • as características de imaturidade dos receptores do glutamato anteriormente referidas facilitam o influxo catiónico e a despolarização da membrana, activando o fenómeno de convulsão;
  • hipofuncionamento dos neurotransmissores inibitórios no cérebro imaturo, o que se relaciona com a fraca expressão dos respectivos canais iónicos;
  • disfunção da bomba de Na/K com repercussão negativa na produção de energia celular, o que é favorecido em situações de hipóxia-isquémia e hipoglicémia;
  • disfunção ao nível da membrana celular do neurónio, traduzida nomeadamente por maior permeabilidade, o que é favorecido por situações acompanhadas de hipocalcémia e hipomagnesiémia.

Para além destes factores celulares, as características do desenvolvimento do SNC no cérebro imaturo também favorecem o predomínio do estado excitatório, predispondo a convulsões; por exemplo, ao nível da substantia nigra, as vias excitatórias desenvolvem-se antes das vias inibitórias.

Na perspectiva da prática clínica, os factores etiológicos mais frequentemente implicados são mencionados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Convulsões neonatais. Factores etiológicos.

Encefalopatia hipóxico-isquémica
Encefalopatia hipertensiva
Infecções (grupo TORCHS, meningite, meningoencefalite, etc.)
Anomalias congénitas (agenésia cerebral, etc.)
Lesões cérebro-vasculares (enfartes arteriais e venosos, etc.)
Lesões traumáticas (hematoma subdural, hemorragia intraperiventricular, etc.)
Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas (hiponatrémia, hipernatrémia, hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesémia, etc.)
Doenças hereditárias do metabolismo (galactosémia, frutosémia, aminoacidopatias, anomalias do ciclo da ureia, hiperglicinémia cetótica e não cetótica, etc.)
Convulsões familiares (esclerose tuberosa, síndromas neurocutâneas, etc.)
Privação de drogas (heroína, etc.)
Efeito de fármacos, “tóxicos e toxinas” (isoniazida, bilirrubina, etc.)
Síndromas genéticas (síndroma de Smith-Lemli-Opitz, síndroma de Zellweger, etc.)
Outros

Manifestações clínicas

A classificação das convulsões neonatais mais utilizada é a que foi descrita por JJ Volpe em 1989.

De acordo com a semiologia clínica são discriminados quatro tipos (subtis, clónicas, tónicas e mioclónicas.

Na classificação que integra o Quadro 2, a sistematização geral, variante da classificação de JJ Volpe considera: as convulsões com ou sem alterações electroencefalográficas, respectivamente epilépticas e não epilépticas e as chamadas convulsões traduzidas apenas por anomalias no EEG (assintomáticas).

A convulsão subtil corresponde a uma alteração motora, autonómica ou comportamental que surge mais frequentemente em RN pré-termo, nem sempre acompanhada de alterações do EEG.

QUADRO 2 – Tipos de convulsões neonatais.

Convulsões epilépticas (associadas a anomalias no EEG)

    • Subtis (predominantemente no RN pré-termo)
    • Clónicas focais e multifocais
    • Mioclónicas generalizadas e focais
    • Tónicas focais

 Convulsões não epilépticas (não associadas a anomalias no EEG)

    • Mioclónicas focais e multifocais
    • Tónicas generalizadas
    • Subtis
Convulsões “electroencefalográficas” ou anomalias do EEG assintomáticas

As respectivas manifestações podem ser sistematizadas do seguinte modo: movimentos de mastigação, desvio horizontal do globo ocular com ou sem tremor ocular, fixação ocular mantida, movimentos de pedalagem, movimentos dos membros superiores semelhantes a gestos de boxeur ou de nadador, fenómenos autonómicos como alterações vasomotoras hipertensão arterial, crises de hiperpneia ou apneia, etc.. A convulsão subtil acompanhada de alterações no EEG surge mais frequentemente no RN pré-termo.

Na convulsão clónica o RN evidencia movimentos rítmicos de grupos musculares em duas fases: uma, de contracção mais rápida, e outra mais lenta, voltando à posição inicial; podem verificar-se num grupo muscular (focal) ou em vários grupos musculares (multifocal) sendo que, por ex. o diafragma e a musculatura faríngea podem ser afectados, o que tem implicações na função respiratória. A convulsão focal está mais frequentemente associada a lesão localizada do SNC do que a alterações metabólicas.

A convulsão tónica caracteriza-se: por extensão ou flexão mantida dos membros superiores ou inferiores (tónica generalizada), sendo mais frequente em RN pré-termo; ou por postura mantida de um membro ou postura assimétrica do tronco em relação ao pescoço (tónica focal); ocorre com frequência semelhante no RN de termo e no pré-termo.

A convulsão mioclónica caracteriza-se por movimentos desordenados, síncronos ou assíncronos e rápidos, tendendo a ocorrer sobretudo em grupos musculares flexores; pode ser generalizada (flexão dos membros superiores – mais frequentemente –, ou dos membros inferiores), focal (com manifestação ao nível da musculatura flexora de um membro superior), ou multifocal (contracções musculares assíncronas de várias partes do corpo).

Na classificação de Mizrahi & Kellaway, com base em estudo vídeo-electroencefalográfico contínuo, considera-se ainda uma quinta modalidade de convulsão neonatal: os espasmos. Tais manifestações consistem em movimentos ou abalos muito rápidos e curtos de extensão, flexão ou flexão/extensão, durando não mais que 1-2 segundos, não provocados por estimulação, nem parados pela pressão ao toque.

De acordo com os referidos autores (M&K):

  • as convulsões clónicas focais, tónicas focais e mioclónicas generalizadas, assim como os espasmos são em regra associados a descargas electrográficas (convulsões epilépticas);
  • os automatismos motores subtis, as generalizadas, as tónicas generalizadas e os episódios mioclónicos multifocais traduzem mais frequentemente fenómenos de libertação secundários a lesão cerebral, do que verdadeiras convulsões epilépticas.

Salienta-se que muitas vezes, pela complexidade do quadro clínico e dos factores potencialmente lesivos para o SNC, a destrinça entre convulsões epilépticas e não epilépticas é difícil, tornando-se necessário proceder à utilização do EEG contínuo à cabeceira do doente.

Exames complementares

Perante uma convulsão, há pois que caracterizar as manifestações clínicas e proceder a exames complementares para esclarecimento etiológico tendo em conta a história clínica e as hipóteses que podem ser sugeridas pela consulta do Quadro 1. Alguns destes exames (prioritários) são abordados a propósito da actuação prática. (ver adiante)

Nesta alínea cabe uma referência especial aos seguintes:

  • EEG contínuo para se poder apreciar o traçado de base e a existência ou não de actividade paroxística; importa referir que pode haver actividade eléctrica paroxística detectada pelo EEG sem qualquer manifestação clínica. É a chamada “dissociação electroclínica”, relacionada com a imaturidade das conexões corticais;
  • aEEG (EEG de amplitude integrada) utilizável em situações especiais; no capítulo seguinte, relacionado com hipóxia-isquémia como causa de convulsões, é abordada esta modalidade;
  • Vídeo-EEG para o esclarecimento de casos recorrentes e hospitalizados (correlação entre as manifestações clínicas e o traçado electroencefalográfico) – técnica ainda não disponível em todos os serviços hospitalares;
  • RM (Ressonância Magnética) com particular interesse admitindo a hipótese de enfarte cerebral (na sua forma típica em território da artéria cerebral média).

Nota importante:
O enfarte de um território arterial na sua forma típica é decorrente duma artéria importante (artéria cerebral média). Começa por edema seguido de isquémia, sendo por vezes secundário a hemorragia. Semanas mais tarde a zona é substituída por quistos. Estes acidentes podem ocorrer no período de vida fetal ou intraparto. Situações como a gemelaridade e defeitos cardíacos podem condicionar esta patologia. Manifestam-se precocemente por convulsões precoces. A RM detecta a lesão com muito pormenor e permite definir o prognóstico quanto à função motora.

Diagnóstico diferencial

Ao abordar o tema “convulsões no RN” importa estabelecer a destrinça entre estas e outras perturbações paroxísticas/fenómenos motores de origem não epiléptica: tremores, mioclonias neonatais benignas do sono profundo e hiperecplexia.

Eis alguns sinais que permitem tal destrinça com:

Tremores

  • Os tremores são movimentos rítmicos de pequena amplitude, assim como de amplitude e frequência regulares; na convulsão (clónica) existe uma componente de movimento rápido e uma componente de movimento lento;
  • Os tremores são sensíveis a estímulos externos; são interrompidos com uma flexão passiva e suave do membro onde se verificam, o que não acontece na convulsão;
  • Os tremores não se acompanham de fenómenos oculares como fixação ou desvio ocular nem de alterações autonómicas (por ex. taquicárdia, crises de apneia, fenómenos vasomotores cutâneos, sialorreia ou alterações pupilares), ao contrário da convulsão.

Mioclonias neonatais benignas do sono profundo

  •  Esta situação, associada a exame neurológico normal e consistindo em abalos repetidos das extremidades somente durante o sono – mais frequentemente durante o sono calmo (REM) – cessa com o despertar e após os 2 meses.

Hiperecplexia (na língua inglesa denominada startle disease)

  • Este quadro, raro, traduz-se por espasmo tónico símile “sobressalto” induzido por estímulo externo.

Tratamento

Tendo em consideração que a convulsão, independentemente do factor etiológico, poderá resultar em lesão do SNC, sobretudo se for mantida, há que estabelecer prioridades na actuação, a qual deve ser precoce, urgente e, por vezes emergente; salienta-se, a propósito, que uma convulsão mantida origina incremento do consumo de glucose, substrato fundamental para o metabolismo da célula cerebral.

Embora, para fins didácticos, se estabeleça um esquema sequencial de actuação, por vezes torna-se necessário levar a cabo certas medidas quase em simultâneo, o que implica a colaboração de uma equipa especializada e experiente (por conseguinte, mais do que uma pessoa).

Aspectos gerais

  • promover ventilação (RCR inicial e eventual ventilação mecânica ulteriormente em função do quadro clínico) e perfusão adequadas, estabilidade hemodinâmica e aplicação de venoclise com soluto glucosado;
  • detectar factores etiológicos susceptíveis de correcção (hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia, outras alterações hidro-electrolíticas e do equilíbrio ácido-base, infecção, etc.);
  • iniciar tratamento com fármacos anticonvulsantes adiante especificados;
  • monitorizçaão de sinais vitais;
  • realização doutros exames complementares em função da história clínica incluindo exames neuroimagiológicos, com prioridade para a ecografia transfontanelar;
  • nos casos em que não seja detectada etiologia específica, haverá que admitir a possibilidalidade de doença hereditária do metabolismo, o que obriga a ulterior análise de sangue para doseamento de lactato, amónia, aminoácidos séricos, e de urina para pesquisa e doseamento de ácidos orgânicos, etc..

Tratamento anticonvulsante

As opiniões dos autores especialistas e investigadores em neurologia neonatal dividem-se quanto à indicação de tratamento anticonvulsante: enquanto alguns recomendam que somente os RN com convulsões clínicas devem ser tratados com fármacos anticonvulsantes, outros opinam que, não só na situação anterior, mas também nos casos de alterações do EEG sem manifestações clínicas se deve proceder a tal tratamento, tendo em consideração o efeito adverso das alterações ao nível da célula do sistema nervoso sobre o metabolismo do cérebro imaturo.

Na prática, os fármacos antiepilépticos mais usados, são o fenobarbital, a fenitoína e as benzodiazepinas.

Fenobarbital

Este fármaco é em geral utilizado em 1ª linha; com vida média oscilando entre 45 e 173 horas, são habitualmente utilizadas as seguintes doses:

  • dose inicial de sobrecarga: 20 mg/kg IM ou IM, em cerca de 10-15 minutos se o RN estiver ventilado; em RN não ventilado a dose total de 20 mg é desdobrada em duas de 10 mg administradas sequencialmente com intervalo de 20 minutos.
    No caso de a dose inicial não ser efectiva, doses subsequentes de 5 ou 10 mg/kg em intervalos de 10 ou 15 minutos até ser atingida dose total de 40 mg/kg.
  • dose de manutenção: 5 mg/kg/dia (IM, IV ou oral a dividir por duas doses diárias), sendo recomendados níveis séricos terapêuticos/vale entre 16 e 40 mcg/mL; a colheita de sangue para doseamento do fármaco deverá ser feita antes da primeira dose diária.

O fenobarbital é eficaz em cerca de 70% a 80% das convulsões neonatais.

Fenitoína

Se após dose de 40 mg/kg de fenobarbital as crises de convulsões persistirem, deve iniciar-se a administração (concomitante) de fenitoína:

  • dose inicial de sobrecarga: 15 a 20 mg/kg IV (0,5-1 mg/kg/minuto) ou 7,5 a 10 mg/kg com intervalo de 20 minutos, de modo a atingir nível sérico entre 15 a 20 mcg/mL;
  • dose de manutenção: 4-8 mg/kg/dia (IV a dividir por duas doses diárias), sendo o início da manutenção 12 horas após a dose inicial.

A fenitoína é eficaz em cerca de 15% dos casos de convulsões que não cederam ao fenobarbital. Os níveis séricos são difíceis de manter porque o fármaco se redistribui rapidamente pelos tecidos, problema que é potenciado se a administração for por via oral; por isso, a manutenção não pode ser mantida por via oral. A absorção por via IM é irregular. Assim, como regra prática, não é recomendada a continuação do fármaco uma vez cessadas as convulsões e/ou removida venoclise.

Chama-se a atenção para o efeito secundário de cardiotoxicidade.

Benzodiazepinas

O diazepam, com uma vida média de cerca de 54 horas no RN pré-termo e de 18 horas no RN de termo, é a benzodiazepina mais frequentemente utilizada; a via aconselhada é a IV, pois a via IM condiciona absorção muito lenta.

Como limitações da sua utilização são citadas as seguintes: maior probabilidade de hipotonia e de depressão respiratória, sobretudo se utilizado em associação com barbitúricos; níveis terapêuticos próximos dos tóxicos; pela forte ligação às proteínas verifica-se tempo de impregnação no SNC fugaz, razão pela qual não está indicado em regime de manutenção; o benzoato de sódio, seu veículo para uso IV, compete com a bilirrubina na sua ligação à albumina, o que aumenta o risco de kernicterus.

  • dose em situação aguda (não seguida de manutenção): 0,1-0,2 mg/kg IV em administração lenta (2 minutos), seguindo-se perfusão ao ritmo de 0,5 mcg/kg/minuto, com incrementos de 0,5-1 mcg/kg cada 2 minutos até resposta favorável, não ultrapassando 7 mcg/kg/minuto.; pode ser repetida 15 a 30 minutos depois.

Como efeito secundário significativo cita-se a hipotensão.

O lorazepam IV (não disponível em todos os países), pode ser utilizado como alternativa ao diazepam na dose de 0,05-0,1 mg em 2 a 5 minutos, também podendo ser repetida a sua administração; a probabilidade de depressão respiratória é menor.

O midazolam IV utiliza-se na dose inicial de 0,15 mg/kg seguida da dose de 0,1-0,4 mg/kg/hora em regime de manutenção.

Nos casos de convulsões recorrentes verificadas nas primeiras horas de vida, e sem achados complementares esclarecedores, está indicado proceder a prova terapêutica com piridoxina endovenosa (50-100 mg/kg) durante a convulsão com monitorização simultânea de EEG; em situação de carência de piridoxina verifica-se cessação da crise e do traçado anómalo do EEG, o que implica ulterior terapêutica de manutenção na dose de 50-100 mg/dia por via oral ou endovenosa.

Mais raramente, sobretudo no contexto de convulsões refractárias e/ou associadas a patologia de base grave (por ex. defeitos congénitos do SNC, infecções, hipóxia-isquémia grave, hemorragia intracraniana e outras modalidades de AVC, etc.), implicando cooperação de neurologista-pediatra, são utilizados os fármacos levetiracetam e o topiramato, considerados de segunda e terceira escolha.

Duração do tratamento anticonvulsante

Para decidir sobre a duração do referido tratamento, foram consideradas:

  • a possibilidade de efeitos adversos do tratamento anticonvulsante prolongado sobre a morfologia e metabolismo das células neuronais;
  • que a duração do período de “lua de mel” ou livre de convulsões após o período neonatal é imprevisível – meses a anos.

Nesta perspectiva, foram definidos critérios que legitimam a interrupção do tratamento iniciado no período neonatal, mesmo nos casos de risco elevado de recorrência; como regra geral, o fenobarbital poderá ser suspenso se o exame neurológico e o EEG não revelarem alterações.

O processo de suspensão do fenobarbital deve ser gradual, em duas semanas.

Salienta-se que nos casos de antecedentes de EHI e de depressão importante nos traçados do EEG, existe probabilidade de recorrência de cerca de 30%-50%; nos casos de hipoglicémia e hipocalcémia, e na ausência de doença hereditária do metabolismo, tal probabilidade é praticamente nula.

Seguimento e prognóstico

Desde que as crises sejam controladas, o tratamento na data da alta depende fundamentalmente do diagnóstico, do resultado do exame neurológico e do EEG intercrise.

Se o resultado do exame neurológico evidenciar alterações, deverá ser mantida a terapêutica com anticonvulsante oral, mais frequentemente fenobarbital, e o paciente ser encaminhado para consulta de Neurologia pediátrica ao cabo de 4-5 semanas.

Como factores preditivos do prognóstico, apontam-se fundamentalmente as características das convulsões, a resposta ao tratamento inicial, a doença de base, e as alterações do EEG.

Com efeito, as crises de início mais precoce, tónicas, prolongadas (> 10 minutos/hora) e refractárias ao tratamento, assim como sinais do EEG evidenciando actividade eléctrica de baixa voltagem e padrão de “surto-supressão” na fase intercrise, são associados a prognóstico mais reservado.

Ao longo dos anos, o prognóstico das síndromas acompanhadas de convulsões tem melhorado graças aos progressos na assistência perinatal. No que respeita à morbilidade, os estudos epidemiológicos apontam proporção de sequelas entre 20% a 35% dos casos (principalmente insuficiência mental e doença motora não progressiva), sendo que, em muitas situações, aquelas se relacionam mais com a doença de base do que com as próprias convulsões; as convulsões recorrentes são referidas com uma frequência entre 15% e 20%.

Comparando as alterações do desenvolvimento em RN de termo e pré-termo, a médio e longo prazo, a proporção daquelas é muito maior no segundo caso (cerca de 75%) do que no primeiro (cerca de 40%).

Quanto à mortalidade, considerando globalmente RN pré-termo e de termo (~ 20%-25%), salienta-se que mais de metade dos óbitos ocorre nos RN pré-termo.

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TRAUMATISMO DE PARTO

Definição e importância do problema

Os traumatismos de parto (traumatismos de nascimento ou tocotraumatismos) são lesões ocorridas no feto aquando do parto por acção de forças mecânicas de tracção ou pressão relacionadas em geral com situações muito diversas, evitáveis ou não, tais como partos obrigando ao recurso instrumental, quer com nascimento normal e sem relação causal aparente.

Actualmente, nos países industrializados a morte por traumatismo de parto, apesar de rara, contribui com uma proporção importante para a morbilidade neonatal. A incidência de tal patologia oscila, conforme diversos estudos epidemiológicos e diferentes locais de parto, entre 2 e 5/1.000 nados-vivos, valor que comparticipa entre 1% a 3% a mortalidade infantil.

Nesta perspectiva, o médico ou outro profissional de saúde que presta assistência ao parto (idealmente integrado em equipa) deve estar preparado para prevenir, enfrentar e resolver os problemas decorrentes deste tipo de lesões traumáticas potencialmente fatais ou podendo originar sequelas de gravidade variável.

Etiopatogénese e classificação

São considerados factores predisponentes de lesões traumáticas: macrossomia, desproporção feto-pélvica, prematuridade, distócia, trabalho de parto prolongado, parto vaginal com apresentação pélvica, anomalias de apresentação, manobras de versão intra ou extrauterina e utilização de instrumentos (ventosa, fórceps).

Com base na sua etiopatogénese, os traumatismos de parto (ante ou intraparto) podem ser divididos em duas categorias:

  1. Lesões provocadas por hipóxia-isquémia;
  2. Lesões decorrentes de aplicação de forças mecânicas.

Durante o trabalho de parto, a cabeça e o corpo do feto estão sujeitos à pressão cérvico-vaginal podendo, por isso, sofrer acção traumática da qual poderão resultar lesões. E sempre que haja necessidade de recurso a instrumentos ou a manobras de versão fetal, aumenta a probabilidade das mesmas.

As lesões por hipóxia-isquémia são provocadas por alterações placentares, estiramento do cordão umbilical, administração excessiva de fármacos à mãe, ou lesões provocadas pela manipulação fetal externa ou interna.

A ventosa, quando aplicada incorrectamente, pode alongar o crânio na direcção occípito-frontal provocando o estiramento da tenda do cerebelo, susceptível de provocar a ruptura da veia de Galeno ou dos seios recto ou transverso. O recém-nascido poderá inicialmente apresentar-se assintomático ou com lesões de gravidade variável (escoriações, abrasões, lacerações cutâneas, hematomas, fracturas, designadamente do crânio, com afundamento ou em bola de pingue-pongue, etc.), as quais poderão originar sequelas.

A aplicação do fórceps, procedimento mais difícil do que a ventosa e exigindo eficaz analgesia materna, pode originar quer lesões dos tecidos moles da mãe, quer das estruturas osteomusculares e cutâneas do feto (couro cabeludo e crânio, face, olhos e massa cerebral). As fracturas do crânio são mais frequentes com o fórceps do que com a ventosa.

Quando as colheres do fórceps são aplicadas de modo simétrico, a curva cefálica da colher do fórceps adapta-se à curva craniana fetal e torna possível a aplicação da força na maior superfície possível. Por consequência, se as colheres do referido instrumento não forem aplicadas de modo simétrico em relação ao plano sagital, a curva cefálica da colher, não se adaptando ao crânio fetal, gera forças tensionais que provocam a deformação e a eventual fractura do osso onde a colher estiver apoiada. Esta situação pode igualmente provocar a ruptura das veias perfurantes, levando a hemorragia intracraniana.

A monitorização fetal intra-parto (no caso de aplicação de eléctrodo no coiro cabeludo ou na parte corporal apresentada, por vezes em posição incorrecta), pode também ter consequências várias: abrasões e lacerações ao nível do crânio, face, globo ocular ou outro local. E da colheita de sangue fetal para estudo analítico poderá resultar hemorragia. Tal conjunto de sinais clínicos integra-se no conceito lesões iatrogénicas.

Manifestações clínicas e actuação

Seguidamente são descritas as principais formas clínicas de lesões traumáticas associadas às condições do nascimento, assim como a actuação essencial em tais circunstâncias, relacionando alguns tipos daquelas com a aplicação instrumental (fórceps ou ventosa). Determinadas situações referidas no Quadro 1 são objecto de descrição noutros capítulos do livro.

QUADRO 1 – Classificação das lesões traumáticas do parto relacionáveis com forças mecânicas.

Lesões extracranianas
Caput succedaneum; Cefalo-hematoma; Hemorragia subaponevrótica

Lesões cranianas
Fracturas; Escoriações; Outras

Lesões intracranianas
Hemorragia epidural; Hemorragia subdural; Hemorragia subaracnoideia

Lesões de nervos e espinhal medula
Lesão do plexo braquial; Paralisia do nervo facial; Lesão do nervo frénico; Lesão do nervo recorrente; Lesão da espinhal medula

Lesões dos ossos
Clavícula; Úmero; Fémur; Outras

Lesões dos músculos
Hematoma/Fibroma do esternocleidomastoideu

Lesões da face
Luxação do septo nasal; Lesões oculares

Lesões da pele
Equimoses; Escoriações; Hematomas; Esteatonecrose

Lesões viscerais
Hemorragia suprarrenal; Ruptura do baço; Ruptura do fígado; Outras

Lesões extracranianas

As lesões cranianas mais frequentes são o caput succedaneum e o céfalo-hematoma, por vezes associadas a parto instrumental; as mesmas manifestam-se por tumefacção com características, cronologia de aparecimento e evolução distintos (consultar capítulo sobre “Exame clínico do Recém-nascido”).

Caput succedaneum

O caput succedaneum (vulgo bossa sero-sanguínea, tratando-se de lesão na cabeça) apresenta-se no pós-parto imediato como uma zona de edema mole e superficial (ao nível do tecido celular subcutâneo) que ultrapassa o limite das suturas ósseas.

Acompanha-se de acentuada moldagem craniana e regride ao fim de alguns dias; não se torna, dum modo geral, necessária qualquer intervenção, exceptuando nos casos de diátese hemorrágica concomitante.

Cabe referir, a propósito, que a noção de caput succedaneum é lata, dizendo respeito, de facto à zona de apresentação que, na maior parte dos casos, é a cabeça. Portanto, conceptualmente, a designação de caput pode aplicar-se também a outras áreas de apresentação tais como face, fronte, nádegas (Figura 1) e extremidades.

FIGURA 1. Lesão traumática da nádega em RN (apresentação de nádegas) com escara. (URN-HDE)

O chamado caput vacuum é uma modalidade de caput succedaneum, de contornos bem demarcados pela aplicação dos bordos da ventosa.

Quanto à actuação, deverá adoptar-se atitude de vigilância, sem necessidade de qualquer terapêutica (não se devendo proceder à drenagem pelo risco de infecção).

Céfalo-hematoma

O céfalo-hematoma, ocorrendo em cerca de 1% a 2% dos nascimentos, é uma colecção hemática, dos tecidos não superficiais (localização subperióstica). Sendo subperióstica, não ultrapassa os limites de cada sutura óssea, ao contrário do que acontece no caput succedaneum. A localização mais frequente é parietal, podendo ser uni ou bilateral. Esta tumefacção resulta da lesão dos capilares e vasos diplóicos, que acompanha a separação do periósteo do osso respectivo, sendo que, não evidente no momento do nascimento, somente passa a ser notada ao cabo de alguns dias, com tendência para aumentar: passa, então, a palpar-se (e, por vezes, a ver-se) uma tumefacção esferóide sob tensão, por vezes com sinal de flutuação. Dada tal cronologia de aparecimento, muitas vezes é a mãe que nota a anomalia quando a criança já terá tido alta da maternidade.

No caso de o céfalo-hematoma se manifestar atipicamente, no pós-parto imediato e no contexto de parto laborioso e instrumental, pela etiopatogénese explanada anteriormente (colecção hemática subperióstica), tal facto poderá traduzir a presença de fractura óssea no contexto de paciente com quadro de diátese hemorrágica (constituindo esta última, factor predisponente.

A verificação de céfalo-hematoma não tem relação com o prognóstico neurológico a não ser que em simultâneo exista uma lesão do sistema nervoso central. Por isso, não obriga, em princípio, a qualquer terapêutica específica e não necessita de qualquer intervenção cirúrgica.

Se se tratar de lesão de grande dimensão (aspecto relacionável, por exemplo, com parto complicado ou diátese hemorrágica como situação de base), poderá verificar-se no pós-parto imediato um quadro de anemia por perda ou, ulteriormente, de icterícia por hemólise de quantidade significativa de sangue localizado.

A actuação nestas circunstâncias dependerá do grau de anemia e da hiperbilirrubinémia verificada. A médio prazo, poderá ocorrer calcificação, o que se traduz em tumefacção dura nas semanas e meses subsequentes, a qual passará a ser menos notória com o crescimento do crânio, não agravando o prognóstico na ausência doutras lesões.

Neste tipo de lesão, também não se deve proceder à drenagem.

Hemorragia subaponevrótica

As complicações hemorrágicas associadas ao parto por ventosa têm uma incidência de cerca de 0,7% e uma mortalidade ~ 0,2%. A hemorragia pode ocorrer em diferentes planos teciduais, desde a pele ao osso do crânio. A complicação mais grave derivada da aplicação da ventosa é a hemorragia subaponevrótica (entre a pele e o periósteo) caracterizada por uma “massa flutuante” que pode evidenciar sinais de “onda líquida” e que ultrapassa as suturas cranianas.

A hemorragia subaponevrótica pode ser acompanhada de palidez (anemia por perda), taquicárdia e hipotonia. Em estudos anátomo-patológicos estimou-se que o espaço subaponevrótico, quando preenchido por uma colecção de sangue com cerca de 1 cm de espessura, poderá acomodar um volume de sangue de 260 mL, o que excede a volémia total de alguns recém-nascidos.

A sua incidência é cerca de 4/10.000 em partos eutócicos e de 60/10.000 em partos por ventosa; a mortalidade é muito significativa (cerca de 22%).

Com efeito, sob a aponevrose, mais densa, existe uma outra camada fibrosa, menos densa, contendo grandes veias emissárias com ligação aos seios durais e veias do couro cabeludo. A lesão da referida aponevrose está associada a um conjunto de factores como a compressão externa com movimento de tracção, e a eventual défice de coagulação, que é particularmente grave na presença de hemofilia.

É mais rara do que a bossa sero-sanguínea, da qual difere por aumentar após o nascimento e se acompanhar de importante perda de sangue. Assim, os recém-nascidos de sexo masculino, que apresentem hemorragia subaponevrótica extensa após partos difíceis, devem ser avaliados quanto ao sistema de coagulação, em especial com doseamento dos factores VII e VIII. Embora rara, a hemofilia A deve ser admitida como hipótese face ao contexto clínico referido. Nos casos de hemofilia comprovada, e perante situações emergentes implicando necessidade de intervenção cirúrgica, deve ser efectuada terapêutica substitutiva com o factor em défice para prevenir a hemorragia pós-operatória.

O diagnóstico da hemorragia subaponevrótica reveste-se, por vezes, de grande dificuldade. Uma vez que o sangue não forma um coágulo, mas uma camada extensa e difusa nos tecidos moles, é frequente passar despercebida nas primeiras horas de vida. Têm sido referidas formas silenciosas responsáveis pela morte neonatal sem sinais clínicos evidentes numa fase inicial de observação.

A actuação consiste em vigiar a anemia – que poderá obrigar a transfusão de sangue – e a hiperbilirrubinémia. Em geral aquela regride ao fim da 3ª ou 4ª semana de vida, não estando indicada a drenagem.

Notas importantes:

    1. Dada a possibilidade de ocorrência de lesão traumática e a necessidade de um rápido diagnóstico e terapêutica, torna-se obrigatória a presença do neonatologista quando se realiza um parto por fórceps.
    2. Como será fácil depreender, a utilização sequencial da ventosa e fórceps está associada a maior frequência de lesões traumáticas (tais como lesão do plexo braquial, lesão do nervo facial, hemorragia intracraniana) e de asfixia perinatal. (ver adiante)
    3. O diagnóstico das lesões por fórceps ou ventosa efectua-se pela clínica, confirmada por ecografia transfontanelar, e por TAC ou RM se houver necessidade de detectar com mais rigor a presença de hemorragia na fossa posterior e nas estruturas cerebelosas.
    4. O prognóstico da fractura induzida pela aplicação do fórceps depende das lesões associadas, salientando-se que em cerca de 4% dos casos as sequelas a longo prazo poderão ser graves.

Lesões cranianas

Descrevem-se os seguintes tipos de lesões ósseas cranianas:

  • fracturas (lineares e com afundamento, também chamadas “em bola de ping pong, mais tipicamente associadas a ventosa);
  • formas de osteodiastase occipital (separação traumática da junção cartilagínea entre a escama do occipital e o osso parietal, situação hoje rara); e
  • fracturas espontâneas, raramente associadas a lesões cerebrais, ao contrário do que acontece nos partos com instrumentos. A sua incidência, difícil de determinar, depende da suspeita clínica e da realização da radiografia craniana (Figuras 2 e 3).

O diagnóstico da fractura craniana é confirmado por radiografia simples ou ecografia transfontanelar. Contudo, é frequente a ocorrência simultânea de acentuado edema do couro cabeludo, tal como acontece na presença da hemorragia subaponevrótica: nestes casos deve recorrer-se à TAC ou à RM crânio-encefálica. Esta última tem sido cada vez mais utilizada para avaliar as lesões hemorrágicas e parenquimatosas nos casos de traumatismos cranianos perinatais.

Tais situações implicam a colaboração indispensável das equipas de neurocirurgia e de cuidados intensivos neonatais.

A fractura linear não requer terapêutica específica, mas deve ser vigiada no plano clínico e imagiológico.

Lesões intracranianas

A hemorragia intracraniana no recém-nascido de termo pode ser uma complicação grave de traumatismo de parto. A sua frequência tem vindo a diminuir devido aos progressos relacionados com o número crescente de casos submetidos a monitorização contínua do bem-estar fetal e de partos por cesariana.

Os factores de risco estão relacionados com a aplicação do fórceps, da ventosa, do parto precipitado e da macrossomia fetal com parto por via vaginal.

A incidência da hemorragia intracraniana sintomática nos recém-nascidos de termo é cerca de 5 a 6/10.000.

De acordo com a sua localização, podem ser considerados os seguintes tipos: hemorragia subdural, epidural e subaracnoideia. Segundo Volpe, é muito importante ter em consideração:

  1. os factores de risco tais como a idade de gestação, o trabalho de parto, o parto, a ocorrência de eventos como a asfixia e a necessidade de reanimação;
  2. os sinais neurológicos de alarme, os quais deverão ser identificados o mais precocemente possível;
  3. a imagiologia para localização da hemorragia, com recurso à ecografia transfontanelar, TAC e RM; e
  4. o exame do líquido cefalorraquidiano.
Hemorragia epidural

Este tipo de lesão, consequência da ruptura da artéria meníngea média, está frequentemente associado a cefalo-hematoma ou a fractura craniana. A raridade desta situação no recém nascido deve-se à ausência do sulco da artéria meníngea média nos ossos cranianos, tornando a artéria menos susceptível à lesão.

FIGURA 2. Radiografia do crânio de RN (parto de fórcepes) com sinal de traço de fractura.

FIGURA 3. Radiografia do crânio de RN: osteodiastase traumática.

As manifestações clínicas podem incluir alterações neurológicas difusas com hipertensão intracraniana, fontanela hipertensa e alterações focais como convulsões e estrabismo.

O diagnóstico é confirmado pela ecografia transfontanelar e TAC cranioencefálica ou RM.

O tratamento inclui a correcção do choque hipovolémico e das alterações da coagulação. Na maioria dos casos está indicada drenagem cirúrgica, a cargo de equipa especializada.

Hemorragia subdural

É a menos frequente das hemorragias intracranianas, mas a mais frequentemente relacionada com evento traumático; pode afectar igualmente RN de termo e pré-termo. A sua incidência é cerca de 2 a 3 por 10.000 nados-vivos nos partos vaginais espontâneos, e cerca de 8 a 10 por 10.000 nos partos por ventosa e fórceps. Trata-se duma lesão traumática cuja incidência tem diminuído à medida que melhora a qualidade dos cuidados pré-natais.

O diagnóstico é determinante dado que a intervenção cirúrgica é decisiva para ultrapassar o risco de vida. Salienta-se que a presença de hemorragia subdural não corresponde necessariamente a traumatismo de parto grave.

Uma vez que a drenagem profunda do cérebro desagua na grande veia de Galeno, na junção da tenda do cerebelo com a foice do cérebro, a localização mais comum é a tentorial e a inter-hemisférica.

As manifestações clínicas dependem da localização da hemorragia. Esta, quando localizada na convexidade cerebral, produz alterações neurológicas focais; na fossa posterior, os sinais mais frequentes (apneia, assimetria pupilar, desvio ocular e coma) estão associados ao aumento da pressão intracraniana. De referir que a sintomatologia tem o seu início em geral nas primeiras 24 horas, mas nalguns casos, pode ocorrer no 4º ou 5º dia após o parto.

A ecografia transfontanelar pode constituir uma contribuição muito útil para o diagnóstico; contudo, a técnica de eleição é a TAC cranioencefálica.

A indicação para intervenção cirúrgica dependerá da localização da hemorragia e dos sinais de compressão do tronco cerebral.

O prognóstico depende da presença de enfarte cerebral e da localização da lesão. Trata-se duma situação que implica, evidentemente, apoio das equipas de neurocirurgia e de cuidados intensivos neonatais.

Hemorragia subaracnoideia

A incidência desta hemorragia é cerca de 1,3 por 10.000 nados-vivos de partos vaginais espontâneos; nos casos de partos por ventosa e fórceps, a mesma sobe para 2 a 3 por 10.000 nados-vivos.

Este problema clínico é originado pela ruptura das veias perfurantes do espaço subaracnoideu ou das pequenas veias leptomeníngeas. Pode ser assintomática ou manifestar-se por convulsões que ocorrem por volta do 2º dia de vida. O risco é mais significativo nos partos instrumentais. (ventosa)

O diagnóstico mais preciso é feito por TAC, pois a ecografia transfontanelar não propicia informação suficiente. Exceptuando os casos em que é muito extensa, nos recém-nascidos de termo tal hemorragia é reabsorvida, não exigindo qualquer intervenção. Se não houver lesão cortical ou encefalopatia, não surgirão sequelas. (ver adiante, nesta Parte XXXI, o capítulo sobre Hemorragias Intracranianas)

Como medidas gerais mais importantes aplicáveis a situações de hemorragias intracranianas, apontam-se:

    1. Monitorização dos sinais vitais, temperatura, PO2, PCO2, SpO2, pressão arterial, glicémia, balanço hidroelectrolítico, estudo da coagulação, etc.;
    2. Por vezes, torna-se necessário tratar o edema cerebral, utilizar anticonvulsantes, restringir o suprimento inicial de fluidos tendo em conta designadamente a eventualidade de surgimento de quadro de secreção inapropriada de hormona antidiurética (SIADH) e ainda, a necessidade de algaliação.

Lesões dos nervos e espinhal medula

As lesões do plexo braquial, hoje mais raras com os progressos na prática obstétrica, ocorriam há três décadas, aproximadamente entre 0,5 a 2,6/1.000 nascimentos. Na maior parte dos casos (80%-90%), verifica-se recuperação em semanas ou meses, conquanto nos restantes 10%-20% haja necessidade de tratamento complexo e multidisciplinar.

Os factores de risco de lesão do plexo braquial são: macrossomia fetal (peso de nascimento > 4.000 gramas), microssomia (peso < 2.500 gramas) em apresentação pélvica, prolongamento do 2º estádio do trabalho de parto, distócia de ombros, má apresentação fetal e necessidade de parto com instrumentos.

Podem ser observados três tipos de lesão do plexo:

  • Paralisia de Erb-Duchenne, a mais frequente (cerca de 90% dos casos), envolvendo as raízes C5 e C6;
  • Paralisia de Klumpke, secundária a lesão das raízes inferiores de C8 e T1; e
  • Paralisia braquial total por lesão nas raízes de C5, C6, C8 e T1).

Para explicar este tipo de lesões têm sido admitidas várias hipóteses tais como:

  • tracção lateral do pescoço para libertar o ombro anterior, levando a edema;
  • hemorragia, ou mesmo ruptura, das raízes do plexo braquial; e
  • estiramento do plexo na sequência de rotações iguais ou superiores a 90º.

Na paralisia de Erb-Duchenne, o membro superior afectado evidencia posição em extensão, adução e rotação interna (um autor inglês chamou, com alguma ironia, a esta posição, o “sinal do empregado de café que pede discretamente gorgeta). O reflexo de preensão está presente, mas o reflexo de Moro é assimétrico à custa da parésia do lado afectado. À movimentação passiva, o membro evidencia flacidez e, quando solto, cai facilmente ao longo do tronco (Figura 4).

Neste tipo de lesão poderá verificar-se concomitantemente lesão do nervo frénico originando paralisia do diafragma, dada a sua relação com o plexo braquial (origem nas raízes de C3, C4, C5); tal situação poderá ter repercussão na mecânica ventilatória do diafragma. Tal pode ser demonstrado em cinerradioscopia ou ecografia (hemicúpula elevada e ausência de abaixamento do diafragma na inspiração) (Figura 5).

Na paralisia de Klumpke (Figura 6), mais rara, os músculos flexores do punho são atingidos, observando-se paralisia da mão; são notórias mão pendente, ausência de reflexo de preensão e de mobilidade do punho. A este tipo de lesão poderá associar-se a síndroma de Claude-Bernard-Horner (enoftalmia, miose e ptose palpebral por lesão do simpático) assim como paralisia de Erb-Duchenne paralisia braquial total).

FIGURA 4. Paralisia de Erb-Duchenne (lado direito). (NIHDE)

FIGURA 5. Lesão do frénico à direita originando paralisia da cúpula diafragmática direita. Concomitante fractura da clavícula homolateral. (URN-HDE)

FIGURA 6. Paralisia de Klumpke.

Deve ter-se em consideração a possibilidade de lesões associadas como o hematoma do músculo esternocleidomastoideu, fractura da clavícula, do úmero ou costelas, lesão do facial, do hipoglosso e, mesmo, da medula espinhal.

Em função do contexto clínico e antecedentes do parto poderão estar indicadas radiografia do ombro e membro superior afectados (para exclusão de fractura), radiografia do tórax e, eventualmente, ecografia ou cinerradioscopia se se verificar dificuldade respiratória relacionável com lesão do nervo frénico.

O tratamento das paralisias do plexo braquial deve incluir a fisioterapia precoce com o objectivo de evitar as contracturas e deformidades articulares, sendo o prognóstico favorável quando a recuperação dos movimentos dos músculos bicípete e adutor do ombro, aos 3 meses, for total.

Perante o diagnóstico de paralisia do frénico a actuação consiste em medidas de suporte, tais como, decúbito lateral sobre o lado afectado e oxigenoterapia. Na maioria dos casos verifica-se recuperação espontânea, sendo que a intervenção cirúrgica fica reservada para situações especiais de infecções respiratórias de repetição e insuficiência respiratória.

Lesão do nervo facial

A lesão do nervo facial (7º par craniano), que ocorre em cerca de 0,20%-0,30% dos nascimentos, é em geral causada pela compressão da porção periférica do nervo (paralisia periférica) no percurso exterior ao forâmen estilomastoideu ou no seu trajecto à frente do ramo da mandíbula (por exemplo por compressão in utero ou por aplicação de fórceps). O nervo é mais frequentemente afectado por compressão pelo fórceps ou pelo promontório materno (em partos laboriosos).

A paralisia do tipo central é menos frequente, estando relacionada com lesão traumática do SNC.

Os sinais clínicos da paralisia periférica (flácida) manifestam-se por sulco nasolabial menos notório no lado afectado, não encerramento completo das pálpebras do olho do lado afectado (o que não acontece na paralisia central) e desvio da comissura labial, mais aproximada da linha média (por vezes só detectado durante o choro ficando imóvel), em contraste com o lado oposto (são) em que a mesma se afasta da linha média.

Nas formas completas pode manifestar-se em toda a hemiface, o que se traduz por ausência de pregueamento da hemifronte afectada coincidindo com o choro da criança (Figura 7).

A paralisia central é espástica, atingindo apenas a metade inferior da face contralateral. Os movimentos das pálpebras e da fronte estão intactos. Está frequentemente associada a paralisia do 6º par e a hemorragia intracraniana.

O diagnóstico diferencial da paralisia facial traumática faz-se com:

    1. situações de paralisia (central) congénita relacionadas, por exemplo, com agenésia do núcleo do nervo facial (síndroma de Moebius);
    2. determinadas síndromas malformativas como síndroma de Goldenhar, trissomias 13 e 18, etc.; 3) e;
    3. outra situação congénita e benigna que consiste na ausência dos músculos depressores da boca.

FIGURA 7. Paralisia facial periférica à direita. (UCIN-HDE)

A evolução em geral é favorável, para a cura, em cerca de 2 a 3 semanas (na circunstância de existir apenas compressão e edema locais). A ausência de encerramento palpebral nos casos de paralisia periférica implica cuidados com a humidificação da córnea com soro fisiológico. O tratamento limita-se à protecção do olho afectado; a intervenção neurocirúgica (neuroplastia) somente está indicada nas situações persistentes.

Lesão do nervo recorrente

A lesão unilateral pode ser causada por tracção excessiva da cabeça fetal durante o parto com apresentação pélvica, ou por tracção lateral da cabeça provocada por aplicação de fórceps. A lesão bilateral pode ser causada por traumatismo, hipóxia–isquémia ou hemorragia do tronco cerebral.

Nos casos de paralisia unilateral, o RN poderá estar assintomático ou evidenciar disfonia ou estridor inspiratório durante o choro. Muitas vezes o traumatismo atinge também o nervo grande hipoglosso, o que originará dificuldade alimentar e acumulação de secreções na orofaringe por compromisso da deglutição. A paralisia bilateral origina estridor, dificuldade respiratória e cianose.

Na paralisia unilateral, as manifestações podem obrigar a diagnóstico diferencial com defeitos laríngeos congénitos; verificando-se sinais de paralisia bilateral, em função da história clínica (possível trauma não evidente), deverão ser excluídos defeitos congénitos do SNC incluindo anomalia de Arnold-Chiari, anomalias cardiovasculares e massas mediastínicas.

O diagnóstico pode ser feito através de laringoscopia flexível com fibra óptica.

A paralisia unilateral regride em geral ao cabo de 6-8 semanas, não necessitando de qualquer tratamento ou intervenção. Nalguns casos de paralisia bilateral o prognóstico é reservado, podendo ser necessária a traqueostomia.

Lesão da espinhal-medula

As lesões da espinhal-medula, cujas formas graves são raras, poderão surgir no contexto de hiperextensão da cabeça e pescoço, apresentação pélvica e distócia de ombros. As formas clínicas habituais são: hematoma espinhal epidural, lesão da artéria vertebral, hematomielia cervical traumática, oclusão da artéria espinhal e secção transversal.

As manifestações clínicas podem englobar-se em 4 modalidades, dependendo da localização:

  1. Lesão cervical alta e/ou do tronco cerebral: morte fetal, depressão neonatal, SDR, choque, e hipotermia, sendo o prognóstico mau, com óbito neonatal precoce;
  2. Lesão cervical média/alta: depressão neonatal, SDR, paralisia das extremidades inferiores, arreflexia tendinosa, perda da sensibilidade na metade inferior corporal, retenção urinária e obstipação; pode haver associação a paralisia braquial;
  3. Lesão ao nível de C7 ou inferior, por vezes reversível: atrofia muscular, deformidades ósseas, contracturas e incontinência urinária;
  4. Lesão espinhal parcial ou oclusão da artéria espinhal: espasticidade e sinais neurológicos subtis.

O diagnóstico diferencial inclui fundamentalmente amiotonia congénita, mielodisplasia associada a spina bifida, tumores da espinhal medula, etc.. A imagiologia, através de radiografia convencional da coluna vertebral, TAC e RM podem contribuir para o diagnóstico.

O prognóstico depende da gravidade e localização da lesão.

A actuação compreende, entre outras medidas, manobras de ressuscitação e imobilização da cabeça-pescoço-tronco, o que implica colaboração de centro especializado.

Lesões dos ossos

A distócia de ombros surge em 0,5% a 2% dos partos por via vaginal, representando, por vezes, uma verdadeira emergência obstétrica. Felizmente, a maior parte das distócias de ombros é resolvida sem morbilidade materna ou fetal; como complicações podem surgir vários tipos de fracturas (da clavícula, úmero, fémur) e/ou lesão do plexo braquial.

A clavícula é o osso que mais frequentemente se fractura no contexto de traumatismo do parto, variando a sua frequência entre 0,3% a 2,3 % dos casos; de salientar que o seu significado clínico é limitado, não reflectindo a qualidade dos cuidados prestados.

Como manifestações clínicas da fractura da clavícula citam-se: hipomobilidade do membro superior do lado correspondente, crepitação e irregularidade ou saliência notada pela palpação da região clavicular, reflexo de Moro ausente ou incompleto do mesmo lado, e diminuição da depressão supraclavicular resultante do espasmo do esternocleidomastoideu.

Dum modo geral (exceptuando nos casos de lesões traumáticas associadas), perante a suspeita de fractura simples, não se torna necessário proceder à radiografia da clavícula. Por vezes o diagnóstico de fractura é feito a posteriori pela mãe da criança ao prestar-lhe os cuidados: saliência indolor ovóide que corresponde ao calo ósseo, traduzindo a excelência do prognóstico e a rapidez da consolidação (Figura 8).

Se forem detectados sinais de fractura (a palpação da região clavicular constitui um procedimento obrigatório do primeiro exame físico do RN no pós-parto), deverá proceder-se a uma imobilização do membro superior e ombro no sentido de minorar a dor pelo manuseamento da criança (por exemplo fixar a manga do casaco à roupa que cobre o tronco com um alfinete de segurança).

As fracturas dos ossos longos dos membros são, em geral, em ramo verde, podendo, no entanto, ser completas. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, a fractura do úmero é, a seguir à da clavícula, a segunda mais frequente, comparticipando cerca de 4,2% dos casos de lesões traumáticas; relaciona-se, na sua maioria, com manipulação fetal para extracção do membro superior em posição posterior.

FIGURA 8. Fractura da clavícula direita. (URN-HDE)

As fracturas do fémur e do rádio são hoje muito raras devido aos progressos na assistência ao parto; estão relacionadas, sobretudo, com partos de apresentação pélvica ou em cesarianas com extracção fetal muito difícil.

As fracturas metafisárias e descolamentos epifisários dos ossos longos surgem habitualmente no contexto de manobras de versão externa ou na extracção fetal durante a distócia de ombros.

O diagnóstico de fractura dos ossos longos implica imobilização de imediato, com a indispensável actuação pelo ortopedista.

Lesão dos músculos

Hematoma/Fibroma do esternocleidomastoideu

Este tipo de lesão cuja etiopatogénese é controversa surge, em geral, no contexto de partos distócicos com rotação e extensão excessivas do pescoço, do que resulta ruptura das fibras musculares do esternocleidomastoideu com hematoma ou trombose venosa e ulterior desenvolvimento de tecido fibroso; poderá também estar em relação com má-posição intrauterina.

As manifestações surgem, na maior parte das vezes, entre a primeira e a segunda semana de vida, quando a criança já está em casa. Observa-se tumoração ou nódulo em forma de azeitona, de consistência firme com cerca de 2 a 5 cm de diâmetro, fazendo corpo com o músculo em questão; por vezes verifica-se apenas um endurecimento localizado do músculo relacionado com fibrose difusa. Em ambas as circunstâncias pode verificar-se concomitantemente torcicolo, constituindo este o primeiro sinal de alerta (Figura 9).

São descritos dois tipos de evolução: – ou regressão pelo 5º-6º mês de vida; – ou fibrose residual com torcicolo, escoliose cervical e deformação craniofacial.

A actuação nestes casos implica encaminhamento para consulta de cirurgia pediátrica na eventualidade de ser necessário proceder a exames complementares (ecografia muscular, radiografia da coluna cervical, etc.) e fisioterapia. Entretanto, deverá promover-se o ensino a quem cuida da criança no sentido de se realizarem exercícios passivos (inclinação da cabeça para o lado oposto ao mesmo tempo que se volta o mento para o lado afectado). Durante o sono, a criança deverá ficar em posição que se oponha à posição viciosa, com o auxílio de saco de areia ou almofada especial.

Nos casos de evolução não favorável com a actuação conservadora, está indicada intervenção cirúrgica, idealmente não depois dos 4 anos (ver Parte XXV, sobre Ortopedia).

Lesão da face

Para além das fracturas dos ossos da face e maxilar inferior (hoje raras devido aos progressos da medicina materno-fetal e obstetrícia), cabe dar realce às fracturas dos ossos próprios do nariz e à luxação da cartilagem nasal; esta última, a mais frequente lesão nasal traumática, traduz-se por desvio do septo, que poderá comprometer a respiração por obstrução nasal. Trata-se duma situação que implicará correcção precoce a cargo da equipa de ORL pelo risco de sequelas (deformação permanente).

As lesões oculares foram abordadas na Parte XXVI – Oftalmologia.

A Figura 10 mostra o aspecto de um RN com um quadro de lesão traumática da fronte e face traduzida essencialmente por edema generalizado, no contexto de apresentação de face e asfixia perinatal. Trata-se duma situação evitável, hoje rara, que se apresenta por razões didácticas.

Lesão da pele e tecidos moles

Para além de equimoses, hematomas e feridas contusas, salientam-se dois quadros clínicos clássicos, raros:

Esteatonecrose

A esteatonecrose é uma lesão circunscrita da pele e tecido celular subcutâneo (do tipo placa), com certo grau de dureza à palpação, de cor avermelhada ou arroxeada.

FIGURA 9. Hematoma/fibroma do esternocleidomastoideu à direita. (URN-HDE)

FIGURA 10. Lesão traumática da fonte e face resultante de apresentação de face. (URN-HDE)

Os casos descritos na literatura englobam sobretudo antecedentes de macrossomia; as alterações descritas anteriormente surgem em geral entre a 1ª semana e a 2ª semana, após partos laboriosos e/ou traumáticos, em áreas com maior deposição de gordura tais como nádegas, dorso, coxas, membros superiores e face.

A etiopatogénese relaciona-se com trauma, hipóxia-isquémia e hipotermia, conduzindo a processo necrótico do tecido adiposo subcutâneo com ulceração ocasional. Estudos anátomo-patológicos demonstraram cristais de gordura neutra por solidificação da gordura originando ulteriormente “reacções de corpo estranho” (cristais de palmitina no citoplasma de células “gigantes”).

A evolução natural é no sentido de regressão espontânea lenta, em semanas a meses. Como sequelas poderá verificar-se atrofia residual, cicatrizes e, raramente, calcificações.

Não existe tratamento específico. Esta entidade foi abordada no capítulo sobre Paniculites, na Parte XXIII.

Máscara equimótica

Este quadro clínico, cuja designação é histórica, traduz-se por aspecto azulado da fronte, face e pescoço como consequência de petéquias e sufusões pequenas confluentes, em geral com hemorragia subconjuntival associada.

O mesmo resulta de hipertensão venosa no território da veia cava superior nos casos de circular do cordão apertada. Idêntico quadro pode surgir nos casos de partos com período expulsivo rápido, levando a descompressão brusca do tórax (patogénese semelhante à dos traumatismos torácicos verificados noutros grupos etários).

Em geral, o prognóstico é favorável na ausência de hipóxia-isquémia perinatal e boa adaptação à vida extrauterina (Figuras 11 e 12).

As lesões viscerais são mais frequentes nos partos pélvicos, em RN macrossómicos e nos casos de patologia de base acompanhada de visceromegália.

O fígado é o órgão mais frequentemente afectado, variando as manifestações clínicas do tipo de lesão (por ex. fractura, hematoma subcapsular, etc.). Na sua forma mais típica verifica-se palidez explicada por anemia por perda, diminuição progressiva do hematócrito e possível evolução para choque hipovolémico.

Como nota importante refere-se que a hepatomegália (resultante de hemorragia subcapsular) pode ser um sinal de alerta no contexto de parto laborioso. A ecografia ou radiografia simples abdominais poderão evidenciar sinais de conteúdo líquido intraperitoneal.

FIGURA 11. Máscara equimótica em RN (efeito resultante de circular apertada ao pescoço). (URN-HDE

FIGURA 12. Hemorragia subconjuntival em RN com máscara equimótica. (URN-HDE)

A ruptura do baço, menos frequente, poderá ter manifestações semelhantes às descritas para a lesão hepática; a radiografia abdominal simples poderá evidenciar sinais indirectos de hemoperitoneu (designadamente opacidade difusa, desvio da “bolha” gasosa gástrica para a linha média, etc.).

A lesão das suprarrenais (hemorragia) é, em regra, subclínica; nos casos de manifestações evidentes, poderão ser detectados sinais inespecíficos de modo progressivo em relação com:

  • anemia por perda (taquipneia, taquicárdia, palidez, etc.), ou com
  • insuficiência suprarrenal (vómitos, hipoglicémia, irritabilidade, coma, convulsões, diarreia, etc.).

A confirmação da hemorragia suprarrenal (a posteriori) pode ser obtida procedendo a ecografia ou radiografia simples: identificação de sinais localizados de calcificação.

A actuação engloba: – medidas de suporte; – eventualmente, terapêutica de substituição hormonal ou intervenção cirúrgica.

