SÍNDROMA DE ASPIRAÇÃO MECONIAL

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A síndroma de aspiração meconial (SAM) é um problema respiratório secundário à invasão das vias aéreas distais (bronquíolos terminais e alvéolos) por líquido amniótico com mecónio, de que resulta hipoventilação alveolar com hipóxia e acidose proporcional ao número de alvéolos obliterados.

A aspiração de líquido amniótico sem mecónio, por vezes acompanhada de sangue, ou contendo germes microbianos, pode surgir, quer nas extracções por cesariana, quer nos partos por via baixa e ainda nas situações de asfixia perinatal, em que se verifica respiração do tipo gasping. Refere-se, a propósito, a associação frequente entre líquido amniótico tinto de mecónio, listeriose e outras infecções congénitas.*

Em cerca de 5-12% de todos os nascimentos verifica-se líquido amniótico meconial, que se pode associar a depressão neonatal. No entanto, a presença de mecónio na traqueia – que se verifica apenas em metade daquele contingente – não implica necessariamente o aparecimento de disfunção respiratória; com efeito, só em cerca de 1/3 dos RN com mecónio na traqueia surge SDR.

*Existe a possibilidade de aspiração para a via aérea de conteúdo gástrico contendo secreções ácidas ou leite em qualquer momento do período neonatal ou mais tarde; este quadro é habitualmente designado “pneumonia de aspiração”.

Na prática, a SAM surge em cerca de 5% dos RN com líquido amniótico tinto de mecónio, o que corresponde a incidência média de 2/1.000 nados-vivos. Aproximadamente 30% destes RN necessitam de apoio ventilatório, e em 3-5% o desfecho é fatal.

De salientar que a SAM constitui um problema respiratório típico no RN de termo ou quase de termo por razões apontadas adiante. É rara antes das 37 semanas de gestação e frequente após as 42 semanas.

Comprovou-se maior associação de SAM a mães fumadoras, diabetes mellitus materna, pré-eclâmpsia/eclâmpsia, oligoâmnio, restrição de crescimento fetal com disfunção placentar e pós-maturidade.

A importância da SAM deriva fundamentalmente da mortalidade significativa, sobretudo:

  • Por hipertensão pulmonar persistente (HPP) surgindo em cerca de 2 a 30%, verificando-se as taxas mais elevadas nos países em desenvolvimento sem meios de terapia intensiva); e
  • Pela morbilidade, relacionada principalmente com sequelas neurológicas e pulmonares.

Etiopatogénese

O mecónio, lesivo para os pulmões, é uma substância viscosa complexa, estéril, composta essencialmente de líquido amniótico deglutido, colesterol, ácidos e sais biliares, mucopolissacáridos, enzimas pancreáticas intestinais, vernix caseosa, lanugo e restos de células escamosas.

A palavra “mecónio”, que vem do tempo de Aristóteles, e deriva do grego “mekoniun, significando “extracto de papoila ou ópio”; efectivamente, segundo o entendimento dos médicos da antiguidade, a associação entre depressão neonatal e mecónio era comparada ao efeito do ópio sobre a respiração do RN.

Comparativamente ao tipo de mecónio translúcido e fluido, o mecónio espesso tipo “puré de ervilhas” está mais frequentemente associado a complicações, designadamente por facilitar o crescimento bacteriano e a obstrução acentuada da via respiratória.

A eliminação de mecónio in utero é um acontecimento raro antes do termo da gestação (37 semanas); no entanto, tal eliminação é progressivamente mais provável depois desta idade, o que está em relação com o teor mais elevado, a partir de então, da motilina, hormona que promove o peristaltismo intestinal; ou seja, a maturidade intestinal e o nível plasmático de motilina constituem factores predisponentes de eliminação de mecónio.

Como factor desencadeante tem papel crucial a hipoxémia intrauterina que, gerando um estímulo vagal, promove o peristaltismo e o relaxamento do esfíncter anal.

Como foi referido antes, o mecónio pode ter acesso à via aérea/ser aspirado, ainda in utero, sendo que a hipoxémia intra-parto poderá constituir estímulo do centro respiratório originando gasping intraparto e antes da saída da cabeça.

Tradicionalmente a explicação fisiopatológica da SAM assenta em três pilares: obstrução mecânica da via aérea, inactivação do surfactante e hipertensão pulmonar arterial.

