Definição e importância do problema

Este problema clínico, fazendo parte dum grupo de afecções que têm em comum um quadro de diátese por carência de vitamina K, surge em crianças não submetidas a profilaxia com vitamina K no pós-parto imediato.

Considerando globalmente todas as formas clínicas (adiante discriminadas), estima-se uma incidência global de 0,1 a 1,8/100 RN, em confronto com cerca de 0,07-0,25/100.000 RN nos casos de administração profiláctica de vitamina K1.

Etiopatogénese

A vitamina K, indetectável no sangue do cordão, constitui um substrato essencial para a síntese de proteínas coagulantes nas quais se incluem os factores II, VII, IX, X, e anticoagulantes (proteína C e proteína S).

Por sua vez, o défice dos factores II, VII, IX e X conduz a défice de protrombina.

Em circunstâncias fisiológicas verifica-se habitualmente uma diminuição moderada dos factores II, VII, IX e X entre as 48-72 horas de vida (no RN pré-termo entre as 48 horas e os 7 dias de vida), com normalização dos respectivos níveis entre os 7 e 10 dias de vida (no RN pré-termo, mais tarde).

Este défice transitório de factores dependentes da vitamina K deve-se provavelmente ao défice de vitamina K livre na grávida/mãe, e à ausência de microbioma bacteriano intestinal do RN que sintetiza a referida vitamina (designadamente Lactobacillus); como consequência, poderá surgir hemorragia espontânea, mais ou menos prolongada.

Sendo o leite materno deficitário em vitamina K (1-9 mcg/L), tal predisposição é mais acentuada em RN alimentados com leite humano. Em comparação, as fórmulas contêm 53-66 mcg/L).

Os estados de carência materna de vitamina K no RN podem também ser provocados por fármacos administrados à mãe (por ex. fenobarbital, fenitoína) interferindo no metabolismo daquela. De salientar, por outro lado, que situações que ultrapassam o período neonatal (no lactente) acompanhadas de má-absorção intestinal, hepatite, atrésia das vias biliares ou de supressão da microbiota intestinal por antibioticoterapia oral prolongada, podem originar situações de carência acentuada de vitamina K com manifestações hemorrágicas mais tardias, caso não se verifique compensação através do regime nutricional.

Manifestações clínicas

São descritas três formas de apresentação da doença hemorrágica por carência de vitamina K no RN e lactente, designadas respectivamente precoce, clássica e tardia:

  1. Precoce (em geral nas primeiras 24 horas de vida), aguda e rara, quase exclusivamente observada em filhos de pacientes medicadas com fármacos que inibem a vitamina K, nomeadamente anticonvulsantes (carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, primidona, metsuximida), tuberculostáticos (rifampicina, isoniazida), alguns antibióticos (cefalosporinas) e antagonistas da vitamina K; poderão surgir hematemese, melena, hemorragia intrabdominal, hemorragia intracraniana e céfalo-hematoma exuberante;
  2. Clássica (em geral entre o 2º e 7º dias de vida), caracterizada por um ou mais dos seguintes sinais: epistaxe, hematemese, melena, hemorragia umbilical, hemorragia vaginal, equimoses, hematúria e, raramente, hemorragia intracraniana. Tratando-se de situação hoje rara face à atitude profiláctica sistemática, os casos descritos têm sido associados a alimentação com leite materno exclusivo na ausência de profilaxia;
  3. Tardia (em geral entre as 2 e 12 semanas de vida), com incidência ~2 a 10/100.000 nados vivos, ocorrendo sobretudo nas seguintes circunstâncias:
    • aleitamento materno exclusivo sem antecedentes de profilaxia com vitamina K ao nascer;
    • antecedentes de má absorção intestinal (fibrose quística, diarreia crónica, doença celíaca), atrésia das vias biliares, hepatite, défice de alfa 1-antitripsina, etc.. Com manifestações sobreponíveis à forma clássica, a probabilidade de hemorragia intracraniana é, no entanto, maior.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da doença hemorrágica do RN por défice de vitamina K faz-se fundamentalmente com a coagulação intravascular disseminada e o défice congénito de um ou mais factores de coagulação (que não os dependentes da vitamina K).

Chama-se a atenção para o facto de somente cerca de 5 a 30% dos casos de défice de factores VIII e IX se manifestarem no período neonatal.