Aspectos importantes da actuação geral e prevenção

As lesões devem ser alvo de observação atenta, sendo papel do médico prever a sua evolução e orientar a atitude terapêutica de modo a facilitar, sempre que possível, a permanência do recém-nascido junto da sua mãe.

Se as lesões forem muito importantes, torna-se indispensável falar com os pais o mais precocemente possível, explicando-lhes a causa e a evolução a curto prazo da situação. Embora muitas lesões que ocorrem após partos laboriosos sejam transitórias, as mesmas poderão interferir com o processo de vinculação precoce entre o recém-nascido e seus pais. Por outro lado, a ansiedade que surge na mãe poderá perturbar, não apenas o aleitamento materno, mas também o modo como irá perspectivar toda a sua relação com o bebé.

Por isso, tendo em consideração a segurança do recém-nascido e da sua família, torna-se necessário promover uma relação de confiança com o médico e a equipa em geral, somente possível através da comunicação e disponibilidade dos profissionais durante a permanência do RN na unidade neonatal.

A avaliação cuidadosa da gravidez e apresentação fetal, do trabalho de parto e do modo de descida da apresentação, assim como a decisão do obstetra quanto ao tipo de parto, serão aspectos determinantes para a prevenção do traumatismo parto.

No que respeita a aspectos técnicos prevenivos quanto a parto instrumental do âmbito do especialista de obstetrícia, torna-se importante relevar que este deverá seguir cuidadosamente as boas práticas quanto à aplicação do fórceps, assim como as instruções do fabricante em relação ao manejo da ventosa (por ex. força de vácuo a utilizar, a duração da aplicação, etc.).

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INFECÇÃO DE ORIGEM HOSPITALAR

Especificidade do período perinatal

Modernamente, é comum usar-se o título “Infecção associada à prestação de cuidados de saúde” como substituto de “Infecção hospitalar”. No entanto, aquele é um conceito mais amplo, englobando não só a infecção de origem hospitalar mas também a infecção adquirida em ambulatório, onde muitos doentes recebem cuidados de saúde.

Cabe salientar, a propósito, que a infecção associada à prestação de cuidados de saúde na comunidade é raríssima no período neonatal. Entendemos, por isso, que neste grupo etário, somente terá pertinência dar ênfase ao conceito clássico de infecção de origem hospitalar (IH).

Importância do problema

Os RN gravemente doentes admitidos em UCIN têm risco de IH, tanto mais elevado quanto mais grave for a doença de base, menor a idade de gestação, mais manobras invasivas forem realizadas, e maior tempo de internamento. Trata-se, pois, de problema comportando genericamente morbilidade e mortalidade evitáveis.

Por outro lado, tal problema é susceptível de agravar a doença de base, provado que está o seu efeito muito deletério sobre a própria doença de base, mais frequentemente sobre a patologia do SNC e do sistema respiratório.

Em termos quantitativos, o impacte pode ser tipificado pela seguinte realidade: a frequência das IH em unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN) só é ultrapassada pela frequência de infecção nas unidades de queimados, o que determina custos acrescidos.

Manifestações clínicas

A septicémia relacionada com cateter venoso central (CVC) é muito frequente; mais rara é a pneumonia relacionada com o tubo traqueal nos RN submetidos a ventilação invasiva.

Ao contrário do que acontece em unidades de adultos em que a infecção mais frequente é a urinária, a infecção mais frequentemente encontrada nas UCIN é a sépsis (com hemocultura positiva ou negativa).

A lista dos agentes mais frequentemente isolados inclui Staphylococcus coagulase negativa, dos quais se destacam Staphylococcus epidermidis, frequentemente meticilinorresistentes – seguidos, de longe, pelas bactérias de Gram negativo de origem entérica ou não entérica, muitas vezes multirresistentes.

De notar, contudo, que a infecção que surge num RN admitido em UCIN, pode também ser de origem materna, pelo que tal hipótese deve estar sempre presente.

Prevenção

A atitude mais importante no que respeita às IH é a prevenção, e a medida isolada mais eficaz na prevenção é a lavagem das mãos. Depois, outros factores podem influenciar e ser melhorados no sentido de diminuir as taxas da referida morbilidade.

Uma correcta relação enfermeiro/doente, espaço físico e arquitectura adequados, equipas médica e de enfermagem estáveis, são alguns desse factores.

Outro factor de importância primordial é a política de antibióticos de uma unidade hospitalar. Dela depende a ecologia dos serviços e unidades. A multirresistência é, quer se queira aceitar ou não, uma consequência do uso desregrado de antibióticos, muitas vezes prescritos sem razão, para “alívio da consciência, por insegurança ou por ignorância”.

Se a lavagem das mãos é um procedimento fulcral no controlo de infecção, outras medidas não devem ser desprezadas, as quais fazem parte dos procedimentos escritos das unidades neonatais e da avaliação diária do doente. Referimo-nos aos seguintes procedimentos:

Notas importantes:

    • avaliação diária da necessidade de ventilação mecânica (se o doente puder ser extubado hoje não adiar para amanhã);
    • avaliação diária da necessidade de manter um cateter venoso central, ou de o colocar, que tipo de cateter, local de inserção, e se é colocado na UCIN ou no bloco operatório; (se o CVC puder ser retirado hoje não adiar para amanhã);
    • programação da alta, logo que possível (se o doente puder sair hoje, não adiar para amanhã).

Para além das precauções a ter com os dispositivos invasivos, devem ser tomadas em atenção as medidas de isolamento adequadas a determinadas situações. Assim,

  • um RN colonizado com bactéria multirresistente deve ser colocado em isolamento de contacto;
  • um RN admitido do domicílio com infecção respiratória aparentemente vírica, em contexto de epidemia, deve ser colocado também em isolamento de contacto.

Numa perspectiva preventiva, é sempre importante reiterar certas noções consubstanciando regras básicas de não adiamento de certas atitudes:

  • Retirar um CVC. Amanhã poderá já ser tarde, ter ocorrido um incidente – infecção, exteriorização, fractura, trombo;
  • Extubar um doente. Neste intervalo o doente poderá contrair uma pneumonia, ou o tubo traqueal ficar obstruído e o doente falecer;
  • Interromper antibioticoterapia;
  • Dar alta ao doente. Em mais um dia de internamento muitos eventos adversos poderão ocorrer.

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INFECÇÃO BACTERIANA DE ORIGEM MATERNA

Etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

A infecção bacteriana perinatal é, por definição, uma infecção de origem materna, geralmente adquirida por via ascendente. Os microrganismos causadores são, por isso, os colonizadores habituais do tracto genital feminino: as enterobacteriáceas – E. coli, Proteus, Klebsiella – e Streptococcus do grupo B (SGB). Este último é, de longe, o agente mais frequente da sépsis neonatal de origem materna nos países desenvolvidos.

Em Portugal, a taxa de mulheres em idade fértil portadoras de SGB varia, de acordo com as regiões, entre 15% a 30%. Num estudo realizado em 10 unidades neonatais portuguesas, o agente SGB contribuiu em 52% para os isolamentos em hemocultura nos casos de infecções de origem materna, seguido de E. coli (17%).

Num outro estudo, também nacional, a incidência de infecção comprovada por SGB nos primeiros 7 dias de vida foi de 0,44/1000 nados vivos. De referir que a letalidade pode ser superior a 8%, e as sequelas importantes caso haja meningite.

O diagnóstico precoce e correcto de infecção bacteriana no período neonatal continua a ser um dos grandes desafios da neonatologia. Os sinais clínicos são inespecíficos e insidiosos, e um atraso no início da terapêutica implica um risco elevado de morte evitável.

Risco infeccioso e sua interpretação

Gerdes define muito bem qual o papel do neonatologista no que respeita à infecção e risco infeccioso perinatais:

  • desenvolver uma avaliação sistematizada do diagnóstico de sépsis, baseada na importância relativa dos sinais clínicos e dos factores de risco;
  • não proceder a diagnósticos negativos falsos, o que implica tratar mais RN dos que os realmente infectados;
  • evitar tratamentos desnecessários no RN com risco infeccioso, uma vez provado que não existe infecção.

A história clínica materna é de importância primordial para a identificação de situações de risco infeccioso, o qual deve ser valorizado de acordo com as circunstâncias, sempre com o objectivo de evitar o diagnóstico tardio de sépsis.

O risco infeccioso constitui, pois, um sinal de alerta e não uma doença; por conseguinte, o risco infeccioso não se trata, embora a sua ocorrência implique uma atitude de vigilância e pesquisa sistemáticas de exclusão de infecção. Implica também, frequentemente, a administração de antibióticos até prova de que não existe infecção.

Ou seja, a presença de determinados factores de risco legitima o início de terapêutica antimicrobiana considerando que, até prova em contrário, o RN está infectado.

Na prática, a dificuldade reside em determinar que condições maternas constituem realmente um risco infeccioso para o feto, que exames realizar, em que situações deve ser iniciada antibioticoterapia, e durante quanto tempo.

Gerdes calculou a frequência de sépsis, septicémia ou pneumonia de acordo com determinados parâmetros maternos do seguinte modo:

  • ruptura prematura de membranas (RPM) >18-24h de 1% a 2%;
  • mãe portadora de Streptococcus do grupo B (SGB) entre 0,5% e 2%;
  • as duas condições associadas ou a existência de uma delas juntamente com parto pré-termo espontâneo, elevam a frequência para valores entre 4% e 11%;
  • o estado de portador de SGB juntamente com a existência de febre materna têm uma frequência semelhante à RPM e corioamnionite ou RPM;
  • sofrimento fetal, depressão neonatal/índice de Apgar < 6 aos 5 minutos, entre 3% e 10%.

Ainda, segundo o mesmo autor, tomando como base o estado de portadora de SGB, a associação a febre materna multiplica o risco de infecção neonatal 4 vezes, a associação a RPM ou prematuridade, 7 vezes.

Por outro lado, a associação de três factores – estado de portadora, prematuridade e RPM – eleva o risco entre 8 a 11 vezes.

O problema que se levanta em relação à corioamnionite clínica, definida por vários autores pela existência de febre materna, taquicárdia materna ou fetal, dor ou hiperestesia uterina, líquido amniótico (LA) fétido e leucocitose materna, é interpretar estes sinais e sintomas. Cada um deles, observado num contexto de trabalho de parto, pode ser devido a muitos outros factores que nada têm a ver com infecção.

Nota Importante:
Sobre o diagnóstico de amnionite baseado na clínica, importa concretizar a interpretação de certos sinais e sintomas. Por exemplo, temperatura materna superior a 37ºC pode surgir no decurso de uma analgesia epidural ou desidratação; a taquicárdia materna pode ser devida a hipotensão, administração de fármacos ou simplesmente ansiedade, enquanto a taquicárdia fetal pode ser um sinal de sofrimento fetal por outra causa que não a infecção; do mesmo modo, a leucocitose pode surgir no decurso do parto sem que isso indique infecção.

Para além das condições atrás mencionadas existem algumas causas extrínsecas que aumentam o risco de infecção intra-amniótica. São elas a monitorização fetal interna, a existência de mais de 4 toques vaginais ou o internamento prolongado em meio hospitalar, o trabalho de parto prolongado ou procedimentos obstétricos invasivos (como amniocentese, transfusão intrauterina ou cerclage), determinando por vezes que surja uma infecção neonatal precoce causada por agente hospitalar.

Um dos campos de investigação a nível mundial diz respeito ao estudo do microbioma na grávida e no RN, e da avaliação do seu impacte, através de diversas vias, no sistema imunitário e na infecção perinatal.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da infecção sistémica do RN são muito variáveis. Sendo o RN um ser “imaturo” é lógico admitir que as manifestações possam ser escassas. Na realidade, o RN é oligossintomático, em geral exibindo aspecto de “não estar bem” em doenças muito diversas. O clínico deverá, pois, assumir uma atitude de suspeita, designadamente nas situações de risco atrás discriminadas.

As manifestações podem relacionar-se com todos os órgãos e sistemas, incluindo:

  • a pele (cianose, icterícia, escleredema, celulite, abcesso, sufusões hemorrágicas, má perfusão capilar periférica, tempo de recoloração prolongado, etc.);
  • aparelho respiratório (dificuldade respiratória, apneia, taquipneia, etc.);
  • aparelho digestivo (intolerância alimentar, vómitos, diarreia, distensão abdominal, icterícia, etc.);
  • aparelho cardiovascular (bradicárdia, taquicárdia, arritmia, hipertensão pulmonar, cardite, choque, etc.);
  • sistema nervoso central (alterações do tono muscular, convulsões, etc.);
  • sistema hematopoiético (diátese hemorrágica, anemia, hepatosplenomegália, etc.);
  • sistema osteoarticular (artrite).

Estes sinais podem aparecer isoladamente ou em associação, o que depende essencialmente da duração da infecção, da virulência do germe causal, da maturidade do RN, e dos respectivos mecanismos de defesa imunitária.

Exames complementares

O isolamento do germe patogénico no sangue por meio de hemocultura constitui o método mais específico para o diagnóstico de infecção sistémica.

As colheitas para exames culturais devem ser sempre realizadas antes do início da antibioticoterapia; sempre que possível devem ser realizadas duas hemoculturas com volume de sangue suficiente – pelo menos 0,5 mL.

Outros exames a realizar em função do contexto clínico são:

  • exames microbiológicos de exsudados periféricos;
  • exame cultural do aspirado traqueal obtido na sala de partos ou nas primeiras horas de vida;
  • exame cultural e citoquímico do LCR, caso haja clínica sugestiva de meningite e o estado clínico do RN permita a realização de punção lombar.

Contudo os resultados destes exames são demorados.

Entretanto, torna-se necessário realizar outros exames de resposta mais rápida que ajudem a consolidar a suspeita clínica de infecção: são os exames indirectos de infecção, nomeadamente os referentes aos reagentes de fase aguda (por ex. proteína C reactiva- PCR).

Contudo, não há nenhum marcador de infecção que, isoladamente, permita estabelecer um diagnóstico rápido e fidedigno de infecção precoce no RN. Por isso, muitos autores têm tentado estudar marcadores que, em conjunto, tenham elevado valor preditivo. Pouco se tem conseguido, mesmo considerando em conjunto critérios de gravidade baseados na clínica materna, neonatal, e vários parâmetros hematológicos e reagentes de fase aguda.

De acordo com a nossa experiência (MTN), o valor da proteína C reactiva (PCR), doseado seriadamente continua a ser o parâmetro analítico que melhor perfil apresenta. Três determinações negativas, com 12h a 24h de intervalo, permitirão interromper a antibioticoterapia às 72h com uma grande margem de segurança.

Mas, mais importante, segundo Remington, mesmo na era do diagnóstico molecular, continua a ser a experiência aliada à valorização dos dados clínicos: a história perinatal, o exame objectivo e a impressão clínica.

Tal como um único resultado de análise da PCR normal (até 1 mg/dL)(*) não deverá impedir o clínico de prescrever antibióticos se o RN evidenciar sinais sugestivos de doença – isto é, “não está bem”, também o resultado anormal de uma única análise não deve ser um indicativo absoluto para início de antibioticoterapia num RN evidenciando bom estado geral. Por outro lado, outros parâmetros laboratoriais poderão ser utilizados.

(*)Conquanto possa existir alguma variação dos valores de referência em diferentes laboratórios.

Nota importante:
De acordo com a experiência de determinados centros, outros parâmetros laboratoriais de avaliação poderão ser utilizados:

    1. hematológicos, valorizando o valor de leucócitos (leucocitose ou leucopénia) utilizando as chamadas curvas ou tabelas de Manroe tendo em conta que os limites de normalidade no RN oscilam ente 5.000/uL e 30.000/uL; e, igualmente, o quociente “número absoluto de neutrófilos imaturos (bastonetes)/número absoluto de neutrófilos totais”, sendo que valores > 0,2 sugerem infecção, com especificidade e sensibilidade de cerca de 80%-90%, e ponderando a eventualidade da presença doutras situações que podem alterar a dinâmica dos neutrófilos tais como hipertensão materna e toxémia.
    2. bioquímicos, salientando-se:
      1. 2.1 → a procalcitonina (PCT), com elevação ligeiramente mais precoce (~ 6 horas) do que a PCR, considerando-se como pontos de corte 3 ng/mL nos primeiros dias , e 0,5 ng/mL posteriormente;
      2. 2.2 → moléculas pró-inflamatórias (IL-6, IL-8, TNF-alfa), salientando-se a maior precocidade da elevação da IL-6, a partir da 1ª hora da infecção, com pico máximo pelas 4-6 horas, descendo depois rapidamente.

Publicações muito recentes, baseadas em meta-análises, apontam a vantagem de um marcador já usado em adultos, designado presepsina, relativamente à PCR e à PCT.

Tratamento

Ponderação de situações clínicas

A decisão de tratamento implica, primeiramente, valorizar a clínica. O médico poderá deparar com as seguintes situações:

  • O RN está doente – Nesses casos, o risco “deixou de ser risco, passou a infecção”.
    Nesta circunstância, a decisão é fácil de tomar: proceder a colheitas (hemocultura, cultura do aspirado traqueal colhido precocemente – sala de partos ou primeiras horas de vida) e iniciar antibioticoterapia.
  • O RN não evidencia sinais sugestivos de doença (ainda), mas há antecedentes de: a) amnionite; b) terapêutica materna com ampicilina e gentamicina no periparto (que obviamente atingiu o feto).
    Em tal circunstância, na realidade, a terapêutica teve início in utero e ao pediatra basta prescrever ao RN os mesmos antibióticos prescritos à grávida anteriormente, de modo a dar continuidade ao referido tratamento. A hemocultura que, contudo deverá ser feita, será provavelmente negativa, uma vez que o feto transita para a vida extrauterina com antibióticos na sua circulação.
    O RN não apresenta sinais sugestivos de doença, existe risco infeccioso perinatal, a mãe foi medicada com um antibiótico, ou não chegou a ser medicada.

Neste contexto, impõe-se uma vigilância clínica muito rigorosa e estudo seriado dos marcadores de infecção. A excepção a esta regra é o RN de mãe portadora de SGB a qual fora submetida a profilaxia da transmissão da infecção de modo adequado (2 ou mais administrações de ampicilina – 2 g seguidos de 1 g de 4 em 4h, ou penicilina); nesta última situação, em princípio, o RN não corre risco de infecção, não sendo necessário proceder a exames complementares – bastará a vigilância clínica rigorosa.

Nota Importante:
Muitas vezes há a percepção de que, ao ser iniciada antibioticoterapia na circunstância de RN com sinais inequívocos de doença infecciosa, tal início é tardio. De facto, tal terapêutica deveria ter sido iniciada in utero, sendo que o desenlace poderá ser fatal.
Reforça-se, por isso, a ideia de que a antibioticoterapia materna deverá ser iniciada logo que seja feito o diagnóstico de amnionite. A referida antibioticoterapia deve ser dupla.
Não havendo dúvidas quanto à utilização de gentamicina, existe discussão sobre se deve ser usada penicilina ou ampicilina.

Importa referir a decisão final, com base na seguinte constatação:

  • níveis séricos fetais da penicilina, baixos e tardios – 1/3 dos níveis séricos maternos 120 minutos depois versus
  • níveis séricos fetais da ampicilina, elevados e precoces, semelhantes aos maternos 60 a 90 minutos depois… conclui-se que deve ser recomendada a ampicilina.

Antibioticoterapia empírica

O tratamento empírico da infecção de origem materna é baseada nos possíveis agentes etiológicos. A penicilina ou ampicilina são antibióticos adequados para o tratamento da infecção por SGB, salientando-se que ainda se encontram estirpes de E. coli sensíveis também à ampicilina.

A administração conjunta de um aminoglicosídeo, habitualmente a gentamicina, alarga o espectro para as bactérias de Gram negativo, beneficiando-se ainda da potenciação do efeito bactericida quando se administra um beta-lactâmico juntamente com um aminoglicosídeo.

A ampicilina é usada na dose de 100 mg/kg/dia com periodicidade de 12 em 12h e a gentamicina na dose de 3 mg/kg/dia em administração única.

O tratamento deve durar 10 dias no caso de septicémia sem meningite. Se houver meningite por SGB, os antibióticos devem ser administrados durante 15 a 21 dias.

Nos casos de pneumonia, a terapêutica deve ser continuada até, pelo menos 2 dias, após desaparecimento dos sinais radiológicos.

Em situações clínicas muito graves – choque séptico, meningite grave – é admissível iniciar a terapêutica com 3 antibióticos: ampicilina, gentamicina e uma cefalosporina de 3ª geração, habitualmente cefotaxima (a ceftazidima deve ser reservada para infecções causadas por Pseudomonas), o que abrangerá com forte probabilidade todos os agentes mais comuns, incluindo os resistentes à ampicilina.

Quando o resultado da hemocultura estiver disponível ou, mais cedo ainda, quando tivermos o resultado do Gram, pode eventualmente ser possível, então, corrigir a terapêutica.

Como nota final, uma chamada de atenção para o conjunto de regras práticas para o clínico:

Atitudes que nunca deverão ser tomadas:

    • Nunca tratar uma sépsis neonatal em ambulatório;
    • Nunca solicitar exames complementares de diagnóstico em ambulatório mesmo que estejam disponíveis;

 Em vez disso, escrever um pequeno resumo clínico com a hipótese diagnóstica ao colega do centro hospitalar mais próximo, enviando o doente para este;

    • Nunca tratar uma sépsis neonatal com apenas um antibiótico;
    • Nunca tratar uma sépsis neonatal com antibioticoterapia por via oral;
    • Nunca menosprezar o diagnóstico baseado nos sinais clínicos. Uma história clínica elaborada com rigor é fundamental para a orientação do paciente.

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INFECÇÃO CONGÉNITA

Particularidades das infecções do grupo TORCHSZ e implicações práticas

Existe um grupo de infecções, frequentemente assintomáticas no adulto saudável e durante a gravidez, com a particularidade de as mesmas poderem provocar doença grave no feto/RN, sendo as respectivas manifestações clínicas muito semelhantes.

Entre tais infecções incluem-se as designadas por infecções do grupo TORCHSZ (toxoplasmose, outras, rubéola, vírus citomegálico humano, herpes simplex, sífilis e zica) já mencionadas atrás. Sendo as manifestações clínicas fetais e neonatais deste tipo de infecções muito semelhantes, para a sua destrinça torna-se fundamental a interpretação correcta do estudo serológico materno realizado durante a gravidez. Num RN com sinais de doença, a correcta interpretação dos resultados dos estudos serológicos realizados durante a gravidez condiciona poupança de gastos em trabalho de laboratório de imunologia, de virologia ou de parasitologia e, sobretudo, poupança em tempo de diagnóstico.

Neste capítulo são abordados aspectos fundamentais das infecções congénitas mais comuns numa perspectiva prática, com especial ênfase para o diagnóstico e o tratamento.

No que respeita às infecções que induzem imunidade e para as quais existe possível intervenção terapêutica, cabe salientar que o momento mais oportuno para avaliar o estado imunitário da mulher (imune versus não imune) é a consulta pré-concepcional.

Em tal circunstância, há tempo para esclarecer dúvidas, protelar uma gravidez se o contexto clínico o justificar, ou até proceder à imunização da futura grávida. Para algumas doenças infecciosas o conhecimento de que a mulher já teve contacto com o agente infeccioso torna desnecessária a repetição do estudo serológico.

Outro facto muito importante diz respeito ao local onde as análises são processadas; as mesmas deverão ser idealmente realizadas num laboratório idóneo, sempre o mesmo, com a mesma técnica, de modo a viabilizar a comparação de resultados seriados designadamente no que respeita a estudos serológicos. Facto não menos importante: os resultados devem ser observados e correctamente interpretados por quem os solicita.

Caso haja suspeita de infecção congénita, uma vez nascida a criança, devem ser solicitados exames no sangue do RN e da mãe no mesmo laboratório, de modo a comparar os resultados com os obtidos anteriormente. A interpretação dos resultados por parte do patologista clínico constitui também uma ajuda de grande importância.

Nas alíneas seguintes são abordados os seguintes tópicos:

  • infecções que maiores polémicas e problemas ainda levantam na actualidade: sífilis congénita, toxoplasmose e infecção por vírus citomegálico humano;
  • infecções que actualmente têm menor impacte em Saúde Pública face aos progressos realizados no nosso País no âmbito da prevenção e da terapêutica: rubéola e hepatites A, B e C;
  • infecção por vírus Zica (ZICV), descoberto em África em 1947, com grande impacte em Saude Pública pelo seu carácter de doença emergente e epidémica, com difusão rápida nas Américas, sobretudo desde 2015.

1. SÍFILIS CONGÉNITA

Definição, etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

A sífilis é uma doença de transmissão sexual provocada por um espiroqueta designado Treponema pallidum.

A sífilis congénita, adquirida pelo feto (muito mais frequentemente por via hematogénica transplacentar e mais raramente por contacto com lesão activa no canal do parto), evidencia relação com o estádio da doença materna.

A transmissão mãe/filho é tanto mais frequente quanto mais recente for a infecção materna. Na infecção materna precoce não tratada 70 a 100% dos fetos serão infectados. A maior parfcela de transmissão ocorre depois das 20 semanas, pelo que o tratamento da sífilis materna antes dessa idade gestacional previne a infecção fetal.

A sífilis pode causar morte fetal, nascimento de criança doente sintomática ou, se transmitida no final da gravidez, dar lugar ao nascimento de uma criança infectada mas assintomática.

Portanto, quanto mais recente a infecção materna e mais avançada a gravidez, maior o risco de infecção fetal.

Como a sífilis congénita é uma sífilis secundária adquirida por via hematogénica o agente Treponema pode atingir todos os órgãos, realçando-se o fígado, baço, pulmões, sistema nervoso central e sistema musculoesquelético, ao nível dos quais se verificam reacções inflamatórias intersticiais difusas e endarterite obliterante.

Com a descoberta da penicilina em 1943, a sífilis passou a ter tratamento específico; por isso, a partir de então, ficaram criadas as condições para a erradicação da sífilis congénita, a doença com melhor relação custo benefício no que respeita a diagnóstico e tratamento. Infelizmente, tal ainda não aconteceu, designadamente em Portugal.

O número de mulheres entre os 15 e os 44 anos de idade com sífilis aumentou de 33 em 2013 para 118 em 2016. No mesmo período, os casos de sífilis congénita variaram entre 6 e 12 casos por 100 000 nados-vivos correspondendo o valor máximo a 2014.

Com efeito, no nosso país a sífilis congénita continua a ser uma infecção que põe em risco a vida de recém-nascidos. A responsabilidade destes números é dos progenitores, dos médicos e do Sistema de Saúde. Dos primeiros, porque poderão não ter recorrido ao médico durante a gravidez por diversas razões, inclusivamente por défice de esclarecimento; dos médicos porque no caso de a gravidez ter tido acompanhamento médico, o diagnóstico deveria ter sido feito, a terapêutica prescrita e a cura da infecção materna comprovada; do Sistema de Saúde porque se a sífilis não foi diagnosticada nem tratada por falta de acompanhamento médico durante a gravidez, tal significa que o referido Sistema ainda não conseguiu fazer chegar os cuidados à população nos casos em que a população não procurou esses cuidados.

Manifestações clínicas

A sífilis congénita é uma doença com um espectro de manifestações muito amplo e formas de apresentação também variadas (exuberantes ou oligossintomáticas). Da infecção intrauterina pode resultar hidropisia fetal por anemia fetal grave, mortalidade fetal ou prematuridade. A criança pode, contudo, nascer assintomática surgindo as manifestações da doença mais tarde.

São a seguir sistematizadas as manifestações mais significativas da sífilis congénita precoce:

  • Rinite mucóide, mucopurulenta ou mucopiossanguinolenta;
  • Lesões cutaneomucosas ricas em Treponemas e, por isso, altamente contagiosas
    • sifílides maculosas (roséola sifilítica) – máculas disseminadas, arredondadas, róseas
    • pênfigo palmoplantar – bolhas de localização simétrica, de conteúdo seropurulento ulcerando e transformando-se em crostas (Figura 1)
    • condiloma plano – lesões de tipo “vegetações” achatadas perianais.
  • Lesões viscerais
    • hepatomegália – hepatite neonatal, colestase (a causa mais frequente de colestase nos países em desenvolvimento é a sífilis congénita), eritropoiese extramedular, compromisso do SRE.
    • esplenomegalia (Figura 2)
    • linfadenopatia generalizada (sendo a localização epitroclear típica).
  • Manifestações hematológicas
    • anemia hemolítica com prova de Coombs negativa (por vezes a forma de apresentação no lactente)
    • leucocitose (reacção leucemóide ou síndroma de Von Jachs Luzet)
    • trombocitopénia
    • CID nas formas graves.
  • Manifestações respiratórias
    • pneumonia intersticial (pneumonia alba).
  • Manifestações renais
    • síndroma nefrótica.
  • Manifestações ósseas
    • lesões simétricas, dolorosas ao tacto, com impotência funcional, muito frequentes; por vezes a forma de apresentação é a pseudo paralisia de Parrot com postura antiálgica do membro
    • osteocondrite metafisária, a lesão mais frequente, em geral manifestada antes dos 3 meses, por vezes associada a fractura patológica
    • sinal de Wimberger correspondente a rarefacção óssea evidente no bordo interno da extremidade proximal da tíbia (Figura 3)
    • periostite (em geral manifestada após os 3 meses).
  • Manifestações do sistema nervoso central
    • compromisso assintomático na maioria dos casos (alteração bioquímica, citológica e serológica do LCR)
    • leptomeningite aguda, compromisso meningovascular, compromisso dos pares cranianos.

Sucintamente, referem-se alguns sinais de complicações da sífilis congénita não tratada, manifestações residuais ou estigmas, hoje praticamente inexistentes no nosso meio e apenas citadas por razões históricas: reacções tardias (após 2 anos de idade) e de hipersensibilidade, correspondentes à sífilis terciária adquirida – a tríade de Hutchinson (dentes de Hutchinson, ceratite intersticial e surdez por lesão do VIII par craniano).

FIGURA 1. Lesões cutâneas características da sífilis congénita: pênfigo bolhoso / descamação plantar em RN pré-termo. Esta lesão [cutânea] é altamente contagiosa e deve ser manipulada com luvas, pelo menos durante as primeiras 24h de terapêutica com penicilina. (UCIN-HDE)

FIGURA 2. RN com sífilis congénita. São notórias hepatosplenomegália e petéquias na região inguinal direita. (UCIN-HDE)

FIGURA 3. Lesões ósseas de osteocondrite e metafisite típicas da sífilis congénita (destruição esponjosa bilateral) podendo levar a descolamento epifisário. Apesar de exuberantes e extremamente dolorosas, regridem completamente após tratamento com penicilina. (UCIN-HDE)

Exames complementares

Para o diagnóstico da sífilis congénita torna-se fundamental atender aos antecedentes da gravidez: seguimento médico, resultados dos exames não treponémicos e treponémicos e terapêutica instituída e realizada em caso de resultados reactivos/positivos. É muito importante estudar a evolução dos títulos das provas não treponémicas, sendo sabido que, em caso de sífilis no adulto, as provas treponémicas se mantêm positivas para a vida e as provas não treponémicas devem negativar em caso de cura.

As manifestações clínicas atrás mencionadas, as alterações encontradas na radiografia dos ossos longos, no hemograma, no exame citoquímico do LCR, nas provas de função hepática, no exame de urina, completam o quadro que possibilita um diagnóstico de suspeição muito forte.

A suspeição clínica é muito fortalecida pelos resultados dos exames laboratoriais não treponémicos e treponémicos – VDRL titulado comparado com o da mãe e FTAabs ou TPHA.

O diagnóstico de certeza hoje em dia baseia-se, mais na pesquisa do DNA do Treponema pallidum por PCR, do que nos antiquados e abandonados métodos de pesquisa do microrganismo em campo escuro.

Salienta-se ainda que a suspeita de qualquer infecção congénita implica a obrigatoriedade de exame oftalmológico (referido de novo adiante, enquadrado no contexto clínico laboratorial).

A seguir, são sistematizadas as análises a realizar, o significado de cada uma delas, a interpretação dos respectivos resultados e a atitude a ter na grávida com resultado de VDRL reactivo e no RN de mãe com VDRL reactivo. Recorda-se, a propósito, que a presença de Treponema no organismo induz a formação de anticorpos não treponémicos ou reagínicos (inespecíficos), e de anticorpos treponémicos ou específicos.

  • VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) – É uma prova não treponémica. O resultado é dado como reactivo ou não reactivo, em diluições ou títulos (Ex: diluído a ¼ ou reactivo a 2 diluições, diluído a 1/8 ou reactivo a 4 diluições). Tendo a análise VDRL elevada sensibilidade é com a mesma que se procede ao rastreio. A especificidade é, no entanto, menor; ou seja, há a certeza de diagnosticar todos os casos verdadeiros, embora possam surgir resultados falsos reactivos.
    Um resultado reactivo para VDRL deve ser sempre confirmado por provas treponémicas – FTA Abs (Fluorescent Treponemal Antibody Absoption test) ou TPHA (Treponema pallidum hemaglutination Assay).

Nota importante: a conversão do resultado do VDRL, de reactivo em não reactivo, constitui prova de cura; por isso, tal análise deve ser repetida até negativar; se a prova positivar novamente, tal corresponderá a reinfecção da grávida, o que implica novo tratamento. A infecção por Treponema pallidum não gera imunidade.

 

  • FTA- Abs ou TPHA – Trata-se de provas treponémicas, confirmando o diagnóstico das provas não treponémicas. Positivam mais precocemente que as não treponémicas; possuindo elevada especificidade, embora baixa sensibilidade, não estão indicadas para rastreio.

Nota importante: Um doente com sífilis tratada mantém provas treponémicas positivas durante toda a vida; por isso, torna-se desnecessário repetir a análise para avaliar se houve cura.

Actuação prática

No período pré-concepcional e na grávida

  • Rastreio → VDRL: pré concepcional; e durante 1º, 2º e 3º trimestres da gravidez.
    Segundo a Norma 037/2011 da DGS, na gravidez de baixo risco a VDRL deve ser realizada apenas no 1º e 3º trimestres. Se existir história de múltiplos parceiros sexuais, deve realizar-se a análise também aquando da admissão na sala de partos.
  • Confirmação → Se a VDRL foi reactiva, o resultado deve ser titulado. A infecção deve ser confirmada através da realização da análise FTA Abs ou TPHA. A descida progressiva dos títulos de VDRL até à negativação são prova de cura. O parceiro sexual deve ser rastreado e tratado se infectado.

No RN de mãe com VDRL reactiva

  • Determinar VDRL com titulação no soro do RN e da mãe.
  • Se VDRL reactiva, realizar: punção lombar (se o número plaquetário for normal) para VDRL e exame citoquímico no LCR; radiografia dos ossos longos dos membros inferiores (detecção de sinais de osteocondrite e periostite, outros); provas de função renal e hepática; hemograma e proténa C reactiva (PCR); exame oftalmológico; ecografia transfontanelar.

Nota importante: não se deve recorrer à análise de FTA abs ou TPHA no LCR para esclarecimento da situação clínica.

Tratamento

Dada a possibilidade de a neurossífilis não poder ser excluída na maior parte dos recém-nascidos, a penicilina benzatínica não deve ser utilizada pelo facto de não garantir níveis treponemicidas no LCR.

Assim, estão indicados os seguintes regimes no contexto de sífilis congénita provada ou altamente provável, designadamente nas seguintes situações:

  • evidência clínica, laboratorial ou radiológica de sífilis congénita;
  • RN de mãe com VDRL reactiva, não tratada;
  • mãe tratada com outro antibiótico que não penicilina;
  • mãe com tratamento no 9º mês de gestação (situação correspondente a feto não tratado);
  • ausência de cura comprovada da infecção materna.

→ Antes dos 28 dias de vida: Penicilina G cristalina aquosa por via endovenosa; 50 000UI/kg/dose durante 10 dias; tomas de 12-12h nos primeiros 7 dias, e de 8-8h do 7º ao 10º dia de tratamento.

→ Depois dos 28 dias de vida: Penicilina G cristalina aquosa por via endovenosa: 200 000-300 000 UI/kg/dia: doses de 50 000 UI/kg/dose de 4-4h ou de 6-6h durante 10 dias.

Nota importante:
Se a terapêutica sofrer interrupção de um dia a contagem de dias deve ser recomeçada.
Se se verificar neurossífilis o tratamento deve ocorrer durante 14 dias. Caso a punção lombar tenha sido traumática ou haja dúvidas sobre a existência de neurossífilis, devem ser completados 14 dias de terapêutica.
Igualmente, havendo neurossífilis, o VDRL no LCR deve ser repetido aos 6 meses de idade. Se for positivo o tratamento deve ser repetido.
Uma criança com sífilis congénita tratada (por ex. aos 2 anos de idade) deve seguir o esquema anteriormente descrito para a criança com mais de 28 dias.
Alguns autores defendem que nestas situações a seguir aos 10 dias de penicilina cristalina deve ser dada uma injecção IM de 50 000 UI de penicilina benzatínica.
As lesões cutâneas ou das mucosas são altamente contagiosas, pelo que o RN deve ser manipulado com luvas até 24h depois do início de tratamento com penicilina.

Estudo evolutivo

A criança com sífilis congénita confirmada deve ser observada em consulta de seguimento mensalmente durante os 3 primeiros meses e, depois, de 3-3 meses até aos 12 meses.

Nos casos de neurossífilis, a punção lombar para exame do LCR deve ser repetida aos 6 meses.

Conclusões

O único modo de evitar casos de sífilis congénita é rastrear a grávida.

O rastreio é sempre realizado com provas não treponémicas – VDRL. Em Portugal, a norma da DGS para gravidezes de baixo risco preconiza que o VDRL seja realizado no 1º e 3º trimestres. Em países ou zonas de elevada incidência de sífilis o rastreio deve ser realizado uma vez por trimestre.

O VDRL deve ser sempre realizado após uma primeira diluição e titulado. A diluição previne que seja obtido um resultado falso negativo devido a fenómeno de pró-zona; a titulação permite seguir a evolução da infecção e a resposta ao tratamento.

O VDRL pode ser negativo se a infecção for muito recente. O resultado destes exames deve ser visto pelo médico ou outro profissional de saúde para isso habilitado, e correctamente interpretado.

A sífilis na grávida tem como único tratamento a penicilina. A penicilina trata a infecção materna e a fetal. Mesmo que a grávida alegue que é alérgica à penicilina deve ser este o antibiótico utilizado após dessensibilização. Outros antibióticos que não a penicilina tratam a grávida mas não tratam o feto.

A administração de penicilina pode desencadear reacção de Jarisch-Herxheimer na grávida – calafrios, febre, taquicardia, hipotensão, cefaleia, lesões cutâneas, leucocitose e taquipneia, sofrimento fetal e ameaça de parto pré-termo. Por isso há quem advogue que a penicilina deve ser administrada em meio hospitalar/Centro de Saúde e que a grávida deve estar monitorizada.

O parceiro sexual deve ser também tratado.

Em Portugal a sífilis congénita é uma infecção de notificação obrigatória.

Toda a situação deve ser transcrita para o boletim da grávida: resultados de análises, comprovativos de tratamento do casal e comprovativo de cura.

2. TOXOPLASMOSE

Definição, etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

A toxoplasmose congénita é uma doença provocada por um protozoário, Toxoplasma gondii, parasita intracelular obrigatório. Este protozoário existe sob 3 formas: trofozoítos ou taquizoítos (forma proliferativa); quisto tecidual (bradizoíto); oocisto (produzindo trofozoítos).

A toxoplasmose é uma zoonose largamente difundida em todo o mundo, tendo como hospedeiro definitivo o gato; outros hospedeiros são ocasionais (todos os mamíferos, algumas aves e répteis, etc.).

O agente Toxoplasma transmite-se por ingestão de carne malcozida de animais parasitados contendo quistos teciduais; ingestão ou inalação de oocistos eliminados pelas fezes de gatos; mais raramente, a transmissão faz-se por transfusão de sangue ou transplantação de órgãos.

A prevenção primária é muito eficaz: ingestão de carne bem cozida, manipulação de carne crua com luvas, lavagem cuidadosa das superfícies onde foi cortada carne crua.

A lavagem cuidadosa de vegetais consumidos crus, a jardinagem com luvas e a manipulação de dejectos de gatos com luvas são medidas simples que poderão reduzir significativamente a taxa de seroconversão durante a gravidez.

É possível a transmissão ao feto em caso de primo-infecção da grávida ou de recrudescência de doença crónica da referida grávida em situações de imunodepressão.

Nota importante: raramente, num adulto saudável e imunocompetente se verifica reinfecção ou reactivação de infecção.

O risco de transmissão durante a gravidez, crescente com o tempo de gestação, pode ser contabilizado do seguinte modo: cerca de 10% dos fetos serão afectados se a mãe se infectar no primeiro trimestre, 30% se no 2º trimestre, e 50 a 60% se no final da gravidez.

Quanto à gravidade da infecção fetal, ela é tanto maior quanto mais precoce for a transmissão materno-fetal: em situações extremas poderá surgir aborto e morte fetal.

Na grávida, a toxoplasmose pode ter manifestações semelhantes a uma gripe. Em imunodeprimidos a doença pode manifestar-se com gravidade (menigoencefalite, pneumonite, miocardite, coriorretinite).

A frequência de toxoplasmose varia muito nas diversas comunidades urbanas, o que depende dos hábitos alimentares, do contacto com animais portadores e das condições climáticas (o oocisto sobrevive bem ao calor).

Nota importante:
Nas zonas em que o consumo de carne crua é muito frequente, cerca de 60% dos adultos jovens têm anticorpos anti-toxoplasma; vários estudos realizados em Portugal revelam prevalências de 26% a 31%.

No nosso país tem-se assistido a uma diminuição das taxas de seropositividade na população de mulheres grávidas, facto que pode ser atribuído a múltiplos factores, tais como: 1) o parasita é menos prevalente; 2) a população pratica melhor as normas básicas de higiene, nomeadamente no que respeita a lavagem das mãos e desinfecção de frutas e legumes; 3) existem menos animais de abate contaminados.

A taxa de seropositividade na população em geral induz preocupações diferentes: uma elevada prevalência indica grande frequência do parasita; por isso, apesar de haver baixa prevalência de indivíduos susceptíveis, incluindo mulheres em idade fértil, a possibilidade de seroconversão durante a gravidez é grande.

Uma prevalência baixa indica menor risco de infecção na população em geral mas, como a prevalência de mulheres susceptíveis é maior, o número de seroconversões durante a gravidez pode ser maior também.

Sob o ponto de vista económico, é mais rendível rastrear grávidas numa população de elevada prevalência de seropositivas – as grávidas a rastrear serão poucas e a possibilidade de diagnosticar uma seroconversão é elevada.

Sob o ponto de vista da saúde pública, como é obvio, interessará mais que a taxa de seroconversão na gravidez seja baixa.

A infecção do feto, em princípio, só ocorre se se verificar primo-infecção materna durante a gestação: a parasitémia materna origina infecção placentar (placentite) com consequente disseminação hematogénica para o feto. A passagem do parasita do sangue materno para a placenta, e desta para o feto, pode ser concomitante com a invasão da placenta ou não, podendo mediar algum tempo entre as duas ocorrências.

Salienta-se, no entanto que, em mães com imunossupressão e antecedentes de primo-infecção, pode verificar-se reactivação de infecção latente com ulterior parasitémia e risco de infecção fetal. Daí a importância da conhecer os resultados de estudos serológicos anteriores à gravidez.

Avaliação pré-concepcional

Se o estudo serológico da mulher evidenciar IgG positiva e IgM negativa não há necessidade de repetir a análise. Se se comprovar uma infecção recente poderá ser útil protelar uma eventual gestação.

Avaliação pré-natal

Se a mulher for seronegativa, deve investir-se na prevenção primária, altamente eficaz. Nesse sentido devem ser dadas indicações sobre o modo de transmissão da doença e realçar a importância de serem seguidas as medidas de prevenção primária.

Em Portugal, as normas da DGS preconizam a repetição de serologias em mulheres seronegativas, uma vez por trimestre; a manter-se a actual política de rastreio, idealmente, a serologia deveria ser repetida mensalmente com o objectivo de detecção precoce de eventual seroconversão.

Diagnóstico de infecção fetal

A infecção fetal é diagnosticada na sequência de seroconversão materna comprovada: IgM positiva com IgG ainda negativa ou, já positiva mas com avidez baixa.

Se tal acontecer, deve ser programada amniocentese para identificação do parasita no líquido amniótico por PCR (reacção em cadeia da polimerase).

Nota importante:
A PCR (reacção em cadeia da polimerase), sendo uma análise simples, sensível, específica, segura, de resposta rápida e pouco dispendiosa, constitui, actualmente, o principal meio de diagnóstico de infecção fetal.

Devem também ser programadas ecografias morfológicas seriadas para determinar o impacte da infecção no feto, nomeadamente hidrocefalia, calcificações intracranianas, hepatomegália, ascite e placentite.

O diagnóstico de infecção fetal e a comprovação ecográfica das alterações fetais daí decorrentes permitirão ao casal decidir sobre a realização de eventual abortamento medicamente assistido, de acordo com a legislação.

Manifestações clínicas e diagnóstico de infecção no RN

Na grande maioria dos casos de toxoplasmose congénita (cerca de 85%) a criança está assintomática ao nascer, podendo surgir, nos meses ou anos subsequentes, sinais isolados ou associados de modo diverso, os quais que se poderão relacionar com infecção adquirida intrauterina.

Nos casos de infecção no primeiro trimestre da gravidez, são notórios sinais neurológicos e oftalmológicos de gravidade variável, tais como, restrição de crescimento intrauterino (RCIU), microcefalia, hidrocefalia obstrutiva, calcificações intracranianas difusas, convulsões, alterações do LCR e retinocoroidite (Figura 4).

FIGURA 4. Microcefalia em criança com toxoplasmose congénita adquirida às 16 semanas de gestação. O diagnóstico e o tratamento da infecção congénita in utero podem impedir lesões graves do SNC. (UCIN-HDE)

Nos casos de infecção adquirida no segundo e terceiro trimestres poderá verificar-se, para além de retinocoroidite e de alterações do LCR, baixo peso de nascimento, RCIU, hepatosplenomegália, linfadenopatia, icterícia, hepatite, anemia hemolítica, trombocitopénia, hipoprotrombinémia, pneumonite intersticial, pancardite.

As lesões oculares primárias da retina e coroideia (presentes em 60 a 80% dos casos) podem acompanhar-se ou complicar-se de lesões secundárias tais como: iridociclite, catarata, glaucoma, estrabismo, nistagmo e descolamento da retina.

Os antecedentes epidemiológicos e obstétricos, assim como os sinais clínicos orientam para o diagnóstico, o qual deverá ser confirmado pela realização de exames complementares:

  • Exames gerais (hemograma com contagem de plaquetas e reticulócitos, análise do LCR, provas de função e citólise hepáticas, bilirrubinémia total e conjugada, etc.);
  • Exames específicos (a programar em função da forma de apresentação):
    • ecografia transfontanelar para detecção de calcificações, dilatação venticular, outras;
    • TAC para detecção de lesões parenquimatosas, etc.;
    • radiografia do tórax para detecção de sinais de pneumonite intersticial;
    • radiografia dos ossos longos para detecção de estrias longitudinais nas epífises e radioluscência óssea;
    • exame oftalmológico para detecção das lesões já descritas;
    • estudo serológico pós-natal: IgG positiva, por vezes com título superior ao da mãe, e IgM positiva confirmam o diagnóstico.
    • identificação de ADN do parasita no sangue e LCR do RN, uma análise específica, de resposta rápida;
    • inoculação no cobaio: técnica ainda utilizada mas pouco relevante na prática clínica.

Sobre algumas limitações do estudo serológico, importa reter algumas noções importantes:

Nota importante:
Nos casos assintomáticos e suspeitos, torna-se necessário proceder ao estudo serológico seriado – a repetição do estudo serológico com periodicidade mensal para detectar subida dos níveis de IgG pode confirmar o diagnóstico.
Contudo, mesmo em doentes infectados, há que atender à seguinte eventualidade: a IgM determinada ao nascer, poderá já ser negativa e as IgG poderem ter origem materna.
Assim dada a grande dificuldade em estabelecer um diagnóstico preciso com base nas serologias, poderão ser úteis as técnicas de imunoblot (Western-blot) dando informação sobre as populações de IgG – apenas uma população, supostamente de origem materna ou duas populações, uma materna outra do RN. Será assim possível ter um diagnóstico de certeza.

Tratamento

Infecção da grávida

Os autores franceses defendem que infecção fetal tratada tem muito melhor prognóstico do que a não tratada. Por isso, salienta-se a importância do rastreio da grávida, do diagnóstico da infecção na mulher e, depois, no feto.

Se se verificar seroconversão durante a gravidez, a mulher deve ser encaminhada para um centro de diagnóstico pré-natal e seguida em consulta de alto risco.

O tratamento com espiramicina trata a infecção materna e impede a disseminação do parasita para o feto, mas não trata a infecção fetal se ela já estiver estabelecida.

Assim, o tratamento na grávida é feito com espiramicina durante toda a gravidez caso não se comprove infecção fetal (3 g/dia de 12/12h). A terapêutica deve ser iniciada logo que seja feito o diagnóstico de seroconversão.

Infecção fetal

A infecção fetal deve ser tratada com pirimetamina e sulfadiazina (25 mg/dia e 4 g/dia respectivamente). Este tratamento deve ser iniciado logo que haja diagnóstico de infecção fetal e mantido até ao nascimento. A grávida deve receber também suplemento de ácido folínico.

Infecção no RN

Atendendo a que a espiramicina é um bacteriostático, no RN sintomático o tratamento deve ser iniciado com pirimetamina (1mg/kg por via oral de 2/2 dias) e sulfadiazina (100 mg/kg/dia por via oral de 12/12h) que actuam de modo sinérgico contra Toxoplasma.

O tratamento com pirimetamina deve ser interrompido se o valor plaquetário for inferior a 90 000/mm3 e a sulfadiazina interrompida se o valor dos neutrófilos for inferior a 1000/mm3.

Sendo, pois, estes medicamentos depressores medulares, a terapêutica deve ser complementada com a administração de ácido folínico (10 mg por via oral de 3/3 dias) sendo indispensável realizar um hemograma duas vezes por semana, pelo menos no início.

A comprovação de doença ocular (retinocoroidite) ou do SNC obrigará à administração de corticóides – prednisona – 1,5 mg/kg/dia por via oral de 12/12h.

Estudo evolutivo

Uma criança com suspeita de toxoplasmose congénita deve ser vigiada regularmente com estudo serológico seriado de 3-3 meses no primeiro ano de tratamento – que é o primeiro ano de vida – e com exame oftalmológico, igualmente seriado e regular, até ao início de idade adulta.

3. INFECÇÃO PELO VÍRUS CITOMEGÁLICO HUMANO (CMV)

Etiopatogénese, aspectos epidemiológicos e importância do problema

O vírus citomegálico humano (CMV), originando uma infecção conhecida por doença de inclusão citomegálica, é um vírus que pertence à família dos vírus Herpes.

A infecção por CMV é endémica, com elevada prevalência nos países em desenvolvimento e em populações com condições socioeconómicas precárias, variando entre os 45 e os 100%. Em Portugal, diversos estudos mostram taxas que se situam entre os 80% e os 90%. Estudos realizados na maternidade do Hospital de Dona Estefânia revelaram que a taxa de puérperas com IgG positiva para CMV era de 85% em 1988, 60% em 2003 e 62% em 2010.

As infecções transmitem-se de modo directo ou indirecto de pessoa a pessoa, podendo o vírus ser veiculado através da urina, secreções da orofaringe, secreções vaginais, sémen, saliva, suor, lágrimas, leite materno e sangue.

A infecção pode ser congénita, adquirida no período perinatal ou, após o nascimento, ainda no período neonatal ou já durante a fase de lactente. As principais fontes de transmissão do vírus no período perinatal são a infecção do tracto genital e o leite materno.

Actualmente, nos países desenvolvidos, a infecção neonatal adquirida por transfusão sanguínea é negligenciável. A dificuldade e raridade em encontrar dadores seronegativos foi contornada com a administração de sangue irradiado nos RN de extremo baixo peso e sangue desleucocitado a todos os RN.

A prevalência da infecção congénita nos EUA varia entre 0,5 e 2% de todos os nados-vivos, afectando cerca de 30.000 crianças por ano. Destas, 10% a 15% são sintomáticas ao nascer. Das restantes, aparentemente saudáveis, 15 a 20% terão manifestações da doença mais tarde.

São descritos dois tipos de infecção na grávida/adulto: primária (primo-infecção) ou recorrente (secundária). Neste último caso poderá tratar-se de reactivação da infecção primária com estirpe latente, ou reinfecção com nova estirpe.

A infecção por CMV confere imunidade cruzada com novas linhagens de CMV, mas esta protecção não é completa, sendo que tem sido demonstrada reinfecção com outras linhagens através de análise do ADN vírico.

Tanto a infecção materna primária (ocorrendo em 0,6 a 4% de todas as gravidezes) como a recorrente, podem resultar em infecção congénita; contudo, no feto a taxa de infecção e a gravidade das lesões após a infecção materna primária são muito maiores (cerca de 40 a 50%) do que após infecção recorrente (cerca de 1%).

Ao contrário doutras infecções como rubéola e toxoplasmose, o achado de IgG positiva para CMV não protege o feto, havendo probabilidade de infecção em 50% dos casos; todavia, verifica-se diminuição da gravidade da infecção que, na maior parte dos casos, é subclínica.

A transmissão materno-fetal do CMV pode ocorrer com igual frequência em todas as fases da gestação, salientando-se que na maioria destes casos não se verifica qualquer sintomatologia ou a sintomatolgia é ligeira, semelhante a síndroma gripal.

O RN pode ainda infectar-se através do leite materno de uma mãe IgG positiva. Na realidade durante a lactogénese existe replicação vírica na glândula mamária com excreção de vírus.

Nota importante:
Para um RN de termo que recebeu IgG maternas no final da gestação, esta ingestão de vírus através do leite materno não terá importância. O problema já é mais delicado se se tratar de um grande pré-termo que recebeu por via placentar escassez ou teor ínfimo de IgG maternas, uma vez que a maior transferência de IgG ocorre a partir das 32 semanas.
Os RN podem adquirir a infecção nos primeiros dias ou semanas de vida e correm o risco de desenvolver doença grave, nomeadamente pneumonia ou hepatite.

A excreção do vírus persiste durante anos, quer nas infecções congénitas e perinatais, quer nas pós-natais precoces e até nas infecções primárias de crianças mais velhas e adultos.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas mais típicas da infecção congénita por CMV são:

  • nas situações de infecção materna precoce: RCIU, microcefalia, calcificações intracranianas periventriculares (Figura 6);
  • nas situações de infecção materna tardia: ausência de sintomatologia ou hepatosplenomegália, pneumonia, icterícia colestática, anemia, trombocitopénia grave, sinais sugestivos de sépsis, etc..

FIGURA 5. Hepatosplenomegália com distensão abdominal, icterícia mista (com aumento da bilirrubina directa e indirecta), anemia e hiperesplenismo em RN com infecção congénita por CMV adquirida no final da gestação.

Rastreio universal da grávida

Esta questão é polémica e ainda não resolvida: alguns autores defendem com muita convicção o rastreio, enquanto outros tomam uma posição diametralmente oposta.

Os defensores da sua realização entendem que não rastrear é não reconhecer o problema, salientando que o rastreio permite um conhecimento precoce do risco de infecção, com implicações práticas nas estratégias para a prevenção primária e para o diagnóstico de infecção fetal em fase mais precoce.

Pelo contrário, os defensores do “não” argumentam, nomeadamente:

  1. Que a prevenção primária e a educação para a saúde são uma inerência dos cuidados primários de higiene, salientando, por exemplo, que a lavagem das mãos previne muitas outras doenças;
  2. Que o feto sintomático será sempre diagnosticado se a gravidez for correctamente vigiada e as ecografias correctamente executadas e interpretadas;
  3. Que o diagnóstico de certeza de infecção fetal é difícil e baseado na pesquisa de CMV no líquido amniótico obtido por amniocentese;
  4. Que o facto de a pesquisa ser negativa em determinado período, não implica que a mesma se mantenha negativa durante toda a gravidez;
  5. Que não existe tratamento específico para a infecção uma vez diagnosticada.