No entanto, nas últimas décadas, estudos científicos apontaram para o possível papel da activação do sistema imune como denominador comum na SAM. O mecónio, um potente activador de mediadores inflamatórios (citocinas, complemento, prostaglandinas, radicais livres de O2), reconhecido como “agente estranho” pelo sistema imune (complemento e toll-like receptors), desencadeia reacção inflamatória sistémica (ver adiante).

Assim, para além do processo obstrutivo das vias aéreas que se verifica, a etiopatogénese da SAM é abordada actualmente duma forma muito mais alargada; este facto tem implicações diagnósticas e terapêuticas.

O processo obstrutivo das vias aéreas por mecónio pode ser total ou parcial. Tratando-se de processo obstrutivo total nas vias aéreas de grande calibre, o mesmo poderá ser fatal se não revertido:

  • Se o processo se verificar nas zonas de pequeno calibre, poderão surgir zonas de atelectasia;
  • Se o processo obstrutivo for parcial, poderá gerar-se um mecanismo valvular facilitando a entrada do ar e dificultando a sua saída, o que comporta risco de ruptura da via aérea.

Verificando-se, em condições fisiológicas, redução do calibre das vias aéreas durante a expiração, o obstáculo intraluminal contribui para redução mais acentuada do referido calibre; por outro lado, a acumulação progressiva de ar pelo referido mecanismo valvular poderá levar a hiperinsuflação pulmonar e a situações diversas de ar ectópico como enfisema intersticial, pneumotórax e/ou pneumomediastino.

Outra consequência da presença de mecónio nas vias aéreas é o compromisso da ventilação-perfusão levando a hipóxia, hipercápnia e acidose.

Salienta-se que, no contexto de SAM, e considerando os antecedentes de hipóxia fetal, crónica ou subaguda, haverá que contar com o efeito da mesma hipóxia sobre a musculatura da parede arterial pulmonar (artérias intracinares) levando a hiperplasia, quer em espessura, quer em comprimento. Assim, será compreensível o surgimento de possível hipertensão pulmonar (arterial), agravando os efeitos atrás descritos.

Pormenorizando a já referida repercussão do mecónio aspirado no sistema imune, importa reter as seguintes noções:

  1. Depressão da função bactericida dos neutrófilos determinando susceptibilidade a infecções;
  2. Resposta inflamatória alveolar e parenquimatosa na qual intervêm macrófagos, neutrófilos, mediadores tais como citocinas (FNT-α, IL-1 β, e IL-8) e eicosanóides (tromboxano B2, leucotrienos B4 e D4, e 6-cetoprostaglandina F1-α, etc.);
  3. Outro efeito do processo inflamatório é a ruptura da barreira alvéolo-capilar com passagem de proteínas do soro para as vias aéreas;
  4. Efeitos vasculares (alteração da vasorreactividade, vasoconstrição das artérias pulmonares, shunt direito – esquerdo, etc.) em que intervêm mediadores vasoactivos (tais como endotelina-1, prostaglandina PGE2, tromboxano A2);
  5. Efeitos metabólicos traduzidos por disfunção e/ou inactivação do surfactante, sobressaindo a alteração e o défice das proteínas SP-A e SP-B, sendo que tais efeitos resultam essencialmente da acção lesiva dos sais biliares do mecónio sobre os pneumócitos do tipo II.

Manifestações clínicas

A SAM na sua forma mais típica corresponde a uma forma de SDR evidente no pós-parto imediato com as seguintes particularidades:

  • RN impregnado de mecónio, por vezes com sinais de dismaturidade ou pós-maturidade (pele seca, unhas grandes também com mecónio, restrição de crescimento fetal, etc.), com depressão do sensório, que obriga a manobras de reanimação, e esboçando movimentos respiratórios de amplitude e ritmo irregulares e ineficazes (gasping);
  • Evolução com gravidade crescente (taquipneia, cianose progressiva, com ulterior aparecimento de gemido, retracção costal e adejo nasal).

Podem ser notórios o aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax por hiperinsuflação pulmonar e a auscultação de roncos e de fervores crepitantes e subcrepitantes dispersos.

Os sinais clínicos que poderão levantar a suspeita de hipertensão pulmonar persistente secundária são: cianose generalizada e intensa, hipoxémia refractária às medidas de oxigenoterapia/assistência respiratória, e labilidade dos parâmetros de oxigenação (por exemplo, diminuição acentuada da SpO2) após manuseamento do RN, por vezes atingindo 50-55%).

