Definição e importância do problema
A hemorragia pulmonar, constituindo uma forma de SDR secundária (acompanhando situações clínicas de etiologia diversa), é caracterizada fundamentalmente pela saída de sangue ou fluido hemático de origem pulmonar pelo tubo endotraqueal (TET), boca ou fossas nasais, em situações consideradas críticas, obrigando a ventilação mecânica e/ou a ressuscitação.
Trata-se dum problema clínico raro, mas grave, comportando risco elevado de mortalidade e morbilidade, designadamente no RN pré-termo. No grupo de RN de muito baixo peso (RNMBP), a sua prevalência varia entre 3-32%.
A incidência em autópsias de RN nas primeiras 2 semanas de vida varia entre 1 a 12/1.000 em contexto de prematuridade extrema e PDA.
Etiopatogénese
Embora a etiopatogénese não esteja completamente esclarecida, são considerados determinados factores predisponentes ou de risco, sintetizados nos quadros 1 e 2: asfixia perinatal grave, hipotermia, ventilação mecânica, diátese hemorrágica, sobrecarga de fluidos, hipervolémia, infecção sistémica grave, cardiopatias com curto-circuito esquerda – direita, PDA hemodinamicamente significativa, aspiração de conteúdo gástrico, doença hemorrágica do RN, doenças hereditárias do metabolismo, terapêutica substitutiva com surfactante pulmonar exógeno (nesta última circunstância em cerca de 1 a 5% dos casos), etc..
Admite-se que a formação de edema pulmonar hemorrágico se deve a hipoxémia e acidose determinando insuficiência ventricular esquerda.
Neste contexto, a elevação da pressão na aurícula esquerda leva sequencialmente a elevação da pressão capilar pulmonar, conduzindo por sua vez a edema e ruptura de capilares alveolares em todo o território pulmonar; tal mecanismo é, efectivamente, diverso do verificado no adulto em que, no contexto de insuficiência ventricular esquerda, o excesso de fluido/ edema se localiza apenas nas bases pulmonares.
De referir que alguns dos factores de risco atrás descritos podem estar associados a determinados mecanismos favorecendo o edema hemorrágico: por ex. lesão e fragilidade do tecido pulmonar, desequilíbrio de pressões ao nível capilar pulmonar, défice de factores de coagulação, hipoproteinémia, alteração do surfactante, etc..
No grupo de recém-nascidos pré-termo admite-se o papel de certo grau de edema intersticial e alveolar secundário à elevação do fluxo sanguíneo pulmonar, situação que por sua vez resulta de um desvio esquerda-direita hemodinamicamente significativo através de canal arterial patente. (Quadros 1 e 2)
QUADRO 1 – Mecanismos fisiopatológicos subjacentes à hemorragia pulmonar.
Aumento da pressão venosa pulmonar |
Canal arterial patente Cardiopatia congénita |
Lesão endotelial |
Infecção Défice de surfactante Asfixia Toxicidade de O2 |
Redução da drenagem linfática |
Ventilação mecânica Pressão venosa central elevada Fibrose pulmonar |
Coagulopatia |
QUADRO 2 – Principais factores de risco de hemorragia pulmonar neonatal.
1In utero (ex: restrição de crescimento fetal), intraparto (ex: encefalopatia hipóxico-isquémica), pós-parto (ex: síndroma de aspiração meconial, entubação difícil). |
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Persistência de canal arterial Prematuridade Restrição de crescimento intra-uterino Peso de nascimento < 1500g Administração de surfactante Ausência de corticoterapia pré-natal em RN prematuro Reanimação imediata com VPP Ventilação mecânica |
DMH precoce e grave |
Manifestações clínicas, laboratoriais e imagiológicas
Dum modo geral, os sinais clínicos (saída de líquido hemático pela boca, fossas nasais e TET) coincidem com agravamento da situação clínica de base e/ou manobras de reanimação; pode surgir bradicárdia, hipotensão e choque.
As alterações laboratoriais mais frequentes são: agravamento de hipóxia e hipercapnia, acidose mista; anemia aguda com redução do hematócrito ≥10%; plaquetas normais ou ↓/ ou ↑; tempos de coagulação, fibrinogénio, D-Dímeros normais ou/↑.
A imagem radiográfica do tórax é variável, sendo que nas formas graves pode haver opacidades dispersas, ou opacidade difusa bilateral (semelhante à imagem do chamado ”pulmão branco”), relacionável com situações de base, tais como de insuficiência ventricular esquerda, choque e compromisso estrutural e funcional do surfactante.
O ecocardiograma com doppler pode evidenciar sinais de canal arterial persistente. É necessário excluir defeitos do ciclo da ureia pelo doseamento de amónia sérica (sobretudo em recém-nascidos de termo).
Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial pode fazer-se com certo número de situações:
- Traumatismo local por entubação ou sucção/aspiração (vestígios de sangue vivo/ digerido nas secreções respiratórias, ausência de deterioração clínica súbita, sem necessidade de terapêutica dirigida);
- Sangue materno aspirado na reanimação;
- Sépsis, coagulopatia, cardiopatia, corpo estranho;
- Manifestação inicial de doença hereditária do metabolismo, designadamente defeitos do ciclo da ureia, o que implicará dosear a amoniémia se houver forte suspeita clínica.
Tratamento e prognóstico
O tratamento em regime de UCIN inclui fundamentalmente: correcção da doença de base, aspiração das vias aéreas, administração de adrenalina por via traqueal para constrição dos vasos pulmonares, reposição das perdas de sangue, ventilação mecânica com PEEP elevada e, havendo recursos técnicos, HFV.
Nalguns centros, na fase pós-hemorragia, com o fundamento de que a presença intra-alveolar de sangue e proteínas afecta a compliance pulmonar, é administrado surfactante. Tal atitude é controversa, pois há estudos demonstrando que a hemorragia pulmonar pode ser desencadeada pela administração de surfactante.
O prognóstico, dependendo da etiologia, dum modo geral, é mau. Com efeito, no pré-termo, a mortalidade oscila entre 30 e 60%, e em mais de metade dos sobreviventes pode surgir doença pulmonar crónica. Entre os RN de termo com hemorragia pulmonar, a mortalidade relaciona-se sobretudo com a patologia de base.
O risco de surgimento de displasia broncopulmonar ronda os 60%. A sobrevida com disfunção neurossensorial é cerca de duas vezes superior em lactentes com antecedentes de hemorragia pulmonar grave.
Outra patologia sequelar inclui elevada incidência de leucomalácia periventricular, paralisia cerebral, défice cognitivo e epilepsia.
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