Em Portugal a Direcção Geral da Saúde preconiza que o rastreio seja realizado em consulta pré-concepcional.

Se a grávida for seronegativa antes da gravidez devem ser dadas indicações sobre prevenção primária que, segundo alguns autores, pode evitar até 3/4 de todas as seroconversões.

Essas medidas dizem respeito à lavagem cuidadosa das mãos após muda de fralda ou limpeza do períneo de um lactente, limpeza de lágrimas e secreções nasais, evitar dar beijos na boca de lactentes e não partilhar comida, bebidas, talheres ou pratos.

Às mulheres de maior risco – funcionárias de creches ou mães seronegativas com filho pequeno em infantário e mulheres com síndroma gripal na gravidez pode ser oferecido rastreio serológico trimestral durante a gravidez. Claro que, se forem observadas alterações fetais ecográficas sugestivas de infecção por CMV, devem ser pedidas análises e programados outros procedimentos.

Em conclusão, na ausência de vacina contra CMV, o rastreio universal das grávidas não tem indicação. Deve, sim, ser realizado rastreio pré-concepcional e feito investimento na prevenção primária.

Nota importante:
De acordo com investigação recente sobre rastreio de CMV humano (2021) em Portugal, liderada por Paulo Paixão e Cláudia Fernandes , Universidade NOVA de Lisboa, demonstrou-se a efectividade da utilização de amostras de saliva para identificação de infecção congénita estudando o DNA vírico por PCR em tempo real.

Diagnóstico pré-natal

O diagnóstico pré-natal baseia-se nos seguintes critérios:

  • detecção de anomalias na ecografia fetal;
  • detecção de seroconversão para CMV na grávida (IgG positiva “de novo” com IgM positiva) e achado de avidez baixa das IgG.

Os meios de diagnóstico de infecção fetal são os seguintes:

  1. Ecografia fetal detalhada;
  2. Pesquisa de vírus por PCR (reacção em cadeia da polimerase) no líquido amniótico obtido por amniocentese;
  3. Estudo da infecção fetal e da repercussão da mesma sobre o feto, através do sangue obtido por cordocentese (PCR, serologia, alterações hematológicas e da função hepática).

Diagnóstico neonatal

Se a infecção neonatal for sintomática – por ex. hepatite, sépsis vírica, pneumonite – ou se se verificarem já sequelas da infecção intra uterina – RCIU, microcefalia, calcificações periventriculares (Figura 6) – é fácil admitir como hipótese diagnóstica uma das infecções do grupo TORCHS. Se a mãe tiver feito as análises adequadas, restam escassas hipóteses acerca do agente etiológico.

Uma vez que a infecção congénita por CMV poderá levar a defeitos de migração neuronal, em todos os RN com lisencefalia, polimicrogiria, etc. deve proceder-se ao estudo para detecção de infecção por CMV.

Se a infecção for assintomática, habitualmente não é diagnosticada.

FIGURA 6. Aspecto ecográfico de calcificações periventriculares no contexto de infecção por CMV. (UCIN-HDE)

Actualmente existem técnicas que permitem diagnóstico mais rápido e mais preciso de infecção por CMV.

  1. Identificação do ADN vírico por técnica de PCR na urina ou saliva.
  2. Microcultura em Shell Vial a partir de urina do RN com identificação do antigénio do CMV.
  3. O estudo da serologia da mãe e do RN (não de sangue do cordão), comparado e evolutivo, assim como a avaliação da avidez das IgG maternas, podem contribuir para o diagnóstico. De salientar que no RN a IgM pode evidenciar valor falso negativo, ou falso positivo por reacção cruzada com outros vírus herpes.
  4. O estudo no sangue do RN utilizado para o rastreio de doenças metabólicas torna possível fazer o diagnóstico de infecção congénita muito para além do período neonatal.

No sentido de avaliar a repercussão da infecção por CMV nos órgãos e, designadamente, no SNC e órgãos dos sentidos, devem ser realizados os exames complementares mencionados a propósito da toxoplasmose (ver atrás).

Tratamento

Fetal

Tem havido tentativas ditas de sucesso em iniciar a terapêutica ainda in utero, quer com imunoglobulina específica, quer com antivíricos. Apesar de os primeiros resultados parecerem promissores, a terapêutica antivírica só deverá ter lugar em estudos controlados. Por outro lado, está actualmente estabelecido que a administração de imunoglobulina específica à grávida não tem indicação.

Neonatal

Após o diagnóstico de uma infecção congénita por CMV deve tentar-se estabelecer a gravidade da doença de modo a decidir se deve ou não ser iniciada terapêutica.

A administração de gamaglobulina específica hiperimune só tem interesse nos RN que adquiriram a infecção no final da gestação e que ainda evidenciam IgG negativa. Os infectados no primeiro e segundo trimestres não terão benefício com a sua administração, uma vez que já receberam IgG maternas exercendo efeito no combate à infecção.

Estudos recentes têm vindo a modificar as indicações para o uso de antivíricos nas infecções congénitas por CMV.

Em contraponto à época em que o uso de ganciclovir era muito limitado atendendo aos respectivos efeitos acessórios, provou-se posteriormente que, com os succedâneos actuais, mais inócuos e eficazes foi possível mudar a estratégia.

Nota sobre certos efeitos deletérios do ganciclovir:

    • toxicidade para as gónadas e para a medula óssea;
    • efeitos cancerígeno e eventualmente teratogénico;
    • limitações acrescidas nos doentes imunodeprimidos.

Sabia-se que, durante a terapêutica com ganciclovir, a virúria diminuia para reaparecer após interrupção do fármaco. Por isso, muitos autores intrerrogavam-se se não seria correcto manter terapêutica durante mais tempo do que as 6 semanas estipuladas de modo a controlar a virúria durante os primeiros mese de vida. Havia, no entanto, uma limitação, que era a necessidade de manter permeável um acesso venoso por período prolongado.

Depois de se comprovar que a terapêutica com valganciclovir em administração oral, na dose de 16 mg/kg/dose duas vezes por dia atingia níveis sistémicos comparáveis aos do ganciclovir endovenoso, com menores efeitos acessórios, concluiu-se que se tinha chegado à solução para o tratamento das infecções congénitas por CMV.

Concluindo, na actualidade está estipulado que:

  • Em crianças assintomáticas não se deve iniciar terapêutica. Em tais casos, uma vez identificadas, o importante é serem vigiadas sob o ponto de vista da acuidade auditiva de modo a programar intervenção precoce caso sobrevenha surdez;
  • Em crianças sintomáticas deve iniciar-se terapêutica. Em tais circunstâncias, os quadros clínicos devem ser discutidos caso a caso, ponderando os eventuais efeitos secundários (designadamente, a neutropénia, os efeitos carcinogénicos e a toxicidade das gónadas) e os benefícios potenciais (nomeadamente, sobre a audição e o neurodesenvolvimento);
  • A terapêutica deve ser feita com valganciclovir oral, 16 mg/kg/dose de 12-12h durante 6 meses.

Estudo evolutivo

As crianças sintomáticas devem ser acompanhadas nas seguintes áreas:

  • Medicina física e reabilitação para rastreio e tratamento de eventuais alterações motoras;
  • Otorrinolaringologia para estudo da audição – a surdez é evolutiva e poderá não existir ainda na data do rastreio universal neonatal;
  • Oftalmologia para rastreio e correcção de estrabismo convergente ou défice visual;
  • Ensino especial nas crianças com défices cognitivos ou de aprendizagem.

Relativamente às crianças infectadas assintomáticas, Remington chama a atenção para a eventual necessidade do mesmo número de apoios numa fase tardia, uma vez que é altamente provável que estas crianças venham a ter surdez neurossensorial e atraso do neurodesenvolvimento, ou da linguagem.

Kimberlin recomenda exames audiológicos cada 6 meses durante 3 anos e, depois, anualmente durante mais 1 a 2 anos. Qualquer desvio da normalidade deve ser rapidamente sujeito a intervenção apropriada.

4. RUBÉOLA e HEPATITES

Importância do problema

Em comparação com as infecções descritas nas alíneas anteriores (1., 2., e 3.) os problemas respeitantes às hepatites e à rubéola são bem diferentes.

A rubéola congénita é uma raridade em Portugal (2 casos nos últimos 15 anos) e as hepatites deixaram de ter importância epidemiológica por razões diferentes: ou o RN não corre risco importante (hepatite A, prevenção conhecida), ou as mulheres em idade fértil estão protegidas/vacinadas (Hepatite B) ou pouco há ainda a fazer, a não ser vigiar (hepatite C).

Quanto à hepatite C, o quadro está em vias de melhoria nítida atendendo ao surgimento de novas terapêuticas.

Em todas as situações enumeradas nesta alínea 4., a via do parto deve seguir a da indicação obstétrica e em todas é permitido o aleitamento materno.

Rubéola

No que respeita à rubéola pode afirmar-se que o problema não é preocupante uma vez que todas as mulheres em idade fértil estão vacinadas. A vacina ficou disponível para adolescentes do sexo feminino desde 1984 e passou a universal em 1987.

Num estudo realizado na maternidade do Hospital de Dona Estefânia, em 3.100 mulheres a taxa de imunidade rondava os 95%. Com esta taxa de imunidade tão elevada o vírus não circula e não provoca doença.

A situação grave pode ocorrer quando o vírus atinge um grupo populacional não imunizado. A probabilidade de provocar doença com graves sequelas é então muito grande porque se trata verdadeiramente de um vírus “selvagem”.

Tais vírus podem ser introduzidos no País por povos vindos de outras regiões onde não são seguidos os mesmos programas vacinais. Daí a necessidade de vigilância contínua.

Hepatite A

A infecção pelo vírus da hepatite A somente tem importância clínica em Perinatologia se a infecção ocorrer no periparto ou imediatamente após o parto. Na realidade, a transmissão faz-se por via fecal-oral e a maior contagiosidade ocorre nas duas semanas que precedem o início da icterícia. Por isso, muitas vezes, o maior perigo já passou quando é feito o diagnóstico de hepatite A na puérpera. Não é conhecido o estado de portador.

Alguns autores preconizam a administração de imunoglobulina inespecífica ao RN – 0,02 mL/kg por via IM – se os sintomas maternos tiverem tido início duas semanas antes ou uma semana depois do parto; mas a eficácia desta medida não está comprovada.

É fundamental que sejam cumpridas as regras básicas de higiene, nomeadamente a preocupação por parte da mãe de uma lavagem cuidadosa das mãos.

Hepatite B

Espera-se e é desejável que cada vez mais a infecção por este vírus tenha menor importância. Com efeito, muitas mulheres em idade fértil estão já vacinadas. Desde 1995 que a vacina foi incluída no PNV para todos os adolescentes e, desde 2000, todas as crianças são vacinados ao nascer.

O problema remanescente diz respeito às mães com positividade do antigénio AgHBs, sobretudo se associada a positividade do AgHBe. Em ambas as situações, é preconizada a administração de imunoglobulina específica ao RN logo após o nascimento na dose de 1 mL por via IM.

Hepatite C

A infecção por este tipo de vírus é muito mais prevalente na população em geral do que se admitia. No que respeita aos cuidados perinatais não há indicações para qualquer medida especial ou adicional. A criança deve ser dirigida para consulta de hepatologia para ser vigiada até por volta dos 18 meses de idade.

Deve, contudo, alertar-se para dois factos:

  1. As novas terapêuticas poderão gerar uma nova dinâmica no que respeita à necessidade de um diagnóstico mais precoce uma vez que se admite que as crianças infectadas também possam vir a beneficiar delas;
  2. As novas terapêuticas poderão ser utilizadas na prevenção da transmissão vertical através da respectiva administração às grávidas positivas.

5. INFECÇÃO POR VÍRUS ZICA

Epidemiologia, etiopatogénese e importância do problema

O vírus Zica (ZIKV) foi isolado de macacos pela primeira vez em 1947 na floresta Zica no Uganda. Tal agente microbiano foi considerado um patogénio humano após terem surgido os primeiros surtos epidémicos duma doença infecciosa emergente, em 2007, nas ilhas Yap, Micronésia, no Pacífico Sul.

Ulteriormente (Maio de 2015), foi relatada a sua transmissão nas Américas do Sul e Central, Caraíbas, México e, a partir de Novembro do mesmo ano, no Sueste Asiático, Brasil (sobretudo no Nordeste) e, de novo em África, Cabo Verde. Tratando-se duma doença infecciosa emergente de enorme magnitude, disseminando-se por mais de 30 países, (e estimando-se que afectou cerca de dois milhões de pessoas no Brasil), em 2016 a OMS declarou a infecção por vírus Zica uma emergência em saúde pública a nível mundial.

O ZIKV é um arbovírus ARN da família Flaviviridae, (tal como os vírus da dengue, da febre amarela, da encefalite japonesa, da febre do Nilo Ocidental e da doença chikungunya). O vírus é transmitido por artrópodos hematófagos (mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus) os quais se reproduzem em áreas com água parada e picam o ser humano, sobretudo durante o dia.

Os mosquitos podem adquirir o vírus quando picam pessoas infectadas. Após a picada do mosquito com inoculação vírica, o ZICV está presente no sangue (virémia). Viajantes infectados, regressando das zonas onde existe a doença para a zona de residência onde não existe a doença, poderão, pois, ser portadores do vírus no sangue.

Se no local de residência existirem mosquitos vectores, a transmissão de ZICV em tal contexto também é possível.

Embora o ZICV seja principalmente transmitido por mosquitos, outros modos de transmissão são possíveis: sexual, por transfusão sanguínea, por transplante de órgãos ou tecidos, e intrauterina, da mãe (infectada) para o feto, resultando em infecção congénita.

O ZICV está presente no sémen (ver adiante) e secreções vaginais após período de virémia; pode, por isso, ser transmitido por homens e mulheres para os parceiros por meio de relações sexuais, incluindo sexo vaginal e anal e, provavelmente, sexo oral.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos a infecção é assintomática ou cursa com sinais e sintomas ligeiros. Importa, contudo, salientar a sintomatologia mais frequentemente associada, em geral com a duração de 4-7 dias: febre, exantema maculopapular, prurido, artralgia, mialgia, conjuntivite não purulenta, e edema das extremidades. Raramente há necessidade de hospitalização e a taxa de mortalidade é muito baixa.

Muito raramente, poderá ocorrer como complicação por mecanismo autoimune, polineuropatia inflamatória – síndroma de Guillain-Barré – rapidamente progressiva, mas autolimitada.

De referir que a sintomatologia descrita é também comum nos casos de Dengue ou de Doença por vírus Chikungunya.

Se a infecção por ZICV surgir durante a gravidez, pelo efeito teratogénico do mesmo, poderá verificar-se uma embriofetopatia, com um espectro variável de manifestações que integram uma síndroma congénita por ZICV, cuja gravidade é tanto maior quanto mais precoce for a infecção da grávida.

Esta forma de infecção materno-fetal pode ter expressão variável no feto/recém-nascido. Para além das manifestações já descritas anteriormente (designadamente febrícula, exantema maculopapular, conjuntivite não purulenta), apontam-se hepatosplenomegália, defeitos congénitos vários incluindo como mais marcantes os que resultam de alterações do desenvolvimento do sistema nervosos central: microcefalia (aspecto clínico mais típico, tendo constituído um alerta aquando da epidemia no Brasil), atrofia do córtex cerebral, retinopatia, calcificações subcorticais, e sinais neurológicos diversos como contracturas.

Exames complementares

Perante a suspeita clínica, impõe-se a realização de exames laboratoriais para confirmação do diagnóstico, os quais incluem fundamentalmente:

  • provas serológicas (ensaio imunoenzimático ligado à enzima [ELISA] para IgM, e a prova de neutralização por redução de placas [PRNT] para anticorpos contra ZICV);
  • detecção de ARN vírico no soro por PCR-TR (PCR por transcriptase reversa); tal detecção poderá ser feita também na urina, saliva, líquido amniótico, e nos tecidos fetais.

Relativamente à prova ELISA para determinação dos níveis de anticorpos anti-ZICV, importa referir que os resultados não são específicos para ZICV, pois existe reactividade cruzada com outros flavivírus.

Segundo o CDC, define-se “caso confirmado de infecção por ZICV” através da identificação de ARN de ZIKV no plasma/soro por PCR-TR, o que somente é possível no período de tempo muito curto na sequência do período, ou em pleno período de sintomas.

O estudo analítico por PCR-TR na urina e saliva tem a vantagem de ser um método diagnóstico não invasivo, permitindo obter positividade de ARN de cerca de 93% entre 5 a 14 dias após os sintomas (portanto, probabilidade de período mais longo de positividade em comparação com o método descrito de análise no plasma ou soro).

A virémia e a virúria durante a gravidez e o período neonatal podem ter duração superior a 14 dias.

De referir que, no estado actual dos conhecimentos, se desconhece o período de tempo de permanência do vírus no organismo em caso de infecção e se da infecção resulta imunidade.

No sémen, o vírus pode manter-se por um período de 6 meses após infecção.

Prevenção e tratamento

Como medidas preventivas gerais citam-se as seguintes:

  • evitar picadas de mosquitos, limitando a exposição aos mesmos;
  • restringir as viagens a áreas endémicas, incluindo, claro, das grávidas;
  • usar vestuário protector e repelentes de insectos;
  • providenciar ambiente interior com ar condicionado;
  • evitar sexo desprotegido com parceiro, eventualmente assintomático, mas contagioso, e/ou com risco de ter infecção por ZICV;
  • criar a rotina de pesquisa sistemática de ZIKV no âmbito das normas de segurança nos bancos de sangue.

Como medidas preventivas específicas, cumpre referir que a vacina anti-ZIKV está em investigação, na sequência de estudos realizados no âmbito das vacinas para outros flavivírus.

No estado actual dos conhecimentos, está em estudo uma estratégia de imunoterapia passiva através da administração de anticorpos anti-ZIKV.

Quanto ao tratamento, perante a inexistência de fármacos anti-ZICV, são adoptadas medidas gerais de suporte.

6. INFECÇÃO POR CORONAVÍRUS 2/ COVID-19 – [SARS-CoV-2]

Procedendo-se à actualização desta obra em plena pandemia por COVID-19 e verificando-se casos de doença pelo referido vírus em grávidas e recém-nascidos, importa salientar alguns tópicos com base na literatura científica consultada sobre o que se apurou sobre a morbilidade em RN e a eventualidade de transmissão do agente mãe-filho (feto/RN):

  • Mecanismo de infecção neonatal pouco claro. Maior probabilidade de transmissão horizontal mãe-filho, admitindo-se como pouco provável (baixo risco a transmissão vertical, embora possível.
  • Na maioria dos casos o RN está assintomático. Verificando-se manifestações clínicas, as mais frequentes são dificuldade respiratória [que poderá por vezes obrigar a ventilação invasiva], vómitos, diarreia, febre, tosse e, raramente, choque.
  • Resultados negativos de testes víricos por PCR realizados para SARS-CoV-2 ao nível da placenta, cordão umbilical, líquido amniótico, secreções vaginais e amostras de leite materno. Eventualmente, positividade detectada em secreções nasofaríngeas.
  • Quanto a resultados de exames laboratoriais, estão descritos casos evidenciando leucocitose com linfopenia e trombocitopenia, além de elevação de creatina-fosfo-quinase MB/CPK MB.
  • De acordo com a maioria dos estudos não é recomendada a separação mãe-filho.
  • Admite-se que os RN poderão estar relativamente protegidos da infecção materna por transmissão passiva transplacentar de IgG com efeito semelhante ao que se obtém com transfusão de plasma de convalescente.
  • Praticáveis os cuidados gerais habituais, designadamente contacto pele com pele, aleitamento materno [recomendado pela AAP] e permissível tempo retardado de laqueação do cordão.
  • A eventual sintomatologia de doença neonatal é ligeira.
  • À mãe devem ser aplicadas as medidas preventivas habituais, como uso de máscara e lavagem correcta das mãos.

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ASPECTOS GERAIS DA INFECÇÃO NO RECÉM-NASCIDO

Importância do problema

No recém-nascido (RN) a infecção reveste-se de características muito específicas tornando-a uma das patologias mais temidas neste grupo etário.

Na realidade, as infecções congénitas e as de origem materna são apanágio do RN, enquanto as adquiridas no hospital (bacterianas, fúngicas ou víricas) são muito mais frequentes no período neonatal do que em qualquer outro período da vida; além disso, podem ser rapidamente evolutivas, são potencialmente muito graves e, na generalidade, estão associadas a mortalidade elevada. (ver adiante Definições)

Por isso, a infecção é uma preocupação, não só de pediatras e neonatologistas como também de obstetras, uma vez que muitas das situações podem ser detectadas e tratadas in utero ou condicionar decisões obstétricas que de outro modo não se tomariam – designadamente prescrição de antibióticos ou decisão de retirar o feto.

O médico que trata o recém-nascido (RN) – médico de família, pediatra ou neonatologista – deve ter conhecimentos e competências que lhe permitam diagnosticar, tratar ou encaminhar um RN doente:

  • no que respeita às infecções congénitas, deve conhecer a periodicidade com que devem ser efectuados os estudos serológicos antes ou durante a gravidez, saber interpretar os resultados, estar familiarizado, quer com os sinais clínicos deste tipo de infecções, quer com o tratamento de eleição;
  • quanto às infecções perinatais deve saber reconhecer o risco infeccioso bacteriano perinatal, os sinais de infecção bacteriana neonatal, que atitudes tomar em casos de suspeita e, igualmente, deve ter noções firmes sobre controlo de infecção de origem hospitalar, outra das grandes preocupações na eventualidade de o RN se encontrar hospitalizado.

Neste capítulo são dadas noções fundamentais que permitam ao médico adquirir conhecimentos de modo a identificar, encaminhar e/ou tratar a patologia infecciosa congénita, perinatal e neonatal. Nos capítulos seguintes são abordadas as infecções congénitas mais comuns, mais pormenorizadamente a infecção bacteriana perinatal e, sucintamente, as infecções hospitalares. (A infecção por vírus da imunodeficiência humana consta de capítulo próprio na Parte XII)

Definições

Os conceitos são importantes, não só para que possamos falar a mesma linguagem, mas também porque os mesmos se relacionam em geral, quer com determinadas manifestações clínicas, quer com determinados agentes etiológicos e terapêuticas.

Infecção congénita

É a infecção adquirida in utero, por via transplacentar. A criança pode nascer assintomática, ou já com sequelas da infecção como, por exemplo, microcefalia, hidrocefalia, calcificações intracranianas, restrição de crescimento fetal/intrauterino (RCIU), lesões oculares, porque houve tempo para que tal acontecesse. Algumas infecções deste tipo, se ocorrerem nas últimas semanas de gestação, ou numa fase precoce da vida pós-natal, poderão originar manifestações ultrapassado o período neonatal (por ex. sífilis).

Para caracterizar este tipo de patologia, integrando diversas nosologias, tem sido usado o acrónimo TORCHS (toxoplasmose, outras, rubéola, vírus citomegálico humano, hepatite, sífilis).

Na última década foi identificada uma doença infecciosa emergente de carácter epidémico, disseminando-se por diversos continentes (sobretudo Américas e África), com várias modalidades de transmissão, incluindo a via materno-fetal e conduzindo a um quadro de infecção congénita.

Dado o enorme impacte em Saúde Pública a nível mundial de tal infecção, provocada por um arbovírus ARN (vírus ZICA), investigadores e epidemiologistas sugeriram a inclusão da letra Z no referido acrónimo, passando a TORCHSZ (toxoplasmose, outras, rubéola, vírus citomegálico humano, hepatite, sífilis, zica).

Infecção perinatal

É uma infecção adquirida por via ascendente, durante ou próximo ao período do trabalho de parto. O agente patogénico, habitualmente um comensal ou infectante do tracto genital materno, atinge o meio intrauterino, porque houve ruptura de membranas; contudo, as membranas nem sempre constituem uma barreira eficaz.

Nesta situação a criança:

  • poderá nascer já com doença evidente e por vezes grave, com reacção diminuída aos estímulos e depressão respiratória, condicionando adaptação difícil à vida extrauterina (traduzida, designadamente, por baixo índice de Apgar), ausência de resposta às medidas de reanimação, necessidade de cuidados intensivos e risco elevado de morte nas primeiras horas de vida, ou
  • poderá vir a manifestar a doença durante os primeiros dias de vida.

Infecção precoce

Corresponde a quadro mórbido com início dos sinais clínicos nas primeiras 72 horas de vida. Nalgumas infecções que ocorrem predominantemente na primeira semana de vida considera-se o limite de 7 dias; é o que acontece, por exemplo na infecção por Streptococcus do grupo B.

Os microrganismos que causam infecção precoce são, supostamente, sempre de origem materna. A pneumonia de origem materna é mais frequente, quase exclusiva da infecção precoce: as vias aéreas superiores ficam de imediato colonizadas na passagem do feto pelo canal do parto, sendo o pulmão facilmente atingido.

Infecção tardia

Trata-se de infecção cujos sinais clínicos surgem depois das 72 horas de vida. Pode ser provocada por microrganismos transmitidos pela mãe, adquiridos no hospital se a criança estiver hospitalizada, ou adquiridos na comunidade se a criança estiver no domicílio. Na infecção tardia causada por microrganismos de origem materna a sépsis pode complicar-se de meningite.

Infecção de origem materna

Este tipo de infecção é provocado por um microrganismo transmitido pela mãe. Frequentemente trata-se duma infecção precoce; no entanto, tal tipo de infecção pode ser tardia – a criança é colonizada pelos microrganismos maternos que invadem a circulação sanguínea mais tarde, por vezes mesmo depois do período neonatal.

Em Portugal, o agente Streptococcus do grupo B é o mais frequentemente isolado nas infecções de origem materna seguido, de longe, por E. coli ou outras enterobacteriáceas tais como Klebsiella e Proteus.

Infecção de origem hospitalar

É uma infecção adquirida após o nascimento, com microrganismos de origem hospitalar; raramente ocorre antes das 72 horas de vida. Em unidades de cuidados intensivos neonatais os agentes mais frequentemente implicados são Staphylococcus coagulase negativa, dos quais Staphylococcus epidermidis é o mais frequente.

Contudo, deve ser sempre tido em consideração que outros microrganismos – bactérias, fungos ou vírus – podem ser causa de infecção de origem hospitalar com consequências muito mais graves para o doente (maior patogenicidade, eventual multirresistência, maior mortalidade).

Infecção da comunidade

É uma infecção causada por microrganismos adquiridos na comunidade e manifestando-se em RN já no domicílio. Frequentemente o RN adquire a infecção por contágio através dum irmão a frequentar infantário ou escola, ou doutros familiares doentes.

A situação paradigmática corresponde ao caso de RN em ambulatório que é admitido com quadro de pneumonia ou de sépsis. Os agentes implicados podem ser Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae ou Neisseria meningitidis. A antibioticoterapia empírica terá que abranger todas estas hipóteses etiológicas, havendo ainda a possibilidade de alguns destes microrganismos serem multirresistentes.

No caso específico de sépsis ou meningite tardias, deve ainda ser considerada a possibilidade de a infecção estar a ser causada por bactéria de origem materna, razão pela qual determinados agentes como Streptococcus do grupo B e E. coli deverão também ser considerados como possíveis factores etiopatogénicos.

Septicémia

Septicémia é uma infecção sistémica generalizada caracterizada por determinados sinais clínicos como prostração, hipotonia, recusa ou intolerância alimentar, febre, hipotermia ou labilidade térmica, má perfusão periférica, tempo de recoloração capilar superior a 2 segundos, dificuldade respiratória e hemocultura positiva.

Os sinais clínicos são acompanhados, mais cedo ou mais tarde, por sinais laboratoriais como alterações dos reagentes da fase aguda (por exemplo positividade da PCR), leucocitose ou leucopénia, neutrofilia ou neutropénia e resultado da hemocultura positivo.

Sépsis

Definida como infecção sistémica com os mesmos sinais clínicos referidos na septicémia, sendo o resultado da hemocultura negativo. No caso de infecção de origem materna este resultado é frequentemente condicionado pela administração de antibióticos à mãe no período periparto. A terapêutica antimicrobiana deverá ser feita com base nos critérios atrás expostos para a septicémia (mesmos antibióticos e a mesma duração).

Pneumonia

Trata-se dum quadro de dificuldade respiratória acompanhado de sinais auscultatórios (fervores crepitantes, por vezes difíceis de detectar) e radiológicos (condensações heterogéneas evidentes na radiografia do tórax, mantidas por mais de 48 horas). Em RN ventilados, a pneumonia manifesta-se muitas vezes também por necessidade de intensificar os parâmetros de ventilação.

Na maior parte das pneumonias no período neonatal é difícil conhecer o agente etiológico. O diagnóstico etiológico correcto é possível se for conseguida hemocultura positiva num RN com pneumonia; contudo este achado é raro em neonatologia.

Se ocorrer o óbito, o agente isolado em peça de exame anatomopatológico post-mortem contribui para o diagnóstico etiológico de certeza.

Nas primeiras 12 horas de vida as bactérias detectadas em cultura de aspirado do tubo endotraqueal (TET) ou da orofaringe permitem o diagnóstico etiológico; no entanto, num RN admitido em cuidados intensivos, passados alguns dias, o resultado positivo do exame bacteriológico das secreções do TET poderá indicar apenas colonização, pelo que não está indicada a sua realização em tais circunstâncias.

Infecção urinária

É uma situação definida pela comprovação de bacteriúria significativa (consultar capítulo sobre Infecção Urinária) pressupondo técnica correcta de colheita de urina: no período neonatal a colheita correcta de urina para exame bacteriológico deve ser feita por punção suprapúbica; no caso de o médico não ter prática da técnica devem ser feitas duas colheitas para saco ou colheita por algaliação após desinfecção cuidadosa.

Se a infecção urinária estiver localizada ao tracto urinário inferior, pode manifestar-se apenas por recusa e intolerância alimentares, assim como por vómitos. A infecção urinária do tracto superior (pielonefrite) manifesta-se como sépsis: febre, má perfusão periférica e também recusa ou intolerância alimentares.

Se concomitantemente a hemocultura for positiva, estaremos perante um quadro de septicémia com pielonefrite, salientando-se que muitas vezes não se percebe qual foi a infecção primária – se a renal, que determinou a disseminação hematogénica, se a infecção sistémica que determinou foco de localização secundária no rim.

O tratamento é igual ao referido para a sépsis. O diagnóstico de certeza é dado pelo resultado de urocultura e pela ecografia renal.

Meningite

O quadro clínico de meningite é sobreponível ao de infecção sistémica grave. Podem existir convulsões – aliás convulsões e febre obrigam a punção lombar, assim como hemocultura positiva (excepto se se obtiver isolamento de Staphylococcus coagulase negativa).

Contudo, se o estado clínico do RN for muito instável, poderá haver a necessidade de se protelar a punção lombar (PL) e de se iniciar antibioticoterapia em doses iguais às que se utilizam em situação de meningite comprovada, valorizando criteriosamente os dados clínicos a favor de meningite.

A ecografia transfontanelar pode ajudar no diagnóstico. O exame citoquímico do LCR evidencia número de células superior a 20/mm3, teor da glicose inferior 70% a 80% em relação ao da glicémia, e proteínas com valor superior a 150 mg/dL. Estes resultados, mantendo-se alterados nos primeiros dias de antibioticoterapia, reforçam a hipótese diagnóstica inicial de meningite nos casos em que não se procedeu a exame cultural antes do início do tratamento.

Do que anteriormente foi referido, conclui-se que na infecção de origem materna a pneumonia ocorre exclusivamente na infecção precoce, enquanto a meningite ocorre predominantemente na infecção tardia. Numa criança que nasce com meningite precoce, o respectivo estado clínico é muito precário e de extrema gravidade, considerando já ter decorrido tempo suficiente para haver invasão e replicação bacterina no SNC.

Generalidades sobre diagnóstico e tratamento

As infecções congénitas levantam problemas de diagnóstico baseado nas serologias.

Durante toda a gestação verifica-se a passagem transplacentar de IgG materna, sendo que a IgM materna somente atravessa a placenta se se verificar lesão deste órgão. Entre as 10 e 20 semanas o feto tem a capacidade de produzir quer IgG, quer IgM.

Por conseguinte, a IgM presente no soro do RN significa, em princípio, produção própria ou infecção activa, enquanto a IgG pode ter proveniência, quer a partir da mãe, quer a partir do feto/RN.

Nesta perspectiva, a interpretação dos resultados serológicos quanto a IgG no RN, obriga necessariamente à comparação entre títulos obtidos na mãe e no filho RN.

Duas situações merecem referência no que respeita a IgM e IgG:

  • no que respeita à IgM deve ser tomado em consideração que IgM negativa no RN não deve levar à exclusão de infecção uma vez que a elevação daquela (IgM) é transitória, podendo já ser negativa no momento do nascimento de uma criança infectada;
  • no que respeita à IgG, uma vez que a sua positividade pode ser devida à presença de IgG de origem materna ou fetal, deve proceder-se laboratorialmente a técnicas de imunobot para identificar as populações de IgG; havendo duas populações, uma será da mãe, e outra do RN; havendo apenas uma, a mesma será certamente da mãe, situação a que poderá corresponder exclusão de infecção no RN.

Actualmente o diagnóstico das infecções congénitas está muito facilitado e é muito mais rápido pela possibilidade de utilizar técnicas de amplificação do DNA (PCR).

  1. No que respeita às infecções bacterianas, as especificidades do recém-nascido condicionam dificuldades de diagnóstico importantes. Se a situação clínica indicia gravidade, na presença dos sinais acima referidos, a primeira hipótese diagnóstica deve ser infecção, o que obriga a realização de exames complementares de diagnóstico e início de antibioticoterapia.
  2. Simultaneamente, contudo, deve ser feito diagnóstico diferencial com outras situações graves, também com risco de vida, mas com terapêutica muito diferente.
    As situações mais comuns dizem respeito às cardiopatias congénitas, nomeadamente coarctação da aorta e síndroma de coração esquerdo hipoplásico, as quais devem ser sempre detectadas quando nos deparamos com um RN com o quadro clínico simile infecção sistémica, em que a administração de prostaglandinas pode ter efeito salvador.
  1. Poderá ainda tratar-se de doença metabólica, cujo quadro clínico pode ser muito semelhante aos descritos anteriormente, com a agravante de algumas delas poderem ser acompanhadas de sépsis (por exemplo, galactosémia associada a septicémia por E. coli).
  2. No que respeita à terapêutica de situações clínicas consideradas sempre graves podem levantar-se dúvidas quanto ao esquema de antibioticoterapia a utilizar, entre outras medidas. Estes aspectos serão focados em capítulos ulteriores.
  3. Contudo, quanto a vias de administração, tipos de antibióticos e local onde a criança deve ser tratada há regras bem estabelecidas:
    • devem ser usados sempre dois antibióticos com mecanismos de acção diferentes de modo a gerar potenciação de efeitos;
    • devem ser administrados por via endovenosa e sempre em meio hospitalar. Com estes pressupostos, a par da gravidade da situação e da possibildiade de rápido agravamento, é fácil perceber que o tratamento deve ser realizado sempre em meio hospitalar.

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ICTERÍCIA NEONATAL

Definição e importância do problema

A icterícia, síndroma resultante da impregnação da pele e mucosas pelo pigmento bilirrubina quando o mesmo ultrapassa determinado valor sérico (>7 mg/dL no RN versus >2 mg/dL no adulto), constitui uma das manifestações clínicas mais frequentes no período neonatal (entre 25 e 50% dos RN de termo e percentagem superior no pré-termo).

Em cerca de 6% dos RN de termo são atingidos valores de bilirrubinémia >13 mg/dL e, em cerca de 3%, >15 mg/dL.

Não existe uma definição universalmente aceite sobre o que se considera “valor normal de bilirrubinémia no RN”. Em termos práticos considera-se habitualmente hiperbilirrubinémia do RN toda e qualquer situação clínica associada a bilirrubinémia total superior a 13 mg/dL no RN de termo, e superior a 10 mg/dL no RN pré-termo; torna-se óbvio que este critério se pode considerar arbitrário uma vez que valores inferiores àqueles limites nas primeiras 24 horas de vida, e em determinadas circunstâncias, poderão constituir já risco importante para o SNC (ver adiante).

De acordo com o nomograma de Bhutani, a hiperbilirrubinémia neonatal é definida, acima das 35 semanas de gestação, por valores superiores ao percentil 95 para a idade em horas (>8 mg/dL às 24 horas, >13,1 mg/dL às 48 horas, >15,8 mg/dL às 72 horas).

Na grande maioria dos casos, a icterícia relacionada com elevação da fracção não conjugada da bilirrubina (ou indirecta, retomando a nomenclatura antiga relacionada com a reacção de Van den Bergh) tem uma evolução benigna, sendo considerada classicamente como icterícia fisiológica, isto é manifestação própria e expectável no RN.

Todavia, num pequeno número de casos, poderão surgir níveis elevados de bilirrubinémia não conjugada comportando risco de toxicidade para o SNC e de encefalopatia de grau variável (com lesões ligeiras, moderadas ou graves); o substrato anátomo-patológico de tal encefalopatia corresponde fundamentalmente a impregnação do pigmento nos núcleos da base. A forma mais grave, hoje rara, é constituída pelo chamado kernicterus que pode ter evolução fatal.

Em síntese, a hiperbilirrubinémia e a sua expressão clínica, a icterícia, constituem a manifestação clínica mais frequente no período neonatal.

Neste capítulo é dada ênfase às situações associadas a hiperbilirrubinémia não conjugada.

Etiopatogénese

Para a compreensão dos diversos quadros clínicos da icterícia neonatal e das medidas profiláctico-terapêuticas a instituir, designadamente no âmbito das hiperbilirrubinémias à custa da fracção não conjugada da bilirrubina (com riscos potenciais em função do valor, idade gestacional, idade pós-natal e contexto clínico), será útil abordar as etapas fundamentais do metabolismo da bilirrubina, a sua toxicidade e os principais factores predisponentes da síndroma ictérica.

Metabolismo da bilirrubina

Síntese

A bilirrubina é o produto final do catabolismo dos pigmentos contendo heme (Figura 1). A maior parte da sua produção (80-85%) tem lugar ao nível do SRE (especialmente fígado, baço, medula óssea e tecidos com macrófagos) por degradação oxidativa da Hb que provém dos eritrócitos envelhecidos; mediante a intervenção da enzima heme-oxigenase e do pigmento celular citocrómio P450, formam-se quantidades equimolares de CO e de biliverdina. A biliverdina-redutase ao nível dos microssomas dos macrófagos promove a hidrogenação da biliverdina IX-a, que se transforma em bilirrubina indirecta, livre, não conjugada, lipossolúvel.

Uma pequena parcela da produção da bilirrubina (15-20%) tem origem em moléculas proteicas com heme (mioglobina, peroxidase, triptofano-pirrolase, catalase, citocrómios, citocrómio-oxidase, etc.) e na chamada eritropoiese ineficaz. Nesta fase do metabolismo da bilirrubina (síntese) o mecanismo principal da hiperbilirrubinémia é uma hiper-hemólise. Sabendo que 1 g de hemoglobina catabolizada origina 34 mg (600 µmol) de bilirrubina, pode deduzir-se que a descida de 1 g de Hb/dL/dia é responsável pela quadruplicação da produção diária de bilirrubina, a qual pode atingir 28 mg/kg/dia.

FIGURA 1. Metabolismo da bilirrubina. A designação formal da molécula de bilirrubina nativa é: 4Z, 15Z-bilirrubina IX-a ou α.

A bilirrubina assim sintetizada (chamada bilirrubina IX-a, indirecta, livre, não conjugada) é lipossolúvel, ultrafiltrável, com grande poder de difusão extravascular, difusível em todos os tecidos e tóxica para as células, sobretudo as dos núcleos basais do encéfalo; cerca de metade da bilirrubina sintetizada, pela sua lipossolubilidade, deposita-se rapidamente nos tecidos onde se forma, e igual quantidade atinge a circulação. A produção aumentada de bilirrubina pode ser determinada pela taxa de excreção de CO (ver adiante).

Transporte sérico

Parte da bilirrubina que deixa o SRE é transportada em ligação principalmente à albumina (complexo bilirrubina-albumina) e, acessoriamente, em ligação a ácidos gordos plasmáticos e a certas lipoproteínas eritrocitárias e globulinas. O complexo albumina-globulina é hidrossolúvel, não ultrafiltrável, ou seja, de menor difusão extravascular, não penetrando no espaço intracelular, nomeadamente nas células nervosas.

A união bilirrubina-albumina é possível em 2 centros de ligação: ao primeiro liga-se uma molécula de bilirrubina intensamente, sendo dificilmente deslocável; ao segundo ligam-se duas, mas a afinidade é menor. Portanto, cada molécula de albumina é capaz de transportar, pelo menos, três moléculas de bilirrubina.

Outra parte da bilirrubina encontra-se livre do plasma. Segundo a lei da acção de massa, aplicando a fórmula:

[Bilirrubina] x [Albumina] / [Bilirrubina-Albumina] = K

a quantidade de bilirrubina livre varia inversamente à concentração de albumina disponível para se lhe ligar. (Figura 2)

FIGURA 2. Transporte, captação e conjugação da Bilirrubina.

A capacidade de fixação bilirrubina-albumina é susceptível de ser diminuída por certos factores (traduzindo competição com a bilirrubina na sua ligação à albumina):

  • diminuição do pH;
  • diminuição da concentração de albumina na circulação, por ex. no RN pré-termo;
  • fenómenos competitivos desempenhados por substâncias biológicas (por ex. AGNE ou ácidos gordos não esterificados, alfa-globulinas, lipoproteínas, etc.);
  • fenómenos competitivos desempenhados por certos fármacos, por ex. drogas aniónicas, sulfamidas, antibióticos (moxalactam, ácido fusídico, infusão rápida de ampicilina); e
  • fenómenos competitivos desempenhados por meios de contraste imagiológico (ácido ipanóico, e outros), ácido acetilsalicílico, etc.).

Em suma, os referidos factores diminuem a probabilidade de ligação da bilirrubina à albumina, passando aquela a circular livre no plasma, e em quantidade tanto maior quanto maior a taxa de ocupação dos centros de ligação da albumina por outras “substâncias concorrentes”, menor a quantidade de albumina e o pH.

Por outro lado, quanto maior o teor de bilirrubina livre, não ligada à albumina, maior a probabilidade de passagem daquela para o espaço intracelular (e, designadamente, células nervosas).

Este risco pode ser quantificado do seguinte modo (considerando as relações molares bilirrubina/albumina a um pH de 7,40):

  • 1 grama de albumina fixa, no máximo, 17 mg de bilirrubina (29 µmoles);
  • albuminémia normal <> 35 g/L (ou 3,5 g/dL) <> (510 µmoles).

Ora, a saturação (ou capacidade máxima de fixação de bilirrubina pela albumina) atinge-se quando o valor da bilirrubina em µmoles atingir 510 µmoles (ver acima), ou seja, quando atingir cerca de 29 mg/dL (ou 290 mg/L<> 510 µmoles), ou relação molar de 1/1.

Se o valor de albuminémia for inferior a 35 g/L (por ex. no RN pré-termo), tal saturação (e risco consequente de passagem de bilirrubina para a célula nervosa) atinge-se com valores inferiores de bilirrubina.

Em conclusão, o risco de neurotoxicidade deve ter em conta, não só o valor da bilirrubinémia indirecta ou não conjugada, mas também o teor de albumina no sangue (verificando-se risco se relação molar ≥1/1).

Captação da bilirrubina pelo hepatócito e conjugação

Não obstante a ligação estreita bilirrubina-albumina, a bilirrubina não conjugada é separada da albumina ao nível dos sinusóides com a comparticipação de receptores de membrana da bilirrubina à superfície dos hepatócitos, sendo depois captada pelo hepatócito. (Figura 2)

A transferência da bilirrubina do líquido extracelular para o citosol hepático parece ser influenciada pelos respectivos gradientes de concentração através da membrana celular e pelo teor em proteínas disponíveis no referido citosol, chamadas proteínas captadoras de aniões: Y e Z. São precisamente as proteínas Y e Z (esta última em menor grau) que transportam a bilirrubina até ao retículo endoplásmico onde tem lugar a glucurono-conjugação, principalmente com o ácido glucurónico (uridina-di-phosfato-glucurónico-ácido ou UDPGA), realizada sob a dependência duma enzima dos microssomas, a UDPG-T (uridina-di-phosfato-glucurónico-transferase).

A UDPGA provém da uridina-di-phosfato-glucose (UDPG) através dum processo de desidrogenação dependente da enzima UDPG-desidrogenase. A função da UDPG-desidrogenase depende dum suprimento contínuo de glucose e/ou de reservas de glicogénio; isto é, a glucose actua como fonte de ácido glucurónico, sendo, portanto, fundamental para a função normal do sistema de conjugação da bilirrubina.

De salientar que a bilirrubina também se pode conjugar, acessoriamente, com a xilose, glucose, outros glúcidos, e possivelmente, com sulfatos e aminoácidos.

No RN de termo e, sobretudo, no RN pré-termo reúnem-se um certo número de circunstâncias susceptíveis de dificultar directa ou indirectamente a conjugação: défice enzimático transitório, tendência para a hipoglicémia associada a deficientes reservas de glucose e/ou imaturidade enzimática, défice de proteína Y, etc.. A maturação ou intensificação da actividade da UDPG-T depende da presença da hormona tiroideia e dum substrato – a bilirrubina – que, na vida fetal, é eliminada através da placenta. Por outro lado, a referida actividade pode ser induzida pelo fenobarbital ou outros fármacos (ver adiante icterícia fisiológica).

Polimorfismos e mutações nos genes das enzimas de conjugação podem explicar situações caracterizadas por não conjugação da bilirrubina, originando hiperbilirrubinémia não conjugada (indirecta) a que se fará referência adiante.

No feto não existe glucurono-conjugação, sendo que toda a bilirrubina formada passa livremente a barreira placentária e é metabolizada no fígado da mãe.

Excreção da bilirrubina

Somente após a conjugação se torna possível a excreção (de modo activo com a participação de sistema de transporte dependente de energia – bombas MRPR2 e MDR3-) pelo hepatócito nos canalículos biliares e tubo digestivo: a bilirrubina conjugada, chegando ao intestino veiculada pela bílis, é ulteriormente reduzida e degradada pelas bactérias saprófitas do tubo digestivo em urobilinogénio e estercobilinogénio. (Figura 3)

Acontece, no entanto, que no período pós-parto imediato não existem bactérias no tubo digestivo; o microbioma, com efeito, só surge após se iniciar a alimentação; ou seja, o urobilinogénio e estercobilinogénio (precursores de urobilina e estercobilina, respectivamente) somente se formam se for iniciada a alimentação per os. Uma pequena fracção de urobilinogénio é excretada na urina. A oxidação de urobilina e estercobilina contribui para a cor das fezes e urina.

Existe também outra particularidade da fisiologia do intestino do feto e RN: é a existência da beta-glucuronidase no lume e epitélio cuja função consiste em catalizar a desconjugação da bilirrubina (função que está aumentada na ausência de microbiota), dando origem a ácido glucurónico e a bilirrubina não conjugada. Esta última é reabsorvida para a circulação, contribuindo para aumentar significativamente a taxa sérica de bilirrubina não conjugada ou indirecta (recirculação êntero-hepática).

FIGURA 3. Excreção da Bilirrubina (Consultar Glossário geral: Microbiota).

Pode concluir-se que a bílis contém elevada concentração de bilirrubina que, no adulto, é sobretudo bilirrubina IXa*, pigmento que não poderá ser excretado sem conjugação. Contudo, no RN, para além da bilirrubina IXa, formam-se outros isómeros hidrossolúveis que podem ser excretados directamente (pela bílis e urina), isto é, sem necessidade de conjugação. Por outro lado, esta particularidade permite tirar partido do efeito fotoquímico da luz com comprimento de onda entre 420 e 480 nm, a qual promove a transformação de bilirrubina IXa em isómeros hidrossolúveis (por ex. Z-lumirrubina) excretados pela bílis e urina, o que pode constituir estratégia para reduzir o nível sérico de risco da hiperbilirrubinémia em determinadas situações, rendibilizando a eliminação do pigmento. (ver adiante)

*Bilirrubina IX-a ou IX-α (sinónimos). De acordo com a configuração dos arranjos espaciais dos átomos são descritas 2 configurações da molécula: Z ou cis e E ou trans.

Toxicidade da bilirrubina

Ao abordar a problemática da neurotoxicidade da bilirrubina é importante uma referência sucinta ao conceito fisiológico clássico da chamada barreira hemato-encefálica que se opõe à passagem de macromoléculas e compostos polares; tal barreira corresponde a um substrato estrutural constituído pelas células endoteliais dos capilares cerebrais e pelas junções intercelulares que restringem a difusão intercelular e o movimento de solutos.

Ora, a fracção de bilirrubina livre, não ligada à albumina e não conjugada, atravessa mais facilmente tal barreira, o que determina maior risco de toxicidade da célula do SNC. Os factores críticos que comprometem o funcionamento de tal barreira são a imaturidade, o nível de bilirrubina livre não conjugada (condicionada por exemplo, pela hipoalbuminémia, como foi atrás referido) e a velocidade de subida da concentração sanguínea da mesma.

Outros factores podem tornar tal barreira mais permeável, quer no RN de termo, quer no pré-termo, tais como: acidose metabólica ou respiratória graves, hipoxémia persistente e infecção sistémica; estes últimos factores podem explicar situações de kernicterus ou encefalopatia bilirrubínica em RN de termo ou quase de termo. Em suma, todos estes factores contribuem para aumentar a toxicidade da bilirrubina.

Factores predisponentes de icterícia neonatal

A elevada frequência com que surge icterícia no RN e, de modo especial, no RN pré-termo relativamente a outros grupos etários, é explicável por um conjunto de factores (predisponentes), os quais podem ter papel importante, mesmo em situações consideradas não patológicas:

Factores predisponentes

    • poliglobúlia fisiológica associada a tempo de vida média eritrocitária ~70 dias facilitando a hemólise, o que corresponde a maior oferta de massa eritrocitária ao fígado para metabolisar, o que poderá dificultar a excreção de bilirrubina formada;
    • défice transitório das enzimas da glucuronoconjugação, mais acentuado em condições de prematuridade; a actividade da UDPGT em recém-nascidos de termo, aos 7 dias de vida, é aproximadamente 1% da observada no adulto, só atingindo estes níveis depois dos 3 meses.
    • défice em proteína Y;
    • actividade aumentada da beta-glucuronidase;
    • no pré-termo acrescentam-se:
      • hipoalbuminémia;
      • hipoglicémia;
      • acidose metabólica.

Classificação etiopatogénica

Em função das alterações verificadas nos diversos passos do metabolismo da bilirrubina e dos principais mecanismos responsáveis pela elevação da bilirrubina são deduzidos os três grandes grupos de síndroma ictérica:

  • Multifactorial;
  • Não hemolítica, englobando situações, quer acompanhadas de elevação da bilirrubina não conjugada, quer acompanhadas de elevação da bilirribina conjugada (directa);
  • Hemolítica, englobando situações acompanhadas de elevação da bilirrubina não conjugada (indirecta).

O Quadro 1 sistematiza os grandes grupos etiopatogénicos de hiperbilirrubinémia não conjugada.

QUADRO 1 – Hiperbilirrubinémia não conjugada (indirecta) (Icterícia hemolítica e não hemolítica).

Multifactorial

    • Icterícia fisiológica ou do desenvolvimento

Causa não hemolítica

    • Icterícia por síntese aumentada de bilirrubina
    • Icterícia por defeito de captação e/ou de conjugação da bilirrubina
    • Icterícia por circulação êntero-hepática aumentada
    • Icterícia associada à amamentação
    • Icterícia secundária ao leite materno

Causa hemolítica

    • Icterícia por iso-imunização materno-fetal (doença hemolítica perinatal)
    • Icterícia por enzimopatias eritrocitárias
    • Icterícia por membranopatias eritrocitárias
    • Icterícia por hemoglobinopatias
    • Icterícia por causas diversas (vitamina K3, fármacos, infecções, etc.)

Factores de risco

Na prática clínica é importante identificar, logo desde o nascimento, em RN de termo e pré-termo, os principais factores de risco elevado de hiperbilirrubinémia indirecta:

  • Predisposição genética para hiperbilirrubinémia neonatal (frequente em determinadas etnias asiáticas);
  • Antecedentes familiares de afecção hemolítica;
  • Diabetes materna;
  • Prematuridade (risco mais elevado se idade gestacional entre 35 e 38 semanas);
  • Irmão anterior com síndroma ictérica necessitando de intervenção;
  • Sexo masculino;
  • Macrossomia fetal (>4.000 gramas) associada a diabetes materna;
  • Incompatibilidade de grupos sanguíneos mãe-filho com prova de Coombs directa positiva no RN (ver adiante);
  • Icterícia neonatal surgida nas primeiras 24 horas de vida (precoce) apontando para causa hemolítica (em geral, doença hemolítica por incompatibilidade sanguínea mãe-filho);
  • Exame físico evidenciando sufusões, equimoses ou hematomas;
  • Hipogalactia associada a perda ponderal significativa, etc..

Notas Importantes:

    • A lista anterior de factores de risco foi deduzida de estudos epidemiológicos realizados em diversos centros perinatais; como foi atrás referido, em regra os RN pré-termo e os portadores de icterícia de causa hemolítica têm maior risco de encefalopatia bilirrubínica.
    • Hábitos maternos de fumo do tabaco, assim como consumo de álcool e de drogas como a heroína, diminuem o risco de hiperbilirrubinémia.
    • A bilirrubina tem propriedades antioxidantes.

Semiologia e exames complementares

Perante um RN ictérico, a anamnese perinatal e o exame físico do RN poderão determinar, em certos casos, a realização dum conjunto de exames complementares para esclarecimento etiológico, salientando-se que o aparecimento de icterícia nas primeiras 24 horas de vida pós-natal (situação, até prova em contrário, patológica) obrigará sempre a investigação laboratorial, cuja sequência é ditada pelo contexto clínico. (ver adiante)

Nas alíneas seguintes são discriminados os principais exames complementares a realizar:

  • Alíneas 1. e 2. em situações de icterícia de aparecimento precoce (< 24 horas de vida), sugerindo, até prova em contrário, factor etiológico de hemólise;
  • Alínea 3. em situações de icterícia de aparecimento não precoce, sugerindo factor etiológico de obstrução do fluxo normal da bílis (colestase), sendo que pode haver situações mistas (associadas a hemólise).
  1. Os exames laboratoriais de primeira linha, prioritários e essenciais são:
    • Grupo sanguíneo (Rh/antigénios D, d; AB0) na mãe; idem no RN (sangue do cordão ou sangue periférico) se mãe Rh negativo e/ou 0; pressupõe-se, claro, que o grupo sanguíneo da mãe deverá já ser conhecido tendo em conta a vigilância pré-natal;
    • Provas de Coombs (pesquisa de anticorpos maternos anti-D) (prova directa no RN e indirecta na mãe) se mãe Rh negativo (dd ou Du) e RN Rh positivo (DD ou Dd)**;
    • Pesquisa de anticorpos anti-A e anti-B no sangue do cordão ou no sangue periférico (RN) tratando-se de mãe do grupo 0 e de RN do grupo A ou B;
    • Hemoglobina e hematócrito no RN;
    • Doseamento de bilirrubina total, fracções conjugada e não conjugada;
    • Estudo morfológico do sangue periférico no RN [a detecção de esferócitos no sangue do RN poderá ser (no período neonatal) sinal indirecto de iso-imunização AB0 e não de esferocitose hereditária];
    • Contagem de reticulócitos no RN.