É frequente, neste tipo de SDR, a coexistência de:

  • Sinais neurológicos concomitantes (tremores, convulsões, hiporreflexia, alteração do tono muscular);
  • Sinais cardiocirculatórios: sopros transitórios (por shunt direita-esquerda em relação com hipertensão pulmonar, etc.), cardiomegália (por espoliação de reservas de glicogénio do miocárdio secundariamente à hipoxémia mantida);
  • Hipoglicémia (por esgotamento das reservas de glicogénio: glicólise anaeróbia inicial e ulterior falência, também por hipoxémia mantida).

Exames complementares

Nos casos de SAM estão indicados os seguintes exames complementares (para além doutros a ponderar em função de cada situação específica):

  1. Gasometria – revelando sinais de hipoxémia, hipercápnia e acidose (de início, respiratória por retenção de CO2 e ulteriormente mista devida à produção de ácido láctico por glicólise anaeróbia face à falência do metabolismo aeróbio por hipoxémia);  
  2. Hemograma – revelando, em geral, leucocitose com neutrofilia com aparecimento de bastonetes e outras formas mais jovens da série branca face ao estresse da hipoxémia; e trombocitopénia por sequestração e consumo de plaquetas no território pulmonar;
  3. Radiografia ântero-posterior do tórax – permitindo evidenciar alguns ou todos os seguintes achados:
    • opacidades nodulares bilaterais de limites mal definidos, de densidade variável e confluentes, separadas por pequenas zonas de “hiperarejamento” (enfisema) ou de parênquima de aspecto normal, que, no conjunto, se assemelham a imagem em “favo de mel”;
    • imagens de enfisema e de atelectasia (Figuras 1 e 2);
    • cardiomegália;
    • abaixamento das cúpulas diafragmáticas compatível com distensão enfisematosa;
    • sinais de pneumotórax e/ou de pneumomediastino.
  4. Análise de urina – como particularidade deste tipo de SDR, cabe referir um método espectrofotométrico que pode identificar o tipo de pigmentos biliares presentes no mecónio (absorção a 405 nm) absorvidos ao nível do epitélio pulmonar e transportados pelo plasma até ao glomérulo renal;
  5. Ecocardiografia doppler – este exame é fundamental para avaliar a contractilidade cardíaca; poderão ser evidenciados sinais sugestivos de shunt direito-esquerdo em contexto de HPP; poderão eventualmente também ser detectados sinais de doença cardíaca estrutural associada , tais como síndroma de disfunção do ventrículo esquerdo, estenose aórtica e interrupção do arco aórtico;
  6. Electrocardiograma (ECG) – nas situações de asfixia intra-parto, o ECG pode evidenciar alterações do segmento ST sugerindo isquémia subendocárdica.

Tratamento

Medidas gerais

Pressupõe-se que as medidas gerais a seguir descritas são posteriores à actuação prioritária no bloco de partos no contexto de RN com líquido amniótico com mecónio (ver capítulo sobre reanimação do RN no bloco de partos).

Assim, procede-se à monitorização cardiorrespiratória e hemodinâmica reiterando-se a necessidade de vigilância em unidades de cuidados especiais ou intensivos.

É fundamental a estabilização hemodinâmica, a manutenção do equilíbrio hidroelectrolítico e acido – base e os suprimentos energético e hídrico adequados.

FIGURA 1 e 2. Síndroma de aspiração meconial: padrão radiográfico do tórax com opacidades nodulares irregulares alternando com áreas de enfisema e de parênquima de aspecto normal. (URN-HDE)

Medidas específicas (a ponderar caso a caso)

  • Ventilação mecânica: alta frequência preferencialmente, ou convencional;
  • Terapêutica substitutiva com surfactante, sobretudo nas SAM graves;
  • Antibioticoterapia a aplicar em função do contexto clínico de cada caso;
  • Óxido nítrico inalado (NOi) com acção relaxante específica sobre a musculatura vascular pulmonar – como estratégia de diminuição da pressão da artéria pulmonar e de melhoria da oxigenação arterial; a respectiva abordagem ultrapassa os objectivos do livro);
  • ECMO (oxigenação por membrana extracorporal – em geral utilizando-se circuito de derivação veno-arterial) e indicada nos casos refractários às medidas anteriores e sempre que o IO seja igual ou superior a 40; a sua descrição ultrapassa os objectivos do livro.

No campo da investigação estão a decorrer estudos sobre:

  • Terapêuticas para combater o processo inflamatório;
  • Potenciais inibidores do sistema de complemento e dos chamados toll like receptors; e
  • Anticorpos monoclonais específicos.