Nos casos de hemorragia gastrintestinal poderá admitir-se a hipótese de síndroma de sangue materno deglutido, eventualmente presente no estômago ou nas fezes, (por exemplo explicável por fissuras mamárias) utilizando-se a prova de Apt; esta prova baseia-se na detecção de sangue do RN (em que predomina a Hb fetal que é álcali-resistente); quando negativa, significa que o sangue é de origem materna, ou deglutido, ou aspirado durante o parto ou na amamentação.

No RN pré-termo, a verificação de equimoses poderá ser explicável por fragilidade capilar, e não por défice de vitamina K ou por défice de factores de coagulação.

Exames complementares

Como resultado da avaliação laboratorial, registam-se os dados essenciais:

  • TP (tempo de protrombina) aumentado
  • aPTT (tempo parcial de tromboplastina activada) aumentado

A vitamina K facilita a carboxilação pós-transcrição dos factores II, VII, IX e X; na ausência de carboxilação, surgem no plasma factores de coagulação denominados PIVKA (protein induced in vitamin K absence).

Estes, virtualmente não funcionais no processo de coagulação, constituem um marcador com elevada sensibilidade para detecção da carência de vitamina K.

O tempo de hemorragia, o número de plaquetas circulantes, o nível dos factores V, VIII, de fibrinogénio, a fragilidade capilar e a retracção do coágulo evidenciam valores normais no recém-nascido de termo.

Prevenção

Considerando as diversas formas clínicas anteriormente descritas, são diversos esquemas preventivos:

No RN

1 – Como rotina, no RN de termo, cita-se a administração sistemática no pós-parto de vitamina K1 na dose de 1 mg por via intramuscular (IM) ou subcutânea (SC); dose de 0,5 mg se RN de peso <1.500 g.
Nos casos em que é recusada pelos pais a administração de vitamina K por via IM, pode utilizar-se com segurança, por via oral, o preparado que se utiliza por via IM ou SC, mas na dose de 2 mg, com o seguinte esquema: ao nascer e aos 7 dias, e ao 1 mês de idade se RN alimentado ao peito.
Salienta-se:

  • que tal esquema de rotina poderá não ser tão efectivo em todas as formas clínicas de doença hemorrágica do RN; e
  • que a vitamina K por via oral é menos efectiva na prevenção da forma tardia.

Nota importante: não foi comprovada a possível associação entre cancro na idade pediátrica e administração de vitamina K por via intramuscular admitida há anos por alguns autores; a absorção por via SC é semelhante à absorção por via IM.

 

  1. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose semanal) nos RN submetidos a nutrição parentérica total; ou preparado comercial contendo vitamina K1.
  2. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose mensal) nos casos de RN e lactentes com antecedentes de restrição do crescimento fetal, ou com estados de desnutrição de diversas etiologias, alimentados exclusivamente com leite humano e submetidos a antibioticoterapia de largo espectro.
  3. Vitamina K1 :1 mg por via IM (uma dose mensal) em situações de doença crónica com risco elevado de diátese hemorrágica por défice de viatmina K: fibrose quística, hepatite neonatal, défice de alfa 1-antitripsina, doença celíaca, diarreia crónica, etc..

Na grávida (submetida a tratamento com anticonvulsantes)

  • Administração no terceiro trimestre de vitamina K1: 5 mg/dia por via oral e/ou de 10 mg IM quatro horas antes do parto, seguida de profilaxia no RN.

Na lactante (submetida a tratamento com anticonvulsantes)

  • Administração de vitamina K1: 5 mg/dia por via oral enquanto durar a amamentação.

Tratamento

Nos casos de doença estabelecida, procede-se do seguinte modo:

  • Vitamina K1 na dose de 2 a 10 mg (20 mg nos casos de hemorragia intracraniana ou formas graves) por via SC; dever-se-á evitar a administração por via IM (pelo risco de formação de hematomas); igualmente poderá ser utilizada a via IV na dose entre 1-5 mg, com precaução pelo risco de reacção anafiláctica e de morte súbita;
  • Plasma fresco congelado para reposição dos factores de coagulação deficitários: 10-20 mL/kg;
  • Outros procedimentos incluem (em casos de hemorragia gástrica) lavagem gástrica com soro fisiológico à temperatura ambiente até obtenção de aspirado gástrico claro.

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