** Notas Importantes

→ A prova de Coombs (ou prova da antiglobulina) directa permite pesquisar anticorpos (imunoglobulinas) fixados sobre os eritrócitos do doente. Compreende esquematicamente os seguintes passos: 1) Junção de eritrócitos do doente, com anticorpos fixados sobre os eritrócitos, ao soro de Coombs (obtido por injecção no coelho de gama-globulina humana permitindo obter anticorpos anti-imunoglobulina humana- ou anticorpos anti-anticorpos do doente fixados sobre os eritrócitos; 2) A ligação anticorpo anti-imunoglobulina humana aos anticorpos fixados sobre os referidos eritrócitos provoca aglutinação dos mesmos (prova não específica dos anticorpos anti-D).

→ A prova de Coombs indirecta permite pesquisar anticorpos no soro do doente (livres ou não fixados sobre os eritrócitos). Compreende os seguintes passos: 1) Junção ao soro (com anticorpos livres) de eritrócitos supostamente com antigénios correspondentes aos referidos anticorpos; 2) Se tal acontecer, os anticorpos fixam-se sobre esses eritrócitos, recobrindo-os; 3) Procedimento, a partir daqui semelhante ao descrito para a prova de Coombs directa.

 

  1. Após exclusão de situações mais frequentes no nosso meio (tendo em conta que a prevalência de determinadas situações pode variar de região para região), são citados outros exames:
    • Pesquisa de anticorpos maternos para antigénios irregulares (anti-c, anti-E, anti-Kell, etc.) se mãe Rh positivo no contexto clínico sugestivo de doença hemolítica perinatal;
    • Doseamento quantitativo de G-6PD (glucose-6 fosfato desidrogenase);
    • Outros doseamentos enzimáticos em função do contexto clínico;
    • Resistência globular.

*Nota importante: em função do grau de hemólise, a icterícia poderá ser notória entre as 24 e 48 horas.

  1. Nos casos associados a bilirrubinémia conjugada >2 mg/dL (icterícia raramente presente na data do nascimento, em geral notória durante ou a partir da 1ª semana de vida) estão indicados exames tais como pesquisa de pigmentos e sais biliares na urina e fezes, pesquisa de substâncias redutoras na urina, provas de função hepática, tempo de protrombina, ALT, AST, fosfatase alcalina, serologia do grupo TORCHS, rastreio de doenças metabólicas, ecografia hepatobiliar, etc.

Hiperbilirrubinémia multifactorial

Icterícia fisiológica

Etiopatogénese

A chamada “icterícia fisiológica” constitui um quadro clínico que surge em mais de 50% dos RN aparentemente saudáveis; pode considerar-se que faz parte do desenvolvimento pós-natal normal. A sua etiopatogénese, multifactorial, diz respeito a alterações, em grau moderado e em simultâneo, de fases diversas do metabolismo da bilirrubina antes descrito:

  • Excesso de oferta de bilirrubina ao hepatócito devido à policitémia relativa; a destruição eritrocitária no sistema reticuloendotelial produz maior quantidade de bilirrubina – 6 mg/kg/dia versus 3-4 mg/kg/dia no adulto, sendo que, como foi referido antes, os eritrócitos do RN têm uma vida média mais curta (cerca de 80 dias versus 120 dias no adulto) e 1 grama de Hb produz cerca de 34 mg de bilirrubina;
  • Devido à imaturidade enzimática do fígado, verifica-se captação e conjugação diminuídas (designadamente por défice de proteína Y e de UDPG-T);
  • Microbiota intestinal deficitária ou ausente, limitando a transformação da bilirrubina conjugada em urobilinogénio;
  • Maior actividade da enzima beta-glucuronidase no intestino do RN, contribuindo para a hidrólise da bilirrubina conjugada, formando-se bilirrubina não conjugada que, sendo reabsorvida pela circulação êntero-hepática, contribui para a elevação da bilirrubina não conjugada no sangue periférico.
Manifestações clínicas

Tendo em conta que a síndroma ictérica é um processo dinâmico, face a determinado caso surgido, será mais rigoroso no momento da observação excluir icterícia fisiológica do que confirmar o diagnóstico com segurança, pois um dos critérios habitualmente utilizado é a sua duração.

Assim, uma icterícia, provavelmente, não é fisiológica se:

  • Surgir antes das 24 horas de vida;
  • Corresponder a valor de bilirrubinémia total no sangue do cordão superior a 4 mg/dL;
  • A velocidade de subida da bilirrubinémia total for superior a:
    → >0,5 mg/dL/hora
    → >5 mg/dL/dia
  • A bilirrubinémia total for >13 mg/dL no RN de termo (ou >10 mg/dL no pré-termo);
  • Tiver duração:
    → >10 dias no RN de termo (excepto se alimentado ao peito)
    → >21 dias no RN pré-termo
  • Corresponder a valor de bilirrubinémia conjugada (directa) >2 mg/dL
  • Existir anemia
  • Existir hepatosplenomegália

Inversamente, a evolução natural da icterícia fisiológica no RN de termo saudável pode ser assim descrita: início depois das 24 horas de vida, não devendo exceder 13 mg/dL na primeira semana, ritmo de incremento inferior a 5 mg/dL/dia; início da descida de valores em cerca de 1 semana no RN de termo, e em cerca de 2 semanas no RN pré-termo.

Nota: de acordo com estudos epidemiológicos concluiu-se que cerca de 50% das icterícias com valor de bilirrubinémia superior a 13 mg/dL não são fisiológicas.

 

A icterícia neonatal progride no sentido craniocaudal (cabeça-pescoço àtórax àabdómen-coxas àbraços-antebraços-pernas àmãos-pés) devido à afinidade do pigmento bilirrubínico lipossolúvel para os lípidos do SNC. De acordo com estudos empíricos de correlação, que datam da década de 60 do século passado, a cor ictérica verificada na cabeça e pescoço corresponde grosseiramente a valores séricos de bilirrubina entre 4,5 e 8 mg/dL; até ao umbigo entre 9 e 12 mg/dL; até aos joelhos entre 8 e 15 mg/dL; até à região palmoplantar >15 mg/dL. De realçar que a avaliação clínica através deste critério clínico não é suficientemente segura, implicando designadamente boa visibilidade com luz natural.

Actuação prática

No contexto de presumível quadro de icterícia fisiológica, e tratando-se de criança saudável de termo, não haverá necessidade de exames complementares laboratoriais. No entanto, hoje em dia muitas unidades dispõem de aparelhos de avaliação não invasiva da bilirrubinémia (bilirrubinómetros transcutâneos), utilizando os princípios da reflectância espectrofotométrica para determinação da taxa de bilirrubina impregnando a pele, a qual é considerada representativa da bilirrubina no sangue.

Tais aparelhos avaliam determinado índice que, de acordo com tabelas (com valores de correlação para RN pré-termo, e RN com pele pigmentada), permitem estabelecer a correspondência com a bilirrubinémia com boa correlação (coeficiente entre 0,91-0,93).

Os mesmos estão hoje vulgarizados e, diminuindo a necessidade de colheitas sanguíneas, devem ser utilizados como aparelhos para rastreio; embora confiáveis, as medições da bilirrubina transcutânea poderão subestimar valores acima de 13-14 mg/dL; nestas circunstâncias, deve confirmar-se o valor pelo método convencional de colheita de sangue.

Se o RN estiver submetido a fototerapia (que origina pigmentação cutânea), há que colocar um adesivo na zona da pele a ser testada caso se proceda a ulteriores determinações com este método, a fim de não falsear os resultados.

Nalguns centros, como rastreio, é utilizada tecnologia para determinar a carboxiemoglobina (COHb) ou o monóxido de carbono expirado (ETCO <> end-tidal carbon monoxide), sendo que, ambos corrigidos para o monóxido de carbono ambiente, constituem um índice da produção de bilirrubina in vivo. Esta tecnologia baseia-se na produção de CO em resultado do catabolismo do heme. (ver atrás Metabolismo da bilirrubina)

Embora este método não tenha evidenciado especificidade e sensibilidade mais elevadas que a bilirrubinometria transcutânea, perante situação de icterícia poderá contribuir para o diagnóstico diferencial entre hiperbilirrubinémia não conjugada e hiperbilirrubinémia conjugada (nesta última situação, não se verificando aumento de CO expirado).

Dada a possibilidade de evolução de certos casos de icterícia para valores de risco de bilirrubinémia após a alta hospitalar, mesmo em recém-nascidos de termo ou quase de termo, saudáveis e sem sinais de hemólise, Buthani nos EUA concebeu um nomograma aplicável em recém-nascidos a partir de 35 semanas de idade gestacional inclusive, em que são estratificados determinados valores de bilirrubinémia em mg/dL e respectivos percentis (P) em função da idade em horas; foram consideradas curvas evolutivas entre as 12 horas e as 144 horas, delimitando 4 zonas:

  • de baixo risco (percentil < 40);
  • risco intermédio inferior (percentil 40-75);
  • risco intermédio superior (percentil 76-95); e
  • risco elevado (percentil > 95).

Ou seja, do valor de bilirrubinémia às 48, 60, 72 ou 96 horas, dependerá a atitude a tomar. Esta estratégia tem sido recomendada pela AAP, tendo em conta a realidade actual generalizada de alta precoce da maternidade, o que implica vigilância ulterior. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Relação bilirrubinémia-idade em horas e actuação prática. 

A: Alta e nova observação clínica 48 horas depois
B: Determinação da bilirrubinémia ou bilirrubina transcutânea 48 horas depois
C: Idem 24 horas depois
D: Idem 6 a 12 horas depois + fototerapia (ver adiante)
BRB = Bilirrubinémia (mg/dL)

(Adaptado de Buthani & Johnson, 2000)

Idade
(horas)
P < 40
BRB
P 40-75
BRB
P 76-95
BRB
P > 95
BRB
48
60
72
96
Actuação
< 8,5
< 9,5
< 11,1
<12,3
A
8,5-10,7
9,5-12,5
11,1-13,3
12,3-15,1
B
10,8-13,1
12,6-15,1
13,4-15,8
15,2-17,3
C
> 13,1
> 15,1
> 15,8
> 17,3
D

Tratando-se de hiperbilirrubinémia não conjugada sem sinais de hemólise em RN pré-termo de muito baixo peso, há, pelo contrário, que ponderar a necessidade de determinação frequente de bilirrubina sérica pelo maior risco de kernicterus, havendo determinados factores predisponentes a reiterar, tais como:

  • hipoalbuminémia;
  • presença de factores susceptíveis de aumentar a taxa de bilirrubina não ligada à albumina com maior probabilidade de penetração na célula nervosa;
  • hipoxémia, e infecção (propiciando maior permeabilidade da barreira hemato-encefálica);
  • peso muito baixo (de acordo com regra empírica: considerando o peso de nascimento em gramas e o valor de bilirrubinémia em mg/dL, existe risco de kernicterus se o valor da bilirrubinémia for igual ou superior ao valor dos dois primeiros dígitos do peso; por ex. bilirrubinémia de 11 mg/dL e peso de 1.100 gramas).

Hiperbilirrubinémia não conjugada de causa não hemolítica

1. Icterícia por síntese aumentada de bilirrubina

Este grupo, englobando dum modo geral quadros benignos, é caracterizado por hiperbilirrubinémia indirecta não acompanhada de hemólise (os valores de bilirrubina ultrapassam os níveis considerados fisiológicos).

Os exemplos clássicos são:

  • Policitémia
    (RN nas seguintes circunstâncias: macrossómicos, de mães diabéticas, com restrição de crescimento fetal, com antecedentes fetais de hipoxémia crónica, de atraso de laqueação do cordão umbilical, no contexto de transfusão feto-fetal ou placento-fetal e de administração de ocitocina intra-parto em doses superiores a 20 Unidades, etc.);
  • Reabsorção de sangue extravascular
    (RN com hematomas, equimoses, petéquias, “máscara equimótica”, hemorragia intracraniana, etc.).
    Constituindo a prematuridade um factor de risco de kernicterus como foi dito antes, há sempre que atender aos respectivos factores predisponentes descritos na alínea anterior.

2. Icterícia por defeito de captação e/ou de conjugação da bilirrubina

Como exemplos de defeitos do metabolismo nesta etapa citam-se:

  • Síndroma de Crigler-Najjar
    Esta síndroma integra dois tipos:
    • tipo I, mais grave, transmitido hereditariamente de modo autossómico recessivo.
      A etiopatogénese relaciona-se com ausência total da actividade enzimática da UDPG-T (uridino-difosfo-glucuronil-transferase) por mutações no gene UGT1A1, do que resultam: hiperbilirrubinémia não conjugada podendo atingir níveis críticos nos primeiros 2-3 dias de vida (por vezes superiores a 35 mg/dL) e risco elevado de encefalopatia. As medidas correctivas englobam, entre outras, fototerapia de longa duração, exsanguinotransfusão e eventual transplantação hepática.
    • tipo II, mais benigno e resultante de défice parcial de UDPG-T, traduzido na clínica por formas mais ligeiras de hiperbilirrubinémia (não ultrapassando em geral 20 mg/dL), sendo o risco de encefalopatia muito reduzido; por vezes as primeiras manifestações ocorrem após o período neonatal ou na 2ª infância. Como tratamento sintomático utiliza-se o fenobarbital pelo seu papel de indutor enzimático.
  • Síndroma de Gilbert
    Esta síndroma, com transmissão autossómica recessiva e, mais raramente, dominante, constitui o defeito de conjugação mais frequente da bilirrubina, surgindo com uma frequência de 1/1.000 nados vivos; é caracterizada por icterícia ligeira (bilirrubinémia crónica – 3-4 mg/dL, de intensidade oscilante, sendo que os valores de bilirrubinémia aumentam significativamente se houver suprimento alimentar deficiente ou episódio infeccioso. Não existe risco de kernicterus.
    Foram descritos polimorfismos e mutações de genes determinando a expressão da enzima UDPG-T (genes UGT1A1, TATA box, CAT box, etc.) Descrevem-se formas homozigóticas e heterozigóticas, sendo hoje possível o estudo de biologia molecular. A benignidade do quadro não requer tratamento o qual, aliás, não existe.
    A combinação de um genótipo benigno de síndroma de Gilbert com outro factor que aumente a bilirrubina pode estar na base de quadros com hiperbilirrubinémia elevada (> 20 mg/dL) ou mais prolongados (por ex. aleitamento materno).
  • Síndroma de Lucey-Driscoll
    Caracteriza-se por um quadro de hiperbilirrubinémia familiar transitória, sendo que a bilirrubinémia poderá atingir níveis de risco de encefalopatia, o que obrigará a exsanguinotransfusão. A etiopatogénese não está esclarecida, admitindo-se o papel de um factor sérico inibidor da UDPG-T.
  • Outras situações
    O mecanismo de captação e/ou conjugação da bilirrubina pode ser comprometido pela acção de fármacos utilizados na grávida, parturiente ou puérpera lactante (através do leite materno) como ocitocina, novobiocina, pregnandiol, etc.. No hipotiroidismo pode igualmente verificar-se défice transitório da enzima UDPG-T.

3. Icterícia por circulação êntero-hepática aumentada

O mecónio existente no intestino pesa cerca de 200 gramas, estando incluído neste peso 175 mg de bilirrubina (50% da qual não conjugada); ou seja, quantidade de bilirrubina 5 a 10 vezes superior à produção diária num RN de termo sem patologia.

Nos casos em que existe interrupção do trânsito intestinal ou diminuição do peristaltismo levando a atraso ou interrupção da eliminação do referido mecónio, criam-se condições para que a beta-glucoronidase actue com mais efectividade sobre a bilirrubina conjugada existente no mecónio “estagnado”, promovendo a sua desconjugação, absorção e aumentando consequentemente os níveis séricos de bilirrubina não conjugada.

Como exemplos de situações clínicas explicadas por este mecanismo, citam-se:

  • Alimentação entérica tardia (jejum prolongado pós-parto);
  • Problemas obstrutivos do tracto digestivo;
    Os casos de estenose hipertrófica do piloro, estenoses ou atrésias intestinais, íleo paralítico, doença de Hirschprung, obstrução intestinal baixa, etc. tipificam quadros clínicos acompanhados de diminuição do peristaltismo intestinal
  • Sangue deglutido intra-parto.
    Aplica-se neste caso o que foi dito a propósito do mecónio estagnado (contendo bilirrubina), uma vez que 1 grama de Hb constitui substrato para a produção de 34 mg de bilirrubina.

4. Icterícia associada à amamentação

A etiopatogénese desta forma clínica relaciona-se fundamentalmente com o défice de suprimento energético por secreção láctea insuficiente, ou por razões várias que poderão determinar diminuição da frequência das mamadas ao longo do dia. Como resultado de tal suprimento insuficiente poderá verificar-se diminuição do reflexo gastrocólico, hipoperistaltismo intestinal e atraso da eliminação do mecónio; são, assim, criadas as condições já descritas a propósito da circulação êntero-hepática aumentada. Sob o ponto de vista teleológico, estudos actuais sugerem que tal mecanismo seja fisiológico e protector do organismo considerando a acção antioxidante da bilirrubina.

A evolução natural desta síndroma ictérica pode assim resumir-se: icterícia surgida após as 24 horas de vida, sem sinais de hemólise (designadamente, anemia ou hepatosplenomegália), com maior intensidade verificada pelos 7-8 dias de vida e valores máximos de bilirrubinémia indirecta, atingindo 16-17 mg/dL, acompanhada de perda exagerada de peso e, nalguns casos, de hipernatrémia (> 150 mEq/L) com sinais de desidratação.

Para obviar esta situação (que poderá levar a internamento hospitalar), torna-se necessário acompanhar cuidadosamente o estabelecimento do aleitamento materno, reavaliar os valores de bilirrubina, os riscos do recém-nascido e a quebra ponderal existente. Para além da eventual necessidade de reidratação, poderá estar indicada fototerapia.

5. Icterícia secundária ao leite materno

A etiopatogénese desta forma clínica poderá relacionar-se fundamentalmente com dois factores:

  • teor aumentado de beta-glucuronidase no leite materno, o que sucede em 20-40% das mulheres, levando a aumento da desconjugação e da circulação êntero-hepática da bilirrubina;
  • teor aumentado de lipase no leite de certas mães – lactantes do qual resulta correspondente teor mais elevado em ácidos gordos não esterificados de cadeia curta que, absorvidos no duodeno, bloqueiam o sistema de captação e transporte intra-hepatócito da bilirrubina, para além de inibirem a UDPG-T.

A evolução clínica pode ser sintetizada do seguinte modo: trata-se duma icterícia que surge, em geral, após o 3º-4º dia em cerca de 20-30% dos RN com aleitamento materno exclusivo, mais intensa entre o 10º e 15º dia de vida, prolongando-se, por vezes, até aos 2 meses. Em cerca de 2-4% dos casos são atingidos valores de bilirrubinémia da ordem de 20-25 mg/dL. Inicialmente esta situação comporta-se como “icterícia fisiológica prolongada”.

Na prática, é necessário assegurar que a hiperbilirrubinémia permanece na forma não conjugada e não atinge níveis preocupantes. Assim, nos casos de hiperbilirrubinémia muito elevada, e verificando-se a presença de factores de risco de kernicterus, o RN deverá ser submetido a fototerapia, suspendendo-se a alimentação com leite materno durante 48 horas, o que pode constituir “prova” diagnóstica; com efeito, a suspensão do aleitamento levará a diminuição significativa da bilirrubinémia. Salienta-se, contudo, que a reintrodução do leite materno poderá originar subida da bilirrubinémia, embora para níveis inferiores aos anteriores.

Se a icterícia se prolongar para além de 2-3 semanas, haverá que fazer o diagnóstico diferencial com patologia associada responsável igualmente por icterícia prolongada como por exemplo atrésia das vias biliares ou outra causa de colestase. De salientar, contudo, que nesta última condição, geralmente o estado geral está comprometido, a icterícia é “verdínica“ e há antecedentes de baixo peso de nascimento e, eventualmente, outros sinais associados); uma análise sumária de urina excluindo a presença de bilirrubinúria) e a ausência de alterações macroscópicas das fezes (acolia ou hipocolia, em geral intermitente) excluem tal quadro.

Em suma, nos RN submetidos a alimentação com leite materno são descritos dois quadros clínicos associados a icterícia que importa distinguir.

Hiperbilirrubinémia não conjugada de causa hemolítica

Em complemento das noções descritas na Parte sobre Hematologia (generalidades sobre anemias hemolíticas), nesta alínea são abordadas como protótipos as diversas formas clínicas da doença hemolítica perinatal por incompatibilidade sanguínea mãe-filho (sistemas AB0, Rh e outros).

1. Doença hemolítica perinatal por iso (ou alo)-imunização Rh/anti-D

Definição e importância do problema

A doença hemolítica perinatal por iso-imunização Rh/anti-D define-se como o processo mórbido em que surge hemólise no feto e RN como consequência da ligação de anticorpos maternos anti-D aos eritrócitos fetais com antigénios D ou com a variante Du herdados do pai e inexistentes no organismo materno.

A iso-imunização materno-fetal constitui no nosso meio a causa mais frequente de icterícia hemolítica no período neonatal; em cerca de 1/3 do total de casos ocorre em RN com grupo Rh positivo, de mães com grupo Rh negativo (incompatibilidade Rh) e, em cerca de 2/3, nos RN com grupos sanguíneos A ou B, de mães 0 (incompatibilidade AB0).

Os restantes casos de iso-imunização (~ 1-2% do total de casos) são explicados por iso-imunização atípica – subgrupos Kell, Duffy, Kidd, MNS e outros mais raros -; a eles se fará referência adiante.

Globalmente, a incidência de doença hemolítica por incompatibilidade Rh é da ordem de 0,2-0,4/1.000 gravidezes; no que respeita às formas por incompatibilidades doutros grupos tal prevenção ainda não é possível.

O risco de iso-imunização Rh (mãe Rh negativo e filho Rh positivo) é cerca de 16% em cada gravidez AB0 compatível, e cerca de 1-2% em cada gravidez AB0 incompatível. (ver adiante)

Etiopatogénese

O sistema Rh depende de três pares de alelos, sendo que cada elemento do par é herdado de cada progenitor. Entre os cerca de 48 antigénios que fazem parte do sistema Rh, em combinações muito diversas (determinados por outros tantos genes), os designados por c, C, d, D, e, E são os mais importantes quanto à capacidade de originarem a produção de anticorpos. As combinações CDe, cDE (correspondentes ao fenótipo Rh positivo/Rh (+) pela presença do antigénio D) são as mais frequentes, e a combinação cde (correspondente ao fenótipo Rh negativo/Rh (-) pela ausência do antigénio D. Nos caucasianos, a ausência de antigénio D ocorre em cerca de 15% da população, nos africanos em cerca de 7%, e nos asiáticos (Japão e China) em <1%.

Um indivíduo pode, assim, evidenciar as seguintes relações fenótipo →genótipo:

  • Rh (-)→ cde, cde;
  • Rh (+) homozigoto→ (por ex. CDe, cDE ou simplesmente DD);
  • Rh (+) heterozigoto→ (por ex. CDe, cde ou simplesmente Dd).

Conclui-se que um homem Rh (+) homozigoto casado com uma mulher Rh (-) terá sempre filhos Rh (+) Dd; um homem Rh (+) heterozigoto casado com uma mulher Rh (-) poderá ter filhos Rh (+) Dd em 50% dos casos, e Rh (-) dd em 50% dos casos.

Somente os fetos Rh (+), isto é, com o antigénio D (presente na membrana eritrocitária a partir das 4 a 7 semanas de idade gestacional), estimulando a produção por parte da mãe Rh (-) ou D (-) de anticorpos anti-D (ou seja, iso-imunização) podem ser afectados.

As mães com a variante Du raramente produzem anticorpos anti-D quando os respectivos fetos são portadores de antigénio D ou Rh (+). No entanto, mães Rh (-) poderão ser imunizadas por fetos portadores de Du.

A iso-imunização verifica-se quando há passagem transplacentar de eritrócitos fetais para a circulação materna, sendo que a hemorragia feto-materna ocorre em, pelo menos, 50% das gestações (sobretudo no 3º trimestre). Em termos quantitativos, o volume de sangue que passa para a circulação materna pode oscilar entre 1 mL e 30 mL, sobretudo se se verificar parto traumático implicando manobras e procedimentos invasivos. Ora, o grau de resposta imune materna ao antigénio D é proporcional ao volume da hemorragia/transfusão feto-materna.

Idêntico fenómeno anteriormente à gravidez, em mãe Rh (-) pode ocorrer como resultado de transfusão de sangue com antigénio D, de injecção acidental de eritrócitos D (+) pelo uso de seringas partilhadas com indivíduos toxicodependentes, e de transplantação de produtos portadores do referido antigénio D anteriormente à gravidez.

A resposta imune primária materna ao antigénio D atingindo a circulação e proveniente do feto é lenta traduzindo-se, cerca de 1 a 6 meses depois, pelo aparecimento de anticorpos IgM anti-D que, não atravessando a placenta, são inócuos; em regra, é o que se passa no decurso duma primeira gravidez.

A resposta imune secundária materna a ulterior exposição a antigénios D (correspondendo, em regra, a segunda gravidez, e a partir das 12 semanas) é mais rápida, traduzindo-se pelo aparecimento, em grande quantidade, de anticorpos anti-D predominantemente IgG que, atravessando a placenta, aderem com grande “avidez”, através da sua fracção Fc, à membrana dos eritrócitos fetais Rh (+) (isto é, com antigénio D); estes, atraindo macrófagos e monócitos, são destruídos no espaço extravascular (baço). Em suma, a probabilidade de iso-imunização vai aumentando com o número de gravidezes, pois os anticorpos anti-D formados como resposta a sucessivas estimulações antigénicas (inicialmente predominando os do tipo IgM), vão sendo, em cada vez maior número, do tipo IgG, que atravessam a placenta.

Notas Importantes:

    • Em cerca de 2% das gravidezes, o tipo de resposta imune com produção de IgG poderá verificar-se já numa primeira gravidez.
    • Em cerca de 30% dos casos poderá não se verificar o tipo de resposta com produção de anticorpos em mulheres Rh (-) com fetos Rh (+) em sucessivas gestações.

Como consequência da hemólise surge:

  1. Anemia fetal com repercussão essencialmente em dois órgãos:
    • coração, cuja função pode claudicar e levar a insuficiência cardíaca e hidropisia fetal;
    • fígado, cuja função pode igualmente claudicar, levando a diminuição da síntese da albumina, diminuição da pressão oncótica que, por sua vez, agrava a hidropisia; igualmente há elevação da síntese da eritropoietina e surgem focos de eritropoiese com aparecimento de formas jovens no sangue periférico; idênticos focos surgem igualmente no baço, rins e suprarrenais; como resultado do aparecimento de focos de eritropoiese hepática e no baço verifica-se hepatosplenomegália; outra consequência da formação de focos de eritropoiese hepática é a obstrução do fluxo sanguíneo (podendo conduzir a hipertensão portal) e do fluxo biliar (podendo conduzir a colestase que passará a ser notória na vida extrauterina); nas formas graves poderá surgir morte fetal;
  2. Hiperprodução de bilirrubina não conjugada; durante a vida intrauterina a bilirrubina em excesso é eliminada através da mãe; após o nascimento poderá originar quadro de hiperbilirrubinémia com risco de kernicterus.
Manifestações clínicas

Classicamente são descritas três formas clínicas designadas respectivamente por ligeira, moderada e grave.

Na forma ligeira, que abrange mais de metade dos casos, pode surgir anemia com valor de Hb não inferior a 12 g/dL e bilirrubinémia no sangue do cordão < 3 mg/dL; a bilirrubinémia não ultrapassa em geral 18-20 mg/dL no período neonatal precoce, sendo que o valor de Hb poderá atingir nível da ordem de 8 g/dL após a primeira semana de vida. Trata-se, pois, duma forma clínica anteriormente designada por forma anémica.

Na forma moderada verifica-se icterícia antes das 24 horas de vida (precoce) em geral com valor de hiperbilirrubinémia atingindo > 20 mg/dL entre as 36 e 48 horas de vida.

Esta forma, anteriormente designada por “forma ictérica”, se não corrigida, associa-se a alto risco de encefalopatia ou disfunção neurológica (BIND – Bilirubin-induced neurologic dysfunction), a qual surge quando a bilirrubina atravessa a barreira hemato-encefálica e se liga aos tecidos cerebrais.

A evolução da encefalopatia bilirrubínica para kernicterus, situação actualmente rara, traduzindo as sequelas da encefalopatia bilirrubínica, processa-se em três fases com as seguintes manifestações:

  • 1ª fase) hipotonia, letargia e sucção débil nos primeiros dias de vida;
  • 2ª fase) febre, irritabilidade com choro frequente, episódios de apneia, hipertonia e opistótono entre o 5º e 7º dias de vida, conduzindo à morte na grande maioria dos casos;
  • 3ª fase) encefalopatia com sinais estabelecidos: hipotonia, atraso motor, atetose, défice auditivo neurossensorial grave (com emissões oto-acústicas normais e potenciais evocados alterados), olhos em “sol poente”, disartria, etc., traduzindo evolução para quadro de kernicterus.

A forma grave de doença hemolítica perinatal é tipificada pela doença fetal, detectável antes da 34ª semana de gestação: hidropisia, anemia grave, hepatosplenomegália, diátese hemorrágica grave com trombocitopénia, hiperplasia das células β dos ilhéus de Langerhans com risco ulterior de hipoglicémia e défice de factores de coagulação. Tal forma conduz à morte na ausência de intervenção pré-natal.

Exames complementares
Na grávida

Os exames complementares a realizar na grávida e, mais tarde, no RN , devem ser fundamentados na anamnese perinatal (designadamente inquirindo sobre grupo sanguíneo da mãe e resultado de prova de Coombs indirecta, eventuais transfusões realizadas na mãe anteriormente à gravidez, evolução das gravidezes anteriores, antecedentes de filhos anteriores com doença hemolítica e respectiva evolução, administração profiláctica anterior de gama-globulina anti-D, etc.).

Assim, o mais precocemente possível, deve reconfirmar-se o grupo sanguíneo (AB0, D, Du) e proceder-se à prova de Coombs indirecta (pesquisa de anticorpos anti-D) no caso de mãe D (-);

  1. a prova de Coombs indirecta deve ser realizada mensalmente até ao dia do parto;
  2. se, entretanto, se verificar resultado positivo da pesquisa, deve proceder-se à titulação de anticorpos: a verificação de títulos >1/8 (indicando iso-imunização materna, mas não necessariamente doença fetal) estabelece indicação para:
    • amniocentese para determinação da densidade óptica/índice óptico do líquido amniótico a 450 mm por espectrofotometria em função da impregnação bilirrubínica do mesmo) e avaliação de eventual doença fetal; (o protocolo pormenorizado a cargo da equipa de medicina fetal ultrapassa o âmbito deste capítulo; como noção geral salienta-se que, de acordo com o clássico gráfico de Lilley – em ordenada a densidade óptica e em abcissa a idade gestacional – são definidas três zonas de índice óptico elevado/doença grave, intermédio/doença moderada, e baixo/doença ligeira ou ausência de doença, implicando diferentes atitudes).
    • cordocentese para colheita de sangue fetal e detecção de possível anemia (Hb < 10 g/dL), pH fetal, grupo sanguíneo fetal, e eventual transfusão fetal, etc..
    • ecografia fetal para detecção de possível ascite, edema, derrame pleural, pericárdico, hepatosplenomegália, etc.;
  3. nos casos de mães já anteriormente iso-imunizadas ou com prova de Coombs positiva por terem recebido gama-globulina anti-D (ver adiante), a verificação de títulos de anticorpos deve ser feita entre as 16 e 18 semanas, às 22 semanas e, depois, de 2-2 semanas; se, entretanto, a titulação evidenciar valores > 1/16 são levados a cabo os procedimentos referidos em 2.
No recém-nascido

Em RN de mãe Rh (-) no pós-parto imediato deve proceder-se a colheita de sangue do cordão umbilical para determinação dos seguintes parâmetros: grupo sanguíneo (AB0, D, Du), bilirrubina conjugada e não conjugada e prova de Coombs directa; em casos de diagnóstico estabelecido na gravidez, está indicado avaliar, também, Hb, hematócrito, reticulócitos, proteínas totais e fracções.

Valores de Hb < 12 g/dL e de bilirrubina > 4 mg/dL correspondem a formas graves de doença hemolítica perinatal.
Em função do contexto clínico, está indicado proceder ao doseamento seriado da Hb e da bilirrubina (de 6-6 horas) para decisão terapêutica, a abordar na alínea seguinte.

Tratamento

As bases do tratamento da doença hemolítica perinatal por iso-imunização Rh/D, como exemplo paradigmático das hiperbilirrubinémias indirectas graves, incluem fundamentalmente a fototerapia, a exsanguinotransfusão e o emprego de fármacos.

Fototerapia

1. Princípios gerais

A chamada fototerapia é uma modalidade profiláctico-terapêutica que utiliza a energia luminosa para transformar a bilirrubina nativa em isómeros hidrossolúveis através de três mecanismos:

        1. foto-oxidação da qual resultam complexos pirrólicos excretados pela urina – processo lento que contribui para uma pequena percentagem de eliminação da bilirrubina;
        2. foto-isomerização num isómero menos tóxico – Z-lumirrubina (4Z,15E), excretado na bílis sem conjugação, sendo um processo lento e reversível e por isso pouco eficaz;
        3. isomerização estrutural em lumirrubina, excretada sem conjugação pela bílis e urina, constituindo o mecanismo mais eficaz de redução da bilirrubina.

A fotodegradação da bilirrubina verifica-se com o emprego de faixa de luz com os comprimentos de onda entre 420 e 480 nm.

Na prática pode ser utilizada luz branca (fluorescente), azul e verde. No que respeita à irradiância (baixa, média ou elevada), os novos aparelhos são concebidos empregando a elevada irradiância pela sua maior eficácia (entre 12-40 uW/cm2/nm) sendo que os de baixa irradiância produzem luz com menos de 6 uW/cm2/nm. Quanto maior a dose de irradiância que atinge o RN e maior a superfície corporal abrangida, maior a eficácia da fototerapia.

Existem diversos tipos de aparelhos no mercado:

        • convencional com 6-8 lâmpadas de 20 W a uma distância recomendada de ~30 cm; podem ser utilizados em simultâneo dois aparelhos, o que duplica a irradiância;
        • luz em foco (bilispot) de irradiância elevada com 20 cm de diâmetro e colocado a uma distância ~50 cm do doente;
        • “colchão luminoso” ou “pá luminosa” de fibra óptica sobre o qual se coloca o RN;
        • outras modalidades, incluindo berços com lâmpadas convencionais colocadas por cima, por baixo e de cada lado do berço (transparente).

A utilização de fototerapia intensiva durante 24 horas, com irradiâncias significativamente maiores, reduz o valor de bilirrubina em 30-40%, valor muito superior aos 10-20% obtidos com a fototerapia convencional.

Os aparelhos de fototerapia implicam esquema de manutenção e verificação periódica da irradiância (vida média das lâmpadas variando entre 500 a 2.000 horas).

2. Indicações

O Quadro 3 resume de modo integrado as indicações da fototerapia (e da exsanguinotransfusão/ET a abordar na alínea seguinte) nos casos de doença hemolítica perinatal por iso-imunização por incompatibilidade Rh (DHPNRh) em função da bilirrubina e Hb no sangue do cordão e da idade em horas; no entanto, tais indicações deverão ser ponderadas caso a caso.

QUADRO  3 – Indicações de fototerapia e exsanguinotransfusão (ET) na DHPN Rh.

 VigilânciaFototerapiaE-T
Sangue do cordão
Hb (g/dL)
Bilirrubina (mg/dL)

> 14
< 4

12-14
4

< 12
> 4
Idade
Bilirrubina(mg/dL)
< 24 horas
24-48 horas
> 48 horas


< 7
< 10
< 12


7-9
10-14
12-18


10-14
> 14
> 18

Nota:
Investigadores na Índia concluíram que, em circunstâncias de recursos limitados, se poderá adoptar um método simples, construindo uma escala de pontuação (designado por STRIP- Stool Colour Weight as an Adjunct to Triage Infants for Phototherapy score) para decidir sobre a realização de fototerapia, em função do aspecto das fezes. Tendo em conta o metabolismo da bilirrubina e a verificação da circulação êntero-hepática da bilirrubina, os investigadores puderam comprovar que RN com fezes “menos maturas e mais verdes” necessitavam de fototerapia, versus RN com mais “maturas” que não necessitavam de fototerapia.

3. Precauções

      • Uma vez que a fototerapia implica incremento das perdas insensíveis, haverá que providenciar cálculos rigorosos do balanço hídrico. Empregando fototerapia convencional, os suprimentos hídricos devem ser incrementados na ordem de +20-25 mL/kg/dia; nos casos de RN pré-termo tal incremento poderá corresponder a + 50 ml/kg/dia em relação aos cálculos na ausência de fototerapia.
      • Os olhos devem ser protegidos com cobertura opaca (papel de carbono negro ou veludo negro) para evitar efeitos de fototoxicidade na retina.
      • O RN deverá ficar sem fralda, pois a penetração da luz não ultrapassa 2-3 mm na pele, não havendo perigo de lesão das gónadas.
      • A fototerapia deve ser suspensa caso se verifique elevação da bilirrubina conjugada (colestase) para evitar a chamada síndroma do “bebé bronzeado” que consiste na verificação de coloração castanha acinzentada da pele, plasma e urina explicável pela formação de coproporfirina e retenção de fotobilirrubina no pigmento biliar.
      • Nas UCIN e unidades neonatais em geral, estando o RN submetido a nutrição parentérica, os recipientes dos solutos a perfundir deverão ser protegidos com plástico impermeável à luz a fim de impedir alteração química de aminoácidos e vitaminas entre outros compostos.
      • Actualmente, em determinados centros internacionais, possuindo equipas treinadas em cuidados domiciliários, a fototerapia é realizada em casa, com a colaboração da família.
      • Poderá verificar-se, como efeito colateral da luz, o aparecimento de erupção cutânea maculopapular nas áreas expostas, de evolução auto-limitada cessando a exposição.
      • Poderá igualmente verificar-se aceleração do trânsito intestinal com aparecimento de diarreia.
      • Numa situação rara – porfíria eritropoiética congénita – a fototerapia está contra-indicada.
      • Está ainda pouco clara a relação entre a fototerapia intensiva e o aparecimento de nevus melanocíticos atípicos na idade escolar.
 Imunoglobulina endovenosa (IGIV)

Trata-se duma terapêutica com interesse e potencialmente eficaz se for administrada precocemente nos casos de hemólise importante (incremento de bilirrubinémia de 0,5-1 mg/dL/hora); de acordo com algumas séries estudadas, contribui para reduzir a necessidade de exsanguino-transfusão. O mecanismo de acção relaciona-se com possível bloqueio dos receptores Fc do sistema reticuloendotelial, contribuindo para diminuir a velocidade da hemólise.

Tem-se utilizado a dose de 500 mg/kg em perfusão (durante 2 horas ou 8 horas, conforme os protocolos). Poderá utilizar-se idêntica dose repetida 12 horas após a primeira.

Albumina

Nos casos de hipoalbuminémia, poderá considerar-se a administração de albumina na dose de 1 g/kg. Tendo em conta a ligação da bilirrubina à albumina (ver atrás Metabolismo da bilirrubina) e a penetração da bilirrubina livre não conjugada através da membrana da célula nervosa, se a albumina for administrada antes da fase de travessia da membrana – o que é difícil de determinar em tempo real – tal medida poderá empiricamente contribuir para reduzir tal penetração na célula nervosa e suas consequências.

Concentrado eritrocitário

Para correcção da anemia poderá estar indicada a transfusão de concentrado eritrocitário (10-15 mL/kg, a ser repetida em função do contexto clínico) muitas vezes associada a imunoterapia e a fototerapia, ou antes da exsanguinotransfusão para estabilização das condições hemodinâmicas, respiratórias e metabólicas.

Outra indicação da transfusão de concentrado eritrocitário é a verificação de anemia tardia (Hb <7,5 g/dL) entre a terceira semana e os 2 meses de idade pós-natal) nos casos de hemólise ligeira inicial submetidos apenas a fototerapia e/ou IGIV. Assim, em tais circunstâncias, o lactente deverá ser submetido a vigilância periódica do hematócrito, Hb e reticulócitos. A decisão de transfundir dependerá de eventuais sinais clínicos associados, traduzindo hipoxémia tecidual: taquipneia e taquicárdia agravadas pelo esforço (refeições), escassa progressão ponderal, palidez, etc..

 Exsanguinotransfusão (ET)
1. Objectivos

Os objectivos deste procedimento invasivo são:

  • remover parcela importante da bilirrubina não conjugada circulante e potencialmente tóxica para o SNC;
  • remover igualmente parcela importante de eritrócitos com anticorpos aderentes e predispostos a hemólise, e, consequentemente, a agravamento da anemia e da hiperbilirrubinémia;
  • substituir parte do sangue do RN com eritrócitos compatíveis com os da mãe e RN.
2. Condições técnicas essenciais

Não cabendo no âmbito deste capítulo a descrição da técnica de ET, é importante referir alguns aspectos:

  • Tempo de armazenamento máximo do sangue de 72 horas, pois o nível de potássio eleva-se com o tempo, sendo aceitável o valor até 9 mEq/L.
  • Sangue do dador com um hematócrito entre 55 e 60% (Hb > 12g/dL), previamente irradiado como meio de prevenir reacção enxerto contra hospedeiro, inactivando os linfócitos do dador.
  • Sangue aquecido a 37ºC durante duas horas.
  • Volume de troca utilizado correspondente a duas volémias, isto é ~160 mL/kg, o que permite remover cerca de 85% dos eritrócitos e cerca de 45% da bilirrubina circulante.
  • Tipo de sangue Rh negativo, Du negativo, compatível com o do RN no sistema AB0.
3. Indicações

Tendo sido referidas indicações gerais no Quadro 3 (chamando a atenção para a necessidade de ponderar a indicação de ET logo após o nascimento), cabe agora referir algumas especificidades no que respeita, designadamente, à condição peso de nascimento e verificação de eventuais factores de risco susceptíveis de aumentarem o risco de neurotoxicidade da bilirrubina.

  • Nas primeiras 36 horas de vida poderá haver necessidade de doseamento da bilirrubinémia cada 4 a 8 horas se o ritmo de incremento for igual ou superior a 0,5 mg/dL/hora, não considerando, no entanto, para tal cálculo, o valor inicial da bilirrubina no sangue do cordão.
  • Após as 36 horas está indicada ET, equacionando a relação peso de nascimento-bilirrubinémia total (BT) são estabelecidas as seguintes normas como complemento do que é estabelecido no Quadro 3:
    • <1.500 g………………..           ET se BT > 13 mg/dL
    • 1.500-2.500 g………..           ET se BT > 16 mg/dL
    • >2.500 g………………..           ET se BT > 18 mg/dL
  • A ET deverá ser sempre realizada se houver sinais sugestivos de encefalopatia bilirrubínica independentemente dos valores de bilirrubinémia.
  • Na presença de factores de risco tais como índice de Apgar < 3 aos 5 minutos, hipoglicémia, hipotermia, hipercapnia, hipoxémia (PaO2 < 40 mmHg), acidose metabólica persistente (pH <7,15), infecção sistémica com ou sem meningite, proteínas totais < 4 g/dL, albumina < 2,5 g/dL, deve ser diminuído o nível de bilirrubina indicativo para ET de – 2 mg/dL; este critério de ponderação de factores de risco aplica-se também a situações de hiperbilirrubinémia de causa não hemolítica.
  • Como precaução máxima, os RN pré-termo tardio (34-36 semanas), pela sua maior vulnerabilidade, embora eventualmente a respectiva condição somática os aproxime dos RN de termo, deverão ser assistidos segundo os critérios de pré-termo.
  • O valor de bilirrubinémia > 20 mg/dL deve ser considerado uma emergência médica pelo risco elevado de kernicterus.
    Como nota importante salienta-se que o risco de kernicterus é mais significativo até aos 5-7 dias de vida, existindo excepções a esta regra; trata-se, com efeito, do período de maior permeabilidade da barreira hemato-encefálica. Não se deverá, pois, protelar demasiadamente a eventual ET caso esteja indicada, pois, ao decidir pela sua realização, poderá ser tarde pela possibilidade de lesão já estabelecida do SNC.

Segundo alguns autores, a relação Bilirrubina (mg/dL)/Albumina (g/L) pode ajudar na decisão de realizar a ET: valores superiores a 7,2 em RN com 38 semanas ou mais, e superiores a 6,8 em RN com < 38 semanas, são favoráveis à sua realização.

4. Complicações

As complicações mais frequentemente associadas a ET são: cardíacas (arritmia, insuficiência cardíaca por sobrecarga volémica, etc.), vasculares (tromboembolismo, vasospasmo, etc.), hematológicas (hemorragias por trombocitopénia ou défice de factores de coagulação, etc.), infecções, metabólicas (hipocalcémia, hipo e hiperglicémia, acidose metabólica, etc.).

Metalporfirinas

As protoporfirinas (SnPP) e as mesoporfirinas (SnMP) são fármacos que, inibindo a heme-oxigenase, reduzem a conversão do radical heme em bilirrubina. Têm sido realizados estudos multicêntricos cujos resultados legitimam a utilização de tais fármacos no tratamento e prevenção das hiperbilirrubinémias.

Eritropoietina

A administração de eritropoietina recombinante poderá constituir um tratamento alternativo às transfusões de concentrado eritrocitário nas anemias tardias, entre a 3ª e 6ª semanas de vida, designadamente do tipo hiporregenerativo.

Estudo evolutivo e acompanhamento

Os casos de lactentes e crianças com antecedentes de DHPNRh deverão ser submetidos a vigilância periódica em centros de desenvolvimento desde a alta hospitalar, pressupondo acção coordenada pelo respectivo médico assistente. O risco de compromisso do sistema nervoso (motor, sensorial, comportamental, etc.) é mais relevante se existirem antecedentes de bilirrubinémia > 25 mg/dL, sinais neurológicos no período neonatal precoce, ET e alterações nos resultados obtidos pelo estudo potenciais evocados auditivos do tronco cerebral.

Prevenção

A prevenção da DHPNRh centra-se nos seguintes princípios:

  • proscrição absoluta de hetero-hemoterapia e respeito pelas regras de compatibilidade em transfusões;
  • prevenção das hemorragias feto-maternas, reduzindo as manobras obstétricas com probabilidade de aumentarem o volume daquelas;
  • administração de gama-globulina anti-D a mulheres com antigénio D negativo/Rh (-) evidenciando resultado negativo da prova de Coombs indirecta.

Experimentalmente demonstrou-se que 10 microgramas (mcg) de gama-globulina anti-D neutralizam 0,2 a 1 mL de sangue [depuração de eritrócitos fetais circulantes com antigénio D ou Rh (+) para o baço, órgão onde são destruídos por macrófagos através de diversos mecanismos]. No pressuposto de que em mais de 95% dos casos a hemorragia feto-materna tem volume inferior a 10 mL, as doses-padrão que são preconizadas têm probabilidade de eficácia na quase totalidade das situações.

De acordo com as recomendações da AAP e do ACOG (American College of Obstetricians and Gynecologists) tem sido utilizado o seguinte protocolo para a administração de gama-globulina anti-D por via IM na maioria dos centros perinatais:

  1. Status pós-aborto ou ruptura de gravidez ectópica:
    • até 12 semanas: 50 mcg
    • após 12 semanas: 300 mcg
  2. Status pós-biópsia das vilosidades coriónicas: 50 mcg
  3. Status pós-amniocentese ou cordocentese: 300 mcg
  4. Durante a gravidez (28-29 semanas): 300 mcg
  5. Pós-parto se o RN for Rh (+)/D positivo ou Du positivo: 300 mcg

Nas situações 1-, 2-, 3-, e 5- a administração de gama globulina anti-D deve realizar-se o mais precocemente possível, até às 72 horas subsequentes no sentido de garantia de eficácia.

Nota: Caso especial de Incompatibilidade Rh
Existe uma situação especial que teoricamente pode merecer esquema de prevenção: RN do sexo feminino Rh (-), filho de mãe Rh (+). Nesta circunstância poderá verificar-se transfusão materno-fetal de eritrócitos com antigénio D (Rh+) durante o nascimento dum RN Rh (-) a partir da respectiva mãe Rh (+). Como consequência o RN ficará sensibilizado logo após o nascimento (produzindo anticorpos anti-D). Tratando-se dum RN do sexo feminino que recebeu anticorpos anti-D (Rh), fácil se torna compreender que, atingida a idade de procriação, tal indivíduo, portador de anticorpos anti-D (Rh) poderá dar origem a produto de concepção afectado por doença hemolítica se se verificar incompatibilidade de grupo sanguíneo feto-materna.
Neste contexto, de acordo com Ramos de Almeida, admite-se como lógica a atitude de administrar gama-globulina anti-D a RN do sexo feminino Rh (-) de mães Rh (+) imediatamente ao parto. Esta estratégia, no entanto, não entrou na rotina. [Ramos de Almeida JM, Rosado L. Rh Blood group of grandmother and incidence of erythroblastosis. Arch Dis Child 1972;47:609-611].

2. Doença hemolítica neonatal por iso (ou alo – imunização AB0

Definições

A doença hemolítica neonatal por iso-imunização AB0 – hoje mais frequente que a DHPNRh como foi atrás referido face à possibilidade de prevenção efectiva desta última – define-se como o processo mórbido em que se verifica hemólise no RN na circunstância de mãe do grupo 0 e RN do grupo A ou B.

[Sobre AB0, deve pronunciar-se AB zero, e não AB Ó].

Recorda-se aqui, para melhor compreensão, algumas características genotípicas e fenotípicas dos eritrócitos e soro no sistema AB0 o qual diverge do sistema Rh (neste último existe um sistema antigénico nos eritrócitos humanos não associado a aglutininas (anticorpos naturais) no soro:

  • no sistema AB0 os caracteres A, B, e 0 são herdados como três pares alelomórficos, pelo que são possíveis os fenótipos A, B, 0 e AB. A correspondência fenótipo-genótipo é a seguinte:
    • Fenótipo A à Genótipos: AA (homozigoto) e A0 (heterozigoto)
    • Fenótipo B à Genótipos: BB (homozigoto) e B0 (heterozigoto)
    • Fenótipo 0 à Genótipo: 00 (homozigoto)
    • Fenótipo AB à Genótipo: AB (heterozigoto);
  • no sistema AB0 considera-se a existência de dois aglutinogénios/antigénios eritrocitários, respectivamente A e B, e duas aglutininas/anticorpos naturais, respectivamente B ou beta e A ou alfa; assim, por definição, não podem coexistir no mesmo indivíduo um antigénio e o correspondente aglutinogénio porque de tal resultaria a aglutinação dos próprios eritrócitos, incompatível com a vida;
  • assim, existem eritrócitos com antigénio A e, no respectivo plasma, aglutinina/anticorpo natural B ou beta; eritrócitos com antigénio B e, no respectivo plasma, aglutinina/anticorpo natural A ou alfa; eritrócitos sem antigénios e, no respectivo plasma, aglutininas/anticorpos naturais A ou alfa + B ou beta; eritrócitos com antigénios A+B e, no respectivo plasma sem anticorpos naturais ou aglutininas. O Quadro 4 elucida sobre o que foi descrito.

QUADRO 4 – Sistema AB0 e relação antigénios eritrocitários – aglutininas plasmáticas (naturais).

Grupo

Antigénios eritrocitários

Aglutininas/anticorpos naturais

A

A

anti-B ou beta

B

B

anti-A ou alfa

AB

AB

ausência

0

Ausência

anti-A (alfa) + anti-B (beta)

Etiopatogénese

Em cerca de 20% das gravidezes verifica-se situação de incompatibilidade AB0 mãe/feto (A/B), (B/A), (0/A), (0/B), (A/0), (B/0); contudo, somente ocorre doença hemolítica no recém-nascido A ou B cujas mães são do grupo 0, possuindo aglutininas B-beta e A-alfa, quer do tipo IgM, quer do tipo IgG; ora, estas últimas têm a capacidade para atravessar a placenta no caso de estimulação antigénica por passagem prévia de eritrócitos fetais B ou A, no sentido feto-mãe.

De salientar, no entanto, que tal estimulação antigénica poderá ocorrer anteriormente à passagem prévia de eritrócitos fetais (isto é, antes duma primeira gravidez a mulher poderá já ser portadora de anticorpos/aglutininas IgG anti-A ou anti-B resultantes de estímulos antigénicos com estrutura e composição química semelhante à dos antigénios eritrocitários A ou B, presentes em certos alimentos, bactérias e produtos biológicos como o toxóide tetânico).

Nos casos de incompatibilidade A/B ou B/A não existe risco de doença hemolítica porque as aglutininas anti-B e anti-A nos grupos A ou B respectivamente são predominantemente do tipo IgM (macromoléculas) sem capacidade para atravessar a placenta no caso de passagem prévia de eritrócitos fetais B ou A no sentido feto-mãe.

Centrando a atenção na situação de mãe 0 e feto/RN do grupo A ou B, gera-se um mecanismo semelhante ao descrito a propósito da DHPNRh: os anticorpos/aglutininas, atingindo os eritrócitos fetais ou do RN, aderem à sua superfície determinado processo hemolítico com consequências semelhantes – fundamentalmente anemia e hiperbilirrubinémia.

Cabe agora analisar algumas diferenças da etiopatogénese em relação à DHPNRh:

  1. grau de hemólise mais ligeiro na doença AB0 condicionando, de modo geral, quadros clínicos mais ligeiros, e;
  2. doença fetal praticamente inexistente na doença AB0, sendo por isso mais correcto falar em doença neonatal AB0 em comparação com a designação de doença perinatal Rh.

As razões da raridade da hemólise fetal (< 2% dos casos de DH AB0) prendem-se com o facto de a membrana eritrocitária fetal ser escassa em antigénios A e B, sendo que a expressão antigénica somente se desenvolve de modo significativo a partir do final da gestação e, sobretudo, a partir do termo da gravidez, continuando o seu desenvolvimento até aos 2 anos; ou seja, a característica de “grupo A ou B” não está completamente definida no período fetal, o que determina escassa ou nula probabilidade de os eritrócitos fetais serem reconhecidos como estranhos ao organismo materno.

Por outro lado, sendo gerados anticorpos anti-A ou anti-B, para além do facto de nem todos serem hemolisantes, os mesmos poderão aderir não só a antigénios A ou B na membrana eritrocitária do RN, mas também a antigénios de estrutura semelhante a antigénios A ou B distribuídos por tecidos e secreções; ou seja, surge aqui um mecanismo de competição que poupa eritrócitos A ou B, diminuindo a exposição destes ao anticorpo materno circulante, reduzindo o grau de hemólise.

Aliás, a dupla incompatibilidae mãe-filho AB0 e Rh diminui o risco e a gravidade de DHPNRh pelo facto de os eritrócitos fetais Rh (+) e do grupo A ou B, que passam para a circulação de mãe do grupo 0 Rh (-), poderem ser destruídos pelos anticorpos maternos anti-A ou anti-B antes do estímulo antigénico para a formação de anticorpos anti-D por parte da mãe. Trata-se de mecanismo semelhante ao descrito para a imunoglobulina anti-D.

Ao contrário da iso-imunização Rh, na DH AB0, a probabilidade de iso-imunização vai diminuindo com o número de gravidezes, pois os anticorpos formados como resposta a sucessivas estimulações antigénicas, inicialmente do tipo IgG, passam mais tarde a ser predominantemente do tipo IgM, macromoléculas que não atravessam a placenta.   

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas neste tipo de iso-imunização AB0 são variadas; a anemia e a icterícia podem ser ligeiras; classicamente surge icterícia precoce, embora em certas formas o quadro se assemelhe a icterícia fisiológica. Outra particularidade da icterícia é o seu modo “oscilante” sugerindo quadro de hemólise ligeira por surtos, e o prolongamento para além das duas semanas conduzindo a anemia (excepcionalmente grave), de expressão tardia (3ª-4ª semanas de vida) e acompanhada de hepatosplenomegália. Em certas formas de incompatibilidade B-0 foram descritos casos de hiperbilirrubinémia > 20 mg/dL; os casos de encefalopatia são raros.

Em função do contexto clínico e dos antecedentes familiares haverá, por vezes, que fazer o diagnóstico diferencial com outras icterícias hemolíticas como por ex. esferocitose hereditária e enzimopatias eritrocitárias.