Prevenção

Os aspectos fundamentais da prevenção da SAM dizem respeito a:

  • Vigilância pré-natal rigorosa:
    • detecção de factores de risco (doenças maternas e fetais que possam conduzir a hipóxia fetal) e encaminhamento da grávida atempadamente para centro especializado, com unidade de cuidados especiais ou intensivos neonatais;
  • Actuação correcta intraparto:
    • a propósito da reanimação do RN, recorda-se que foi referido nas situações de “líquido amniótico com mecónio” com hipotonia, bradicárdia e diminuição do esforço respiratório: não está indicado o procedimento da rotina de entubação traqueal para aspiração por se ter demonstrado a sua ineficácia quanto a prevenção de SAM, associada a efeitos adversos major.

Prognóstico

Como complemento dos dados descritos atrás a propósito da importância do problema da SAM, importa dar ênfase a certos aspectos considerados relevantes quanto ao prognóstico:

  • Risco de problemas neurológicos futuros, designadamente convulsões recorrentes;
  • Prevalência de paralisia cerebral da ordem de 9%, havendo antecedentes concomitantes de asfixia perinatal grave;
  • Disfunção pulmonar;
  • Hiperreactividade brônquica.

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TAQUIPNEIA TRANSITÓRIA

Definição e importância do problema

A SDR designada por taquipneia transitória (TT) é um problema respiratório benigno e autolimitado do RN de termo ou pré-termo, que surge imediatamente ao parto por atraso na reabsorção do líquido pulmonar fetal; tal problema, que corresponde a anomalia da adaptação respiratória fetal à vida extrauterina, na gíria é também designado por “pulmão húmido” (noção que traduz a existência de edema pulmonar) ou SDR do tipo II (para o distinguir da DMH ou SDR do tipo I, sendo que antes da sua descrição por Avery em 1966, situações como a que se analisa neste capítulo eram consideradas formas ligeiras de DMH).

De acordo com vários estudos epidemiológicos a TT, que explica cerca de 30-40% de todos os casos de SDR no RN, tem sido descrita com uma incidência variando entre 3-6/1.000 em RN de termo, e em >10/1.000 no RN pré-termo.

Etiopatogénese

Tomando como base o capítulo sobre “adaptação fetal à vida extrauterina”, onde se descreve o mecanismo de reabsorção do líquido pulmonar fetal, importará aqui enumerar alguns factores que comprometem tal processo e que, por consequência, predispõem a TT:

  1. Dificuldade de reabsorção do líquido pulmonar fetal (por ex., policitémia/ hiperviscosidade, laqueação tardia do cordão, hipoproteinémia, asfixia perinatal, depressão neonatal por fármacos administrados à mãe durante o parto, etc.);
  2. Volume aumentado do líquido pulmonar fetal e alvéolos preenchidos com o mesmo quando o feto assume a condição extrauterina e se iniciam os primeiros movimentos respiratórios (por ex. em situações de cesariana electiva (sem se ter iniciado o trabalho de parto), de fluidoterapia intraparto condicionando hiper-hidratação e hiponatrémia maternas).

A propósito do processo alterado de reabsorção do líquido pulmonar fetal, há a salientar o papel da compressão do tórax fetal na sua passagem pelo canal de parto, contribuindo para a expulsão daquele pela boca. Este fenómeno, inexistente nos casos de cesariana electiva atrás mencionada, é limitado, pois por esta via apenas se elimina cerca de 10-15% do mesmo.

Ao nível celular epitelial foram descritos os seguintes mecanismos relacionados com a eliminação (depuração) do líquido pulmonar fetal:

  1. Em situação de normalidade, tal depuração ocorre por actividade aumentada dos canais de sódio (ENaC) e de sódio-potássio, através da adenosina trifosfatase (Na+, K+, -ATPase), o que determina reabsorção activa do sódio e, consequentemente, eliminação do líquido pulmonar;
  2. A situação de TT resulta da actividade ineficaz ou diminuída de ENaC e Na+, K+, -ATPase, o que torna mais lenta a eliminação do líquido pulmonar e diminui a compliance pulmonar, comprometendo as trocas gasosas alveolares;
  3. A estes mecanismos acrescenta-se o papel dos péptidos natriuréticos (BNP e NT-proBNP) na regulação do volume extracelular (Glossário Geral).