Exames complementares

No contexto de incompatibilidade AB0 mãe-filho e icterícia precoce, a elevada probabilidade de doença hemolítica AB0 deve ser confirmada ou infirmada através da realização de determinados exames laboratoriais (hemograma com contagem de reticulócitos e pesquisa de esferócitos). De facto, a presença de esferócitos no sangue periférico (> 4/mmc) nesta idade sugere com maior probabilidade DH AB0 do que esferocitose hereditária; considera-se reticulocitose significativa (indiciando hiperplasia medular por hemólise) o valor > 4-5%, podendo por vezes ser atingidos valores entre 15-30%.

Relativamente aos aspectos relacionados com a vigilância da bilirrubinémia aplicam-se os princípios já descritos a propósito da DHPNRh. A prova de Coombs directa no RN em geral é negativa ou fracamente positiva, o que é explicado pelo facto de haver menor número de sítios antigénicos nos eritrócitos do RN.

O diagnóstico pode ser confirmado através da pesquisa de anticorpos maternos anti-A ou anti-B adsorvidos à superfície dos eritrócitos do RN (prova do eluato).

Tratamento

No caso de DH AB0 têm perfeito cabimento as medidas descritas para a DHPNRh, incluindo fototerapia, a administração de imunoglobulina polivalente, transfusão de concentrado eritrocitário e exsanguinotransfusão.

Nesta alínea é dada ênfase a indicações de fototerapia (Quadro 5) e de exsanguinotransfusão, resumidas a seguir.

QUADRO 5 – Indicações de fototerapia na DH-ABO.

Idade

Vigilância

Fototerapia

Bilirrubina(mg/dL)

< 24 horas

< 7

7-9

24-48 horas

< 10

10-14

> 48 horas

< 12

12-18

 

No que respeita à ET, e no contexto de DH-AB0, em geral não existe a necessidade de realizar esta técnica imediatamente após o nascimento, tendo em conta a baixíssima probabilidade de doença fetal e de doença neonatal precoce e grave; é, no entanto, crucial observação rigorosa seriada, sendo que o risco de kernicterus é mais significativo até aos 5 dias, período de maior permeabilidade da barreira hemato-encefálica. As indicações da ET em função da bilirrubinémia total (BT) e do peso de nascimento são assim estabelecidas:

  • <1.500 g………….ET se BT > 13 mg/dL
  • 1.500-2.500 g….ET se BT > 16 mg/dL
  • >2.500 g………….ET se BT > 18 mg/dL

Salienta-se, contudo, que a ET deverá ser sempre realizada de imediato caso se verifiquem sinais sugestivos de encefalopatia bilirrubínica independentemente dos valores de bilirrubinémia (e, idealmente, antes do surgimento dos referidos sinais, o que implica elevado índice de suspeita na avaliação clínica seriada e cuidadosa).

Na presença de factores de risco, tais como índice de Apgar < 3 aos 5 minutos, hipoglicémia, hipotermia, hipercapnia, hipoxémia (PaO2 < 40 mmHg), acidose metabólica persistente (pH< 7,15), infecção sistémica com ou sem meningite, proteínas totais < 4 g/dL, albumina < 2,5 g/dL, deve ser diminuído o nível de bilirrubina total (BT) indicativo para ET de menos 2 mg/dL do que o estabelecido para situações sem factores de risco. [Por ex. ET com BT > 11 mg/dL se factor de risco presente versus BT > 13 mg/dL na ausência de factor de risco (ver atrás)].

Este critério de ponderação de factores de risco aplica-se também a situações de hiperbilirrubinémia não hemolítica.

3. Doença hemolítica neonatal por incompatibilidade dos chamados grupos sanguíneos menores

Definição e importância do problema

Tal como foi referido antes, em cerca de 1-2% da totalidade dos casos de iso- imunização por incompatibilidade sanguínea feto-materna, poderá surgir iso-imunização em relação com determinados antigénios [c, C, e, E (no sistema Rh), Fya (no sistema Duffy), M, N, S, s (no sistema MNSs), JKa, JKb (no sistema Kidd), etc], existentes na superfície do eritrócito fetal e ausentes no eritrócito materno, designados classicamente como menores ou irregulares.

Etiopatogénese

A etiopatogénese é sobreponível à descrita para outros grupos sanguíneos. Cabe referir, no entanto, duas particularidades:

  1. no sistema Rh a DH surge mais frequentemente com antigénios E e c caso se verifique previamente sensibilização ao antigénio D;
  2. no sistema Rh também, e dentro da raridade da iso-imunização por grupos menores, a DH anti-c é a mais frequente.
Manifestações clínicas

As manifestações clínicas são semelhantes às descritas a propósito da DHPNRh; de salientar, contudo, que nestas formas pode haver doença fetal (anemia/hidropisia) e, no RN, as formas anémicas e ictérica.

Na prática clínica, e na ausência de incompatibilidade Rh e AB0, deve suspeitar-se desta de doença no pós-parto e nas seguintes circunstâncias:

  • icterícia precoce (surgida antes das 24 horas de vida) com evolução rápida para valores críticos de hiperbilirrubinémia;
  • anemia associada;
  • hepatosplenomegália;
  • prova de Coombs directa positiva, reticulocitose importante e detecção de eritroblastos no sangue periférico.
Tratamento e evolução

Os procedimentos a realizar e a possível evolução são os mesmos que foram descritos a propósito da DHPNRh. Uma vez identificado o antigénio eritrocitário que desencadeou o processo de iso-imunização, tal facto deverá ficar registado no Boletim de Saúde Infantil e Juvenil no sentido de prevenir, no futuro, eventuais transfusões de derivados sanguíneos com o referido antigénio.

Hiperbilirrubinémia conjugada

Definição e importância do problema

A hiperbilirrubinémia directa ou conjugada é devida a falência no processo de excreção para o duodeno (com consequente retenção) da bilirrubina conjugada (BC), ácidos biliares e outros compostos da bílis. Define-se quantitativamente pela verificação de nível sérico de BC > 2 mg/dL, ou de BC superior a 20% da bilirrubina total.

Esta situação classicamente está associada a hepatomegália, esplenomegália, urina escura (por bilirrubinúria conjugada) e fezes claras. Este quadro, de etiopatogénese variada, é designado pelo termo colestase.

Toda e qualquer situação de colestase, uma vez diagnosticada, deverá ser encaminhada atempadamente para centro especializado tendo em conta a necessidade de tratamento dirigido aos factores etiológicos; com efeito, a demora na actuação exequível poderá ser fatal ou originar sequelas, tais como cirrose biliar (por ex. se a intervenção cirúrgica correctiva de defeito das vias biliares não se realizar até à 4-6 semanas de vida).

Etiopatogénese

Reportando-nos ao capítulo sobre colestase (Parte XVI – Gastrenterologia/Hepatologia), em síntese, podem ser considerados os seguintes grandes grupos de colestase quanto à etiopatogénese (Quadro 6):

QUADRO 6 – Hiperbilirrubinémia conjugada (directa) (Icterícia colestática).

1. Lesão do hepatócito com ductos biliares normais

    1. Causa tóxica (nutrição parentérica no RNMBP, sépsis, necrose isquémica);
    2. Causa infecciosa [vírus, bactérias e parasitas (Toxoplasma)];
    3. Causa metabólica (doenças hereditárias do metabolismo, síndroma de Rotor, síndroma de Dubin-Johnson, cirrose idiopática, trissomia 18, etc.).
2. Oferta excessiva de bilirrubina para excretar (síndroma de bílis espessa por “entupimento”) em casos de doença hemolítica e de hemólise secundária a ECMO

3. Obstrução ao fluxo biliar (atrésia das vias biliares intra ou extra-hepáticas)

    1. Tipo extra-hepático isolado ou associado a quisto do colédoco, trissomia 13 ou 18, ou polisplenia;
    2. Tipo intra-hepático por vezes associado a sídroma de Alagille, atrésia intra-hepática com linfedema, hipoplasia
    3. ductular não sindrómica, quisto do colédoco, adenopatia, tumores, quisto pancreático, fibrose quística, etc..
4. Outras situações
Nota importante: A causa mais frequente de colestase em doentes hospitalizados em UCIN é a nutrição parentérica prolongada.

Algumas formas clínicas

Certas situações clínicas que integram o Quadro 6 fazem parte de diversos capítulos do livro. Nesta alínea, entre outras, optou-se por abordar sucintamente duas síndromas ainda não pormenorizadas e consideradas paradigmáticas no âmbito das hiperbilirrubinémias conjugadas: síndroma de Dubin Johnson e síndroma de Rotor.

Síndroma de Dubin Johnson

Trata-se duma situação autossómica recessiva causada por um defeito no transporte da BC e de outros aniões orgânicos, do hepatócito para a bílis. A mesma resulta de mutações (descritas mais de 10) num gene que codifica um anião orgânico transportador dependente de ATP (cMOAT, sinónimo de MRP2).

A síndroma pode manifestar-se na transição do período neonatal para a 1ª infância por sinais de colestase associados a náuseas, vómitos, hepatomegália e valores de BC ~2-5 mg/dL, os quais podem atingir cerca de 20 mg/dL durante intercorrências infecciosas; a situação pode regredir na adolescência, considerando-se dum modo geral a evolução benigna, sem doença crónica. ALT, AST, fosfatase alcalina e sais biliares no soro evidenciam valores normais. A excreção de ácidos biliares e o nível sérico de ácidos biliares são normais. Por colangiografia não se visualiza o tracto biliar e o padrão radiológico da vesícula biliar é anormal.

O coproporfirinogénio urinário é normal, mas a relação coproporfirinogénio I/ coproporfirinogénio III é muito elevada, o que pode ser considerado critério para o diagnóstico. A prova de excreção da bromossulftaleína revela resultado anormal (depuração prolongada).

O exame histológico do fígado, revela estrutura normal e acumulação de pigmento semelhante à melanina nos lisossomas.

Síndroma de Rotor

Esta síndroma colestática, tendo pontos comuns com a síndroma de Dubin-Johnson (SDJ), também se transmite de modo autossómico recessivo; sob o ponto de vista de manifestações clínicas, não existe elevação de BC desencadeada por intercorrências.

De base molecular ainda desconhecida, evidencia, para além do defeito da SDJ, deficiência na captação de aniões orgânicos e ausência de acumulação de pigmento no hepatócito. O padrão radiológico da vesícula biliar é normal.

Para o diagnóstico diferencial com SDJ tem importância o perfil de coproporfirina urinária (na síndroma de Rotor a coproporfirina urinária está, muito elevada, com relação normal coproporfirinogénio I/ coproporfirinogénio III).

Exames complementares e tratamento

Em complemento do que foi referido no Capítulo sobre Colestase (Parte XVI- sobre Gastrenterologia/Hepatologia – volume 1), cuja consulta se sugere, importa referir os seguintes factos, na sequência de resultados de investigações recentes, relacionadas com a colestase neonatal e a sua etiologia mais frequente – a atrésia das vias biliares:

  • recentemente descreveu-se uma doença metabólica relacionada com o défice da citrina, a qual resulta de mutações no gene SLC25A 13 que codifica o transportador mitocondrial do aspartato-glutamato, ciclo da ureia e neoglucogénese. Manifestando-se em RN e lactentes, constitui causa de colestase intra-hepática, geralmente transitória e de bom prognóstico.
  • recentemente também, em relação com as situações de atrésia das vias biliares, descreveu-se um marcador diagnóstico doseável no sangue em ng/mL, e designado por MMP-7 Matrix Metalloproteinase-7); com sensibilidade, especificidade e valor preditivo positivo elevados (> 95%) e um valor de corte de 10,37 ng/mL e mediana de 38,39 ng/mL, verificou-se igualmente que tal marcador tem interesse pela sua correlação com o desenvolvimento de fibrose hepática.

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DOENÇA HEMORRÁGICA POR DÉFICE DE VITAMINA K

Definição e importância do problema

Este problema clínico, fazendo parte dum grupo de afecções que têm em comum um quadro de diátese por carência de vitamina K, surge em crianças não submetidas a profilaxia com vitamina K no pós-parto imediato.

Considerando globalmente todas as formas clínicas (adiante discriminadas), estima-se uma incidência global de 0,1 a 1,8/100 RN, em confronto com cerca de 0,07-0,25/100.000 RN nos casos de administração profiláctica de vitamina K1.

Etiopatogénese

A vitamina K, indetectável no sangue do cordão, constitui um substrato essencial para a síntese de proteínas coagulantes nas quais se incluem os factores II, VII, IX, X, e anticoagulantes (proteína C e proteína S).

Por sua vez, o défice dos factores II, VII, IX e X conduz a défice de protrombina.

Em circunstâncias fisiológicas verifica-se habitualmente uma diminuição moderada dos factores II, VII, IX e X entre as 48-72 horas de vida (no RN pré-termo entre as 48 horas e os 7 dias de vida), com normalização dos respectivos níveis entre os 7 e 10 dias de vida (no RN pré-termo, mais tarde).

Este défice transitório de factores dependentes da vitamina K deve-se provavelmente ao défice de vitamina K livre na grávida/mãe, e à ausência de microbioma bacteriano intestinal do RN que sintetiza a referida vitamina (designadamente Lactobacillus); como consequência, poderá surgir hemorragia espontânea, mais ou menos prolongada.

Sendo o leite materno deficitário em vitamina K (1-9 mcg/L), tal predisposição é mais acentuada em RN alimentados com leite humano. Em comparação, as fórmulas contêm 53-66 mcg/L).

Os estados de carência materna de vitamina K no RN podem também ser provocados por fármacos administrados à mãe (por ex. fenobarbital, fenitoína) interferindo no metabolismo daquela. De salientar, por outro lado, que situações que ultrapassam o período neonatal (no lactente) acompanhadas de má-absorção intestinal, hepatite, atrésia das vias biliares ou de supressão da microbiota intestinal por antibioticoterapia oral prolongada, podem originar situações de carência acentuada de vitamina K com manifestações hemorrágicas mais tardias, caso não se verifique compensação através do regime nutricional.

Manifestações clínicas

São descritas três formas de apresentação da doença hemorrágica por carência de vitamina K no RN e lactente, designadas respectivamente precoce, clássica e tardia:

  1. Precoce (em geral nas primeiras 24 horas de vida), aguda e rara, quase exclusivamente observada em filhos de pacientes medicadas com fármacos que inibem a vitamina K, nomeadamente anticonvulsantes (carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, primidona, metsuximida), tuberculostáticos (rifampicina, isoniazida), alguns antibióticos (cefalosporinas) e antagonistas da vitamina K; poderão surgir hematemese, melena, hemorragia intrabdominal, hemorragia intracraniana e céfalo-hematoma exuberante;
  2. Clássica (em geral entre o 2º e 7º dias de vida), caracterizada por um ou mais dos seguintes sinais: epistaxe, hematemese, melena, hemorragia umbilical, hemorragia vaginal, equimoses, hematúria e, raramente, hemorragia intracraniana. Tratando-se de situação hoje rara face à atitude profiláctica sistemática, os casos descritos têm sido associados a alimentação com leite materno exclusivo na ausência de profilaxia;
  3. Tardia (em geral entre as 2 e 12 semanas de vida), com incidência ~2 a 10/100.000 nados vivos, ocorrendo sobretudo nas seguintes circunstâncias:
    • aleitamento materno exclusivo sem antecedentes de profilaxia com vitamina K ao nascer;
    • antecedentes de má absorção intestinal (fibrose quística, diarreia crónica, doença celíaca), atrésia das vias biliares, hepatite, défice de alfa 1-antitripsina, etc.. Com manifestações sobreponíveis à forma clássica, a probabilidade de hemorragia intracraniana é, no entanto, maior.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da doença hemorrágica do RN por défice de vitamina K faz-se fundamentalmente com a coagulação intravascular disseminada e o défice congénito de um ou mais factores de coagulação (que não os dependentes da vitamina K).

Chama-se a atenção para o facto de somente cerca de 5 a 30% dos casos de défice de factores VIII e IX se manifestarem no período neonatal.

Nos casos de hemorragia gastrintestinal poderá admitir-se a hipótese de síndroma de sangue materno deglutido, eventualmente presente no estômago ou nas fezes, (por exemplo explicável por fissuras mamárias) utilizando-se a prova de Apt; esta prova baseia-se na detecção de sangue do RN (em que predomina a Hb fetal que é álcali-resistente); quando negativa, significa que o sangue é de origem materna, ou deglutido, ou aspirado durante o parto ou na amamentação.

No RN pré-termo, a verificação de equimoses poderá ser explicável por fragilidade capilar, e não por défice de vitamina K ou por défice de factores de coagulação.

Exames complementares

Como resultado da avaliação laboratorial, registam-se os dados essenciais:

  • TP (tempo de protrombina) aumentado
  • aPTT (tempo parcial de tromboplastina activada) aumentado

A vitamina K facilita a carboxilação pós-transcrição dos factores II, VII, IX e X; na ausência de carboxilação, surgem no plasma factores de coagulação denominados PIVKA (protein induced in vitamin K absence).

Estes, virtualmente não funcionais no processo de coagulação, constituem um marcador com elevada sensibilidade para detecção da carência de vitamina K.

O tempo de hemorragia, o número de plaquetas circulantes, o nível dos factores V, VIII, de fibrinogénio, a fragilidade capilar e a retracção do coágulo evidenciam valores normais no recém-nascido de termo.

Prevenção

Considerando as diversas formas clínicas anteriormente descritas, são diversos esquemas preventivos:

No RN

1 – Como rotina, no RN de termo, cita-se a administração sistemática no pós-parto de vitamina K1 na dose de 1 mg por via intramuscular (IM) ou subcutânea (SC); dose de 0,5 mg se RN de peso <1.500 g.
Nos casos em que é recusada pelos pais a administração de vitamina K por via IM, pode utilizar-se com segurança, por via oral, o preparado que se utiliza por via IM ou SC, mas na dose de 2 mg, com o seguinte esquema: ao nascer e aos 7 dias, e ao 1 mês de idade se RN alimentado ao peito.
Salienta-se:

  • que tal esquema de rotina poderá não ser tão efectivo em todas as formas clínicas de doença hemorrágica do RN; e
  • que a vitamina K por via oral é menos efectiva na prevenção da forma tardia.

Nota importante: não foi comprovada a possível associação entre cancro na idade pediátrica e administração de vitamina K por via intramuscular admitida há anos por alguns autores; a absorção por via SC é semelhante à absorção por via IM.

 

  1. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose semanal) nos RN submetidos a nutrição parentérica total; ou preparado comercial contendo vitamina K1.
  2. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose mensal) nos casos de RN e lactentes com antecedentes de restrição do crescimento fetal, ou com estados de desnutrição de diversas etiologias, alimentados exclusivamente com leite humano e submetidos a antibioticoterapia de largo espectro.
  3. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose mensal) em situações de doença crónica com risco elevado de diátese hemorrágica por défice de viatmina K: fibrose quística, hepatite neonatal, défice de alfa 1-antitripsina, doença celíaca, diarreia crónica, etc..

Na grávida (submetida a tratamento com anticonvulsantes)

  • Administração no terceiro trimestre de vitamina K1: 5 mg/dia por via oral e/ou de 10 mg IM quatro horas antes do parto, seguida de profilaxia no RN.

Na lactante (submetida a tratamento com anticonvulsantes)

  • Administração de vitamina K1: 5 mg/dia por via oral enquanto durar a amamentação.

Tratamento

Nos casos de doença estabelecida, procede-se do seguinte modo:

  • Vitamina K1 na dose de 2 a 10 mg (20 mg nos casos de hemorragia intracraniana ou formas graves) por via SC; dever-se-á evitar a administração por via IM (pelo risco de formação de hematomas); igualmente poderá ser utilizada a via IV na dose entre 1-5 mg, com precaução pelo risco de reacção anafiláctica e de morte súbita;
  • Plasma fresco congelado para reposição dos factores de coagulação deficitários: 10-20 mL/kg;
  • Outros procedimentos incluem (em casos de hemorragia gástrica) lavagem gástrica com soro fisiológico à temperatura ambiente até obtenção de aspirado gástrico claro.

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TROMBOCITOPÉNIA NEONATAL

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A trombocitopénia, problema frequente no RN, em particular no pré-termo, define-se como a situação clínica em que se verifica número de plaquetas inferior a 150.000/mm3; de referir que valores entre 100.000 e 150.000/mm3 são frequentes no RN aparentemente saudável, pelo que em tais circunstâncias se torna indispensável excluir falsa doença avaliando com rigor a evolução numérica de tais células sanguíneas.

Na maioria dos casos trata-se de situações clínicas de gravidade ligeira a moderada, com regressão espontânea e sem sequelas.

A forma clínica designada por trombocitopénia grave acompanha-se de valor inferior a 50.000/mm3; as manifestações hemorrágicas significativas estão habitualmente associadas apenas a valores inferiores a 20.000-30.000/mm3.

De acordo com vários estudos, a trombocitopénia está presente em cerca de 0,12% a 0,70% dos RN; nos internados em unidades de cuidados intensivos neonatais (UCIN), esta proporção oscila entre 20% e 50%; a trombocitopénia grave é observada em cerca de 8% dos RN pré-termo assistidos em UCIN.

Etiopatogénese e semiologia laboratorial

As plaquetas são pequenos elementos figurados do sangue circulante, com um diâmetro 14 vezes inferior ao do glóbulo vermelho. O seu número aumenta de forma linear com a evolução da gestação, pelo que é habitual verificar-se nos RN pré-termo um valor numérico de plaquetas ligeiramente inferior ao observado no RN de termo.

Embora existam vários reguladores da produção de tais células, tais como as interleucinas 3, 11 e 16, o factor que estimula de forma mais significativa esta produção, é a trombopoietina, glicoproteína que se liga ao receptor c-mpl expresso nos megacariócitos e nos seus precursores.

As alterações plaquetárias no período neonatal podem integrar os seguintes grupos:

  • Qualitativas congénitas;
  • Qualitativas adquiridas;
  • Quantitativas:
    • por aumento da destruição (trombocitopénias imunes e por aumento do consumo como na CIVD);
    • por défice de produção (trombocitopénias de causa genética, associada a doenças infiltrativas ou a insuficiência placentar); ou
    • por sequestração no baço aumentado de volume ou outro órgão (hiperesplenismo, síndroma de Kasabach-Merrit).

A relação entre a etiopatogénese e semiologia laboratorial pode ser tipificada por um conjunto de fenómenos biológicos com implicações práticas nas manifestações clínicas:

  • Plaquetas revestidas por IgG, embora possam constituir um indicador de destruição plaquetária, são frequentemente encontradas em RN sem sinais de doença aparente;
  • Níveis elevados de trombopoietina, o mais importante regulador da produção de plaquetas, podem ser um indicador de destruição aumentada;
  • Nas chamadas “plaquetas reticuladas” correspondendo a plaquetas jovens, existe conteúdo elevado de ácido ribonucleico; em situações de maior destruição, o número destas plaquetas e de megacariócitos medulares está aumentado no sangue periférico; o inverso é possível em casos de diminuição da produção;
  • O volume plaquetário médio (VPM), mais elevado nas plaquetas mais jovens, traduz em princípio um aumento de produção, secundário a destruição aumentada; no entanto, a sua maior utilidade, a par do exame morfológico das plaquetas, verifica-se no âmbito do diagnóstico de situações hereditárias (macrotrombocitopénias);
  • A glicocalicina, fragmento proteolítico solúvel da subunidade a da glicoproteína Ib, é um componente, quer dos megacariócitos normais e maduros, quer das plaquetas; níveis elevados da referida glicocalicina verificam-se em situações de maior consumo de plaquetas, enquanto níveis reduzidos se associam a situações com diminuição da respectiva produção;
  • Estudo medular: em casos especiais poderá ser elucidativo para avaliação da celularidade medular e da morfologia dos megacariócitos quando a trombocitopénia é prolongada e grave, e de causa desconhecida; em situações com aumento da destruição plaquetária, a medula evidencia número normal ou aumentado de megacariócitos; pelo contrário, em situações em que está afectada a produção, o número de megacariócitos está reduzido.

Ocasionalmente podem ser observados dados mais específicos: inclusões víricas sugerem infecção por CMV ou Parvovirus; megacariócitos picnóticos, sem citoplasma, são sugestivos de infecção por VIH; invasão medular ou diminuição das células mielóides e eritróides sugerem aplasia.

Notas importantes:

Sendo muito difícil a realização de estudos da cinética plaquetária no recém-nascido, certos dados relacionados com a necessidade e frequência de transfusões permitem uma avaliação indirecta do mecanismo da trombocitopénia:

    • trombocitopénia grave com boa resposta à transfusão feita semanalmente relaciona-se provavelmente com menor produção (por exemplo, trombocitopénia amegacariocítica congénita);
    • trombocitopénia com necessidade frequente de transfusões é muito sugestiva de aumento do consumo.

Classificação

Em cerca de 50% das situações acompanhadas de alterações quantitativas das plaquetas no RN (trombocitopénia relacionável com os mecanismos anteriormente referidos: aumento de destruição, diminuição de produção – o mecanismo mais frequente – ou sequestração), não é possível estabelecer o diagnóstico etiológico.

Nos restantes casos, no entanto, através de anamnese perinatal e de exame físico rigorosos, é possível identificar determinado factor etiológico, o qual poderá ser incluído num ou mais dos seguintes grupos: 1 – imunológico; 2 – infeccioso; 3 – genético; 4 – drogas; 5 – coagulação intravascular disseminada; 6 – insuficiência placentar; 7 – miscelânea.

Para além do mecanismo patológico em causa, as trombocitopénias podem também ser classificadas em função:

  • Das dimensões das plaquetas (grandes, normais ou pequenas);
  • Do modo de aquisição (congénitas ou adquiridas); ou
  • Da data do aparecimento (precoce se antes das 72 horas de vida ou tardia se depois das 72 horas). 

Perante determinado contexto clínico e o resultado analítico evidenciando valor diminuído de plaquetas, torna-se necessário, muitas vezes, excluir as chamadas “pseudotrombocitopénias” causadas pela agregação das plaquetas em colheitas feitas em tubos com EDTA; uma nova colheita em tubo citratado ou uma observação em lâmina, permitirá, na maioria dos casos, comprovar o diagnóstico de “trombocitopénia verdadeira”.

Na perspectiva de se obter o diagnóstico etiológico torna-se fundamental uma anamnese rigorosa, designadamente inquirindo sobre determinados pontos:

Dados relativos à mãe/grávida

  • Doença autoimune – PTI, LED? Existe história de esplenectomia? Na gravidez anterior, o RN teve trombocitopénia? As plaquetas maternas são normais ou evidenciam número diminuído? A que medicações foi submetida? Existe história de hipertensão ou de diabetes gestacional? Existe risco infeccioso?

Dados relativos ao RN

  • Verifica-se bom estado geral? O RN evidencia sinais de doença ou anomalias congénitas, designadamente esqueléticas? Há antecedentes de asfixia? Há história de bradiarritmia sugestiva de LED? Existe restrição de crescimento fetal? A trombocitopénia tem início precoce (<72 horas de vida) ou tardio (depois deste período)?
    A trombocitopénia é ligeira/moderada (50-150.000/mm3) ou grave?
    A abordagem inicial do recém-nascido com trombocitopénia nesta perspectiva permite, em muitos casos, apontar para um dos grupos etiológicos apontados e, a partir daqui, avançar para os exames complementares específicos; o objectivo último é proceder ao tratamento adequado para prevenir a hemorragia grave com risco de vida.
    De acordo com a etiopatogénese e a cronologia das manifestações clínicas – que, em cerca de 75% dos casos surgem até às 72 horas de vida – é estabelecida a classificação. (Quadro 1)
    O fluxograma que integra a Figura 1 diz respeito a uma abordagem do RN com trombocitopénia precoce, orientando para as hipóteses de diagnóstico.

QUADRO 1 – Causas de trombocitopénia fetal e neonatal.

Abreviaturas:
TORCH – toxoplasmose, outras infecções congénitas (hepatite B, sífilis, herpes zóster), rubéola, citomegalovírus, herpes simplex
VIH – vírus da imunodeficiência humana
* → Causas mais frequentes
(#) → por diminuição de produção
(“) → por sequestração
→ As situações não assinaladas com os símbolos (#) ou (“) correspondem a mecanismo de destruição aumentada
Em muitos casos coexistem mecanismos combinados (por ex. sépsis, asfixia, RCIU, pré-eclâmpsia, enterocolite, etc.)

Fetal e neonatal precoce (72h)

    • Insuficiência placentar*
      Pré-eclâmpsia
      Diabetes mellitus
      Restrição do crescimento fetal
    • Asfixia perinatal*
    • Policitémia
    • Imunológica
      Trombocitopénia neonatal aloimune*
      Trombocitopénia neonatal autoimune
      Lúpus neonatal
      Anemia hemolítica do recém-nascido (factor Rh)
      Drogas (vancomicina, valproato, etc.)
    • Infecção*
      Congénita (grupo TORCH, VIH)
      Perinatal (Streptococcus B, E. coli, Listeria monocytogenes)
      Coagulação intravascular disseminada*
    • Trombose (aórtica, renal)
    • Congénita/Hereditária
      Aneuploidia (Trissomias 13, 18, 21; Triploidia)*(#)
      Trombocitopénia amegacariocítica congénita(#)
      Trombocitopénia com ausência de rádio (síndroma TAR)(#)
      Anemia de Fanconi(#)
      Leucemia congénita(#)
    • Imunodeficiência
      Síndroma de Wiskott Aldrich
      Linfo-histiocitose hemofagocítica
    • Síndroma de Kasabach-Merrit/Hemangioendoteliomas
      Metabólica (Acidémia propiónica/Metilmalónica)(#)
    • Outras (raras)

Neonatal tardia (>72h)

    • Sépsis bacteriana tardia*
    • Enterocolite necrosante*
    • Infecção congénita
    • Insuficiência medular congénita/hereditária
    • Coagulação intravascular disseminada
    • Outras (hipertensão pulmonar persistente(“), fototerapia, erros inatos do metabolismo, défice nutricional(#)- ferro, folato, vitamina B12-
    • Hiperesplenismo (“)

FIGURA 1. Abordagem do RN com trombocitopénia precoce.

Formas clínicas

Seguidamente são descritas algumas formas clínicas de trombocitopénia neonatal.

Trombocitopénia aloimune

De mecanismo análogo ao da doença hemolítica por incompatibilidade Rh, a trombocitopénia aloimune é causada pela passagem transplacentar de anticorpos maternos contra antigénios existentes herdados do pai (na raça caucasiana: HPA-1a e HPA-5b positivos) destruindo as plaquetas fetais no decurso do segundo trimestre da gestação; o título de anticorpos antiplaquetários maternos não é preditivo da gravidade da trombocitopénia.

De referir que os antigénios plaquetários humanos HPA-1a e HPA-5b estão presentes em 98% da população sendo baixa a proporção de mulheres HPA-1a e HPA-5b-negativas. Em asiáticos, a causa mais frequente de trombocitopénia aloimune, tem a ver com o sistema HPA-4.

Ao contrário do que sucede na aloimunização Rh, em 40-50% dos casos ocorre na 1ª gravidez. O risco de recorrência em gravidez subsequente é elevado, dependendo do genótipo do pai: se homozigoto (HPA-1a/1a), o risco é de 100%; se heterozigoto (HPA-1a/1b), o risco é de 50%.

Esta situação tem uma prevalência oscilando entre 1/2.000 e 1/ 5.000, devendo ser considerada em todos os RN que evidenciem trombocitopénia inexplicada grave (<30.000/mm3) ou hemorragia intracraniana e cuja mãe, não tendo história de púrpura trombocitopénica idiopática, apresente valores normais de plaquetas.

Naturalmente, as manifestações clínicas no RN dependem da gravidade da trombocitopénia, desde uma trombocitopénia assintomática até formas graves causadoras de hemorragia intracraniana, a qual surge em 7 a 20% dos casos, frequentemente in utero.

O diagnóstico é habitualmente pós-natal, a menos que exista uma história prévia de aloimunização plaquetária na grávida ou numa irmã, seja detectada hemorragia fetal intracraniana ou seja feito rastreio pré-natal (habitualmente desaconselhado quando não existe uma possibilidade significativa).

Quando o diagnóstico é efectuado no decurso da gestação, o elevado risco de hemorragia fetal in utero justifica iniciar terapêutica com imunoglobulina intravenosa (IGIV) associada ou não a corticoterapia, com redução do risco de hemorragia intracraniana para menos de 3% dos casos.

A ecografia obstétrica a partir das 20 semanas de gestação permite monitorizar a existência de hemorragia intracraniana no feto, sendo as contagens plaquetárias e as transfusões intrauterinas de plaquetas efectuadas em último recurso.

A data do parto deve ter em conta a existência ou não de hemorragia intracraniana fetal em gravidez anterior e a maturação pulmonar do recém-nascido, sendo habitualmente programado a partir das 36-37 semanas; a cesariana é o método preferido, a menos que exista um valor plaquetário fetal superior a 100.000/mm3

O diagnóstico no RN depende da demonstração de anticorpos maternos dirigidos contra as plaquetas do respectivo pai e da existência de antigénios plaquetários incompatíveis entre a mãe (HPA-1a negativa) e o pai (HPA-1a positivo); o recém-nascido evidenciará provavelmente o tipo plaquetário do pai, não sendo habitualmente possível colher uma quantidade de sangue suficiente para investigação adequada. A resolução ocorre com a completa destruição dos anticorpos maternos, alguns meses após o nascimento.

Por último, salienta-se ainda a importância do aconselhamento pré-natal nestes casais, uma vez que a gravidade da incompatibilidade tem tendência crescente, necessitando de rigorosa vigilância hematológica e ecográfica a partir das 20 semanas gestacionais.

Trombocitopénia autoimune

Grávidas com púrpura trombocitopénica idiopática, lúpus eritematoso sistémico ou que necessitaram de terapêutica farmacológica (heparina), produzem autoanticorpos plaquetários com a capacidade de transpor a placenta e provocar destruição das plaquetas fetais em cerca de 10% dos casos. O valor numérico das plaquetas do RN (relacionado com a gravidade da doença materna) diminui entre as 48 e as 96 horas após o nascimento, pelo que deverão ser realizadas determinações diárias durante a primeira semana de vida.

Posteriormente, é esperado um aumento espontâneo progressivo, com normalização do número das plaquetas até às 3 semanas de vida; por vezes tal normalização pode requerer mais tempo (meses), enquanto não se completar o catabolismo completo dos anticorpos.

Contrariamente à trombocitopénia aloimune, as manifestações clínicas são em geral ténues, com risco de hemorragia intracraniana muito mais baixo, inferior a 1%. Factores preditivos de maior gravidade são valores plaquetários maternos inferiores a 50.000/mm3 e a ocorrência de trombocitopénia num filho anterior.

Trombocitopénia associada a infecção

Em RN evidenciando sinais de doença e trombocitopénia precoce ou tardia, há que admitir como causa subjacente mais provável a infecciosa. Efectivamente, cerca de 80% das infecções sistémicas comprovadas evoluem com trombocitopénia.

O principal mecanismo responsável é a maior destruição secundária, quer por lesão do endotélio com adesão e agregação plaquetária, quer por diminuição da produção relacionada com lesão dos megacariócitos medulares.

Em relação às sépsis bacterianas, na data do diagnóstico, pelo menos 25% dos RN evidenciam trombocitopénia, podendo persistir durante alguns dias. As infecções víricas (incluindo por Coxsackie B, Echovírus 11, Parvovírus B19, VIH) e por germes do grupo TORCHS podem igualmente ser causadores de trombocitopénia.

Trombocitopénia congénita e hereditária

Na grande maioria dos casos, o mecanismo responsável pela trombocitopénia reside na diminuição da produção de plaquetas. Como exemplos citam-se a trombocitopénia amegacariocítica congénita (em geral associada a anomalias congénitas e a anomalias de forma e de dimensão das plaquetas), a síndroma TAR (trombocitopénia associada a aplasia do rádio) (Figuras 2 e 3), anemia de Fanconi, associada a trissomias 13, 18 ou 21, acidémia metilmalónica, etc..

Nas situações congénitas, o diagnóstico diferencial faz-se com outras síndromas congénitas cursando com diátese hemorrágica e alteração qualitativa das plaquetas, tais como:

  • Síndroma de Bernard Soulier, transmitida de modo autossómico recessivo e caracterizada por défice de adesão plaquetária, e por plaquetas com volume aumentado;
  • Trombastenia de Glanzmann, situação igualmente autossómica recessiva em que se verifica défice de adesão plaquetária;
  • Síndroma de Wiskott-Aldrich, que corresponde a quadro hereditário ligado ao cromossoma X, associada a imunodeficiência, eczema e trombocitopénia moderada, com diminuição do volume e de adesão plaquetários.

Trombocitopénia induzida por drogas

Algumas drogas administradas durante a gravidez, como a azatioprina, o quinino, a cocaína, o ácido acetilsalicílico, a hidralazina ou tiazidas, são susceptíveis de causar trombocitopénia não só na grávida, como também no feto e RN, através de mecanismo imunológico.

Alguns medicamentos utilizados em recém-nascidos, como a indometacina, a vancomicina ou a heparina, podem igualmente ser responsáveis por trombocitopénia neonatal. (Quadro 1)

Insuficiência placentar

Situações de hipertensão induzida pela gravidez, restrição do crescimento fetal, diabetes gestacional ou hipóxia, são frequentes na grávida, constituindo uma causa comum de trombocitopénia no RN, em particular no pré-termo; o mecanismo em causa relaciona-se com défice de produção (diminuição da megacariocitopoiese).

A trombocitopénia, em geral ligeira ou moderada, e detectada no pós-parto, atinge valor mínimo entre o 2º e o 4º dia, e normaliza entre o 7º e 10º dia de vida. Não é habitualmente necessário qualquer tratamento.

FIGURA 2. RN com síndroma TAR associada a RCIU e trissomia 18. (URN-HDE)

FIGURA 3. Aspecto radiográfico do caso da Figura 1: ausência do rádio esquerdo sendo notório sinal de cardiomegália relacionável com cardiopatia. (URN-HDE)

Idiopática

Tal como foi referido antes, em mais de metade dos casos, mesmo após investigação adequada, não se encontra uma causa evidente para a trombocitopénia. Habitualmente, o número de plaquetas é superior a 50.000/mm3, podendo a normalização ocorrer somente após várias semanas.

Tratamento

O tratamento da trombocitopénia é determinado pela etiologia subjacente; na maior parte dos casos, resolve-se espontaneamente ao fim de 1-2 semanas, sem necessidade de intervenção e sem sequelas; por vezes, a transfusão de plaquetas feita em situações de hemorragia activa, ou profilacticamente, em trombocitopénias graves, constitui o único tratamento possível. 

O uso de factores de crescimento, nos quais se depositou inicialmente grande expectativa, tem algumas limitações que comprometem a sua utilização:

  • Relativamente à interleucina 11 recombinante, tais limitações relacionam-se com surgimento de retenção hídrica e arritmia;
  • Quanto à trombopoietina recombinante tem-se verificado o aparecimento de anticorpos neutralizantes e prolongado tempo de latência quanto ao efeito (cerca de 6 a 10 dias).

As indicações gerais de transfusão de plaquetas (concentrado plaquetário) em função do respectivo número verificado no sangue periférico não são totalmente consensuais em diversos centros mundiais.

Nesta perspectiva, sugere-se ao leitor a consulta do capítulo sobre trombocitopénias fora do período neonatal. Como regra geral, o RN é transfundido na base de 10-15 mL/kg de concentrado plaquetário CMV negativo, em 30 a 60 minutos; as plaquetas obtidas a partir de pool de dadores ou preferencialmente, de dador único, devem ser AB0 compatíveis e, sendo desleucocitadas, reduz-se o risco de transmissão de CMV a níveis semelhantes aos obtidos com o uso de sangue seronegativo; a utilização de concentrado unitário de plaquetas (CUP), obtido por aférese, embora mais caro e difícil de obter, tem a vantagem de ser proveniente de um único dador e ser seguro em relação ao CMV. 

Na trombocitopénia aloimune, em situação de emergência, deve ser utilizado um concentrado plaquetário desleucocitado de modo a corrigir rapidamente o número de plaquetas, sabendo-se que a sobrevivência de plaquetas incompatíveis é curta; idealmente, em futuras transfusões ou, mesmo de início, quando o diagnóstico de aloimunização é conhecido, devem quando possível, ser utilizadas plaquetas maternas que são concentradas de modo a reduzir a quantidade de anticorpos existentes no soro, e que não serão destruídas pelos aloanticorpos; a lavagem no sentido de remover mais anticorpos, pode ser lesiva das plaquetas. Alternativamente, se existir um painel de dadores fenotipados, podem ser utilizadas plaquetas de dador HPA-1a e HPA 5b negativos.

A imunoglobulina intravenosa, em associação com transfusão plaquetária, ou como terapêutica única em trombocitopénias graves sem hemorragia, é usada na dose de 0,5-1 g/kg/dia durante 3 a 5 dias, ou até subida das plaquetas acima de 50.000/mm3.

Nas grávidas com antecedentes de filho anterior com trombocitopénia aloimune e hemorragia intracraniana, deve iniciar-se tratamento com imunoglobulina semanal, associada ou não a corticoterapia, a partir das 12 semanas de gestação; a necessidade de manter este tratamento pode ser confirmada a partir da tipagem plaquetária do feto, obtida por amniocentese a partir das 15 semanas de gestação.

Em centros especializados, quando o feto é HPA-1a positivo, a contagem das plaquetas fetais a partir de cordocentese e a monitorização ecográfica seriada permitem avaliar se a terapêutica está a ser eficaz; e, caso tal não aconteça, está indicada a realização de transfusões intrauterinas repetidas de plaquetas compatíveis.

Na trombocitopénia autoimune recomenda-se a administração de imunoglobulina intravenosa (IGIV: 1 g/kg/dia em dois dias consecutivos ou 0,5 g/kg/dia durante quatro dias), podendo associar-se prednisolona (3 mg/kg/dia durante 3 a 7 dias) na ausência de resposta à IGIV. A transfusão de plaquetas irradiadas na trombocitopénia auto-imune pode considerar-se ineficaz, pois as mesmas são prontamente destruídas independentemente do dador; no entanto, em situações extremas ou perante a verificação de valor de plaquetas inferior a 30.000/mm3, a referida transfusão poderá ser ponderada em associação à IGIV e prednisolona.

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POLICITÉMIA E HIPERVISCOSIDADE

Definição e importância do problema

Define-se policitémia no recém-nascido (RN) como a verificação de hematócrito (Ht) ou concentração de hemoglobina (Hb) superior a 2 desvio-padrão para a idade gestacional e idade pós-natal. No RN de termo considera-se policitémia se se verificar hematócrito venoso >65% ou Hb >22 g/dL.

Trata-se dum problema clínico cuja incidência, conforme diversas séries, variando entre 0,4% e 5%, é mais elevada em recém-nascidos de risco (com restrição de crescimento intrauterino, pós-termo, antecedentes de diabetes materna na gravidez/RN de mães diabéticas, tabagismo materno, e de hipoxémia crónica intrauterina) e naqueles com antecedentes de gravidez em locais de grande altitude (superior a 1.000 metros). A incidência é menor em situações de prematuridade, sobretudo com <34 semanas.

As principais implicações clínicas da policitémia decorrem da hiperviscosidade sanguínea comprometendo o débito sanguíneo e oxigenação tecidual, e predispondo à estase e formação de trombos ao nível da microcirculação em diversos territórios.

Estes eventos têm particular relevância ao nível do córtex cerebral, suprarrenais e rins.

Etiopatogénese

A policitémia neonatal, de etiopatogénese multifactorial, integra fundamentalmente dois grupos, a que correspondem outros tantos mecanismos:

  • Policitémia activa, na dependência da eritropoiese intrauterina, por acção da eritropoietina fetal em resposta a hipóxia fetal e/ou a insuficiência placentar (por ex. em situações de restrição de crescimento fetal, hipertensão arterial, diabetes materna, tabagismo, etc.);
  • Policitémia passiva, secundária a transfusão sanguínea para o feto (feto-fetal ou materno-fetal), asfixia perinatal ou laqueação do cordão umbilical superior a 30 segundos; no RN de termo, a causa mais frequente é a laqueação tardia do cordão.

Situações como trissomias 13, 18 e 21, hipotiroidismo, tireotoxicose, hiperplasia congénita da suprarrenal, síndroma de Becwith-Wiedemann, também podem cursar com policitémia neonatal.

Nota importante

A questão relacionada com o tempo pós-parto em que se deve proceder à clampagem/ laqueação do cordão é controversa, variando conforme diversos autores, o conceito de “tardia”. Classicamente tem-se considerado norma corrente proceder à laqueação 30 segundos após o parto completo. De acordo com as normas de orientação veiculadas pelo ILCOR (International Liaison Committee on Resuscitation) e a American Heart Association (AHA), datadas de 2015, nos RN com boa adaptação à vida extrauterina, não necessitando de reanimação, a laqueação não deverá realizar-se antes de 1 minuto/ 60 segundos. Os respectivos peritos realçam que: 1) a laqueação antes da primeira respiração pode originar bradicárdia coincidindo com diminuição do débito cardíaco; 2) nos RN pré-termo com boa adaptação à vida extrauterina com tal procedimento (laqueação não antes de 1 minuto) evidenciam maior estabilidade hemodinâmica, têm menor necessidade de inotrópicos e ficam mais enriquecidos em reservas de ferro. (ver atrás capítulo sobre reanimação do RN)

A policitémia acompanha-se frequentemente de hiperviscosidade sanguínea: verifica-se uma correlação linear entre tais parâmetros para valores entre 42 e 65%, e exponencial para valores superiores a 65%. Contudo, os dois termos não são sinónimos. Hiperviscosidade é definida como viscosidade sanguínea superior a 12 cP (centipoise), medida a uma velocidade de corte de 11,5/seg.

A policitémia depende:

  • Do número de eritrócitos (em relação, por ex. com eritropoiese activa);
  • Da diminuição do volume plasmático (por ex. em relação com desidratação); ou,
  • De ambos os factores (por ex. situações de restrição do crescimento fetal).

O hematócrito depende:

  • Do local da colheita de sangue (o hematócrito colhido em sangue capilar pode ser até 15% superior ao obtido através de colheitas em sangue venoso), sendo que não se verifica discrepância significativa entre os valores do hematócrito obtidos no sangue venoso central e no sangue arterial;
  • Da técnica utilizada [o valor determinado por analisador automático (método de Coulter, que calcula o hematócrito a partir da concentração de hemoglobina e volume globular médio) é inferior ao encontrado por microcentrifugação];
  • Da idade pós-natal do recém-nascido o hematócrito tem um “pico” às 2 horas de vida (valores normais até 71%) e desce gradualmente a partir das 6 horas de vida, estabilizando pelas 12 a 24 horas. Estas variações estão relacionadas com a transudação de fluidos do espaço intravascular.

A viscosidade sanguínea (aplicando ao sangue a definição de Poiseuille: relação entre as forças de atrito das partículas circulantes e a velocidade do fluxo sanguíneo num vaso) depende não só, do hematócrito, volume eritrocitário, diâmetro do vaso sanguíneo, deformabilidade dos eritrócitos (quanto maior volume e menor deformabilidade, maior viscosidade), número e volume leucocitários, mas igualmente dos lípidos e proteínas no plasma (especialmente fibrinogénio), das plaquetas, e de factores endoteliais. Recorda-se, a propósito, que os eritrócitos do RN (com macrocitose fisiológica, própria da idade) são menos deformáveis, o que predispõe a estase na microcirculação.

Na prática clínica utiliza-se o valor do hematócrito como representativo da viscosidade sanguínea, uma vez que o aparelho para determinar a viscosidade sanguínea (viscosímetro) não existe na maioria das unidades de recém-nascidos. A hiperviscosidade sanguínea poderá condicionar deficientes perfusão microcirculatória e oxigenação em diversos órgãos e sistemas.

No sistema cardiopulmonar verifica-se diminuição do débito cardíaco resultante da diminuição do volume de ejecção e da frequência cardíaca; com valores de hematócrito superiores a 70% verifica-se que a pressão da artéria pulmonar iguala a pressão sistémica. A ocorrência de cianose e taquicárdia foi reportada em menos de 15% dos estudos.

Sinais respiratórios, incluindo taquipneia (relacionados com aumento da resistência vascular pulmonar e diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar), ocorrem em menos de 5% dos RN com policitémia.

No sistema gastrintestinal a sintomatologia mais comum inclui dificuldade alimentar e vómitos. A redução do fluxo sanguíneo tem sido associada a um maior risco de enterocolite necrosante; contudo, a exsanguinotransfusão parcial parece ser o factor de risco mais importante (sobretudo se realizada através de cateter venoso umbilical), e não a policitémia só por si.

A circulação entero-hepática dos ácidos biliares e a função exócrina pancreática também podem ser afectadas durante os primeiros dias de vida.

No sistema renal comprova-se diminuição da taxa de filtração glomerular, do débito urinário e da excreção urinária do sódio, o que parece estar rela­cionado com diminuição do fluxo plasmático renal, traduzindo provavelmente, uma resposta fisiológica do rim no sentido de retenção de água e sódio.

No sistema nervoso central demonstrou-se diminuição do fluxo sanguíneo cerebral com aumento da resistência vascular, o que compromete a libertação do oxigénio aos tecidos irrigados. Esta relação de causa-efeito não está, no entanto, demonstrada, admitindo-se que possa estar relacionada, mais com o factor etiológico da policitémia do que com a policitémia propriamente dita. Para além disso, estudos recentes demonstraram que esta diminuição do fluxo sanguíneo cerebral associada à policitémia é uma resposta fisiológica não condicionando isquémia cerebral.

Como consequência do maior consumo de glucose pelo eritrócito, a hipoglicémia poderá ocorrer em proporção variável, até 40% dos casos.

Nos RN de mãe diabética, com policitémia/ hiperviscosidade, concomitantemente com a formação de microtrombos, tem sido comprovada diminuição dos factores antagonistas da coagulação e diminuição do cálcio no sangue (hipocalcémia) por maior consumo em relação com o referido processo da coagulação.

A trombocitopénia associada a policitémia tem sido explicada pela diminuição de produção relacionada com hipóxia tecidual, associada a aumento de consumo e destruição.

Por outro lado, como resultado do incremento da destruição eritrocitária, é frequente surgir hiperbilirrubinémia.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos, a policitémia é assintomática. As manifestações clínicas (em geral nas primeiras 12 horas de vida, inespecíficas e por vezes subtis) dependem do grau de hiperviscosidade e das consequências da diminuição da perfusão tecidual em vários sistemas como SNC, renal e cardiorrespiratório. Muitas vezes, as referidas manifestações são secundárias a alterações metabólicas acompanhantes tais como hipoglicémia e hipocalcémia.

Pela anamnese perinatal poderão ser identificadas situações de base como as que são descritas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Factores etiológicos de policitémia.

Policitémia activaPolicitémia passiva
Hipóxia fetal crónica
Restrição do crescimento fetal
Pré-eclâmpsia
Anomalias cromossómicas (trissomia 13, 18 e 21)
Diabetes materna
Síndroma de Beckwith-Wiedemann
Laqueação tardia do cordão
Transfusão feto-fetal
Transfusão materno-fetal

Na sua forma típica, o RN está pletórico ou com eritrocianose, sendo mais frequentes: letargia, irritabilidade, tremores, taquipneia e dificuldade alimentar. Os sinais mais frequentes são hiperbilirrubinémia (1/3 dos casos), cianose/ apneia (<10%), dificuldade/ intolerância alimentar (17%) e hipoglicémia (12-40%).

No Quadro 2 estão sintetizadas as manifestações clínicas mais típicas, em relação com a repercussão da hiperviscosidade em diversos territórios.

QUADRO 2 – Manifestações clínicas da hiperviscosidade.

Sistema Nervoso Central
Letargia, irritabilidade, tremores, hipotonia, convulsões, alterações da sucção, trombose do seio venoso (muito rara) e sequelas neurológicas tardias.

Cardiorrespiratórias
Taquipneia, taquicárdia, cardiomegália, congestão vascular pulmonar, derrame pleural, apneia.

Renais
Diminuição da taxa de filtração glomerular, diminuição do débito urinário, diminuição da excreção urinária, proteinúria, hematúria por lesão tubular.

Metabólicas
Hipoglicémia, hipocalcémia, hipomagnesiémia, hiperbilirrubinémia.

Hematológicas
Trombocitopénia, diminuição de factores antagonistas da coagulação, provavelmente secundária à asfixia.

Gastrintestinais
Intolerância alimentar, enterocolite necrosante.

Exames complementares

Uma vez que o viscosímetro somente está disponível em raros centros, o diagnóstico baseia-se na determinação do hematócrito em sangue venoso. Este parâmetro deverá ser realizado em RN com sinais sugestivos e/ou com factores predisponentes de policitémia e valor de hematócrito capilar >65% (se possível, determinado por microcentrifugação):

  • RN leves para a idade gestacional;
  • RN grandes para a idade gestacional;
  • Gémeos monocoriónicos;
  • RN de mães diabéticas;
  • RN com história de restrição do crescimento fetal;
  • RN com quadro sugestivo de policitémia/ hiperviscosidade (clínica inespecífica).

Antes de se considerar o diagnóstico de policitémia, deverá ser excluída desidratação, com eventual correcção e posterior reavaliação do hematócrito.

Em função do contexto clínico (anamnese, factores de risco, sinais clínicos, etc.) poderão estar indicados outros exames complementares:

  • Sanguíneos (tais como contagem de plaquetas, pH e gases no sangue, glucose, cálcio, ionograma, bilirrubina total e directa);
  • Urinários (densidade e sedimento);
  • Imagiológicos (radiografia do tórax e ecografia transfontanelar se existirem alterações cardiorrespiratórias e neurológicas, respectivamente).

Tratamento

Em todos os recém-nascidos com policitémia, o clínico deverá estar alertado para possíveis sinais cardiovasculares e neurológicos, assim como monitorizar eventuais complicações associadas, como a hipoglicémia e hiperbilirrubinémia.

A abordagem da policitémia depende da presença de sinais clínicos e/ou do valor absoluto do hematócrito. (Consultar algoritmo)

Figura 1- Actuação nos casos de suspeita de policitemia

Recém-nascidos sintomáticos

O tratamento definitivo da policitémia consiste na exsanguinotransfusão parcial (ETP) isovolumétrica, com remoção de parte da volémia e substituição por fluidos, de modo a diminuir o hematócrito para valores de cerca de 55%, sem causar hipovolémia.

O volume de sangue a retirar é geralmente 15 a 20 mL/kg, podendo ser calculado através da fórmula:

Volume de troca (mL) =
Volémia x (Ht observado – Ht desejado) / Ht observado [Ht <> Hematócrito]

 Volémia: 80-90 mL/kg em recém-nascidos de termo e 90-100 mL/kg em recém-nascidos prematuros.

A ETP pode ser realizada através de um acesso vascular periférico (no qual o sangue é retirado por uma linha arterial periférica e substituído por fluidos administrados em veia periférica) ou central (o sangue é retirado através da veia umbilical e substituído por fluidos através de uma veia periférica ou da veia umbilical).

O sangue retirado poderá ser substituído (de forma contínua ou em trocas parcelares de 10-15 mL/kg) por cristalóides, geralmente soro fisiológico.

Recém-nascidos assintomáticos

A abordagem dos recém-nascidos assintomáticos depende do valor de hematócrito.

Em recém-nascidos assintomáticos, com valor de hematócrito >75%, a abordagem é sobreponível à dos recém-nascidos sintomáticos.

Em recém-nascidos assintomáticos, com valor de hematócrito entre 70 e 75%, a abordagem inicial é conservadora, com aumento do suprimento de fluidos, geralmente 20 mL/kg adicionais relativamente às necessidades hídricas diárias habituais; podem ser administrados por via entérica ou parentérica.

É fundamental a vigilância clínica e monitorização dos sinais clínicos de policitémia, com reavaliações seriadas do hematócrito.

Em recém-nascidos assintomáticos, com valor de hematócrito entre 65 e 70%, deve providenciar-se uma vigilância clínica rigorosa, traduzida essencialmente em monitorização dos sinais clínicos de policitémia, com avaliações seriadas do hematócrito.

Prognóstico e complicações

Nos recém-nascidos policitémicos e assintomáticos, o prognóstico é bom.

Nos recém-nascidos sintomáticos, a ETP corrige as alterações fisiopatológicas associadas à síndroma de hiperviscosidade, promovendo a melhoria do fluxo sanguíneo cerebral, da perfusão capilar e da função cardíaca. No entanto, existe escassez de provas científicas quanto à verdadeira eficácia de tal procedimento no que respeita à melhoria do prognóstico a longo prazo, designadamente à diminuição de sequelas neurológicas (anomalias motoras e epilepsia). Contudo, a evolução e morbilidade associadas dependem também dos factores predisponentes da policitémia, como por exemplo a hipóxia fetal. Com efeito, esta possibilidade pode explicar o escasso efeito a longo prazo da ETP nalguns casos de policitémia sintomática.

Após a alta hospitalar, os lactentes com antecedentes de policitémia sintomática e/ou submetidos a ETP deverão ser avaliados periodicamente em regime ambulatório.

O Quadro 3 sintetiza algumas complicações e sequelas da síndroma policitémia/ hiperviscosidade, sendo que por vezes é difícil distinguir entre sintomatologia do quadro propriamente dito e complicações.

QUADRO 3 – Complicações e sequelas descritas na síndroma policitémia/ hiperviscosidade.

    • Sequelas neurológicas
    • Insuficiência cardíaca congestiva
    • Enfarte testicular
    • Priapismo
    • Retinopatia
    • Enterocolite necrosante
    • Íleo paralítico
    • Insuficiência renal aguda
    • Trombose da veia renal

Prevenção

As medidas preventivas de ordem geral implicam uma correcta vigilância pré-natal, detectando e corrigindo os factores de risco de hipoxémia e de crescimento fetais, quer em termos de restrição, quer em termos de hipercrescimento (macrossomia).

No âmbito dos procedimentos durante o parto, chama-se a atenção, de acordo com o que antes foi referido, para o tempo de laqueação do cordão umbilical e para a importância do plano em que o recém-nascido é colocado no pós-parto imediato (superior ao do períneo materno, com menor probabilidade de transfusão placento-fetal, ou inferior, com maior probabilidade de transfusão).

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ANEMIA NEONATAL

Desenvolvimento e valores de Hb no RN e lactente

No período neonatal e meses seguintes ocorrem variações significativas fisiológicas da massa eritrocitária (ver capítulo sobre “síndromas hematológicas” – Parte XVIII). Por consequência, a definição e avaliação da síndroma anémica neste período da vida deverá ter em conta o processo normal do desenvolvimento, o qual pode ser tipificado por um conjunto de eventos a seguir discriminados.

Após o nascimento, a saturação da Hb em O2 (SpO2) atinge 95%, passando a eritropoietina a ser indetectável. No fim da primeira semana, quantitativamente, a eritropoiese corresponde a cerca de 1/10 relativamente à que se processava no feto. O número de reticulócitos é baixo e o valor de Hb diminui. Apesar da descida dos níveis de Hb, a relação Hb A/Hb F aumenta.

Os níveis de 2,3-DPG (2,3-difosfoglicerato) aumentam durante a gestação, atingindo no termo desta os do adulto; após diminuição transitória na primeira semana de vida extrauterina, os níveis sobem novamente.

A interacção funcional entre Hb A (que vai progressivamente substituindo a Hb F) e 2,3-DPG diminui a afinidade do O2 para a Hb, o que se traduz numa facilidade crescente de libertação (e aumento de disponibilidade) de O2 para os tecidos. Reportando-nos à curva de dissociação de Hb-O2, verifica-se desvio progressivo da curva para a direita entre a data de nascimento e os 4-6 meses de vida. A progressiva diminuição de afinidade da Hb para o oxigénio ao longo dos meses permite definir o conceito de P-50, ou seja, a pressão parcial de O2 necessária para saturar 50% da Hb.

No lactente nascido de termo, ao longo dos referidos 4-6 meses de vida, a P-50 vai aumentando em concomitância com a diminuição progressiva da afinidade Hb-O2, atingindo-se então os valores de P-50 do adulto (~27 mmHg).

No RN pré-termo, com maior concentração de Hb F e níveis mais baixos de 2,3-DPG, a diminuição progressiva da afinidade para o O2 após o nascimento não se correlaciona com o declínio da Hb F.

Nota importante: A Hb aumenta com a idade gestacional: o valor no RN de termo (sangue do cordão) é ~16,8 g/dL (13,7-20,1). No RN pré-termo MBP este valor é 1-2 g/dL inferior ao do RN de termo. De salientar que pode haver diferença de valores em função do local de colheita do sangue: no sangue capilar e no primeiro dia de vida o valor de Hb normal pode oscilar entre 15,4 e 18,6 g/dL em recém-nascidos de termo; no sangue venoso o valor de Hb é inferior (~<3,6 g/dL), podendo a diferença reduzir-se aquecendo previamente o local de punção capilar (geralmente região calcaneana).

A concentração de Hb, decrescendo desde o nascimento, atinge o nadir cerca das 8-12 semanas no RN de termo (11-12 g/dL), e cerca das 6 semanas no RN pré-termo (7-10 g/dL).

A chamada anemia da prematuridade correspondendo, de facto, a uma situação clínica de “exagero” da anemia fisiológica normal (com determinadas especificidades) é abordada sucintamente na alínea sobre Definições e antes da classificação geral das anemias neonatais.

Definições

A anemia constitui uma alteração hematológica em que se verifica valor baixo de massa eritrocitária; na prática clínica, é admitido que a concentração de Hb reflecte a massa eritrocitária circulante.

Define-se anemia como um valor de Hb ou hematócrito inferior a 2 desvios-padrão do valor médio para a idade e sexo. Na prática, na primeira semana de vida podem ser utilizadas as seguintes definições:

  • Anemia: valores de Hb inferiores a 13 g/dL e de hematócrito (Hct) inferior a 40%;
  • Microcitose: volume globular médio (VGM) inferior a 95 fL;
  • Hipocromia: concentração de hemoglobina globular média (CHGM) <32% ou <32 g/dL;
  • Macrocitose: VGM >118 fL.

Recorda-se que os eritrócitos do RN têm maior diâmetro (104-118 fL) que noutras idades; existe, pois, macrocitose (fisiológica ou normal para este período específico). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Valores hematológicos (média) no RN de termo.

Abreviaturas: D – dia de vida; Htc – hematócrito; VGM – volume globular médio; HGM – hemoglobina globular média; CHGM – concentração de hemoglobina globular média.
 Sangue do cordãoD1D3D7D14
Htc (%)5358555452
Eritrócitos (106/mL) 5,25,85,65,25,1
Hemoglobina (g/dL) 16,818,417,817,016,8
VGM (fl) 108108999896
HGM (pg) 3435333332
CHGM (% ou g/dL) 31,732,533,033,033,0

A percentagem de reticulócitos no recém-nascido de termo varia entre 3-7% ao nascer, 1-3% em D4, sendo <1% em D7. No pré-termo, estes valores são mais elevados (6-7%) e permanecem elevados durante mais tempo.

A anemia da prematuridade ocorre em RN pré-termo de baixo peso, estando associada a valores de Hb <7-10 g/dL. As suas manifestações clínicas incluem: palidez progressiva, escassa progressão ponderal, hipoactividade, taquipneia/ apneia/ aumento da necessidade de suporte ventilatório, taquicárdia/ aumento da frequência cardíaca basal, e dificuldade alimentar.

A etiopatogénese inclui vários factores associados, destacando-se: perdas sanguíneas repetidas por flebotomia, vida média eritrocitária encurtada, crescimento rápido com expansão concomitante da volémia, o que constitui factor de diluição dos elementos figurados (neste caso eritrócitos) contabilizados, e deplecção das reservas de ferro ao duplicar o peso, o que acontece em idade pós-natal mais precoce do que no RN de termo.

Para além destes factores, destacam-se ainda: inadequado suprimento de proteínas, ferro e vitamina E, níveis baixos de eritropoietina por produção inadequada (resposta eritropoiética hepática menos sensível à anemia e hipóxia tecidual, recordando-se que a produção renal de eritropoietina somente se verifica a partir da idade pós-menstrual de 42-43 semanas), níveis baixos de factores reguladores da produção de eritropoietina tais como interleucina-3, de factor de crescimento dos granulócitos, etc..

Etiopatogénese e manifestações clínicas

A anemia neonatal pode ser explicada pelos seguintes mecanismos:

  1. Perda sanguínea;
  2. Destruição eritrocitária aumentada;
  3. Produção eritrocitária diminuída.

Os mesmos são especificados a seguir.

1. Anemia por perda sanguínea

Hemorragia fetal ou placentar
  • A perda de sangue fetal pode ocorrer na sequência de amniocentese, cordocentese traumática, ou rotura do cordão.
  • A passagem de eritrócitos fetais para a circulação materna, ou transfusão feto-materna, ocorre em 75-95% das gestações, na maioria dos casos com passagem de volume de sangue inferior a 1 mL, sem complicações associadas. No entanto, em cerca de 0,3% das gestações, esta transfusão feto-materna é superior a 30 ml e responsável por anemia significativa. Quer se trate de transfusões espontâneas, quer secundárias a amniocentese, a pesquisa de células fetais no sangue materno (prova de Betke-Kleihauer, citometria de fluxo ou cromatografia líquida de alta eficiência – HPLC) é fundamental para o diagnóstico destas situações.
  • As transfusões feto-fetais, nos gémeos monozigóticos/ monocoriónicos resultantes de anastomoses vasculares a nível placentar, resultam em anemia no dador e policitemia no receptor. Deve admitir-se este diagnóstico quando a diferença de Hb nos dois gémeos for superior a 2,5-5 g/dL. Geralmente verifica-se oligoâmnios no dador e poli-hidrâmnios no receptor.
  • As hemorragias de causa placentar ocorrem nas situações de placenta prévia, abruptio placentae, descolamento placentar e insersões velamentosas do cordão.
Hemorragias pós-parto
  • As hemorragias internas (intracranianas, subdurais, hematoma do fígado, baço, retroperitoneal, cefalo-hematoma gigante) podem ser assintomáticas nas primeiras horas de vida e são geralmente associadas a parto traumático.
  • As hemorragias do cordão são geralmente secundárias a lesões, anomalias congénitas ou diátese hemorrágica.
  • As hemorragias de causa iatrogénica, secundárias a flebotomias frequentes para estudos analíticos, têm particular relevância e frequência elevada no RN pré-termo submetido a terapia intensiva, podendo a espoliação efectuada atingir 5 a 10% da volémia.

2. Anemia por destruição eritrocitária aumentada

Anemia hemolítica imune

A passagem transplacentar de anticorpos maternos contra antigénios existentes nos glóbulos vermelhos fetais constitui a causa mais frequente de hemólise neonatal.

  1. Anemia aloimune (isoimunização Rh, AB0 e grupos minor). O espectro clínico varia da anemia ligeira com hiperbilirrubinémia, a anemia grave com hidropisia fetal. A profilaxia materna com imunoglobulina anti-D contribuiu para a diminuição drástica da isoimunização Rh.
    A isoimunização AB0 é, por isso, hoje em dia mais frequente cursando geralmente com quadros ligeiros, isto é, hiperbilirrubinémia moderada e anemia ligeira a moderada, sendo rara a hepatoesplenomegália.
    A isoimunização por incompatibilidade dos grupos minor (Cc, Ee, Kell, Duffy, Kidd, MNSs) é rara.
  1. Anemia autoimune. Trata-se de forma rara, secundária a doenças autoimunes maternas, como o lúpus eritematoso sistémico. A hemólise é secundária à passagem transplacentar de anticorpos maternos, com manifestações menos graves que as aloimunes.
    A normalização dos valores eritrocitários ocorre, em geral, até às 2-3 semanas de vida.
  1. Anemia hemolítica induzida por drogas. É rara no recém-nascido apesar de os eritrócitos do recém-nascido serem particularmente sensíveis aos efeitos tóxicos das drogas oxidantes. As penicilinas, as cefalosporinas e a alfa-metildopa, podem estar implicadas neste processo.
Anemia hemolítica não imune
  1. Infecção. Todos os agentes microbianos do grupo TORCHS, em particular o CMV e o Coxsackie B, assim como microrganismos bacterianos, com destaque para a Escherichia coli, podem ser causa de hemólise. Em qualquer circunstância, palidez associada a mau estado geral, perfusão tecidual diminuída e acidose, obrigam a admitir a hipótese de sépsis. Geralmente coexiste trombocitopénia, hepatosplenomegália e aumento da bilirrubina directa e indirecta.
  2. Defeitos da membrana eritrocitária. No período neonatal a mais frequente é a esferocitose hereditária, uma condição em que a fragilidade osmótica do eritrócito está aumentada. Cursa com anemia hemolítica de grau variável, esferócitos no esfregaço do sangue periférico e hiperbilirrubinémia, existindo frequentemente história familiar (transmissão autossómica dominante). Contudo, uma história familiar negativa não exclui o diagnóstico, pois as mutações de novo são frequentes. Estudos familiares confirmam o diagnóstico, embora só em 70% dos casos sejam positivos.
    A eliptocitose hereditária, autossómica dominante, é muito mais rara. Manifesta-se com hiperbilirrubinémia, anemia e eritrócitos deformados e fragmentados em circulação.

3. Défices enzimáticos

O mais frequente é o défice da glucose 6 fosfato desidrogenase (G-6PD). É uma doença genética recessiva ligada ao cromossoma X. Esta enzima intervém no processo enzimático que protege o eritrócito da oxidação. O diagnóstico deve suspeitar-se no recém-nascido com hiperbilirrubinémia inexplicável, teste de Coombs directo negativo, corpos de Heinz e picnócitos no esfregaço sanguíneo. O estudo familiar e a determinação da actividade enzimática 2-3 meses após o episódio de hemólise confirmam o diagnóstico. A hemólise por défice da piruvato-quinase é mais rara, mas pode ser responsável por anemia hemolítica grave na 1ª semana de vida.

4. Hemoglobinopatias

Ao nascer cerca de 80% da hemoglobina em circulação corresponde a Hb F, constituída por duas cadeias alfa e duas cadeias gama (α2 g2). O desvio da síntese para a Hb A tipo adulto (α2 b2) tem início às 32 semanas de idade gestacional e irá prolongar-se pelos primeiros 2-3 meses de vida. As hemoglobinopatias secundárias a alterações nas cadeias b, (drepanocitose e btalassémias), são silenciosas no período neonatal em que predomina a Hb F.

Nas αtalassémias o feto não consegue produzir Hb F por défice na síntese das cadeias α. Uma das consequências pode ser a formação de Hb Bart que, impedindo a libertação de O2 para os tecidos (desvio da curva de dissociação da HbO2 para a esquerda), leva a hidropisia com morte fetal na grande maioria dos casos.

Anemias por produção eritrocitária diminuída

São secundárias a hipoplasia ou aplasia medular de causa congénita, infecciosa (Parvovírus B19), ou a défices nutricionais (vitamina E). Caracterizam-se por diminuição de reticulócitos e ausência de icterícia.

Anemia congénita hipoplásica de Blackfan-Diamond

Trata-se duma situação rara, estando somente atingida a série vermelha. A série branca é normal, assim como as plaquetas. O grau de anemia é variável e em 1/3 das situações verifica-se a existência de anomalias associadas (microcefalia, fenda palatina, prega da nuca, má inserção dos polegares e anomalias renais). Em cerca de 15 a 20% dos casos há antecedentes familiares.

Disgenésia reticular e leucemia congénita

São situações extremamente raras.

Infecção fetal por Parvovírus B19

Esta infecção pode ser assintomática. É responsável por cerca de 18% dos casos de hidropisia fetal de causa não imune. O vírus liga-se ao antigénio P do glóbulo vermelho, com redução significativa da produção de eritrócitos fetais, do que pode resultar anemia grave e/ou morte fetal.

Aspectos semiológicos e diagnóstico diferencial

Em complemento da alínea anterior, importa salientar alguns aspectos da semiologia clínica e laboratorial que poderão ser úteis na perspectiva do diagnóstico diferencial. (Figura 1)

Os dados obtidos pela história familiar (anemia, colelitíase, esplenectomia, icterícia), e história obstétrica (hemorragia vaginal, placenta prévia, abruptio placentae, vasa previa, tipo de parto, parto traumático, rotura do cordão, parto múltiplo), associados ao exame clínico cuidadoso, são imprescindíveis para o diagnóstico etiológico.

Os valores hematológicos devem ser avaliados em função do peso, idade gestacional, idade pós-natal e local da colheita sanguínea, reiterando-se que os mesmos são mais elevados no sangue capilar em relação ao venoso ou arterial; por outro lado, a concentração da Hb imediatamente após uma perda aguda pode ser normal devido à vasoconstrição compensatória; ou seja, a comprovação da descida dos valores em caso de hemorragia só se torna aparente várias horas depois, após a reexpansão plasmática.

Uma anemia grave verificada no pós-parto imediato ou nas primeiras 24 horas de vida, até prova em contrário, deve ser considerada secundária a espoliação sanguínea ou a isoimunização grave.

O diagnóstico de perda aguda de sangue deve ser equacionado imediatamente no recém-nascido pálido, em choque hipovolémico, com má perfusão, taquipneia, pulsos fracos e hipotensão, o que obriga a urgente e rápida reposição da volémia.

Na perda crónica, o único sinal é a palidez da pele e mucosas; através dos exames laboratoriais são comprovados parâmetros de anemia normocrómica normocítica ligeira com valores de Hb entre 9-12 g/dL ou anemia microcítica hipocrómica com valores de Hb entre 5-7 g/dL. Uma das formas de perda crónica é a transfusão feto-placentar crónica ou feto-fetal.

Importa salientar que os valores que definem “microcitose no RN” são diferentes dos considerados para a criança maior, tendo em conta a “macrocitose fisiológica” do RN.

FIGURA 1. Diagnóstico etiológico da anemia neonatal.

Para diagnóstico da transfusão feto-materna pode utilizar-se a prova de Betke-Kleihauer, baseada no princípio de que a Hb fetal é álcool e ácido resistente – a hemoglobina A é desnaturada e os eritrócitos fetais destacam-se no esfregaço de sangue materno, podendo ser contabilizados; patologia materna associada a um aumento dos níveis de Hb F pode dar resultados falsos positivos. Mais recentemente alguns laboratórios utilizam para este fim a citometria de fluxo.

Com efeito, os anticorpos monoclonais para a Hb fetal permitem quantificar a transfusão feto-materna e até distinguir os eritrócitos fetais de eritrócitos maternos com níveis aumentados de Hb F. A cromatografia líquida de alta precisão (HPLC) é também utilizada por alguns laboratórios com o mesmo propósito.

Após as primeiras 24 horas de vida as principais causas são as hemorragias internas e a hemólise.

Nas primeiras semanas de vida podem estar implicadas as hemoglobinopatias, as aplasias e a chamada anemia fisiológica ou da prematuridade.

Exames complementares e diagnóstico etiológico

A avaliação inicial de uma anemia inclui essencialmente a realização dos seguintes exames:

  • Hemograma completo
  • Reticulócitos
  • Esfregaço sangue periférico (corpos Heinz, eliptócitos, picnócitos)
  • Prova de Coombs directa
  • Bilirrubinémia conjugada e não conjugada
  • Grupo sanguíneo do recém-nascido e da mãe

Como segunda prioridade estão indicados os seguintes exames:

  • Estudo serológico no âmbito do grupo TORCHS
  • Hemocultura
  • Ferritina
  • Doseamento da G6PD e da piruvato-cinase
  • Pesquisa de hemoglobina fetal no sangue materno – prova de Betke–Kleihauer, citometria de fluxo ou HPLC
  • Estudos imunológicos e da coagulação
  • Mielograma

O fluxograma incluído na Figura 1 contribui para o apuramento do diagnóstico etiológico.

Prevenção e tratamento

A prevenção e o tratamento da anemia neonatal são determinados pela etiopatogénese subjacente, salientando-se que se aplicam neste grupo etário, com algumas especificidades, as normas de actuação referidas a propósito das síndromas anémicas noutros grupos etários.

Neste capítulo é dada ênfase a medidas gerais a aplicar nas situações de prevenção e/ou tratamento da anemia da prematuridade, particularmente nos RN de muito baixo peso:

  1. Laqueação tardia do cordão umbilical (>30 segundos) em posição inferior à placenta (ou não, segundo alguns autores) ou, em alternativa, expressão manual do cordão). São excepções a esta regra: casos de isoimunização ou de necessidade de reanimação;
  2. Redução da espoliação sanguínea (limitação, planificação e uso de micrométodos nas colheitas para estudos analíticos);
  3. Normas estritas de transfusão de sangue (Quadro 2);
  4. Administração de ferro
    • Início profiláctico de ferro elementar, a partir da terceira semana de vida, na dose de 2-3 mg/kg/dia até 1 ano de idade;
    • Administração simultânea de vitamina E (presente no suplementos vitamínicos actualmente recomendados para os RN pré-termo);
    • Ferro elementar na dose de 4-6 mg/kg/dia nos RN pré-termo com anemia ferropénica, até 30 dias após a data de normalização do hematócrito e hemoglobina;
    • Vigilância clínica e laboratorial criteriosas, com contagem de eritrócitos, reticulócitos e determinação da ferritina.
  5. Vigilância clínica e laboratorial após a alta e durante 2-3 meses nas situações de anemia hemolítica imune
    • Como nota final refere-se que a administração de eritropoietina não está recomendada. Os estudos científicos demonstram que a sua utilização, apesar de poder reduzir o número de transfusões, não leva a uma redução no número de dadores a que o RN é exposto. Por outro lado, tal procedimento associa-se a maior risco de retinopatia da prematuridade.

QUADRO 2 – Critérios transfusionais.

Adaptado de Ohls R. Red blood cell transfusions in the newborn. Uptodate. https://wolterskluver.com  (2013)
Anemia da Prematuridade. In Consenso Clínico 2013, Secção de Neonatologia da SPP . CE <> Concentrado Eritrocitário

Hemorragia aguda >20%
Hemorragia aguda >10% com diminuição de distribuição de O2 aos tecidos – acidose persistente após ressuscitação de volume
Necessidade imediata de aumento de distribuição de O2 aos tecidos, não conseguida com aumento do suporte respiratório
Relação:
Hb(em g/dL) /Htc (em %)
Ventilação Mecânica (VM)/ Parâmetros váriosCE
10/30VM moderada/ significativa
Convencional: MAP >8 cmH2O e FiO2>0.4
VAF: MAP >14 cmH2O e FiO2>0.4
10-20 mL/kg
2-4 h
8/25VM mínima
Convencional: MAP ≤8 cmH2O e FiO2≤0.4
VAF: MAP ≤14 cmH2O e FiO2≤0.4
7/20O2 suplementar na ausência de VM em presença de 1 ou mais dos seguintes parâmetros:
FC ≥180/min ou FR ≥60 bpm ≥24h
Duplicação das necessidades de O2 nas 48h anteriores
Lactato sérico ≥2.5 mEq/L ou acidose metabólica aguda (pH <7.20)
Aumento ponderal <10 g/kg/dia nos 4 dias anteriores, sob ≥120 kcal/kg/dia
Cirurgia em 72h

6/18

 

Assintomático
Nº absoluto de reticulócitos <100.000/ uL (<2%)

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DISPLASIA BRONCOPULMONAR

Introdução

A displasia broncopulmonar (DBP), também conhecida por doença pulmonar crónica (DPC) da prematuridade, é uma síndroma que se desenvolve na maioria dos recém-nascidos (~60%) com prematuridade extrema (22-27 semanas) em que se verifica necessidade prolongada de suporte respiratório e oxigenoterapia suplementar; de referir que tal proporção aumenta: 100% entre 22 e 24 semanas.

Trata-se, pois, da doença pulmonar crónica mais frequente na primeira infância, multifactorial, resultando da interacção complexa entre o pulmão imaturo em desenvolvimento e a acção de múltiplos factores perinatais e pós-natais.

A epidemiologia e a fisiopatologia da displasia broncopulmonar (DBP) evoluíram muito desde a sua primeira descrição por Northway em 1967, numa época em que não eram ainda utilizados corticóides pré-natais nem surfactante exógeno, assim como assistência respiratória menos invasiva, aplicando pressão positiva contínua (CPAPcontinuous positive airway pressure).

Assim, em tal época (na era pré-surfactante), a DBP foi definida tendo como base os seguintes critérios:

  • Dependência de oxigénio em RN e lactentes com antecedentes de prematuridade e de doença da membrana hialina grave;
  • Ventilação prévia por longos períodos com concentrações elevadas de oxigénio;
  • Presença de alterações radiológicas/ pulmonares do tórax (padrão reticular grosseiro, opacidades alternando com áreas de arejamento irregular, etc.), e
  • Presença de alterações histopatológicas (de cujo padrão de “displasia” resultou o nome dado à doença).

Tal patologia é actualmente pouco frequente em crianças nascidas com peso >1.500 gramas e idade gestacional >32 semanas.

Na era pré-surfactante, as alterações histológicas mais frequentemente encontradas na via aérea eram hipertrofia da musculatura lisa, metaplasia epitelial e, no parênquima, zonas de enfisema alternando com zonas de fibrose. A este padrão fenotípico de doença é dado muitas vezes o nome de “velha ou clássica” DBP.

Na actualidade, a que corresponde a era moderna de cuidados neonatais, o padrão histológico mais frequentemente encontrado é o de doença homogénea marcada por reduzido número de alvéolos e capilares, mínimas áreas de hiperinsuflação e colapso focal, menos áreas de enfisema e fibrose, ao qual corresponde a chamada “nova” DBP, característica de RN com estádio de desenvolvimento pulmonar mais imaturo, com <1.000 gramas e <28 semanas de gestação.

Critérios de diagnóstico de DBP actuais

Antecedentes históricos

Bancalari em 1979 propôs a definição de DBP considerando como critérios: dificuldade respiratória com necessidade de oxigenoterapia aos 28 dias de vida, associada a alterações radiológicas compatíveis.

Verificou-se, entretanto, que um contingente significativo de RN, sobretudo com peso <1.000 granas e imaturidade extrema, estava dependente de oxigénio aos 28 dias de vida não se verificando antecedentes de patologia pulmonar significativa.

Em 1988 Shennan modificou os critérios propostos por Bancalari introduzindo o termo de DPC do pré-termo assim definida: dificuldade respiratória e dependência de oxigénio às 36 semanas de idade gestacional, associadas a alterações radiológicas compatíveis com a doença.

Concluindo-se que tanto a definição de Bancalari como a de Shennan não permitiam determinar a gravidade da doença pulmonar, chegou-se à definição actual, sintetizada a seguir.

Actualmente, de acordo com os peritos dos National Institutes of Health and Human Development (NICHD) e da Neonatal Research Network (NRN) dos EUA, foram estabelecidos os seguintes critérios sobre terminologia a aplicar nos casos de doença pulmonar crónica com início no período neonatal, considerando dois grupos de RN com as seguintes idades gestacionais: respectivamente, <32 semanas e ≥32 semanas:

I- RN com <32 semanas de idade gestacional: avaliação às 36 semanas de idade pós-menstrual (IPM) ou na data da alta (considerando a que ocorrer primeiro) nos casos de RN necessitando de FIO2 >21% durante, pelo menos, 28 dias:

  • DBP ligeira <> Respirando ar às 36 semanas de idade pós-menstrual ou na data da alta (considerando a que ocorrer primeiro);
  • DBP moderada <> Necessidade de FiO2 <30% às 36 semanas de IPM, ou na data da alta;
  • DBP grave <> Necessidade de FIO2 >30%, com ou sem ventilação IPPV ou CPAP às 36 semanas de IPM, ou na data da alta.

 II- RN com 32 semanas de idade gestacional: avaliação com idade >28 dias, e <56 dias de idade pós-natal ou na data da alta, idem, necessitando de Fi O2 >21% durante pelo menos 28 dias:

  • DBP ligeira <> Respirando ar pelos 56 dias de idade pós-natal ou na data da alta;
  • DBP moderada <> Necessidade de FiO2 <30% até aos 56 dias de idade pós-natal ou na data da alta;
  • DBP grave <> Necessidade de FiO2 >30% com ou sem ventilação IPPV ou CPAP aos 56 dias de idade pós-natal, ou na data da alta.

O grupo II inclui recém-nascidos pré-termo e de termo com antecedentes de patologia cardiopulmonar diversa como síndroma de aspiração meconial, pneumonia, e cardiopatias congénitas requerendo suporte ventilatório prolongado.

Depreende-se que, de acordo com a definição adoptada na actualidade, são considerados como critérios sine qua non a oxigenoterapia e a idade gestacional, sem considerar eventuais alterações radiológicas pulmonares

Aspectos epidemiológicos

De acordo com estudos epidemiológicos, nos EUA calcula-se uma incidência anual de 10.000 a 15.000 (novos casos) de DBP.

Como regra geral pode afirmar-se que a incidência de DBP é tanto mais elevada quanto menores a idade gestacional e o peso de nascimento, sendo que é pouco frequente em RN com idade gestacional >34 semanas.

Com a prática de indução da maturação pulmonar com corticóides pré-natais, as estratégias de ventilação mecânica, cada vez menos agressivas, e o desenvolvimento da terapêutica substitutiva com surfactante exógeno, a incidência da forma clássica de DBP tem diminuído consideravelmente, em paralelo com a modificação de critérios de definição ao longo do tempo, o que tem gerado, por vezes, alguma confusão na literatura científica.

Estudos epidemiológicos do grupo de Bancalari em RN imaturos (<1.000 gramas) evidenciaram, na era pré-surfactante, a proporção de cerca de 46%; e na era pós-surfactante, cerca de 39%.

Num estudo do grupo de Hack (década de 90 passada – englobando sete UCIN) foram obtidos os seguintes resultados quanto a dependência de oxigénio aos 28 dias de vida; grupo ponderal 1.001-1.500 gramas: 13%; no de 751-1.000 gramas: 42%; e no de 501-750 gramas: 9%.

Noutro estudo de Darlow & Horwood (1992), considerando a dependência de oxigénio pelas 36 semanas de idade pós-concepcional, obteve-se a frequência de 23% em RN com idade gestacional <32 semanas e peso oscilando entre 500-1.499 gramas.

Em Portugal, de acordo com os dados publicados pelo Grupo do Registo Nacional do Recém-nascido de Muito Baixo Peso (RNMBP)/ Estudo Multicêntrico 1996-2000 (5 anos), no contingente de RNMBP com <34 semanas de gestação e peso igual ou >500 gramas, sobreviventes às 36 semanas de idade pós-concepcional e dependentes de O2 nesta referida idade, a proporção média de DPC no quinquénio foi 20,8% (643/3094) especificando-se os limites: 12,5-26,3%.

Etiopatogénese

Na era pré-surfactante, a DBP (clássica ou “velha”) era considerada doença pulmonar crónica, fibroproliferativa, relacionada predominantemente com lesões provocadas por ventilação mecânica e oxigenoterapia prolongadas. Identificava-se o papel importante do colapso alveolar (atelectrauma) como consequência do défice de surfactante, juntamente com a hiperdistensão pulmonar pela ventilação artificial (volutrauma) como indutores de inflamação e lesão pulmonares. Acrescentavam-se as lesões por toxicidade do oxigénio suplementar produzindo radicais livres não susceptíveis de metabolização pela imaturidade antioxidante do pulmão. Como foi referido antes, a lesão pulmonar produzida evidenciava sobretudo hipertrofia do músculo liso e áreas de fibrose alternando com áreas enfisematosas.

Na era actual, em que o limite de viabilidade diminuiu consideravelmente (DBP nova), considera-se que a etiopatogénese da DBP é predominantemente multifactorial como foi referido antes, salientando-se que a lesão pulmonar é acompanhada de inflamação.

Entre os múltiplos factores perinatais e neonatais, considerados factores de risco, sobressaem infecção, hiperóxia, volutrauma, barotrauma e atelectrauma, os quais contribuem para o desenvolvimento da DBP através de mecanismo de lesão inflamatória pulmonar e apoptose celular. Segundo alguns investigadores, trata-se dum processo de regulação aberrante da inflamação pulmonar.

Tais factores, originando anomalias no processo de renovação da matriz extracelular e da remodelação estrutural, contribuem por sua vez para deposição desordenada da elastina, fibrose da parede sacular e alteração no desenvolvimento da formação dos alvéolos, o que corresponde a patologia fibroproliferativa.

Tendo em consideração que pelas 24 semanas de gestação é atingida a fase canalicular do desenvolvimento, a qual progride até ser atingida a fase sacular pelas 30 semanas, na nova DBP, quanto à característica das lesões, verifica-se, fundamentalmente: ruptura e interrupção do desenvolvimento das estruturas em geral, reparação tecidual anómala e alvéolos incompletamente desenvolvidos com septação insuficiente ou inexistentes, o que compromete a funcionalidade da barreira alveolocapilar.

Existem, pois, características estruturais que tornam o pulmão imaturo mais susceptível à lesão aguda provocada pela intervenção terapêutica, designadamente ventilatória.

Na DBP, considerada globalmente, importa uma referência aos seguintes factos biológicos:

  • Zonas de diferente distensibilidade ou compliance, do que resulta correspondente heterogeneidade de dimensões dos alvéolos, ou seja, a par de zonas do parênquima evidenciando colapso alveolar, existem outras hiperventiladas em grau variável;
  • Passagem de fluidos e proteínas para o espaço alveolar, o que inactiva o surfactante pulmonar, comprometendo ainda mais a compliance pulmonar;
  • O oxigénio produz radicais livres que não são metabolizados no RN de muito baixo peso imaturo, o que se explica pela imaturidade do sistema imune (ver adiante).

Notas importantes:

    • ambos os padrões patológicos de velha e nova DBP podem desenvolver-se em RN com prematuridade extrema requerendo entubação traqueal prolongada e ventilação mecânica;
    • segundo alguns autores, a nova e a velha DBP representam um continuum de gravidade da mesma doença e, possivelmente, não duas entidades distintas.

Factores de risco

Reiterando que a DBP resulta do efeito combinado duma multiplicidade de factores perinatais e pós-natais com impacte no pulmão imaturo em desenvolvimento, descrevem-se a seguir alguns dos referidos factores:

Prematuridade

A prematuridade constitui o mais importante factor de risco de DBP. Em valor numérico, são apontadas as seguintes proporções: <5% de crianças nascidas a partir das 30 semanas, em comparação com >50% com 24-25 semanas ou menos.

Importa salientar que a verificação de restrição do crescimento fetal aumenta o risco.

Quanto ao sexo, a realidade é a seguinte: para igual peso e idade gestacional, a proporção de RN pré-termo do sexo masculino é duas vezes superior à do sexo feminino.

Inflamação e infecção

A inflamação e o oxigénio, constituem factores major na etiopatogénese da DBP; ou seja, na maioria dos casos, os factores implicados na doença estão interligados.

Com efeito, a resposta inflamatória pode ser desencadeada por factores não infecciosos (a que já se aludiu atrás), e a factores infecciosos pré-natais, ou pós-natais, actuando estes últimos no pós-parto imediato.

Infecção pós-natal – A sépsis neonatal está associada a risco elevado de DBP no RN pré-termo. O risco de DBP é significativamente superior se coexistirem sépsis e canal arterial hemodinamicamente significativo.

Corioamnionite – A infecção pré-natal tem sido apontada como factor de risco de desenvolvimento de DBP. Esta hipótese baseia-se na verificação de níveis elevados de citocinas inflamatórias no sangue do cordão fetal, no líquido amniótico e ulterior desenvolvimento de DBP.

A resposta inflamatória traduz-se:

  1. Pelo afluxo ou recrutamento de neutrófilos, macrófagos, leucotrienos, factor de activação das plaquetas (PAF), IL-6, IL-8, factor de necrose tumoral (TNF), etc. às vias aéreas e tecido intersticial, sendo que tal recrutamento se verifica por acção do quimiotactismo positivo de citocinas;
  2. Lesão oxidativa;
  3. Aumento da permeabilidade da membrana alveolocapilar;
  4. Desequilíbrio entre o sistema protease e antiprotease. Em RN pré-termo com DBP demonstrou-se a e alevação sérica de quimiocinas Th2.

Recorda-se que as proteases são enzimas sintetizadas pelos neutrófilos; têm acção proteolítica e, em condições de normalidade, são inactivadas pelas antiproteases. Sendo as antiproteases degradadas ou bloqueadas pelos radicais livres de oxigénio, passam a predominar as proteases (com papel relevante a elastase) cuja concentração aumenta; desfaz-se assim o equilíbrio existente em condições normais entre protease e antiprotease. As consequências são a destruição da matriz proteica, colagénio, elastina, etc..

Em particular, a infecção por Ureaplasma urealyticum tem sido referida como causa de resposta inflamatória anormal com consequente alteração do desenvolvimento pulmonar e ulterior DBP. No entanto, são necessários mais estudos comprovando que a erradicação da colonização respiratória por Ureaplasma adquirida in utero reduz a incidência de DBP.

Ventilação mecânica

Sendo a expansibilidade torácica inversamente proporcional à idade gestacional, o risco de volutrauma é tanto maior quanto menor a idade gestacional, chamando-se a atenção para:

  • A possibilidade de pressões inspiratórias, consideradas moderadas ou não excessivas, poderem originar volumes correntes excessivos e hipocapnia;
  • A possibilidade de mais acentuado volutrauma quando alvéolos colapsados são hiperdistendidos por ventilação com pressão positiva intermitente; e menos acentuado volutrauma nos casos em que se mantém distensão contínua moderada dos alvéolos ao ser aplicada uma pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP).

Uma vez que na maioria dos RN pré-termo em que surge DBP há antecedentes de ventilação mecânica, e havendo associação frequente entre enfisema intersticial e DBP, é provável que surjam diversos tipos de lesão traumática ao nível do parênquima pulmonar em relação, quer com as alterações anatomofisiológicas das vias terminais e parenquimatosas, quer com as características do ventilador e as estratégias ventilatórias adoptadas.

Assim, poderá surgir volutrauma e barotrauma, respectivamente:

  • Volutrauma por volume corrente e pressão inspiratória elevados provocando hiperdistensão alveolar e;
  • Barotrauma (colapso alveolar) devido a insuficiente pressão positiva no final da expiração (PEEP) ou por défice de “recrutamento” alveolar.

Admite-se também o possível papel do tubo endotraqueal (TET) que, por um lado, pode lesar a mucosa e, por outro, levar a infecção relacionada com a dificuldade na drenagem de secreções.

Estudos experimentais em animais pré-termo concluíram que existe associação entre pressão inspiratória elevada, volume corrente elevado e défice de surfactante.

Demonstrou-se também que volume corrente excessivo pode lesar o pulmão e iniciar a cascata inflamatória.

Oxigénio

Admite-se que a toxicidade do O2 resulta do aumento de produção de radicais livres de oxigénio citotóxicos por défice de defesas antioxidantes ao nível das células endoteliais (dos capilares e alveolares).

Recordam-se, a propósito, os principais sistemas antioxidantes: dismutase do superóxido, peroxidase da glutationa, catalase, redutase, sintetase (enzimáticos), vitaminas C, A, e E, determinados oligoelementos como o selénio, cobre, ferro, zinco, etc. (não enzimáticos).

Acontece que a actividade dos sistemas enzimáticos antioxidantes é tanto mais deficitária quanto menor a idade gestacional, o que confere, em tal circunstância, maior vulnerabilidade das células à acção dos radicais livres de oxigénio (radical superóxido, peróxido de hidrogénio, hidroxilo, etc.), os quais, reagindo com constituintes celulares proteicos (ADN) e lipídicos (designadamente, a membrana lipídica) provocam destruição celular e lesões estruturais por alteração do mecanismo de reparação celular.

Outro efeito dos radicais livres de oxigénio é o recrutamento celular (sobretudo de leucócitos polimorfonucleares), o qual estimula a activação do ácido araquidónico, a inactivação da alfa-1-antitripsina (esta última antioxidante), e o processo inflamatório em cascata. Embora todas as células do organismo possam ser afectadas pelo efeito dos radicais livres de oxigénio face a concentrações elevadas de oxigénio, o pulmão é mais vulnerável tendo em conta, não propriamente a sensibilidade inerente ao tecido pulmonar, mas a maior superfície de exposição dos pneumócitos I e II, em contacto directo com o gás inspirado.

Canal arterial funcionante

Diversos estudos demonstraram que nos RN com doença respiratória por imaturidade pulmonar, submetidos a fluidoterapia com suprimento de volume excessivo, e não evidenciando fase diurética precoce nas primeiras 48-72 horas, a incidência de DBP é mais elevada.

Admite-se que, em tal circunstância, o suprimento excessivo de fluidos aumenta a incidência do quadro clínico decorrente de manutenção da permeabilidade do canal arterial (PDA ou persistência do ductus arteriosus) determinando:

  1. Aumento do débito sanguíneo pulmonar e do líquido intersticial (edema pulmonar) com aumento da resistência da via aérea ao fluxo de gases e estímulo da cascata inflamatória;
  2. Diminuição da compliance pulmonar, com tendência ao colapso alveolar.

Gera-se, assim, um círculo vicioso do qual resulta a necessidade de assistência ventilatória com pressão inspiratória mais elevada e a necessidade de FiO2 também mais elevada.

Contudo, com a aplicação de diferentes estratégias para prevenir ou tratar situações de canal arterial hemodinamicamente significativo, não se demonstrou haver consequente redução na incidência da DBP. Numa revisão da Cochrane (Bell & Acarregui, 2008) demonstrou-se que, embora a incidência de PDA diminua com a restrição de fluidos, a incidência de DBP não se altera. Também se provou que a utilização de diuréticos na DBP se associa a melhoria a curto-prazo na função pulmonar, e a diminuição das necessidades de oxigénio, embora sem qualquer efeito significativo na incidência da doença.

Nutrição

Os nutrientes têm papel importante no crescimento e desenvolvimento celulares, sendo de salientar que a desnutrição (carência de nutrientes) torna as células mais vulneráveis à lesão induzida pela acção dos radicais livres de oxigénio.

Sabendo-se que a transferência dos nutrientes da mãe para o feto se verifica sobretudo no terceiro trimestre, torna-se fácil compreender que a carência nutricional inerente à prematuridade predispõe a tal lesão, nomeadamente ao nível do pulmão (fundamentalmente, menor síntese de ADN). Havendo em tais RN igualmente carência em ácidos gordos polinsaturados, com acção antioxidante, compreende-se também o acréscimo de predisposição para tal tipo de lesões.

A carência em vitamina A influencia, também negativamente, o crescimento e desenvolvimento das células epiteliais, endoteliais e surfactante pulmonares. Em diversos estudos comprovou-se que o nível sérico de vitamina A está diminuído nos RN com DBP.

Predisposição genética

Com o desenvolvimento da biologia molecular, descreveu-se um estado de predisposição genética a anormal hiperreactividade brônquica, sendo que existe associação entre DBP e antecedentes familiares de asma.

Estudos com gémeos prematuros monozigóticos sugerem que em 53-79% dos casos existe uma predisposição genética para o desenvolvimento de DBP. Estudos prévios identificaram múltiplos genes com papel potencial na DBP, como por exemplo genes associados à síntese de proteínas do surfactante, à imunidade inata, a antioxidantes e a proteínas envolvidas na remodelação vascular e pulmonar.

Anomalias do desenvolvimento vascular pulmonar e pré-eclâmpsia

No contexto de DBP, é importante assinalar as anomalias da circulação pulmonar que se verificam:

  • Resistência vascular pulmonar (RVP) aumentada;
  • Vasorreactividade anormal.

Tais anomalias têm implicações na terapêutica (ver adiante). Em muitos casos, as mesmas podem ser suficientemente graves para conduzir a quadros de hipertensão pulmonar e cor pulmonale. Em estudos recentes verificou-se uma incidência de hipertensão pulmonar em cerca de 25% dos casos, atingindo 50% nas situações de DBP grave. O desenvolvimento de hipertensão pulmonar agrava significativamente o prognóstico, aumentando o risco de morte (48% de mortalidade 2 anos após o diagnóstico de hipertensão pulmonar).

Actualmente, a pré-eclâmpsia é considerada um factor de risco de DBP, verificando-se que naquela existe fenómeno de anti-angiogénese. Este fenómeno, com impacte no desenvolvimento vascular pulmonar e no desenvolvimento alveolar, é explicado pelo défice de determinados factores de crescimento. Com efeito, no sangue do cordão de RN de mães com pré-eclâmpsia desenvolvendo ulteriormente DBP, foram demonstrados valores baixos de VEGF (vascular endothelial growth factor) e de PlGF (placental growth factor), devido a neutralização por uma tirosinocinase (sFlt-1), a qual é produzida em excesso pelas vilosidades trofoblásticas em tal contexto (pré- eclâmpsia).

Manifestações clínicas e exames complementares

O desenvolvimento da terapia intensiva, incluindo a terapêutica substitutiva com surfactante pulmonar exógeno, tem permitido ao longo dos anos a sobrevivência de RN de peso cada vez mais baixo e mais imaturos.

Dum modo geral, a DBP surge em RN pré-termo submetidos a ventilação mecânica nos primeiros dias de vida; a dependência do ventilador para além de 1-2 semanas pode conduzir às hipóteses de diagnóstico de: DBP, de PDA, e de infecção.

São consideradas actualmente duas formas clínicas de DBP:

1. DBP clássica ou “velha”

Esta forma corresponde às situações mais graves, em geral anteriores à era da terapêutica com surfactante exógeno: necessidade de maiores concentrações de oxigénio, suporte ventilatório obrigando a pressões inspiratórias mais elevadas durante a primeira semana de vida, e elevada probabilidade de síndromas de ar ectópico e insuficiência respiratória crónica.

Estas características acompanham-se fundamentalmente de inflamação das vias aéreas com metaplasia do epitélio respiratório, hipoplasia alveolar, fibrose da parede sacular, obliteração bronquiolar, e muscularização excessiva das vias aéreas e ramos arteriais pulmonares. (Figura 1)

Ocorre um quadro de SDR mantida com taquipneia, retracções, episódios de cianose, e crises de agitação/ irritabilidade por hipoxémia; existe igualmente aumento muito marcado do trabalho respiratório.

Há sinais de insuficiência ventricular direita e cor pulmonale secundários a hipertensão pulmonar: edema pulmonar, cardiomegália, hepatomegália.

FIGURA 1. Corte histológico do pulmão: caso de óbito com DBP. Sinais de metaplasia do epitélio respiratório; grau discreto de fibrose. (UCIN-HDE)

São frequentes atelectasia recorrente, infecções pulmonares intercorrentes, e broncomalácia com consequente sibilância.

Um dos problemas associados é a dificuldade na alimentação por via oral, o que frequentemente tem repercussões negativas no crescimento.

2. DBP ”nova”

O paradigma desta forma é constituído pelas situações de imaturidade extrema (peso de nascimento <1.000 gramas) com SDR ligeira, e necessidade de suporte ventilatório tendo em conta o surgimento de episódios frequentes de apneia; nestes casos são utilizadas menores concentrações de oxigénio e mais baixas pressões inspiratórias, a dependência de oxigénio é ligeira, e o compromisso da função pulmonar menos acentuado.

Em geral, os problemas associados que determinam manutenção da disfunção respiratória relacionam-se sobretudo com infecções associadas aos cuidados prestados e a alterações hemodinâmicas em relação com a manutenção da permeabilidade do canal arterial.

Tendo em conta que esta forma surge predominantemente em RN com idades gestacionais entre 23 e 28 semanas, o quadro anatomopatológico traduzindo sinais de “agressão” em estádio de desenvolvimento muito mais precoce, é diverso do verificado na outra forma: na nova DBP verifica-se défice de desenvolvimento das vias aéreas devido a imaturidade – défice de alvéolos/ hipoplasia alveolar, sáculos dilatados, e anarquia no desenvolvimento dos capilares. Nesta forma, ao contrário do que acontece na primeira, as lesões de metaplasia e de hiperplasia epiteliais e fibrose são mínimas.

Verifica-se em geral um quadro de SDR ligeira, com possível agravamento por infecção intercorrente ou persistência do canal arterial; em comparação com a “forma clássica”, existe menor dependência do oxigénio, e sinais mais discretos de aumento do trabalho respiratório.

No que respeita ao padrão radiológico torácico descrito inicialmente por Northway, o Quadro 1 resume determinados sinais em diversos estádios, reflectindo a evolução das lesões.

QUADRO 1 – DBP: Classificação Radiológica de Northway.

Estádio I
Sobreponível ao quadro de DMH com “granitado” bilateral e broncograma aéreo (1º-3º dia de vida). 
Estádio II
Opacificação dos campos pulmonares (4º-10º dia de vida). 
Estádio III
Pequenas áreas quísticas alterando com zonas de densidade variável (10º-20º dia de vida).
Estádio IV
Densidades lineares grosseiras, sobretudo nos vértices, alternando com zonas de hipertransparência e de hipotransparência, com distribuição irregular (a partir do 30º dia).

O padrão radiológico (não específico da doença, persistente e afectando ambos os campos pulmonares; nem tão pouco critério sine qua non– ver atrás) pode também ser classificado em ligeiro, moderado e grave:

  1. DBP ligeira – opacidades reticulares de distribuição homogénea traduzindo compromisso intersticial com ou sem sinais de enfisema;
  2. DBP moderada – opacidades reticulares (ou linhas de opacificação) hilífugas associadas a sinais de enfisema;
  3. DBP grave – opacidades mais densas, difusas e heterogéneas traduzindo zonas de fibrose ou de atelectasia; concomitância de zonas de enfisema e de atelectasia; possível cardiomegália correspondente a situação de cor pulmonale. (Figura 2)

Em muitos centros, a TAC torácica utiliza-se muito frequentemente pelo facto de permitir, com grande sensibilidade, a identificação de lesões focais tais como enfisema lobar adquirido e atelectasias localizadas. Se for utilizada com angiografia associada a ecocardiografia e, em geral, a outros exames correntes no âmbito da cardiologia de intervenção, permitirá igualmente identificar situações de hipertensão pulmonar.

No que respeita aos achados do estudo da função pulmonar (que se podem deduzir das alterações descritas a propósito da etiopatogénese), salienta-se:

  • Capacidade residual funcional diminuída;
  • Compliance (ou distensibilidade) diminuída;
  • Resistência aumentada das vias aéreas;
  • Aumento do trabalho respiratório;
  • Hipercapnia secundária à hipoventilação alveolar que, por sua vez, resulta da alteração na relação ventilação-perfusão e do aumento do espaço morto.

FIGURA 2. A, B e C – Imagens radiográficas de DBP tipificando os estádios II, III e IV de Northway: opacificações, pequenas áreas quísticas dispersas, densidades lineares grosseiras e áreas de hipo e hipertransparência. (NIHDE)

Prevenção e tratamento

Aspectos gerais

As estratégias que têm como objectivo prevenir a DBP (prevenção primária) devem incidir sobre a eliminação ou redução de determinados factores etiopatogénicos (com especial ênfase para prematuridade, restrição de crescimento fetal, hipertensão arterial materna, ventilação mecânica, toxicidade do oxigénio, infecção, canal arterial patente e predisposição genética), os quais contribuem para a lesão pulmonar.

Tendo em conta que a imaturidade pulmonar constitui o principal factor predisponente da doença em causa, a prevenção da DBP deve ter o seu início no período pré-natal, passando pela vigilância adequada pré-concepcional e da grávida, a fim de se detectar e tratar possíveis factores de risco para parto pré-termo. Assim, grávidas de risco devem ser enviadas atempadamente a centros de referência e, em caso de ameaça de parto pré-termo, transferidas para hospitais de nível III.

Estando iminente o parto pré-termo, a administração de corticóides pré-natais contribui de modo relevante para a diminuição, quer da incidência e gravidade do problema respiratório do pré-termo (DMH), quer da probabilidade da subsequente evolução para DBP.

O Quadro 2 resume as principais estratégias de prevenção, quer as actualmente exequíveis, quer as que são ainda objecto de investigação.

A propósito da prevenção e tratamento das infecções pré- e pós-natais, cabe referir que cerca de 30 a 40% dos partos pré-termo são provocados por infecção materna. Ainda no âmbito da prevenção primária, importa igualmente considerar o potencial papel de certos fármacos de acordo com estudos realizados, na maioria não conclusivos; a este propósito citam-se a azitromicina e outros macrólidos (activos contra Ureaplasma).

QUADRO 2 – Estratégias para a prevenção da DBP.

Actualmente exequíveis

    • Prevenção do parto pré-termo
    • Administração de corticóides pré-natais
    • CPAP não invasivo no pós-parto imediato
    • Redução ao mínimo das diversas formas de trauma e da duração da ventilação
    • Administração de surfactante exógeno
    • Redução ao mínimo da toxicidade do oxigénio
    • Administração de corticóides pós-natais
    • Prevenção e tratamento agressivo das infecções pré- e pós-natais
    • Evicção da fluidoterapia excessiva
    • Encerramento do canal arterial
    • Intervenção nutricional

Em investigação

    • Administração exógena de enzimas antioxidantes (por ex. SOD)
    • Indução do sistema citocrómio P450
    • Terapia génica
    • Manipulação genética
    • Células estaminais angiogénicas
    • Inibidores das citocinas pró-inflamatórias (pentoxifilina, inibidores de NLRP3, etc.)

Ventilação mecânica

Quanto às estratégias de assistência respiratória preventiva, os estudos realizados têm advogado globalmente:

  • A vantagem de se utilizar precocemente, desde a sala de partos, CPAP nasal (nCPAP) em RNMBP, evitando a entubação traqueal e a ventilação mecânica; e
  • Quando indicado, a utilização de surfactante exógeno o mais precoce possível, idealmente nas 2 primeiras horas de vida.

Tornando-se indispensável a ventilação mecânica, recomenda-se:

  • Utilizar volumes correntes baixos a fim de minorar a lesão pulmonar mecânica, tendo como alvo Pa CO2 entre 55 e 65 mmHg, desde que o pH se mantenha em níveis normais (7,3-7,4). No entanto, a ventilação mecânica prolongada no RNMBP provoca distensão das vias aéreas e aumento da relação espaço morto/ volume corrente, o que obriga muitas vezes à utilização de volumes correntes mais elevados para uma ventilação eficaz;
  • Usar pressões no final da expiração (PEEP) entre 5 e 7 cmH2O a fim de minorar o risco de atelectasia e de edema pulmonar;
  • Evitar, tanto a hipoxémia como a exposição a excesso de oxigénio, recorrendo à SpO2 alvo, em função dos valores obtidos pela oximetria de pulso e da idade pós-menstrual. (ver adiante)

Oxigenoterapia

Os objectivos da utilização de oxigénio suplementar são:

  1. Assegurar uma adequada oxigenação tecidual;
  2. Evitar a hipóxia alveolar, a qual aumenta a resistência vascular pulmonar com potencial evolução para cor pulmonale;
  3. Evitar a hipoxémia, que conduz a aumento da resistência das vias aéreas.

De salientar, contudo, que elevações da FiO2, ainda que escassas, podem ter um impacte negativo na evolução clínica, designadamente quanto ao risco de retinopatia da prematuridade ou de exacerbação da inflamação e do edema pulmonares.

A utilização de oxigenoterapia na criança prematura com DBP constitui, pois, um desafio, tendo em conta a necessidade, por um lado, de evitar a hipoxémia e, por outro, de evitar a exposição a concentrações excessivas de oxigénio.

Com base em provas científicas, recomenda-se uma saturação-alvo em oxigénio entre 90 e 95% no RN pré-termo (ou 95-96% nos casos com hipertensão pulmonar).

Quando a criança atinge a idade de termo e adquire maturidade vascular retiniana (documentada por observação oftalmológica) recomenda-se suplementação com oxigénio de forma a manter valores de SpO2 iguais ou superiores a 95%.

Cafeína

O tratamento com citrato de cafeína tem sido associado a menor incidência de DBP às 36 semanas de idade corrigida, o que possivelmente decorre da menor exposição à ventilação com pressão positiva. Por outro lado, a sua utilização na prematuridade extrema tem sido associada a diminuição de paralisia cerebral e de défice cognitivo aos 18 meses de idade corrigida. No entanto, este benefício não foi comprovado em estudos de seguimento na idade pré-escolar.

Antioxidantes

É importante chamar a atenção para o papel de vitamina A e do selénio na diferenciação e manutenção da integridade das células epiteliais do sistema respiratório. Alguns estudos demonstraram que doses elevadas de vitamina A em RN de peso <1.000 gramas determinaram diminuição da mortalidade por DBP e das necessidades de oxigénio ao mês de idade, a par de uma tendência para redução do número de casos de DBP.

Diuréticos

Ainda que a terapêutica diurética melhore a curto prazo a mecânica pulmonar, é pouco evidente o seu benefício a longo prazo na evolução da DBP.

Duas classes de diuréticos podem ser utilizadas na criança com DBP:

  1. Tiazidas – actuando no tubo distal renal (ex: hidroclorotiazida, espironolactona);
  2. Diuréticos de ansa – actuando no ramo ascendente da asa de Henle (ex: furosemido).
    De referir, a propósito, que tais fármacos, estimulando a síntese de prostaglandinas, exercem efeito vasodilatador pulmonar e sistémico e estimulam a secreção de surfactante pulmonar.

Como complicações da utilização destes fármacos, citam-se:

  • Perda urinária de sódio, potássio e cloro, podendo levar a hiponatrémia, hipocalémia e, eventualmente, a alcalose hipoclorémica;
  • O furosemido aumenta a excreção de cálcio, muitas vezes levando à nefrocalcinose e nefrolitíase; igualmente, é potencialmente ototóxico, sobretudo se a administração endovenosa for rápida.

Apesar da falta de prova científica de reais benefícios a longo prazo, pode recorrer-se à terapêutica diurética em crianças dependentes da ventilação mecânica ou que necessitam de PEEP apesar de uma restrição hídrica modesta (140-150 mL/kg/dia). Em tal contexto, são utilizadas habitualmente as tiazidas (hidroclorotiazida na dose de 3-4 mg/kg/dia, em duas doses por via oral, associada ou não a espironolactona).

O furosemido utiliza-se habitualmente em dose única (1 mg/kg/dose por via endovenosa, ou 2 mg/kg por via oral) para tratar as exacerbações atribuíveis a edema pulmonar, podendo eventualmente prolongar-se o tratamento até 3 dias; muitas vezes é administrado na sequência de transfusões de hemoderivados.

Notas importantes:

    • o uso crónico de furosemido deve evitar-se, pelo risco de nefrocalcinose e ototoxicidade;
    • os electrólitos séricos devem ser monitorizados 1 a 2 dias após o início da terapêutica com diuréticos e, a partir daí, semanalmente; em função dos resultados analíticos, poderá haver necessidade de suplemento de cloreto de potássio (2-4 mEq/kg/dia);
    • a terapêutica com diuréticos prolonga-se habitualmente até a criança não necessitar de PEEP contínua;
    • a suspensão deve fazer-se de forma gradual, com redução da dose em 3-4 dias, ou não ajustando a dose ao eventual ganho ponderal.
Corticóides

Para além da acção anti-inflamatória suprimindo a produção de mediadores inflamatórios, os corticóides estimulam a síntese de surfactante pulmonar e de enzimas antioxidantes, melhorando a função pulmonar nas crianças com DBP em evolução ou já estabelecida.

Apesar da melhoria da mecânica pulmonar e da redução do suporte ventilatório, a preocupação com as sequelas neurológicas a longo prazo levou a que a Academia Americana de Pediatria e a Sociedade Pediátrica Canadiana tivessem recomendado o uso restrito de corticoterapia sistémica no RN pré-termo.

Assim, o uso de corticóides sistémicos no tratamento de DBP, não recomendado por rotina, deve ser reservado às situações de crianças com DBP grave, dependentes de suporte ventilatório e de oxigénio máximos (necessidades de MAP >8 cm H2O e de FiO2 >40%) ponderando, neste contexto, o balanço entre riscos e benefícios. Nesta perspectiva, a decisão de tratamento com corticóides sistémicos deverá ser tomada caso a caso, e após esclarecimento e concordância dos pais.

São, pois, necessários mais estudos que permitam determinar qual o corticóide mais adequado (bem como a respectiva dose, via e data de administração), que permita reduzir o risco de DBP sem aumentar o risco de sequelas a nível do neurodesenvolvimento em RN pré-termo ventilados.

A propósito de corticóides, algumas notas importantes:

    • resultados de estudos de coorte demonstraram que a hidrocortisona poderá comportar menor risco de sequelas neurológicas relativamente à dexametasona, sem provas reais de benefício de um em relação ao outro;
    • existem escassas provas científicas de eficácia e segurança com a utilização de corticóides inalados (betametasona, budesonido).

Broncodilatadores

A administração de broncodilatadores inalados reduz a resistência das vias aéreas e aumenta a compliance pulmonar.

Tendo em conta os efeitos colaterais cardiovasculares, tais como hipertensão, taquicárdia e arritmia, as suas indicações deverão ser individualizadas, o seu uso não é recomendado por rotina em crianças com DBP.

Podem ser utilizados: beta-2 adrenérgico (como por ex. salbutamol), anticolinérgico derivado da atropina (por ex. o brometo de ipratrópio), metilxantina (por ex. aminofilina, cafeína, etc.).

Salientam-se:

  • Salbutamol (nebulização): 0,1-0,5 mg/kg/dose em 3 mL de soro fisiológico 4 a 6 vezes por dia; podem ser utilizadas outras vias: oral, IV contínua, aerossol;
  • Brometo de ipratrópio (nebulização): 125-250 mcg por dose em 3 mL de soro fisiológico 3 a 4 vezes por dia.

Actualmente, as novas estratégias ventilatórias menos agressivas e o uso de surfactante precoce reduzem o risco de lesão das vias aéreas, resultando em menor número de episódios de hiperreactividade brônquica nas crianças com DBP, durante o internamento.

Notas importantes:

    • nalgumas crianças com DBP grave dependentes do ventilador, podem ocorrer episódios agudos de broncospasmo com resposta clínica aos broncodilatadores, evidenciada pela melhoria das trocas gasosas; em tal circunstância, está indicado o tratamento por períodos curtos, com monitorização dos efeitos desejados e adversos;
    • a aplicação de aerossóis com broncodilatadores poderá não ser eficaz nas primeiras semanas de vida pela ausência de efeito relaxante da musculatura lisa da via respiratória;
    • o uso de broncodilatadores pode agravar a estabilidade das vias aéreas na criança com broncomalácia.

Óxido nítrico

Não está provado efeito benéfico do óxido nítrico na DBP. A sua utilização está apenas recomendada nos casos de insuficiência respiratória com hipoxémia associada a hipertensão pulmonar (HPP/HTP) no RN de termo e pré-termo limiar. Recorda-se que a HPP tem sido descrita em cerca de 40% das formas mais graves de DBP.

Nutrição

Torna-se fundamental propiciar nutrição adequada (suprimento energético entre 120-180 kcal/kg/dia) com vista a garantir o processo de reparação pulmonar, assim como ganho de peso entre 20-30 gramas/dia por volta da idade pós-concepcional de 40 semanas. Haverá que ter em conta a necessidade de balanço hidroelectrolítico rigoroso, sendo muitas vezes necessário restringir o suprimento em fluidos para cerca de 140-150 ml/kg/dia.

Para incrementar o suprimento energético, podem ser administrados suplementos sob a forma de polímeros da glucose e de triglicéridos de cadeia média. Em casos seleccionados, poderá ser necessário proceder a gastrostomia.

Outras terapias

A terapia celular constitui um novo paradigma da medicina.

No pulmão em desenvolvimento, vários tipos de células, tais como as células estaminais mesenquimatosas, as células progenitoras do endotélio (designadamente as células estaminais angiogénicas) e as células epiteliais amnióticas, encerram em si a potencialidade de produzir factores de proteção e reparação de lesão pulmonar. Estas células seriam ideais, não só para o tratamento de uma doença multifactorial como a DBP, como de outras complicações da prematuridade extrema.

Experimentações em animais revelaram resultados promissores, e ensaios de Fase I com células estaminais mesenquimatosas estão já em curso. No entanto, o conhecimento do mecanismo de acção deste tipo de terapêutica, ainda limitado, e a heterogeneidade das populações celulares, dificultam a previsão quanto à sua eficácia.

Outra área de investigação no âmbito da prevenção da inflamação pulmonar envolve o estudo de compostos não esteróides, citando-se a inibição de citocinas pró-inflamatórias utilizando, entre outras, fármacos/ moléculas tais como pentoxifilina e o inibidor NLRP3, este último, fazendo parte do sistema imune.

Plano da alta hospitalar

A alta para o domicílio duma criança com DBP, que deve ser planeada por uma equipa multidisciplinar, é dirigida pelo neonatologista, associando pneumologista pediátrico, enfermeiro, nutricionista, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, audiologista e assistente social.

Os pais devem ser envolvidos precocemente neste processo, de forma a se familiarizarem, não só com os cuidados básicos, mas também com os aspectos tecnológicos, por vezes necessários em domicílio (oxigenoterapia, monitorização, etc). Antes da alta, e entre outras competências, os mesmos devem ser treinados em técnica de reanimação cardiorrespiratória.

Do ponto de vista clínico, considera-se genericamente que a criança está apta para a alta hospitalar nas seguintes circunstâncias:

    • estabilidade térmica, autonomia alimentar e aumento ponderal consistente;
    • ausência de alterações terapêuticas na última semana de internamento;
    • SpO2 estável durante o sono, na última semana;
    • FiO2 necessária <30%;
    • ausência de sinais de hipertensão pulmonar, e PaO2 >55 mmHg;
    • ausência de apneias na última semana.


Por outro lado, os pais ou os prestadores de cuidados devem sentir-se confiantes nos cuidados ao bebé, e ter procedido à preparação do ambiente em casa para o receber.

O seguimento em ambulatório da criança com DBP é pluridisciplinar e deve ter em atenção os seguintes aspectos:

  • Vigilância da função respiratória, especialmente nas crianças submetidas a oxigenoterapia ou ventilação domiciliárias;
  • Prevenção das infecções respiratórias, a qual passa pelas medidas gerais preventivas, a mais importante das quais é a lavagem correcta e frequente das mãos dos pais e outros cuidadores; há que evitar contacto com poluentes ambientais, especialmente tabaco, desaconselhando-se a frequência da escola durante os primeiros 2 anos de vida;
  • Imunizações – para além do cumprimento do programa nacional de vacinação:
    • a prevenção com vacina antigripe está indicada se a criança tiver idade superior a 6 meses (idade pós-natal), anualmente, no Outono: entre os 6-35 meses à 0,25 mL/ mês, duas doses; após 36 meses à 0,5 mL em dose única; a família e contactos deverão ser também vacinados;
    • a prevenção da infecção por vírus sincicial respiratório (VSR) está indicada, nas crianças com DBP com idade pós-natal inferior a 24 meses, nos casos de as mesmas terem necessitado de tratamento relacionado com a doença, pelo menos durante uma semana, nos seis meses antecedentes; utiliza-se o anticorpo monoclonal-palivizumab (Synagis®) 15 mg/kg/mês a partir do início da “época do VSR”, e durante a referida época (de Outubro a Março, no nosso clima), no máximo de 5 doses em cada época. Nalguns centros são utilizadas variantes deste plano;
  • Crescimento, com especial atenção aos aspectos nutritivos e suplementos vitamínicos e marciais;
  • Neurodesenvolvimento, com avaliações quantificadas e referenciação atempada às equipas de intervenção precoce.

Prognóstico

O prognóstico depende dos vários tipos de complicações surgidas e, designadamente, do grau de disfunção cardiorrespiratória. A mortalidade (entre 30 e 40%) ocorre predominantemente no primeiro ano de vida, em geral como consequência de insuficiência cardiorrespiratória, sépsis, infecção respiratória ou morte súbita.

Quanto à função pulmonar, a curto prazo, a evolução pode considerar-se favorável, inclusivamente nos casos de crianças que têm alta com necessidade de oxigenoterapia continuada. A redução progressiva do suplemento de O2 até à respiração em ar ambiente (FiO2) é geralmente possível antes do 1º ano; a progressão ponderal – um dos problemas face às dificuldades alimentares – é proporcional à melhoria da função pulmonar.

A melhoria da função pulmonar verificada ao longo do tempo pode explicar-se pelo processo de crescimento e desenvolvimento da via respiratória, que continua na 2ª e 3ª infância. No entanto, as re-hospitalizações são frequentes no 1º ano de vida (salientando-se que cerca de 25-30% são devidas a infecções respiratórias acompanhadas de sibilância recorrente).

Estudos a longo prazo demonstraram que em crianças com idade superior a 10 anos, adolescentes e adultos se verifica elevada prevalência de hiperreactividade brônquica.

Relativamente à repercussão sobre a função pulmonar na idade adulta em indivíduos com antecedentes de DBP e muito baixo peso de nascimento, identificou-se um quadro com sinais de obstrução ao fluxo de ar, ineficiência das trocas gasosas e heterogeneidade ventilatória.

No que respeita ao prognóstico do foro neurológico, os doentes com DBP evidenciam maior incidência de sequelas em comparação com as crianças sem a doença. Tais sequelas traduzem-se fundamentalmente por paralisia cerebral, défice cognitivo, dificuldades de aprendizagem, défice de atenção e problemas de comportamento.

Existe, por outro lado, risco aumentado de retinopatia da prematuridade e de alterações da audição.

No que respeita a complicações do foro cardiovascular, de grande relevância no prognóstico, citam-se: cor pulmonale, hipertensão pulmonar, hipertensão sistémica, hipertrofia ventricular esquerda e desenvolvimento de vasos colaterais aorto-pulmonares que podem originar insuficiência cardíaca.

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VENTILAÇÃO MECÂNICA NO RECÉM-NASCIDO – NOÇÕES BÁSICAS

Introdução

Revisitando algumas noções tratadas anteriormente em “Problemas Respiratórios no RN – Generalidades ”, o presente capítulo aborda predominantemente conceitos fundamentais sobre ventilação mecânica invasiva, os quais poderão ser de utilidade, não para neonatologistas ou intensivistas, mas para estudantes em áreas da saúde infantil, médicos de família, pediatras gerais e outros profissionais de saúde.

Numa inspiração normal, o sistema respiratório gera pressão negativa intratorácica, o que favorece a entrada de ar na via respiratória.

Numa inspiração controlada ou assistida por ventilador – com “insuflação” da mistura gasosa – é gerada uma pressão inspiratória. A pressão máxima atingida é denominada pressão inspiratória positiva (PIP) ou pressão de “pico”. A mistura gasosa (ou o ar) introduzida nos pulmões é mantida na via aérea durante a pausa inspiratória, o que permite a difusão da mistura gasosa ao nível dos alvéolos pulmonares. A pressão da via aérea durante esta pausa é designada “pressão de planalto ou “plateau”; o valor da mesma depende da PIP e da compliance do pulmão.

Durante uma expiração normal, o pulmão é “esvaziado” de forma passiva, o que depende da retracção elástica do mesmo. No final da expiração, o volume persistente na via aérea traduz-se numa pressão expiratória final positiva (PEEP ou positive end expiratory pressure), que evita o colapso ou atelectasia alveolar. (ver figura 3 do capítulo inicialmente mencionado)

Definições

Por ventilação mecânica no sentido lato entende-se uma técnica de respiração artificial na qual se obtém um movimento de gás (classicamente oxigénio e ar atmosférico, em proporções reguladas; e, mais raramente, em situações especiais, óxido nítrico/NO, hélio, etc.,) bidireccional (entre ambiente atmosférico e via respiratória/ pulmões), utilizando equipamento externo em conexão com a via respiratória do paciente, desde o clássico balão ou o balão autoinsuflável ao mais sofisticado aparelho chamado ventilador equipado com mecanismos de automatismo e com software.

Tradicionalmente, são consideradas duas modalidades de ventilação: ventilação invasiva e ventilação não invasiva.

Em ambas as modalidades, a ventilação artificial consegue-se com a aplicação de pressão positiva na via aérea; a diferença está na forma de administração de tal pressão:

  • Na ventilação invasiva utiliza-se um tubo oro ou nasotraqueal ou uma cânula de traqueostomia;
  • Na ventilação não invasiva, utiliza-se uma máscara ou cânulas nasais (prongas) em conexão com o dispositivo de ventilação ou ventilador.

Nos RN com respiração espontânea pode administrar-se suplemento de O2 empregando um sistema de fluxo contínuo (que pode ser variável) da mistura de ar e oxigénio, gerando pressão positiva contínua, o que permite manter certo grau de distensão alveolar no fim de cada expiração. Isto é, com tal técnica, consegue-se que o alvéolo fique mais distendido do que em situação fisiológica através da criação de pressão de distensão contínua. É a chamada pressão positiva contínua (pressão de distensão contínua) ou CPAP (continuous positive airway pressure); a mesma é medida em cm de H2O.

A técnica de pressão positiva contínua (CPAP) promove uma melhoria da PaO2 explicada pelo que se designa recrutamento alveolar e optimização do volume pulmonar, permitindo mais eficaz ventilação-perfusão. Esta técnica pode ser aplicada ao paciente através de máscara, prongas ou sonda nasal dupla (mais frequentemente), ou ainda tubo endotraqueal (TET nasofaríngeo ou TET traqueal).

As indicações principais da CPAP são diversas: SDR da prematuridade (doença da membrana hialina ligeira a moderada), apneia da prematuridade, fase pós-extubação na sequência de ventilação mecânica. Igualmente, disfunção respiratória e, no pós-parto imediato, como manobra de recrutamento alveolar precoce contribuindo para o estabelecimento da capacidade residual funcional pulmonar do RN.

A CPAP com TET constitui, em geral, uma forma de avaliar a capacidade de tolerância do RN à CPAP nasal (nCPAP), desde que haja indicação de extubação. Contudo, deve ter-se em conta que tal avaliação deve ser efectuada durante escassos minutos apenas, dada a eventualidade de o TET poder aumentar a resistência da via aérea, conduzindo eventualmente a episódios de apneia ou atelectasia. (ver adiante)

As pressões de distensão contínua/ CPAP podem variar entre 3 e 8 cm H2O, consoante a situação clínica e a gravidade da mesma. Contudo, são mais utilizados valores ~4 cm H2O. Empregando tal técnica haverá que dar especial atenção à eventual melhoria da compliance ou distensibilidade da via aérea coincidindo com a melhoria da situação clínica; tal poderá originar hiperinsuflação-enfisema e pneumotórax (manifestada por excessiva retenção de CO2 e aumento da PaCO2 num RN em melhoria); por isso, com a melhoria da oxigenação deve reduzir-se progressivamente a pressão de distensão contínua.

Para além da modalidade clássica de fluxo contínuo utilizada nos ventiladores convencionais (bubble CPAP), e de fluxo variável, actualmente existem aparelhos que permitem utilizar o chamado modo bilevel de CPAP; ou seja, permitem obter em alternância, por períodos a programar automaticamente, dois valores, ou “dois níveis” de pressão de distensão contínua. Dependendo da evolução clínica, quer os tempos, quer as pressões, poderão ser modificados com o manuseamento do aparelho.

Os estudos realizados com esta última variante na aplicação de CPAP demonstraram evolução mais favorável do problema respiratório, com recrutamento alveolar mais eficiente, necessidade de menor duração na aplicação da técnica, sem aumento de efeitos adversos.

Indicações gerais da ventilação mecânica invasiva

A decisão de iniciar ventilação mecânica baseia-se na gravidade do problema respiratório de acordo com os critérios antes definidos. Na prática clínica, em geral, as situações que requerem tal procedimento correspondem a duas situações de SDR:

  • RN inicialmente com respiração espontânea submetidos previamente a assistência respiratória na modalidade de pressão positiva contínua (CPAP) com progressivo agravamento; ou
  • RN em que surge, progressiva ou subitamente, um quadro de insuficiência respiratória aguda, incluindo situações de apneia; e também do foro cirúrgico com indicação operatória.

Os grandes objectivos da técnica em análise – idealmente de duração tão curta quanto possível – são providenciar um volume pulmonar adequado com vista à normalização da ventilação-perfusão e da saturação da Hb em oxigénio (SpO2), evitando a hiperinsuflação e a atelectasia.

Como se torna fácil compreender, importa garantir um conjunto de condições técnicas, logísticas e de recursos humanos (equipas de pediatras-neonatologistas e de enfermeiros especializados, entre outros profissionais) que somente podem ser concretizadas numa unidade de cuidados intensivos neonatais, ou pediátricos e neonatais (unidade polivalente).

Uma vez que poderão surgir efeitos secundários ou complicações importantes, a decisão de se proceder à entubação para iniciar a ventilação mecânica deve ser ponderada, equacionando riscos e benefícios.

Com efeito, apesar de a ventilação invasiva por vezes representar a única terapêutica da insuficiência respiratória aguda com efeito salvador imediato e a curto prazo, importa ter em consideração a possibiliade de complicações e sequelas, nomeadamente do foro respiratório e neurológico.

Tipos de ventiladores e modos ventilatórios

Para se compreender o funcionamento dos modernos e sofisticados ventiladores utilizados na actualidade, será útil explanar alguns princípios gerais relacionados com a evolução da tecnologia da ventilação artificial e revisitar certas noções básicas de fisiologia respiratória, muitas das quais explanadas no capítulo introdutório sobre “Problemas Respiratórios do RN”.

Os ventiladores clássicos podem ser classificados em dois grandes grupos: ventiladores de volume e ventiladores de pressão (positiva ou negativa). Considerando o modo de administração do fluxo gasoso (aquecido e humidificado), cuja concentração em oxigénio pode variar entre 21 e 100% através de misturadores que fazem parte do próprio equipamento, existem duas modalidades: ventiladores de fluxo contínuo e ventiladores de fluxo intermitente.

Nos ventiladores de volume, um determinado e constante volume de gás previamente calculado é administrado ao doente durante cada ciclo inspiratório/ de insuflação.

Inicialmente, na década de 1980, eram pouco utilizados no RN, pois não tinham sistemas eficazes na monitorização do volume corrente gerado pelo ventilador.

Actualmente, com o desenvolvimento de vários sistemas de monitorização contínua baseados em sensores de fluxo, a aplicação de ventiladores de volume já pode ser efectivada com segurança em RN; para além da monitorização precisa do volume corrente, é também possível monitorizar outros parâmetros.

Geralmente, os ventiladores iniciam a fase inspiratória dos respectivos ciclos ventilatórios em intervalos de tempo determinados. Nos ventiladores volumétricos a inspiração termina quando o volume de gás pré-determinado tiver sido administrado ao doente. Como exemplos de ventiladores com estas características citam-se os históricos Bourns LS 104 e 105®.

Nos ventiladores de pressão positiva, considerados classicamente os ventiladores de eleição para RN, o volume de gás administrado ao RN durante a fase inspiratória somente cessa quando a pressão de insuflação pulmonar (pressão inspiratória ou “pico” de pressão) atinge o nível previamente determinado.

Ou seja, neste tipo de ventiladores a quantidade de gás que entra no pulmão do RN a cada inspiração dependerá principalmente da referida pressão inspiratória e da compliance (recordar a relação variação de V/ variação de P).

Para determinada compliance pulmonar, quanto maior a pressão inspiratória, maior o volume de gás administrado durante a fase inspiratória. O inverso também é verdadeiro: para determinada pressão inspiratória, o volume de gás administrado durante a fase inspiratória será tanto maior quanto maior a compliance pulmonar.

Os ventiladores de pressão negativa (em que o RN era colocado dentro de estrutura ou suporte, com sistema de vácuo estanque aplicado em torno do tórax, expandindo-o) são hoje considerados obsoletos, interessando apenas mencioná-los para enquadramento mais compreensivo.

Nos ventiladores de fluxo intermitente o gás somente é administrado durante a fase inspiratória do ciclo respiratório. Este tipo de ventiladores caiu em desuso pela seguinte razão: se um RN respirasse de modo não síncrono com o ventilador (por ex. início da inspiração espontânea durante a fase expiratória do ventilador) o mesmo passaria a respirar num sistema fechado, ou respiraria gás contido no chamado espaço morto (TET e tubagem do ventilador).

Nos ventiladores de fluxo contínuo o gás é administrado ao RN, quer na fase inspiratória, quer na fase expiratória do ciclo respiratório. Deste modo, pode compreender-se que com tais ventiladores é possível a ventilação artificial com frequências respiratórias baixas, sendo que o RN mantém concomitantemente a respiração espontânea intercalada por ciclos artificiais do ventilador, ao mesmo tempo que se verifica o fluxo contínuo de gás através do circuito do ventilador; é, assim, possível a chamada ventilação intermitente obrigatória (IMV – intermittent mandatory ventilation).

Apesar de os ventiladores de fluxo contínuo terem permitido a introdução da IMV e, por isso, terem contribuído para um avanço na assistência ventilatória do RN, não resolveram o problema da respiração assíncrona RN-ventilador: há, com efeito, a possibilidade de, por ex., o ventilador iniciar a fase inspiratória no momento em que o doente expira.

Do assincronismo poderão, com efeito, resultar efeitos secundários importantes tais como diminuição da eficiência das trocas gasosas, retenção de mistura gasosa intra-alveolar, variabilidade da pressão arterial e da velocidade do fluxo sanguíneo cerebral podendo conduzir a hemorragia intraperiventricular, etc..

Nalguns ventiladores de pressão, a inspiração termina quando a pressão inspiratória pré-determinada é atingida. Estes ventiladores são ciclados por pressão (por ex. o velho Baby Bird®). Com este tipo de ventiladores não é possível obter uma “onda quadrada ou em plateau”), dificultando que, com determinado “pico” de pressão, se promova uma ventilação alveolar eficaz, nomeadamente nos casos de compliance pulmonar diminuída (por ex. por défice de surfactante).

Outro modo de interromper a fase inspiratória de um ventilador é por tempo; ou seja, o ventilador mantém a pressão inspiratória por período de tempo pré-determinado (criando desta forma o plateau inspiratório), no fim do qual se inicia a expiração.

Os ventiladores com estas características são designados por ventiladores de pressão positiva não sincronizada (“ciclados por tempo e de pressão limitada): permitem regular o número de ciclos ventilatórios por minuto, os tempos inspiratório e expiratório, assim como limitar a pressão inspiratória (“pico” de pressão), em relação com o débito do gás e o volume de cada ciclo ventilatório.

Recorda-se que débitos do gás mais elevados (4 a 10 L/minuto) conduzem a pressões inspiratórias mais elevadas (“picos” mais elevados) e a ondas inspiratórias “quadradas” ou em plateau, em que o aumento de pressão é mais rápido; débitos mais baixos (0,5-4 L/minuto produzem ondas inspiratórias “em rampa” ou sinusoidais em que o aumento de pressão é mais lento – semelhante à respiração normal. Como exemplos de ventiladores com estas características são citadas as seguintes marcas: Bear Cub/Bourns® e Sechrist®.

Entretanto, as tecnologias permitiram desenvolver ventiladores de fluxo contínuo permitindo que, ao mesmo tempo, o doente respire espontaneamente e desencadeie, com o esforço inspiratório, uma pressão de insuflação pulmonar (pressão inspiratória) que será sempre síncrona com o referido esforço inspiratório.

Este tipo de ventilação à demanda” ou “disparada” pelo doente (termo corrente em inglês – patient triggered ventilation ou intermittent demand ventilation) é hoje exequível com os chamados ventiladores na modalidade de ventilação sincronizada. Como exemplos deste tipo de ventiladores são citadas as seguintes marcas: Bear Cub 750 VS®, VIP Bird®, Babylog 8000 Plus® e SLE HV 2000®.

Actualmente, aplicando as novas tecnologias, as quais permitem obter melhores resultados, é possível utilizar um método de ventilação sincronizada com melhor interacção entre o doente e o ventilador utilizando a actividade eléctrica do diafragma medida por sensor (sonda) colocado no esófago. É o método NAVA (neurally adjusted ventilatory assist).

Princípios gerais da ventilação mecânica convencional invasiva

Para melhor compreensão dos referidos princípios, importa salientar que, na prática clínica e quanto à etiopatogénese, três grandes grupos de problemas respiratórios neonatais podem ser considerados:

  • SDR em que predomina a diminuição da compliance pulmonar (por ex. SDR da prematuridade por défice de surfactante, pneumonia, edema pulmonar, atelectasia, hipoplasia pulmonar, etc.);
  • SDR em que predomina a resistência aumentada da via respiratória (por ex. síndroma de inalação amniótico-meconial, doença pulmonar crónica, edema intersticial, etc.);
  • SDR em que predomina a disfunção da musculatura respiratória, do mecanismo de regulação respiratória, ou doença obstrutiva relacionável com anomalias congénitas das vias respiratórias superiores (por ex. miastenia grave, doença neurológica grave, atrésia dos coanos, síndroma de Pierre Robin, efeito de fármacos depressores do SNC, apneia, encefalopatia hipóxico-isquémica, etc.).

1. Parâmetros utilizados na ventilação com pressão positiva (não sincronizada ou convencional)

Pressupondo que a doença respiratória evolui (trata-se de um processo dinâmico), e está indicada a ventilação mecânica, assim como o manejo duma “máquina” chamada ventilador, torna-se fundamental um conhecimento básico da funcionalidade deste e dos parâmetros utilizados para reverter a situação.

Salienta-se, a propósito, que os parâmetros de regulação a utilizar na ventilação artifcal, em qualquer modalidade desta, requerem experiência do operador, o conhecimento da patologia de base e sua gravidade, assim como a idade gestacional do paciente.

  • Frequência (ciclos/minuto)
    Pode variar entre 40 e 60 ciclos/minuto; a frequência deve ser ajustada para Vc (volume corrente) e ventilação – minuto adequados. Deve ser dada atenção especial ao utilizar FR >75 ciclos/minuto uma vez que o tempo para a expiração poderá tornar-se demasiado curto, o que poderá originar situações de retenção de ar e desvio deste para zonas exteriores à via aérea (ar ectópico). Para prevenir tal, deve diminuir-se o Ti (tempo inspiratório) e a relação i:e (relação inspiração:expiração) para aumentar o Te (tempo expiratório). (ver adiante alínea Monitorização de parâmetros…)
  • Tempo inspiratório (Ti)
    Em geral o Ti utilizado na prática varia entre 0,37 a 0,40 segundos, a não ser que surjam determinadas condicionantes que obriguem à sua alteração.
  • Pressão inspiratória (ou pico inspiratório máximo-PIP em cm/H2O)
    A expansibilidade da caixa torácica e grande parte do volume corrente produzido dependem da PIP. A escolha inicial do PIP depende da idade gestacional, do tipo de patologia e gravidade da mesma, da expansibilidade da caixa torácica, e da experiência e sensibilidade do operador. A PIP pode variar entre valores tão baixos como 16-18 cm H2O e valores tão altos como 28-32-34-38 cm H2O, dependendo dos factores atrás apontados.
  • PEEP ou Pressão positiva no fim da expiração (cm/H2O)*
    A PEEP (positive end expiratory pressure) é a pressão de distensão ou abertura permanente das vias aéreas no fim da expiração impedindo o colapso alveolar. Este fenómeno permite o que se designa por “recrutamento alveolar” rendibilizando o funcionamento de mais alvéolos (alvéolos mais ventilados e mais distendidos), permitindo ventilação-perfusão mais eficaz. Os valores de PEEP utilizados consoante as situações clínicas devem oscilar entre 3 e 6 cm H2O.

*Pressupondo, como foi referido em capítulo anterior, que os ventiladores modernos dispõem a funcionalidade de fluxo contínuo, o que não acontecia nos de 1ª geração. A modalidade CPAP exclusiva foi abordada anteriormente.

 

  • FiO2 ou fracção de oxigénio no ar ou mistura gasosa inspirada (avaliada em %: de 21 a 100, ou em décimas: de 0,21 a 1,0). Ar<> 21%.
    Em regra, inicia-se a ventilação utilizando FiO2 de 40% aplicando a regra de bom senso de começar com parâmetros “baixos”; no entanto há que ter em conta a gravidade clínica e o tipo de patologia, sendo objectivo manter a saturação da Hb em O2 (SpO2) entre 89 e 93%.
  • Pressão média da via aérea ou Paw ou MAP (cm/H2O)
    Os principais parâmetros que influenciam a Paw são: Ti, relação I : E, PIP, PEEP e formato da onda inspiratória. Como é evidente, o seu valor depende da gravidade da situação clínica.
  • Relação tempo inspiratório/ tempo expiratório (I : E ou Ti : Te)
    A relação I : E depende da FR e do Ti . A relação I : E fisiológica é 1 : 2. Como regra pode referir-se que todas as relações I : E são boas ou aceitáveis, com excepção da relação I : E de 1 : 1, ou das chamadas relações I : E invertidas (exemplo I : E de 1:0.8).
    Com efeito, relações invertidas ou relações de 1 : 1 aumentam a possibilidade de ruptura alveolar e de situações de “ar ectópico”: para certo Ti pré-determinado o aumento da frequência para além de determinados valores limita o tempo expiratório levando a acumulação progressiva de gás (ar+O2).

2. Escolha dos parâmetros iniciais na ventilação com pressão positiva (não sincronizada ou convencional)

São analisados a seguir os diversos parâmetros com base nas particularidades referidas.

  • Débito (fluxo) da mistura gasosa
    Em regra utiliza-se débito de 6 a 8 L/minuto.
  • PEEP (cm/H2O)
    A PEEP deve ser ajustada entre 3-6 cm de H2O.
    Nas situações obstrutivas a utilização da PEEP deve ser criteriosa pela possibilidade de diminuição do retorno venoso, o que implica vigilância rigorosa do estado hemodinâmico. O valor deverá ser quanto baste para diminuir as retracções costais, sendo que tal critério obriga a muita prática e experiência.
  • Frequência (ciclos/minuto)
    A frequência utilizada no início da ventilação poderá oscilar entre 20 e 60 ciclos por minuto.
  • Ti (Tempo inspiratório)
    Utiliza-se em geral Ti entre 0,36 e 0,4 segundos.
    Salienta-se que: o ajustamento do Ti deverá obedecer à constante de tempo do sistema respiratório a qual se encontra elevada nas situações obstrutivas; e que quanto mais graves os sinais de compromisso parenquimatoso, mais curto deverá ser o Ti.

A constante de tempo (Kt) é a medida do tempo necessário para a pressão nas vias aéreas alveolares e proximais se equilibrarem. Os valores normais oscilam entre 0,08 e 1,1 segundos (s); média ~0,24 segundos (s). Ao cabo de 3 constantes de tempo, cerca de 95% do Vc entrou (durante a inspiração) ou saiu (durante a expiração) dos alvéolos.

  • PIP (cm/H20)
    A PIP/pressão inspiratória ideal deve ser a mínima necessária para manter adequada ventilação alveolar; a referida pressão deverá ser sempre verificada previamente através da oclusão manual da peça de conexão tubo do ventilador-TET, antes da conexão com este último, já aplicado no doente.

Na prática, a PIP deve ser a suficiente para promover elevação do tórax em cerca de 0,5 cm (o que exige muita prática e experiência), ou para obter volume corrente entre 4 e 6 mL/kg.
Para promover a elevação da PaO2, os parâmetros a aumentar são a FiO2, a PIP e a PEEP. Para promover diminuição da PaCO2, os parâmetros a aumentar são a FR e a PIP; para aumentar a Pa CO2, haverá que diminuir a FR e a PIP.

3. Parâmetros utilizados na ventilação sincronizada (Patient – triggered ventilation)

Na ventilação sincronizada são utilizados os parâmetros mencionados a propósito da ventilação com pressão positiva não sincronizada. Neste tipo de ventiladores existe um mecanismo automático de “disparo/ com gatilho” (trigger) ou de início de ventilação automática se surgir apneia; se tal surgir, o ventilador passará, então, a controlar a totalidade dos ciclos respiratórios. Assim, há que contar com mais os seguintes parâmetros a programar:

  • Trigger
    O nível de “trigger” (“disparo, gatilho”) deve ser pré-determinado, caso a caso, segundo uma escala de sensibilidade e dependendo da patologia e da imaturidade do RN; inicialmente escolhe-se o nível mais baixo, que corresponde a maior sensibilidade para o “disparo” e início da ventilação controlada. O nível poderá ser ou não aumentado em função da resposta do RN.
  • Volume garantido (VG)
    Nesta modalidade, através de um sensor de fluxo expiratório, o ventilador utiliza a mínima pressão necessária para atingir o volume estabelecido.
    Na prática pré-determina-se ou marca-se no ventilador o volume corrente que se deseja, geralmente 4-6 mL/Kg. O sistema automático de volume garantido – ou do volume que se deseja, pré-determinado que começa a operar ao carregar-se na respectiva tecla – permite que o mesmo se mantenha independentemente da evolução da compliance à medida que a situação melhora, ou esta aumente; ou seja, considerando a variação V/variação P que define a compliance, em caso de melhoria desta (em função da evolução favorável da patologia pulmonar), é o próprio ventilador que ajusta progressivamente a pressão necessária (neste caso, diminuindo a pressão inspiratória/PIP necessária durante os ciclos respiratórios). Com esta estratégia previne-se, em certa medida, o trauma resultante de volume gasoso excessivo/ hiperinsuflação ou volutrauma.
Nota importante sobre o conceito de VOLUME GARANTIDO: Trata-se, pois, de um modo de ventilação híbrido, que associa um volume que se deseja (volume-alvo) às vantagens de um ventilador de pressão.
Pormenorizando um pouco mais:
    • o sensor de fluxo à entrada do TET mede o volume corrente expirado;
    • o ventilador permite comparar o volume corrente expirado com o volume que se deseja (ou volume-alvo marcado);
    • automaticamente o pico de pressão inspiratória/PIP nos ciclos seguintes é regulado até se atingir o limite máximo de PIP pré-definido;
    • também automaticamente a PIP aumenta ou diminui de modo a manter um volume corrente próximo do volume-alvo marcado.

Resumidamente apontam-se as seguintes vantagens da ventilação com volume garantido: menor risco de volutrauma e de atelectrauma, assim como de oscilações bruscas da PaCO2 e do fluxo sanguíneo cerebral.
O volume corrente inicial variará em função da idade gestacional, do peso e da patologia de base. Podem ser estabelecidos os valores médios de 4-6 mL/kg/ciclo.

 

4. Avaliação da ventiloterapia

Os objectivos essenciais da ventiloterapia são obter:

  • pH >7,2 nas primeiras 6 horas de vida e >7,25 após as 6 horas de vida;
  • Pa CO2 entre 40 e 60 mmHg;
  • Pa O2 entre 50 e 70 mmHg ou SpO2 entre 89 e 93%.

Após entubação traqueal e início da ventilação, torna-se crucial verificar a posição do TET através da radiografia do tórax póstero-anterior feita in situ (em posição correcta, a extremidade deve projectar-se entre a 1ª e 3ª vértebras torácicas); a radiografia inicial e as seguintes, a efectuar de acordo com a evolução, servirão para determinar o grau de compromisso parenquimatoso e eventuais complicações como, por ex. sinais de ar ectópico ou outras complicações.

Outra avaliação seriada essencial diz respeito à monitorização em UCIN (invasiva e não invasiva) já abordada.

Sob o ponto de vista hemodinâmico há que monitorizar, entre outros parâmetros, os pulsos e ondas de pulso, a perfusão periférica, a frequência cardíaca, a pressão arterial e o débito urinário.

5. Cuidados com o tubo endotraqueal

Para além da radiografia do tórax anteriormente mencionada a fim de verificar a localização correcta, há que:

  • Fixar o TET de modo seguro e correcto evitando aglomerado de adesivos;
  • Manter o pescoço do RN ligeiramente estendido;
  • Não aspirar o TET muito frequentemente pela possibilidade de o manuseamento excessivo provocar flutuações da pressão arterial e do débito sanguíneo cerebral.

6. “Desmame” da ventilação mecânica convencional

À medida que se verificam sinais de melhoria da doença e da função pulmonares (ver atrás avaliação/ monitorização contínua), o suporte mecânico ventilatório deve ser progressivamente aliviado com vista à sua retirada, idealmente no mais curto intervalo de tempo.

Os parâmetros básicos para iniciar o desmame ventilatório são fundamentalmente três:

  • Baixas necessidades de oxigénio (FiO2 ≤30%);
  • Melhoria da compliance (isto é, possibilidade de baixar a pressão inspiratória/PIP nas vias aéreas mantendo o mesmo volume corrente e oxigenação – ver atrás: volume garantido); e
  • Boa oxigenação contínua (SpO2 ≥90-92%).

Outros parâmetros a considerar são:

  • Hemodinâmicos (normalidade da pressão arterial, frequência cardíaca e sinais perfusão periférica adequada, etc.);
  • Metabólicos (glicémia e ionograma sérico normais);
  • Hematológicos (hematócrito igual ou superior a 35-40%, como garantia da capacidade de transporte de oxigénio pela Hb após termo da suplementação daquele);
  • Neurológicos (normalidade do automatismo respiratório com garantia de respiração espontânea, rítmica e regular).

Estratégia:

  1. O parâmetro PIP (aquele que potencialmente é mais agressivo para o doente) deve ser o primeiro a ser progressivamente “aliviado”: deve diminuir-se progressiva e lentamente (em regra 2-3 cm H2O de cada vez) até se atingir valor de PIP <20 H2O. A PEEP deve ser seguidamente diminuída até <4 cm H2O;
  2. Ao atingir-se a PIP e a PEEP referidas, mantendo o mesmo volume corrente, com garantia de expansibilidade torácica adequada, e mantendo a mesma FiO2 ≤30%, é a frequência respiratória (FR) o parâmetro seguinte a ser aliviado de modo a atingir-se o valor de ciclos <20/minuto; ao mesmo tempo que se avalia a tolerância do RN, mantém-se o mesmo volume corrente, a mesma PIP (já anteriormente aliviada) e a mesma FiO2 (FiO2 ≤30%). Caso não se verifique tolerância do RN, deve manter-se a FR no menor nível possível, tentando diminuição mais tarde;
  3. Ao atingir-se FR de 10-15 ciclos/minuto, com PIP <20 cm H2O baixo (dependendo da idade gestacional e da maturidade do RN), com FiO2 ≤30%) é possível proceder à extubação do RN;
  4. Para garantir o sucesso da extubação está indicada a administração de:
    • corticóide nos casos de RN submetidos a ventilação mecânica por período superior a 7 dias (por ex. dexametasona, na dose de 0,1 mg/kg cerca de 4 horas antes da extubação, com repetição de mais duas doses de 0,1 mg/kg com oito horas de intervalo); trata-se, pois, de tratamento de curta duração tendo em conta os efeitos sobre o neurodesenvolvimento e crescimento;
    • metilxantina (por ex. citrato de cafeína por ser estimulante do centro respiratório, com início 24 horas antes da extubação: dose de impregnação (oral ou IV) 20-40 mg/kg, seguindo-se dose de manutenção diária a iniciar 24 horas depois da dose de impregnação: 4-6 mg/kg (oral ou IV);
  5. Antes da extubação o RN deverá ficar submetido a pausa alimentar; na hipótese de o doente não estar em jejum, deverá proceder-se à aspiração do conteúdo gástrico antes da extubação. É igualmente recomendável a aspiração das vias respiratórias superiores e, eventualmente, do TET.
  6. Após extubação o RN passará para o regime de CPAP nasal (nCPAP) ou oxigenoterapia nas modalidades atrás descritas (que poderá ser utilizando fluxo contínuo), sendo o suplemento de O2 regulado em função da SpO2, mantendo-se o objectivo inicial de valores entre 89 e 93%. Salienta-se a necessidade de pausa alimentar nas duas horas subsequentes à extubação.
  7. Em circunstâncias especiais poderá estar indicada fisioterapia respiratória, reservada para os RN com excesso de secreções nas vias aéreas ou com atelectasia recorrente verificada antes da extubação.
  •  

Nota: Tendo em consideração os objectivos fundamentais do livro (sendo um tratado elementar), opta-se por não abordar, quer aspectos práticos do manejo de ventiladores de alta frequência, quer os relacionados com os de última geração.

Monitorização de parâmetros no RN submetido a ventilação mecânica

No RN submetido a ventilação mecânica é possível, com os modernos ventiladores proceder à monitorização de parâmetros, alguns dos quais referidos ao abordar as particularidades da fisiologia da respiração no RN.

Para além da FiO2 que pode ser determinada, quer com oxímetros convencionais quando o RN está submetido a oxigenoterapia em campânula ou em incubadora, quer em oxímetros instalados em ventiladores, cabe referir outros parâmetros:

  • A pressão média da via aérea (Paw ou MAP- siglas de pressure airway ou mean airway pressure) é a média das pressões nas vias aéreas proximais durante todo o ciclo respiratório. Os parâmetros de ventilação tal como a frequência (F ou nº de ciclos/minuto), o tempo inspiratório em segundos (Ti), a relação tempo inspiratório (Ti)/tempo expiratório (Te), o pico inspiratório máximo ou pressão inspiratória em cm H2O (PIP) e a pressão positiva no final da expiração em cm H2O (PEEP ou positive end expiratory pressure que corresponde à pressão residual no fim da expiração ao promover-se pressão de distensão contínua) podem considerar-se os determinantes da MAP.
    Na prática, a pressão média pode ser representada pela área da figura geométrica formada pela onda inspiratória de pressão; daí resulta que ondas inspiratórias “quadradas” ou em plateau geram uma pressão média maior que as ondas sinusoidais (em rampa), triangulares.

Nota: Como foi referido no capíulo sobre “Problemas Respiratórios – Generalidades”, a sigla CPAP conceptualmente significa o mesmo que PEEP: emprega-se o termo CPAP quando o RN, estando em respiração espontânea, está ligado a aparelho de fluxo contínuo que gera a referida pressão; e PEEP, quando o RN está submetido simultaneamente a ventilação com pressão positiva intermitente.

Através da fórmula seguinte pode determinar-se a Paw:

Paw ou MAP =(F) (Ti)(PIP) + [60 –(F) (Ti) x PEEP]
___________________________________
60

 

  • Em certos casos pode determinar-se a pressão transpulmonar: a medida da diferença entre a pressão nas vias aéreas e a pressão no esófago determinada através de um cateter esofágico.
  • O volume corrente (Vc) é definido como o volume de ar/mistura gasosa inspirado em cada ciclo respiratório ajustado ao peso corporal em ml/Kg. Há actualmente aparelhos para monitorização contínua do volume corrente . O Vc normal varia de 5 a 7 mL/Kg para a maioria dos RN.
    Em ventilação mecânica (artificial), segundo vários autores deve ser utilizado um volume corrente mais baixo: 4 a 6 mL/Kg.
  • O parâmetro ventilação/minuto (V) obtém-se multiplicando a frequência respiratória (F) pelo volume corrente (Vc); é expresso em mL/Kg/ minuto ou L/Kg/ minuto; isto é: Vc x F = V (mL /Kg/ minuto ou L/Kg/ minuto).
    Exemplo: sendo F = 40 ciclos/ minuto , Vc = 6,5 mL/Kg, o volume minuto será 260 ml/Kg/ minuto ou 0,26 L/Kg/ minuto.
    Os valores considerados normais no RN do V estão compreendidos entre 240-360 mL/Kg/ minuto ou 0,24-0,36 L/Kg/minuto. Monitorizando o Vc e a V simultaneamente com a Paw (MAP), podem ser efectuados ajustamentos adequados da PIP, PEEP e do tempo inspiratório (Ti).
  • Valores de distensibilidade ou elasticidade alveolar ou compliance <1 mL/cm H2O/kg são compatíveis com doença pulmonar intersticial ou alveolar tal como a doença da membrana hialina. A compliance alveolar de 1-2 mL/cm H2O/kg significa recuperação, tal como sucede depois de administração de surfactante (ver adiante).
    No RN os valores médios da compliance são 3,70 mL/cm H2O, variando entre 2,0 e 14 mL/cm H2O.
    A chamada compliance dinâmica é calculada dividindo o volume corrente (Vc) pelo gradiente de pressão (grad P entre o início e o fim da inspiração).
    Os valores médios da compliance dinâmica são 1,72 mL/cm H2O/kg, variando entre 0,9 e 3,7 cm H2O/kg.
  • Valores de resistência pulmonar ao fluxo de gases >100 cm H2O/L/ segundo são sugestivos de doença das vias aéreas com restrição ao fluxo de ar tal como sucede com a displasia broncopulmonar (ver adiante).
  • As curvas de pressão – volume (P-V) e de fluxo – volume (F-V) permitem objectivamente analisar a dinâmica respiratória, ciclo a ciclo ventilatório. As curvas F-V providenciam informação no que diz respeito à resistência das vias aéreas, especialmente à restrição do fluxo expiratório; as curvas P-V reflectem, sobretudo, as variações da compliance dinâmica do pulmão.
  • A constante de tempo (Kt) foi definida anteriormente.

Para evitar retenção de ar intra-alveolar durante a ventilação mecânica, a medida do tempo expiratório deve ser >3 vezes a Kt (0,36-0,45 segundos).

Índices de avaliação do problema respiratório

No âmbito da assistência respiratória podem ser utilizados certos índices de gravidade que permitem avaliar o quadro clínico e igualmente o prognóstico:

  1. Relação PaO2/FiO2;
  2. Índice de oxigenação (IO) incorporando a FiO2, a pressão média nas vias aéreas (Paw ou MAP ou PMA), e a PaO2; utiliza-se a seguinte fórmula para o respectivo cálculo:
    IO = [FiO2 (21-100%) x Paw ou MAP ou PMA]: PaO2 (mmHg)
    ou simplesmente: IO = (PMA x FiO2/PaO2);
    [PMA: pressão média na via aérea; PaO2: pressão parcial arterial de O2 pós-ductal];
    Os valores de IO compreendidos entre 30-35 são indicativos de problema respiratório grave. Se o IO aumentar progressivamente durante um período de 6 horas para cerca de 35-40, existe insuficiência respiratória muito grave comportando risco de mortalidade elevada, a qual pode exceder 80%.
  3. Diferença alvéolo-arterial de oxigénio (A-a DO2), ou diferença entre a pressão parcial de oxigénio no gás alveolar (PAO2) e a pressão parcial de oxigénio no sangue arterial (PaO2). Isto é: A-a DO2= PAO2 – PaO2.
    Tal valor traduz igualmente a relação ventilação-perfusão, a qual se pode calcular pela seguinte fórmula:
    [(FiO2 entre 0.21-1)(Pr atm -47) – PaCO2 (em mmHg) /R ] – PaO2(em mmHg).
NB-Pr atm = pressão atmosférica de 760 mmHg; 47= valor da pressão do vapor de água; admite-se que o valor da pressão alveolar de CO2(PACO2) é sobreponível ao valor da pressão arterial de CO2(PaCO2); R= quociente respiratório de 0,8 sendo que alguns autores não consideram este parâmetro na fórmula.
Valores >250 mmHg indicam insuficiência respiratória e necessidade de assistência respiratória que poderá ser iniciada com CPAP nasal.
Regra prática: – “a regra dos 50” poderá estabelecer uma relação com o resultado da aplicação da fórmula; assim se: PaO2 ~50 mmHg, PaCO2 ~50 mmHg, FIO2 >50%, pressão atmosférica ~760 mmHg e humidade relativa ~50%, muito provavelmente a A-aDO2 será >250 mmHg.

Fármacos de apoio à ventiloterapia convencional

Os fármacos utilizados como apoio à ventilação mecânica convencional (e, por consequência, a manusear por equipa de intensivismo com experiência) relativamente aos quais se faz uma abordagem sucinta, podem ser sistematizados como se segue:

  1. Com acção directa na mecânica ventilatória (analgésicos, sedativos, relaxantes musculares e estimulantes respiratórios);
  2. De suporte circulatório;
  3. Corticosteróides;
  4. Diuréticos.  

Os analgésicos mais utilizados são os opióides, de que são exemplo a morfina, o fentanil e o alfentanil.

Quanto à morfina, utiliza-se a dose inicial de 100 mcg/kg, seguindo-se manutenção: 10-30 mcg/kg a repetir com 1 hora de intervalo.

No que respeita ao fentanil, utiliza-se a dose inicial de 100 mcg/kg em 10 minutos, seguindo-se a manutenção na dose de 1 mcg/kg/hora.

Entre os sedativos são utilizados com mais frequência as benzodiazepinas (por ex. midazolam e diazepam).

O midazolam utiliza-se na dose inicial de 0,2 mg/kg IV, seguindo-se a manutenção em perfusão lenta: 2-6 mcg/kg/minuto. No que respeita ao diazepam: 1ª dose: 0,1-0,2 mg/kg e doses ulteriores iguais, se necessário, cada 12- 24 horas.

Os relaxantes musculares (mais utilizados na era dos ventiladores não sincronizados quando se verificava desajustamento e “luta” do RN “contra o ventilador”) reduzem as necessidades em analgésicos; são utilizados quando a combinação sedativo-analgésico é ineficaz; em geral obrigam a reajustamento dos parâmetros ventilatórios, nomeadamente aumento da FR.

Citam-se como exemplos a d-tubocurarina, o pancurónio, o vecurónio e o atracúrio. Por ser mais frequentemente usado, faz-se menção apenas da posologia do pancurónio: dose inicial: 30-40 mcg/kg; manutenção: 20 mcg/kg cada 1 ou cada 2 horas se necessário.

Os fármacos de suporte circulatório, globalmente, permitem rendibilizar as trocas gasosas nos tecidos (circulação sistémica) e nos pulmões (circulação pulmonar).

Os fármacos que actuam na circulação sistémica melhoram o débito sanguíneo tecidual por diminuição da pré-carga e da pós-carga e aumento da contractilidade do miocárdio. Como exemplos de fármacos com tal acção e mais frequentemente usados em unidades de cuidados intensivos e especiais – e sempre utilizados em perfusão contínua e de efeito dependente de dose e do local de acção – citam-se a dopamina, a dobutamina e o isoproterenol. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Fármacos com acção na circulação sistémica

FC: = frequência cardíaca
FármacoLocal de acção/ receptores Dose (mcg/kg/min)Efeito
Dopamina

de dopamina (dopaminérgico)
beta 1
alfa 1 + beta 1

0,5 – 4
4 – 10
11 – 20

vasodilatação renal
inotropismo
vasoconstrição periférica

Dobutamina

beta 1
beta 1 + beta 2

<10
>10

inotropismo
vasodilatação periférica

Isoproterenolbeta 1 + beta 20,05 – 2

inotropismo
vasodilatação periférica
>FC

Por vezes utiliza-se combinação de dopamina em baixa dose (<5 mcg/kg/min) com dobutamina (na dose de 5-10 mcg/kg/min); o objectivo é diminuir a probabilidade de vasoconstrição periférica verificada com altas doses de dopamina, tirando partido do efeito dopaminérgico desta sobre a perfusão renal, e do inotropismo com a dobutamina.

Os fármacos que actuam na circulação pulmonar têm particular utilidade em situações de vasoconstrição pulmonar conduzindo a hipertensão pulmonar. Citam-se como exemplos “históricos” a tolazolina, a nitroglicerina, e o nitroprussiato de sódio. Mais recentemente passou também a ser utilizado o sildenafil (Viagra®).

Os fármacos designados habitualmente por estimulantes respiratórios estão especialmente indicados na prevenção e tratamento da apneia da prematuridade (especialmente em RN de peso de nascimento <1.000 gramas e na fase pós-extubação de RN de muito baixo peso e na doença pulmonar crónica).

Como acções principais destacam-se: estimulação do centro respiratório, aumento da sensibilidade dos quimiorreceptores ao CO2, e aumento da intensidade das contracções diafragmáticas. Na prática clínica, os mais usados são as metilxantinas (teofilina e citrato de cafeína) e o doxapram.

Resumem-se as respectivas doses (sendo aconselhável o doseamento sérico):

    • Teofilina IV dose inicial: 5-6 mg/kg; manutenção: 1,5-2 mg/kg 8-8 horas (risco de taquicárdia, tremores, distensão abdominal);
    • Cafeína (citrato) IV dose inicial: 20 mg/kg IV; manutenção: 5-10 mg/kg cada 24 horas;
    • Doxapram IV contínuo dose: 1-3 mg/kg/hora, a regular em função da resposta clínica; como efeitos secundários há possibilidade de hipertensão arterial, tremores/ convulsões, sialorreia, etc..

No que respeita aos corticóides, cabe citar fundamentalmente a dexametasona e a hidrocortisona. Na fase pré e pós-extubação já foi referida a dexametasona a utilizar em período terapêutico curto dados os potenciais efeitos adversos sobre o neurodesenvolvimento e crescimento.

Tendo em conta tal limitação, e na perspectiva de tratamento que não seja de curta duração (por ex. casos dependentes do ventilador e doença pulmonar crónica, antecedentes de amnionite, etc.), recomenda-se actualmente a hidrocortisona, sem os efeitos adversos atribuídos à dexametasona e com igual ou superior eficácia quanto ao desmame do ventilador e à diminuição da necessidade de oxigénio suplementar. São estabelecidas as seguintes doses de hidrocortisona: 5 mg/kg/dia durante 3 semanas.

Nalguns centros utiliza-se em alternativa a betametasona inalada num período variando entre 1 e 4 semanas.

Os diuréticos, diminuindo o edema intersticial pulmonar, estão principalmente indicados em situação de canal arterial permeável e na doença pulmonar crónica.

Na prática usam-se:

  • Furosemido, na dose de 1-2 mg/kg IV; a dose pode ser repetida em função da resposta clínica tendo em atenção efeitos adversos não desprezíveis com a utilização prolongada: nefrocalcinose, alcalose hipoclorémica, hipocaliémia, hipocalcémia, etc.;
  • Clorotiazida: 20 mg/kg/dose, via oral; e espironolactona: 1 mg/kg/dose.

Complicações da ventilação mecânica

O Quadro 2 resume as complicações mais frequentes.

QUADRO 2 – Complicações da Ventilação Mecânica.

Das vias aéreas
Extubação, oclusão, edema, estenose
Pulmonares
Atelectasia, pneumotórax, pneumomediastino, enfisema, doença pulmonar crónica
Mecânicas
Desconexão, curvatura do TET, falha eléctrica no ventilador, fuga de gás
Infecciosas
Traqueíte, pneumonia, septicémia (sendo fontes de infecção possíveis: mãos, cateteres, humidificadores, pele, etc.)

Princípios gerais da ventilação de alta frequência

Apesar dos progressos realizados com a ventilação sincronizada, permitindo, cada vez mais, melhores resultados, ainda persistem problemas pendentes de vária ordem, requerendo novas investigações, citando-se, entre outros, os seguintes:

  • Monitorização do grau de distensão do ácino conduzindo ao aumento da permeabilidade alveolar e capilar;
  • A avaliação da magnitude da hipertensão pulmonar persistente associada a grande número de quadros clínicos de SDR; e
  • O estudo selectivo das prevalências de doença pulmonar crónica como sequela das estratégias utilizadas com os ventiladores existentes originando barotrauma (como efeito da pressão de gás utilizado), volutrauma (como efeito da pressão utilizada), e o atelectrauma (secundário à desigualdade do grau de distensão alveolar/de “recrutamento” alveolar em diferentes zonas do parênquima pulmonar, isto é, à distribuição heterogénea de ar alveolar, havendo zonas do parênquima com alvéolos mais, ou menos, distendidos.

Surgiu então nova geração dos chamados ventiladores de alta frequência (high frequency ventilators/HFV ou, em português, VAF), completamente diferentes dos ventiladores atrás descritos.

Como características essenciais destes aparelhos – que promovem uma mais eficaz e mais homogénea distribuição de gás (portanto, recrutamento alveolar mais fisiológica), com menor distensão alveolar – são referidas:

  1. Utilização de frequências muito elevadas, suprafisiológicas, variáveis entre 5 e 15 Hertz (designação habitual da frequência em VAF), ou seja entre 300 e 900 ciclos por minuto (1 Hertz corresponde a 60 ciclos por minuto);
  2. Utilização de volumes correntes (Vc) muito baixos, iguais ou inferiores ao espaço morto das vias aéreas (± 1 a 2 mL /kg).

Actualmente são utilizados em muitas unidades como ventilação de recurso/ resgate, ou como ventilação inicial e exclusiva, tendo em conta que tais características contribuem para reduzir o risco de “traumas” no tracto respiratório, atrás referidos.

Os ventiladores de alta frequência compreendem várias modalidades:

  1. Ventilação de alta frequência oscilatória (HFOV ou high frequency oscillatory ventilation), por sua vez, compreendendo os osciladores puros assim como aqueles que funcionam com interrupção de fluxo.
    Como exemplos são citadas as seguintes marcas:
    Hummingbird V®, o Dufour OHF1® e o Sensor Medics 3100A® (osciladores puros); e Babylog 8000 Plus® e Infant Star 950® (interruptores de fluxo).
  2. Ventilação de alta frequência com fluxo de alta velocidade ou “jacto” (HFJV ou high frequency jet ventilation).
    Como exemplo é citada a marca Bunnel Life Pulse®.

As principais indicações da ventilação da alta frequência são: resgate de RN com SDR grave e, fundamentalmente, extremamente imaturos para prevenir o dano decorrente da ventilação convencional e as situações de difícil remoção ou “lavagem” de CO2 como hipoplasia pulmonar ou síndromas de ar ectópico.

Actualmente, como é possível controlar e manter constante o volume corrente de alta frequência com a utilização do volume garantido, o ventilador de alta frequência oscilatória muda de forma automática a pressão de oscilação e mantém constante o volume corrente ajustado.

Princípios gerais da ECMO (oxigenação por membrana extracorporal)

Nesta última alínea do capítulo, importa citar apenas a designação do que se considera o escalão mais avançado e mais sofisticado da assistência respiratória invasiva, implicando equipas altamente especializadas em raros centros de referência distribuídos racionalmente em função das necessidades.

Esta modalidade está indicada em situações comportando risco de mortalidade de 60-70%, e com índice de oxigenação >40 de forma mantida com tratamento convencional.

Noções complementares em síntese:

    • Na ventilação artificial/ ventilação mecânica, a oxigenação é determinada pela fracção de oxigénio inspirado (Fi O2) e pela pressão média nas vias aéreas (MAP).
    • A pressão média das vias aéreas (MAP) é calculada de acordo com a seguinte equação:
      [MAP = K (PIP-PEEP) (Ti / Ti+Te) + PEEP] a qual indica que a MAP aumenta com o aumento da pressão de pico inspiratória (PIP), da pressão positiva no final da expiração (PEEP), da relação do tempo inspiratório com a soma do tempo inspiratório e expiratório (Ti / Ti+Te) e do fluxo (que aumenta a constante de tempo K, ou seja, a medida de tempo necessário para as pressões pulmonares proximais e distais se equilibrarem).
    • O mecanismo pelo qual o aumento da MAP melhora a oxigenação resulta do aumento dos volumes pulmonares e da melhoria da relação V/Q. No entanto, uma MAP excessiva pode comprometer a oxigenação pela hiperdistensão alveolar e shunt direita-esquerda pulmonar.
    • A interacção entre o ventilador e a criança depende essencialmente das características mecânicas do aparelho respiratório, destacando-se:
      • Gradiente de pressão – é a diferença de pressão existente entre as vias aéreas superiores e os alvéolos, necessária para que ocorra o fluxo de gases durante a inspiração e a expiração. Calcula-se através da seguinte equação: – Pressão = volume de compliance ou distensibilidade + resistência x fluxo;
      • Compliance ou distensibilidade – é a elasticidade das estruturas do aparelho respiratório (alvéolos, parênquima pulmonar, parede torácica) e calcula-se pela alteração no volume por cada alteração de unidade de pressão: Compliance ou distensibilidade = ∆ volume / ∆ pressão;
      • Resistência – é a capacidade que o sistema condutor de ar (vias aéreas, tubo endotraqueal, tecido pulmonar) possui para se opor ao fluxo gasoso. Calcula-se pela alteração na pressão por cada unidade de alteração do fluxo: Resistência = ∆ pressão / ∆

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HIPERTENSÃO PULMONAR PERSISTENTE

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A chamada síndroma de hipertensão pulmonar persistente (HPP/HTP) (*) do RN é uma situação clínica de dificuldade respiratória caracterizada por aumento da resistência vascular pulmonar e diminuição da perfusão pulmonar levando a hipóxia grave e PaCO2 normal ou elevado.

Importa salientar que a diminuição do débito sanguíneo pulmonar se associa a  curto-circuito direita – esquerda pelo foramen ovale e/ou ductus arteriosus (canal arterial) por aumento relativo da pressão na artéria pulmonar em relação à sistémica.

O facto de este quadro fisiopatológico ter afinidade com a circulação fetal, ao mesmo era dado anteriormente o nome de “persistência da circulação fetal” (impropriamente, pois excluia a circulação placentária).

(*) São utilizadas indiferentemente, com igual significado, neste livro, as siglas HTP ou HPP (hipertensão pulmonar ou hipertensão pulmonar persistente).

A síndroma de aspiração meconial  é a causa mais frequente de HPP, a qual ocorre em cerca de 40-75% dos casos da forma mais grave daquela.

Outras situações associadas a HPP (factores predisponentes) incluem doenças pulmonares parenquimatosas, pneumonia, sépsis, deficiência de surfactante, hipoglicémia, policitémia, terapias maternas in utero com AINE levando a constrição do ductus arteriosus, idem no terceiro trimestre com inibidores selectivos de recaptação da serotonina, hipolasia pulmonar por hérnia diafragmática, perda de líquido amniótico, oligo-hidrâmnio ou derrame pleural.

Os casos de HPP não associados a doença pulmonar parenquimatosa são designados idiopáticos. 

A incidência de HPP no RN é calculada em cerca de 2 a 6 /1.000 nados-vivos, correspondendo a cerca de 0,5 a 1% dos internamentos em UCIN. Apesar dos progressos da perinatologia nas últimas décadas, constitui ainda um problema clínico muito importante em RN de termo e pré-termo, pela mortalidade (~ 20%) e morbilidade, designadamente em termos de sequelas neurológicas importantes (10 a 20 %).

ETIOPATOGÉNESE

Mecanismos de regulação do tono vascular pulmonar

Embora a etiopatogénese da HPP não esteja completamente esclarecida, torna-se fundamental rever alguns mecanismos que regulam o tono vascular pulmonar fetal e pós-natal, alguns dos quais são baseados em estudos experimentais.

Durante a vida fetal a resistência vascular pulmonar (RVP) está aumentada, o que tem como consequência o leito pulmonar receber apenas cerca de 8 a 10% do débito cardíaco. A  maioria do sangue oxigenado na placenta que atinge o ventrículo direito é veiculada   para a aorta, directamente através do canal arterial, e indirectamente através do foramen ovale.

O tono vascular pulmonar durante a gestação parece ser determinado por um balanço entre diversos factores: baixa pressão de oxigénio no sangue, incremento da produção de vasoconstritores como endotelina-1 (ET-1), serotonina (5HT), leucotrienos, tromboxano, factor activador das plaquetas (PAF), hiperreactividade da musculatura lisa da parede vascular arterial (tono miogénico aumentado) e baixa produção de substâncias vasodilatadoras (prostaciclina-PG I2, de menor relevância, e óxido nítrico-NO, de maior relevância).

Recorda-se que o NO (chamado precisamente endothelium derived relaxing factor ou factor de relaxação endotelial) é produzido no endotélio vascular através da conversão de L-arginina em L-citrulina pela enzima sintetase do NO. Uma vez produzido, o NO difunde-se facilmente pelas células de músculo liso causando vasodilatação por estimular a guanilato-ciclase solúvel, aumentando a produção de cGMP (guanosinamonofosfato cíclica).

Os mecanismos responsáveis pela manutenção da RVP aumentada (predomínio dos factores que determinam oligoémia pulmonar) durante a vida fetal não estão completamente esclarecidos; admite-se que, para além da maior produção de factores vasoconstritores, e de menor produção de factores vasodilatadores, tenham papel importante factores mecânicos como a compressão vascular pelo líquido pulmonar fetal.

Não obstante o aumento do território vascular pulmonar ao longo da gestação, relacionável com o crescimento pulmonar fetal, a RVP aumenta com a idade gestacional, estando no seu máximo antes do nascimento, com pressões  na circulação pulmonar  in utero equiparáveis às da circulação sistémica.

Alguns minutos após o nascimento, em condições de normalidade e na ausência de alterações estruturais dos vasos arteriais pulmonares, a pressão da artéria pulmonar diminui rápida e drasticamente, o que se explica pelo aumento da produção de vasodilatadores tais como NO e PG I2 – passando a predominar sobre os vasoconstritores – como resposta a estímulos diversos: distensão rítmica dos pulmões em relação com os movimentos respiratórios, aumento da pressão sanguínea de O2, e estresse do estiramento. Procede-se então à transição para a circulação pulmonar normal com rápido aumento do fluxo sanguíneo pulmonar (aumento de 8 a 10 vezes), queda da RVP, e remoção de fluido pulmonar.

Poderá assim compreender-se que qualquer perturbação na sequência de eventos que conduzem normalmente à diminuição da RVP na transição para a vida extrauterina, poderá criar condições de manutenção de RVP aumentada após o nascimento, e um padrão circulatório arterial pulmonar semelhante ao verificado no feto.

Exemplos de perturbações da circulação pulmonar na transição fetal-neonatal

Citam-se os seguintes:

1 – Desregulação de efeitos vasodilatadores  ou vasoconstrictores por défice de produção de vasodilatadores (por exemplo por situação genética responsável pela menor produção de NO) ou por maior produção de vasoconstritores como a ET-1 ou substâncias vasoactivas produzidas por germes microbianos como Streptococcus agalactiae;

2  – Remodelação vascular pulmonar com manutenção da hiperreactividade da musculatura lisa  arterial pulmonar:

    • por excesso de músculo liso, sobretudo nas artérias de médio calibre (quer em espessura, quer em extensão) como resultado de hipoxémia crónica intra-uterina); e/ou
    • por excesso de músculo liso com idêntica localização como resultado do aumento de débito pulmonar fetal secundário ao encerramento do canal arterial no feto por efeito de anti-inflamatórios não esteróides administrados à grávida;

3 – Diminuição do leito vascular pulmonar no contexto de anomalia congénita (por ex. hipoplasia vascular pulmonar interferindo com a vasculogénese e angiogénese, em situações como a hérnia diafragmática, etc.).

Noções básicas sobre desenvolvimento da vasculatura pulmonar

Dado que a vasculatura pulmonar se desenvolve paralelamente à via aérea, a hipoplasia do leito vascular pulmonar acompanha a hipoplasia pulmonar.

A propósito da muscularização, normal ou excessiva dos ramos arteriais pulmonares, importa recordar sucintamente as seguintes noções:

  1. no que respeita ao desenvolvimento muscular da parede arterial em extensão, ou seja, ao longo do vaso (em paralelo à via respiratória), em condição de normalidade , a muscularização atinge, no RN, apenas a região pré-acinar (até ao bronquíolo terminal-BT); em situação de HPP o desenvolvimento muscular atinge zonas mais distais (em paralelo ao bronquíolo respiratório-BR e ducto alveolar-DA estendendo-se até ao alvéolo) (Figura 1);
  2. no que respeita ao desenvolvimento muscular da parede arterial em espessura – e comparando vasos com idêntico diâmetro externo – a muscularização excessiva traduz-se em menor calibre e, portanto, em maior espessura da parede (Figura 2);

FIGURA 1. Desenvolvimento muscular da parede arterial em extensão.

FIGURA 2. Desenvolvimento muscular da parede arterial em espessura.

Considerando a lei de Poiseuille – a resistência à passagem de fluido (neste caso, sangue) num canal (neste caso, vaso arterial pulmonar) é directamente proporcional à viscosidade do sangue e ao comprimento dos vasos, e inversamente proporcional ao número de vasos e à 4ª potência do raio dos mesmos. A fórmula seguinte é elucidativaà R= 8nL /pi r4 ;  a mesma permite compreender melhor uma classificação etiopatogénica (Quadro 1).

QUADRO 1 – Hipertensão pulmonar persistente no RN. Classificação etiopatogénica.

1. Vasoconstrição pulmonar
Asfixia perinatal, síndroma de aspiração meconial, pneumonia, alterações metabólicas, obstrução das vias respiratórias superiores, hipoventilação, alterações do SNC, etc..
2. Policitémia/Hiperviscosidade
3. Hipertrofia da musculatura lisa arterial pulmonar
Hipoxémia crónica intrauterina, insuficiência placentar, encerramento do canal arterial in utero (salicilatos, indometacina, ibuprofeno), cardiopatia congénita, hipertensão sistémica fetal.
4. Leito vascular pulmonar diminuído
Hipoplasia pulmonar, hérnia diafragmática de Bochdalek, microtrombos pulmonares, quistos pulmonares, estenose da artéria pulmonar, displasia alveolocapilar, etc..

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E EXAMES COMPLEMENTARES

Como regra prática importante, importa referir que, independentemente da história pré-natal, a HPP deve ser suspeitada nos casos de RN de termo com cianose

Tendo em conta a diversidade da patologia de base, as manifestações clínicas podem contudo ser  muito variadas, traduzindo um quadro de hipoxémia grave e refractária com FiO2 de 100%. Os respectivos sinais podem ser muito precoces, por vezes já no pós-parto imediato, e em geral nas primeiras 12 horas de vida.

Nos casos relacionados com policitémia, hipoglicémia, ou asfixia perinatal verifica-se cianose grave associada a taquipneia; contudo, inicialmente os sinais de dificuldade respiratória podem ser muito discretos.

Nos casos relacionados com síndroma de aspiração meconial, pneumonia por Streptococcus do grupo B, hérnia de Bochdalek, ou hipoplasia pulmonar, a SDR é mais exuberante , podendo verificar-se quadro de choque e disfunção multiorgânica.

A sequência de eventos: isquémia do miocárdioà disfunção dos músculos papilares à regurgitação tricúspide e mitral à disfunção biventricular à choque cardiogénico à hipóxia-isquémia tecidual conduz a agravamento da hipoperfusão pulmonar.

Perante quadro clínico sugestivo de HPP, importa discriminar um conjunto de exames complementares com vista a obter o diagnóstico definitivo. Os referidos exames, indicados em situação de hipoxémia grave e refractária, têm como objectivo essencial avaliar a função do miocárdio, demonstrar sinais de curto-circuito direita – esquerda pelo ductus arteriosus e/ou foramen ovale, e excluir doença cardíaca estrutural.

Critérios de diagnóstico de HPP

I. Ecocardiografia em tempo real com Doppler

Este exame, proritário, é fundamental para o diagnóstico definitivo de HPP, permitindo  evidenciar sinais de :

  • pressão elevada na artéria pulmonar (superior a 75% da pressão arterial sistémica);
  • septo auricular procidente/abaulado para a aurícula esquerda;
  • sinais de insuficiência tricúspide;
  • dilatação do ventrículo direito com desvio do septo;
  • aumento da relação entre fase de pré-ejecção ventricular direita/e fase de ejecção ventricular direita;
  • a magnitude da HPP e do curto-circuito direito-esquerdo pelo ductus arteriosus e/ou foramen ovale (*); e, também,
  • avaliar a contractilidade cardíaca;
  • excluir doenças cardíacas estruturais, sobretudo as que dependem do curto-circuito direito-esquerdo como por ex. interrupção do arco aórtico, estenose aórtica, síndroma de disfunção do ventrículo esquerdo.

 

(*) O shunt intracardíaco através do foramen ovale patente não determina gradientes quanto a PaO2 e SpO2.

Independentemente de ser ou não possível  utilizar o eco Doppler, está sempre indicada em concomitância a gasometria sanguínea e a avaliação contínua da SpO2

II. pH e gases no sangue (incluindo Pa O2 pré e pós-ductal), e avaliação contínua da SpO2 pré e pós-ductal.

Os critérios classicamente utilizados para o diagnóstico de HPP são variáveis, considerando-se as seguintes circunstâncias (com elevada probabilidade de HPP):

→ se RN ventilado na modalidade IMV com FiO2 de 100%):

    • cianose central ou
    • PaO2 pós-ductal < 100 mmHg  ou
    • SpO2 pós-ductal < 90%.

→ se RN com labilidade dos níveis de oxigenação arterial [considerando-se na prática, 2 ou mais episódios de diminuição SpO2 ( < 85%) no período de 12 horas obrigando a intensificação do suporte ventilatório].

→ se RN com  diferença de oxigenação arterial entre territórios pré e pós-ductais, considerando como diferença significativa  o gradiente de PaO2 e SpO2 respectivamente pré- ductal (mão direita) e pós –ductal (qualquer dos pés):

    • Gradiente de PaO2 > 20 mmHg ou
    • Gradiente de SpO2 > 5% (para valores de saturação entre 70 e 95%).

De notar que a Pa CO2 é relativamente normal, associando-se acidose marcada traduzindo frca perfusão tecidual.

Para avaliação da gravidade utiliza-se o IO (índice de oxigenação) avaliado de modo seriado:

IO = Pressão média na via aérea x FiO2/Pa O2(mmHg)

 Se IO > 40 em 3 de 5 gasometrias determinadas com intervalos de 30 minutos, o risco de mortalidade é cerca de 80%.

Outros exames
  • Radiografia do tórax
    O padrão depende da doença de base; havendo quadro de HPP grave, verifica-se pobreza da trama pulmonar na periferia, com “amputação” dos vasos, contrastando com dilatação do tronco pulmonar e nos ramos pulmonares principais.
    Nos casos de HPP idiopática, o padrão é de campos pulmonares “claros”, hiperarejados, subvascularizados e com silhueta cardíaca aumentada.
  • Exames laboratoriais
    Para avaliação global e esclarecimento etiológico, em função de cada caso, poderá haver necessidade de determinados exames laboratoriais como hemograma completo, glicémia, calcémia, magnesiémia, etc..
    A determinação do péptido BNP no plasma (consultar Glossário Geral)  merece ser destacada, podendo este marcador, segundo alguns autores,  ser considerado como forma de rastreio para proceder a eco-doppler. Com efeito, valores superiores a 2500 pg/mL estão associados a estresse ventricular direito  e a sinais ecográficos de sobrecarga ventricular, compatíveis com HPP, embora não exclusivos desta última.

TRATAMENTO

Os objectivos gerais dos procedimentos terapêuticos da HPP, a realizar em UCIN, são: tratar a doença de base, melhorar o estado hemodinâmico, corrigir os factores de vasoconstrição arterial pulmonar e melhorar a oxigenação.

Importa referir que todos os cuidados gerais deverão obedecer ao princípio do manuseamento mínimo, tendo em conta a labilidade extrema da situação.

Eis as grandes linhas do tratamento:

  • Oxigenoterapia
  • Ventilação mecânica convencional; estratégia:  sem hiperventilação nem alcalinização; normocarbia ou hipercarbia permissiva, evitando a hipoxemia;
  • Ventilação com alta frequência (VAF) –em certas unidades é utilizada perante falência da ventilação convencional em situações de IO > 20, e acidose respiratória persistente (PaCO2> 60 mmHg e pH < 7,20). Nalguns centros utilizam-se em simultâneo VAF+NOi, obtendo melhores resultados. Não parece estar provado que esta modalidade aplicada de início seja superior à ventilação convencional como estratégia de 1ª linha;
  • Sedantes (midazolam na dose de 1-5 mcg/kg/hora IV).
  • Curarizantes em crianças ventiladas (por ex. pancurónio ou vecurónio) controversos, devendo ser reservados para os casos em que não pode ser usada apenas a sedação.
  • Inotrópicos: elevação da pressão arterial sistémica para manter volume de sangue circulante adequado, enchimento das câmaras cardíacas (sob controlo ecográfico), débito cardíaco adequado e diminuição do curto-circuito direita-esquerda. Este desiderato pode atingir-se com:
    • expansores de volume (por ex. soro fisiológico-10 a 20 mL/kg em 30 minutos).
    • aminas vasopressoras (por ex. dopamina ou dobutamina).
  • Vasodilatadores pulmonares:
    • NOi em ventilação (óxido nítrico inalado com dose inicial de 20 ppm durante 1 hora – vasodilatação selectiva), reduzindo a necessidade de ECMO, excepto nos casos de hérnia diafragmática congénita, e obrigando a monitorização de NO2 produzido.
      Indicações específicas para NOi:
      • HPP/HPT confirmada por eco-Doppler e, pelo menos um de dois critérios
        → IO> 25 em gasometria pós-ductal
        → PaO2 < 100 mmHg com FiO2 de 100%
        ou IO> 40 com ou sem evidência ecográfica de HPP/HTP
    • Sildenafil (inibidor da fosfodiesterase tipo 5- Viagra®) quando NOi não está disponível e em situações seleccionadas; reduzindo a degradação do GMPc, poderá melhorar a oxigenação e reduzir a mortalidade, melhorando o débito cardíaco e a função respiratória;
      De acordo com  estudos recentes, o seu emprego numa fase em que se verifique processo maturativo da retina, erxiste risco de agravamento da retinopatia da prematuridade.
  • Prostaglandina E1 (Prostin®: 0,05-0,1 mcg/kg/minuto IV contínuo) nos casos de ausência de resposta ao NOi;
  • ECMO (Oxigenação por circulação extracorporal com membrana), menos utilizada desde a era do NOi; contudo está indicada na ausência de resposta a esta última técnica, sendo que, como se disse, o NOi reduz a necessidade de ECMO.
  • Outros procedimentos a ponderar, caso a caso:
    • Cateterismo central (artéria umbilical e veia umbilical, designadamente) para mais fácil monitorização de pH e gases, colheitas de sangue para exames laboratoriais, fluidoterapia para expansão de volume vascular, etc., na perspectiva de gerir manuseamento mínimo.
    • Analgésicos derivados dos opióides (fentanil na dose de 1-2 mcg/kg/hora IV contínuo em RN submetidos a ventilação mecânica; ou morfina na dose de 10 mcg/kg/hora IV após dose inicial de impregnação, 1 hora antes, de 100 mcg/kg IV).
    • Correcção de alterações metabólicas.
    • Tratamento de infecções (antibioticoterapia e outras medidas).
    • Tratamento substitutivo com surfactante exógeno.
    • Correcção do hematócrito (objectivo: obter valor ~40%) evitando hiperviscosidade ou anemia.

SEGUIMENTO E PROGNÓSTICO

Após a alta hospitalar as crianças devem ser encaminhadas para centro de desenvolvimento (no pressuposto de apoio multidisciplinar) com o objectivo de se proceder a avaliação periódica, designadamente de tipo neurossensorial, pelo menos até aos seis anos. A avaliação auditiva deverá ser realizada o mais precocemente possível.

A sobrevivência varia com a doença subjacente. Dum modo geral, o prognóstico a longo prazo relaciona-se com a verificação (ou não) de encefalopatia hipóxico-isquémica associada, e com o resultado da terapêutica vasodilatadora pulmonar (bom ou mau). Por outro lado, de acordo com estatísticas recentes, a HPP surge em cerca de 40% dos casos mais graves de displasia broncopulmonar. A proporção de sequelas do neurodesenvolvimento é estimada entre 10 a 20% nos sobreviventes de HPP.

Apesar dos progressos da terapia intensiva, a mortalidade dos RN com HPP continua elevada, nomeadamente nos casos acompanhados de anomalias estruturais dos vasos pulmonares. Excluindo esta situação, a recuperação funcional pulmonar é boa, sem doença residual.

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HEMORRAGIA PULMONAR

Definição e importância do problema

A hemorragia pulmonar, constituindo uma forma de SDR secundária (acompanhando situações clínicas de etiologia diversa), é caracterizada fundamentalmente pela saída de sangue ou fluido hemático de origem pulmonar pelo tubo endotraqueal (TET), boca ou fossas nasais, em situações consideradas críticas, obrigando a ventilação mecânica e/ou a ressuscitação.

Trata-se dum problema clínico raro, mas grave, comportando risco elevado de mortalidade e morbilidade, designadamente no RN pré-termo. No grupo de RN de muito baixo peso (RNMBP), a sua prevalência varia entre 3-32%.

A incidência em autópsias de RN nas primeiras 2 semanas de vida varia entre 1 a 12/1.000 em contexto de prematuridade extrema e PDA.

Etiopatogénese

Embora a etiopatogénese não esteja completamente esclarecida, são considerados determinados factores predisponentes ou de risco, sintetizados nos quadros 1 e 2: asfixia perinatal grave, hipotermia, ventilação mecânica, diátese hemorrágica, sobrecarga de fluidos, hipervolémia, infecção sistémica grave, cardiopatias com curto-circuito esquerda – direita, PDA hemodinamicamente significativa, aspiração de conteúdo gástrico, doença hemorrágica do RN, doenças hereditárias do metabolismo, terapêutica substitutiva com surfactante pulmonar exógeno (nesta última circunstância em cerca de 1 a 5% dos casos), etc..

Admite-se que a formação de edema pulmonar hemorrágico se deve a hipoxémia e acidose determinando insuficiência ventricular esquerda.

Neste contexto, a elevação da pressão na aurícula esquerda leva sequencialmente a elevação da pressão capilar pulmonar, conduzindo por sua vez a edema e ruptura de capilares alveolares em todo o território pulmonar; tal mecanismo é, efectivamente, diverso do verificado no adulto em que, no contexto de insuficiência ventricular esquerda, o excesso de fluido/ edema se localiza apenas nas bases pulmonares.

De referir que alguns dos factores de risco atrás descritos podem estar associados a determinados mecanismos favorecendo o edema hemorrágico: por ex. lesão e fragilidade do tecido pulmonar, desequilíbrio de pressões ao nível capilar pulmonar, défice de factores de coagulação, hipoproteinémia, alteração do surfactante, etc..

No grupo de recém-nascidos pré-termo admite-se o papel de certo grau de edema intersticial e alveolar secundário à elevação do fluxo sanguíneo pulmonar, situação que por sua vez resulta de um desvio esquerda-direita hemodinamicamente significativo através de canal arterial patente. (Quadros 1 e 2)

QUADRO 1 – Mecanismos fisiopatológicos subjacentes à hemorragia pulmonar.

Aumento da pressão venosa pulmonar
Canal arterial patente
Cardiopatia congénita
Lesão endotelial
Infecção
Défice de surfactante
Asfixia
Toxicidade de O2
Redução da drenagem linfática
Ventilação mecânica
Pressão venosa central elevada
Fibrose pulmonar
Coagulopatia

QUADRO 2 – Principais factores de risco de hemorragia pulmonar neonatal.

1In utero (ex: restrição de crescimento fetal), intraparto (ex: encefalopatia hipóxico-isquémica), pós-parto (ex: síndroma de aspiração meconial, entubação difícil).

Persistência de canal arterial
Prematuridade
Restrição de crescimento intra-uterino
Peso de nascimento < 1500g
Administração de surfactante
Ausência de corticoterapia pré-natal em RN prematuro
Reanimação imediata com VPP
Ventilação mecânica

DMH precoce e grave
Sépsis
Asfixia1
Hipotermia
Coagulopatia
Trombocitopenia (< 100.000/ul)
Policitémia
Doença hereditária do metabolismo

Manifestações clínicas, laboratoriais e imagiológicas

Dum modo geral, os sinais clínicos (saída de líquido hemático pela boca, fossas nasais e TET) coincidem com agravamento da situação clínica de base e/ou manobras de reanimação; pode surgir bradicárdia, hipotensão e choque.

As alterações laboratoriais mais frequentes são: agravamento de hipóxia e hipercapnia, acidose mista; anemia aguda com redução do hematócrito ≥10%; plaquetas normais ou ↓/ ou ↑; tempos de coagulação, fibrinogénio, D-Dímeros normais ou/↑.

A imagem radiográfica do tórax é variável, sendo que nas formas graves pode haver opacidades dispersas, ou opacidade difusa bilateral (semelhante à imagem do chamado ”pulmão branco”), relacionável com situações de base, tais como de insuficiência ventricular esquerda, choque e compromisso estrutural e funcional do surfactante.

O ecocardiograma com doppler pode evidenciar sinais de canal arterial persistente. É necessário excluir defeitos do ciclo da ureia pelo doseamento de amónia sérica (sobretudo em recém-nascidos de termo).

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial pode fazer-se com certo número de situações:

  • Traumatismo local por entubação ou sucção/aspiração (vestígios de sangue vivo/ digerido nas secreções respiratórias, ausência de deterioração clínica súbita, sem necessidade de terapêutica dirigida);
  • Sangue materno aspirado na reanimação;
  • Sépsis, coagulopatia, cardiopatia, corpo estranho;
  • Manifestação inicial de doença hereditária do metabolismo, designadamente defeitos do ciclo da ureia, o que implicará dosear a amoniémia se houver forte suspeita clínica.

Tratamento e prognóstico

O tratamento em regime de UCIN inclui fundamentalmente: correcção da doença de base, aspiração das vias aéreas, administração de adrenalina por via traqueal para constrição dos vasos pulmonares, reposição das perdas de sangue, ventilação mecânica com PEEP elevada e, havendo recursos técnicos, HFV.

Nalguns centros, na fase pós-hemorragia, com o fundamento de que a presença intra-alveolar de sangue e proteínas afecta a compliance pulmonar, é administrado surfactante. Tal atitude é controversa, pois há estudos demonstrando que a hemorragia pulmonar pode ser desencadeada pela administração de surfactante.

O prognóstico, dependendo da etiologia, dum modo geral, é mau. Com efeito, no pré-termo, a mortalidade oscila entre 30 e 60%, e em mais de metade dos sobreviventes pode surgir doença pulmonar crónica. Entre os RN de termo com hemorragia pulmonar, a mortalidade relaciona-se sobretudo com a patologia de base.

O risco de surgimento de displasia broncopulmonar ronda os 60%. A sobrevida com disfunção neurossensorial é cerca de duas vezes superior em lactentes com antecedentes de hemorragia pulmonar grave.

Outra patologia sequelar inclui elevada incidência de leucomalácia periventricular, paralisia cerebral, défice cognitivo e epilepsia.

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SÍNDROMAS DE AR ECTÓPICO

Definição e importância do problema

A designação de síndroma de ar ectópico intratorácico (SAEIT) engloba um conjunto de situações clínicas nas quais se verifica a existência de ar fora da via respiratória (em zonas vizinhas ou circundantes da mesma), em geral como resultado de solução de continuidade do epitélio respiratório.

Dependendo da localização do ar fora da via respiratória (interstício do parênquima pulmonar, entre os dois folhetos da pleura, entre os dois folhetos do pericárdio, e/ou no mediastino), surgem as designações respectivamente de enfisema intersticial pulmonar, pneumotórax, pneumopericárdio, pneumomediastino. O pneumotórax (que pode surgir secundariamente a pneumomediastino) e o enfisema pulmonar intersticial explicam cerca de metade dos casos de SAEIT.

Pela continuidade anatómica do tecido intersticial pulmonar/torácico com o interstício das baínhas peribroncovasculares, ao longo dos vasos do pescoço ou dos grandes vasos que atravessam o diafragma, poderão surgir secundariamente situações caracterizadas por “ar ectópico” extra-torácico: tecido celular subcutâneo (enfisema subcutâneo), cavidade peritoneal (pneumoperitoneu), no interstício do escroto (pneumoscroto) (síndromas de ar ectópico extratorácico – SAEET), ou mesmo na circulação sistémica por ruptura de alvéolos na proximidade dos pequenos vasos pulmonares (embolia gasosa) que pode ter localização intra ou extra-torácica (síndroma de ar ectópico intra e extra-torácico).

Em pneumologia neonatal o aparecimento de SAEIT constitui factor de morbilidade e de mortalidade, sobretudo no RN pré-termo. Com efeito, as SAEIT desenvolvem-se em cerca de 1-2% dos RN, habitualmente como complicação da ventilação mecânica em pulmões imaturos e frágeis, afectando principalmente RN pré-termo, com uma incidência inversamente proporcional ao peso de nascimento e idade gestacional.

A frequência de SAEIT tem diminuído ao longo do tempo, o que é explicável pelos progressos realizados em cuidados perinatais, cada vez menos invasivos; salienta-se que aquela depende da existência de patologia respiratória de base: 50 vezes superior se tal se verificar.

Neste capítulo procede-se à abordagem das formas mais representativas de SAEIT, dando especial ênfase ao pneumotórax e ao enfisema pulmonar intersticial.

Esta patologia constitui um factor importante de morbilidade (hemorragia intraperiventricular e displasia broncopulmonar) e de mortalidade (20-30%) nesta população, pelo que a sua prevenção através do uso de corticóides pré-natais, surfactante pulmonar precoce e de estratégias de ventilação protectoras do pulmão, desde o nascimento, como a ventilação não invasiva precoce, a ventilação sincronizada, com volume controlado, volumes e pressões mais baixos, tempos inspiratórios mais curtos e frequências mais altas, é essencial, principalmente no RN pré-termo com patologia pulmonar.

1. PNEUMOTÓRAX

Aspectos epidemiológicos

Em cerca de 1% dos RN de termo, saudáveis, pode surgir pneumotórax, em geral assintomático; as frequências de tal patologia, mais elevadas no período neonatal do que em qualquer outro período da vida, traduzem a magnitude do problema:

  • Corresponde a cerca de 0,1- 0,25% da totalidade dos problemas respiratórios neonatais de acordo com estudos epidemiológicos;
  • O pneumotórax espontâneo é cerca de 10 vezes mais frequente no RN em relação a outras idades;
  • Surge em cerca de 5-10% dos casos de DMH, frequência que aumenta nos casos submetidos a ventilação mecânica;
  • Em 10% dos casos, o pneumotórax é bilateral;
  • Nas situações de síndroma de aspiração meconial, o pneumotórax pode surgir em 20 a 50% dos casos.

Etiopatogénese

As particularidades anatomofisiológicas do pulmão do RN constituem factores de vulnerabilidade, facilitando o aparecimento do ar entre os dois folhetos pleurais. Destacam-se os seguintes factores:

  • Elevadas pressões inspiratórias utilizadas no pós-parto imediato;
  • Imaturidade estrutural do parênquima pulmonar, mais notória no RN pré-termo, traduzida essencialmente por menor elasticidade e menor distensibilidade, sobretudo antes das 30-32 semanas (o que se explica pelo défice de elastina e de surfactante, respectivamente); o défice quantitativo ou qualitativo de surfactante obriga ao emprego de pressões inspiratórias mais elevadas ao proceder-se a ventilação artificial por problema respiratório prévio, o que aumenta a probabilidade de ruptura nas vias aéreas;
  • Menor número de comunicações ou “canais” interalveolares (poros de Kohn) e entre bronquíolos mais distais (canais de Lambert), tanto mais notório quanto menor a idade gestacional, salientando-se que tais “derivações” ou “curto-circuitos fisiológicos” permitem distribuição mais homogénea, em volume e pressão, de ar nas vias terminais; inversamente, o défice de tais estruturas faz com que, com maior probabilidade, possa haver zonas hiper e hipodistendidas, com maior risco, quer de pneumotórax espontâneo, quer de volutrauma, atelectrauma e barotrauma nos casos de ventilação artificial;
  • Maior susceptibilidade às infecções (que poderão ter origem pré-natal): como um dos fenómenos comuns às infecções, cabe salientar o papel dos neutrófilos recrutados e sequestrados na área do processo infeccioso que, através da produção de elastase, originam alteração e ruptura da elastina com as consequências atrás descritas;
  • Nos casos de obstrução parcial ou total, por sangue, mecónio ou líquido amniótico, em certas áreas dos brônquios e bronquíolos, poderá verificar-se distribuição heterogénea do ar inspirado (zonas hiperventiladas e hiperdistendidas e zonas hipoventiladas); nos casos de obstrução parcial poderá gerar-se mecanismo valvular determinando acumulação progressiva de ar em certas áreas e ruptura alveolar consequente, mesmo sem manobras de reanimação (pneumotórax espontâneo); torna-se claro que as manobras de reanimação condicionando a génese de pressões inspiratórias elevadas aumentam a probabilidade de ruptura alveolar (Figura 1);
  • O pneumotórax também poderá surgir como consequência de manobras intempestivas: perfuração das estruturas com sonda de aspiração no âmbito dos cuidados ao RN com SDR ou utilização de tempo inspiratório longo com baixa frequência em RN ventilados mecanicamente.

Como resultado da ruptura alveolar ou dos bronquíolos, o ar difunde-se através do espaço broncovascular atingindo a cavidade pleural após formação de pequenas “bolhas de distensão gasosa” por “descolamento” localizado do folheto visceral da pleura; tais bolhas, rompendo-se depois, levam à acumulação de ar entre os folhetos parietal e visceral da pleura.

A acumulação ectópica de ar na cavidade pleural conduz a:

  • alteração da ventilação-perfusão por compressão das vias aéreas, levando a hipoxémia e hipercápnia;
  • compressão dos vasos sanguíneos intersticiais, susceptível de originar quadro de hipertensão pulmonar e curto-circuito extrapulmonar, o que agrava a hipoxémia;
  • aumento progressivo da pressão intratorácica levando a diminuição do retorno venoso e do débito cardíaco com hipotensão arterial e isquémia em territórios como o rim e encéfalo; de salientar que as variações da pressão arterial no contexto de quadro de dificuldade respiratória e manuseamento do RN, por vezes inadvertidamente intempestivo, podem provocar oscilações do débito cerebral, do que poderá resultar hemorragia intraperiventricular, sobretudo no pré-termo.

FIGURA 1. Mecanismo do pneumotórax do RN: obstrução total → hipoventilação; obstrução parcial → mecanismo valvular levando a acumulação progressiva de ar; ruptura alveolar.

Manifestações clínicas

O pneumotórax espontâneo poderá ser assintomático, constituindo um achado radiológico inesperado, ou traduzir-se por SDR ligeira.

Nos casos de pneumotórax sob tensão pode manifestar-se de modo agudo, com deterioração do estado geral, e agravamento do quadro de dificuldade respiratória inicial já instalado: cianose, agitação traduzindo hipoxémia grave, bradicárdia e choque; tal agravamento é muito sugestivo da patologia em análise se o RN estiver submetido a ventilação mecânica.

Tratando-se de pneumotórax unilateral, verifica-se hipersonoridade à percussão no lado afectado e desvio do choque da ponta, mais fácil de se notar à esquerda; de salientar que a semiologia auscultatória nem sempre fornece dados concludentes, uma vez que há possibilidade de transmissão do murmúrio vesicular do lado são, o que pode ser explicado pelas dimensões exíguas da caixa torácica do RN.

Um sinal indirecto é constituído pelo aparecimento abrupto de abdómen tenso e distendido (associado a hepato e esplenomegália) por empurramento do diafragma pela pressão do ar ectópico supradiafragmático.

Exames complementares

O exame complementar de eleição é a radiografia do tórax.

A imagem típica do pneumotórax corresponde a uma área de hipertransparência em que não se visualiza sinal de parênquima ou de vasos pulmonares na face lateral e/ou medial do hemitórax, uni ou bilateralmente, com desvio da silhueta cardíaca. (Figura 2)

Segundo o American College of Chest Physicians o pneumotórax classifica-se em: – pequeno (ocupando <20% do espaço pulmonar na radiografia); – moderado (20-40%) e; – grande (>40%).

Nos casos de acumulação abundante de ar sob forte tensão (hipertensivo, ou seja, correspondente a situação em que o volume do ar ectópico aumenta progressivamente) pode observar-se colapso do pulmão homolateral e desvio mediastínico para o lado oposto, assim como rectificação ou inversão da curvatura da linha diafragmática. (Figura 3)

Tratando-se de pneumotórax de pequenas dimensões, a sua detecção poderá ser difícil tendo em conta que o referido exame é realizado classicamente no berço ou incubadora com o RN em decúbito dorsal. Assim, para confirmação, o exame deverá ser feito com o RN em decúbito lateral ou, em alternativa, em decúbito dorsal com a ampola de raios X colocada lateralmente (raios horizontais); em tais circunstâncias, poderá visualizar-se eventual transparência retrosternal, não notada na posição convencional (Figura 4). No pneumotórax de localização medial deverá fazer-se o diagnóstico diferencial com o pneumomediastino.

A técnica de transiluminação consiste em aplicar luz proveniente de lâmpada halogénia ou de fonte emissora de fibra óptica, cuja extremidade é circular e plana para se ajustar à pele, em contacto e perpendicularmente a esta. Com tal técnica obtém-se um halo luminoso na superfície torácica em torno da fonte luminosa: havendo conteúdo líquido ou gasoso sob a zona explorada (neste caso, parede do tórax), verifica-se maior dispersão da luz, formando-se um halo maior.

Este método não invasivo tem a vantagem de permitir tirar conclusões de modo rápido, mas implica experiência por parte do observador e ambiente semelhante a “câmara escura”, no decurso da execução do procedimento.

Tratando-se de pneumotórax de pequenas dimensões, a sua detecção poderá ser difícil tendo em conta que o referido exame é realizado classicamente no berço ou incubadora com o RN em decúbito dorsal. Assim, para confirmação, o exame deverá ser feito com o RN em decúbito lateral ou, em alternativa, em decúbito dorsal com a ampola de raios X colocada lateralmente (raios horizontais); em tais circunstâncias, poderá visualizar-se eventual transparência retrosternal, não notada na posição convencional (Figura 4). No pneumotórax de localização medial deverá fazer-se o diagnóstico diferencial com o pneumomediastino.

A técnica de transiluminação consiste em aplicar luz proveniente de lâmpada halogénia ou de fonte emissora de fibra óptica, cuja extremidade é circular e plana para se ajustar à pele, em contacto e perpendicularmente a esta. Com tal técnica obtém-se um halo luminoso na superfície torácica em torno da fonte luminosa: havendo conteúdo líquido ou gasoso sob a zona explorada (neste caso, parede do tórax), verifica-se maior dispersão da luz, formando-se um halo maior.

Este método não invasivo tem a vantagem de permitir tirar conclusões de modo rápido, mas implica experiência por parte do observador e ambiente semelhante a “câmara escura”, no decurso da execução do procedimento.

Tratamento

Se o RN não estiver submetido a ventilação mecânica e os sinais de dificuldade respiratória forem ligeiros, a administração de oxigenoterapia com FiO2 a 95% (monitorizando simultaneamente a SpO2) é, em geral, suficiente como estratégia que promove a reabsorção do ar no sentido cavidade pleural → capilares.

FIGURA 2. Imagem radiográfica de pneumotórax esquerdo com desvio da silhueta cardíaca para a direita. (URN-HDE)

FIGURA 3. Pneumotórax sob tensão à direita; inversão da curva diafragmática respectiva. (NIHDE)

FIGURA 4. A – Pneumotórax de pequena dimensão mais visível à direita (incidência póstero-anterior); B – Sinal de ar ectópico retrosternal (incidência de perfil em decúbito dorsal a que corresponde incidência ântero-posterior sem alterações aparentes) noutro RN. (URN-HDE)

Com efeito, uma vez que a pressão do ar no espaço do pneumotórax é da ordem de 760 mmHg (correspondente à pressão atmosférica), e a pressão de oxigénio no sangue dos capilares pulmonares “em contacto” é mais baixa, criam-se condições para um fluxo de gás no sentido da zona de maior pressão para a zona de menor pressão, ou seja, no sentido pleura à capilar, viabilizando a diminuição progressiva do volume de ar pleural. Como precaução, com a oxigenação que se promove, a SpO2 não deve ultrapassar 93%.

Como medida emergente a realizar por especialista experiente, e em condições de assépsia, poderá utilizar-se uma cânula de calibre 19-21 G, aplicada a seringa de 20 mL com soro fisiológico intercalando torneira de 3 vias; a punção é feita no 4º espaço intercostal, na linha axilar anterior, aspirando-se o ar em repetidas operações (borbulhando no soro), com a precaução, de fechar a torneira ao retirar a seringa para extracção do ar aspirado.

O tratamento mais eficaz do pneumotórax sob tensão é a drenagem pleural ligada a um sistema de drenagem subaquática garantindo uma pressão negativa de aspiração entre [– 10 ]e [– 20 ] cm H2O (1-2 kPa). (Figura 5)

Prevenção

Para além das medidas de prevenção da infecção pré e pós-natal, susceptível de fragilizar o parênquima pulmonar, o emprego de manobras pouco agressivas na estabilização/reanimação do RN ao nascer, o uso precoce de surfactante pulmonar, de ventilação não invasiva (CPAP nasal) mais precoce, ventilação invasiva menos agressiva, com tolerância de hipoxemia e hipercápnia permissivas, e durante menos tempo, o uso de modos ventilatórios protectores (ventilação sincronizada, com volume controlado, pressões e tempos inspiratórios mais baixos e frequências respiratórias mais altas), são estratégias que ajudam a diminuir a incidência de pneumotórax.

FIGURA 5. Localização dos drenos pleurais e ligação ao frasco com tubo introduzido abaixo do nível da água; o comprimento em cm deste tubo submerso na água corresponde à pressão negativa em cm de H2O. Outro tubo do frasco está acima do nível da água e aberto para atmosfera.

Prognóstico

O prognóstico em termos de morbilidade e de mortalidade depende fundamentalmente da doença de base, dos efeitos sistémicos do ar ectópico e da idade gestacional. De salientar que nos RN com prematuridade extrema (idade gestacional <28 semanas) a frequência de HIPV é cerca de 80-90% se surgir hipotensão durante o episódio de pneumotórax; por outro lado, tal frequência reduz-se para 10% se não surgir hipotensão.

2. ENFISEMA PULMONAR INTERSTICIAL

Definição

O enfisema pulmonar intersticial (EPI) é a presença de ar no interstício ou tecido perivascular do pulmão, como consequência da ruptura de alvéolos ou de bronquíolos.

Aspectos epidemiológicos

O EPI tem sido identificado em cerca de 10% das necrópsias de RN de termo e em cerca de 25% das de RN muito pré-termo (28-31 semanas) ou pré-termo extremo (22-27 semanas). Salienta-se que este problema clínico tem sido observado quase exclusivamente em RN ventilados e com antecedentes perinatais de corioamnionite.

Etiopatogénese

Após ruptura alveolar, o ar difunde-se para o interstício formando pequenas colecções quísticas com diâmetro variando entre 0,1 e 1 cm, localizadas nos septos interlobulares e estendendo-se do hilo para a periferia do pulmão; tais alterações podem ser localizadas ou difusas. Surgem mais frequentemente no contexto de RN com DMH ventilados e, menos frequentemente, em casos de síndromas de aspiração e de sépsis.

Como consequência das alterações descritas que comprimem o parênquima, verifica-se também diminuição da distensibilidade (compliance) pulmonar e do débito pulmonar.

O EPI está associado a elevação da elastase dos leucócitos nos aspirados traqueais, o que poderá sugerir o papel da infecção intrauterina na génese da doença.

Manifestações clínicas

Ao contrário do que acontece em certas formas de pneumotórax, o EPI manifesta-se de modo gradual: na sua forma mais típica, e no decurso da ventilação mecânica, agravamento do quadro clínico, o que leva à necessidade de intensificar o suporte ventilatório por alteração da ventilação-perfusão e hipoxémia. A semiologia clínica permite detectar, em geral, diminuição da amplitude dos movimentos torácicos, hiperinsuflação e diminuição da intensidade dos sons cardíacos.

Exames complementares e diagnóstico diferencial

A radiografia do tórax, exame complementar fundamental para o diagnóstico, evidencia sinais de pequenas colecções aéreas ou radiolucências de forma quística (tipo “esponjoso”, grosseiras) ou linear, de dimensões variadas. As lesões podem ser localizadas (sobretudo na periferia ou regiões médias), ou difusas, uni ou bilateralmente, não se ramificando.

Nas formas lineares, o diagnóstico diferencial faz-se com o chamado “broncograma aéreo”, típico da DMH; neste último, as lesões lineares hipertransparentes ramificam-se, predominam nas regiões hilares (não na periferia) e nos lobos inferiores. (Figura 6)

Prevenção e tratamento

A prevenção passa essencialmente pela adopção duma estratégia de suporte ventilatório mínimo para garantir oxigenação adequada.

Os princípios básicos do tratamento, que têm como objectivo fundamental reduzir o barotrauma, dizem respeito, sobretudo a:

  • Diminuição da PEEP, do tempo inspiratório – cerca de 0,3 segundos (utilizando ventilação convencional);
  • Estratégia de baixo volume (utilizando ventilação de alta frequência).

FIGURA 6. Sinais de enfisema intersticial pulmonar associados a pneumotórax. São notórias pequenas áreas quísticas intraparenquimatosas no campo pulmonar esquerdo. (URN-HDE)

Prognóstico

Chama-se a atenção para a mortalidade elevada nas formas de EPI de início nas primeiras 24-48 horas. A forma difusa de EPI está mais frequentemente associada a doença pulmonar crónica (ver adiante, capítulo sobre Displasia broncopulmonar).

3. PNEUMOMEDIASTINO

A presença de ar ectópico no mediastino é quase sempre precedida de enfisema pulmonar intersticial. A etiopatogénese é semelhante à descrita a propósito do pneumotórax e EPI.

Exceptuando nos casos de pneumotórax associado, o RN com quadro de pneumomediastino está habitualmente assintomático ou exibe sinais de dificuldade respiratória ligeira. Pode verificar-se aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax, hipersonoridade do tórax à percussão e diminuição dos sons cardíacos.

Nos casos graves podem observar-se sinais de baixo débito cardíaco por repercussão hemodinâmica (compressão do coração e pulmões).

A radiografia do tórax em incidência póstero-anterior evidencia zona de hipertransparência na área mediastínica impedindo a visualização do pedículo vascular (Figura 7); contornando a silhueta cardíaca, exceptuando no contorno inferior; nalguns casos é possível observar-se imagem do timo “como que levantado ou subido” dando a imagem em “sinal da vela”. Através de ecografia é possível fazer a destrinça entre pneumomediastino e pneumotórax de localização medial.

FIGURA 7. Imagem radiográfica de pneumomediastino: incidência póstero-anterior com sinais de acumulação de ar no mediastino impedindo a visualização de pedículo vascular cardíaco e compressão centrífuga do parênquima pulmonar bilateralmente. (URN-HDE)

FIGURA 8. Imagem radiográfica de pneumopericárdio associado a pneumomediastino. (NIHDE)

FIGURA 9. Imagem radiográfica de pneumopericárdio. (NIHDE)

A atitude a tomar deverá ser expectante, com vigilância rigorosa dos sinais vitais e grau de oxigenação, tendo em conta que a recuperação é espontânea na maioria dos casos.

4. PNEUMOPERICÁRDIO

Relativamente ao pneumopericárdio, caracterizado pela presença de ar no saco pericárdico, admite-se que o gás, sob alta pressão, possa penetrar na cavidade pericárdica ao nível da zona de rebatimento ou de transição do pericárdio visceral para o pericárdio parietal.

As manifestações clínicas, variáveis, dependem da rapidez com que se acumula o gás, sendo de notar que o primeiro sinal poderá ser hipotensão. Assim descrevem-se:

  • Formas oligossintomáticas (correspondendo a acumulação lenta sem aumento significativo da pressão intrapericárdica); e
  • Formas de início súbito com palidez, taquicárdia, hipotensão e choque, com ulterior bradicárdia e diminuição da amplitude do pulso; estas manifestações explicam-se por tamponamento com acumulação mais brusca e abundante de gás, sendo que a pressão intrapericárdica se aproxima da pressão venosa central, o que tem repercussão sobre a ejecção ventricular.

A radiografia do tórax evidencia área de hipertransparência envolvendo toda a silhueta cardíaca, inclusivamente no seu contorno inferior (supradiafragmático). Recorda-se que na imagem do pneumomediastino tal bordo é preservado. (Figuras 8 e 9)

A atitude nos casos de pneumopericárdio assintomático é “expectante armada”. O tratamento efectivo do pneumopericárdio sintomático com sinais de tamponamento cardíaco consiste na punção pericárdica ou drenagem com agulha e seringa ao nível da zona infraxifoideia, com inclinação da agulha para cima e para trás, em condições de assépsia com o apoio ecográfico e em UCIN. Trata-se, pois, dum procedimento que exige experiência.

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