Consequentemente à existência de líquido pulmonar fetal, preenchendo os alvéolos, e do edema intersticial no pós-parto imediato, verifica-se:

  1. Alteração da ventilação-perfusão enquanto os alvéolos estiverem preenchidos pelo referido líquido;
  2. Compromisso da mecânica ventilatória do RN no pós-parto imediato, o que se explica, sobretudo, por resistência aumentada das vias aéreas devida à compressão extrínseca pelo edema intersticial;
  3. Compromisso ligeiro do surfactante pulmonar (e consequente diminuição da compliance pulmonar), o qual poderá ser transitoriamente inactivado pelo mesmo líquido alveolar; compreende-se que a magnitude deste mecanismo seja inversamente proporcional à idade gestacional.

Existe uma forma de TT atípica, de maior duração, relacionada com edema pulmonar pós-natal por reentrada de fluido na via respiratória a partir da circulação pulmonar. Este quadro ocorre já após a alta e exige a exclusão de outras causas de disfunção respiratória.

Manifestações clínicas

Na sua forma típica, a TT surge em RN de termo (mais frequentemente) ou pré-termo próximo do termo. Esta forma de SDR traduz-se essencialmente por taquipneia muito acentuada (por vezes atingindo FR de 100-120/minuto), sendo o gemido e a retracção costal pouco comuns; no entanto, em situações de prematuridade concomitante, como se pode depreender, os sinais de TT poderão sobrepor-se aos de DMH (problemas associados).

O tórax evidencia certo grau de hiperinsuflação que, provocando abaixamento do diafragma, poderá criar condições temporárias para que o fígado e o baço passem a ser palpáveis.

A auscultação poderá evidenciar fervores crepitantes finos generalizados (e não apenas nas bases), tal como se verifica em casos de edema pulmonar por insuficiência cardíaca.

Como critério muito sugestivo de TT pode citar-se: a não necessidade de incrementar a FiO2 entre as 12 e 24 horas de vida para manter a SpO2 dentro dos limites aceitáveis (90-95%).

As formas graves (raras), que correspondem à chamada TT “maligna”, acompanham-se de sinais de falência miocárdica e de hipertensão pulmonar associada a shunt direita – esquerda, entre outros.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial, por vezes difícil, faz-se essencialmente com as seguintes situações: síndroma de taquipneia pós-asfixia, doença metabólica, síndromas de hiperviscosidade/policitémia, anomalias cardiovasculares acompanhadas de débito pulmonar aumentado, quilotórax congénito, sépsis precoce com pneumonia por Streptococcus do grupo B, etc.).

Em função dos antecedentes perinatais e do estado geral do RN com SDR manifestando-se no pós-parto imediato, poderá estar indicada a realização de exames complementares, designadamente nas formas de evolução mais prolongada e de expressão clínica e funcional mais grave.

Certas formas clínicas compatíveis com TT, iniciadas depois do pós-parto imediato, relacionadas predominantemente com casos de prematuridade tardia, poderão estar associadas a hipertensão pulmonar requerendo, por vezes, tratamento mais agressivo com ECMO.

Exames complementares

Na maior parte dos casos a anamnese perinatal e o estudo evolutivo da imagem radiográfica do tórax permitem o diagnóstico de TT após exclusão de outras causas de SDR; ou seja, o diagnóstico definitivo de TT é inevitavelmente retrospectivo.

Alguns sinais radiográficos do tórax testemunham a evolução habitualmente benigna deste quadro:

  1. Primeira radiografia em incidência ântero-posterior (pós-parto)
    • diminuição da transparência parenquimatosa pela existência de edema intersticial e alveolar, e opacidades discretas ao nível do ângulo cárdio-frénico direito e região supra-hilar esquerda, correspondentes a regiões em que o processo de drenagem de líquido é mais moroso;
    • opacidades lineares ou arciformes hilífugas pela existência de edema nos espaços intersticiais perivasculares e derrame pleural discreto;
    • opacidades lineares correspondentes às cisuras ou “cisurite” (vias de drenagem secundárias);
    • hiperinsuflação pulmonar de grau variável;
    • apagamento discreto das cúpulas diafragmáticas;
    • cardiomegália discreta, por vezes; (Figuras 1 A e B)
  2. Segunda radiografia após 24-48 horas de evolução
    • não visualização das opacidades, o que corresponde a regressão do quadro anterior;
    • imagem de “arejamento” franco dos campos pulmonares. (Figura 2)

A gasometria evidencia em geral pH normal ou elevado, e défice de base normal. O estudo ecocardiográfico poderá evidenciar, nas formas clássicas ou ligeiras de TT, sinais de disfunção ventricular esquerda nas primeiras 24 horas.

De acordo com dados da literatura, o valor do péptido NT-proBNP está sempre elevado nos casos de TT; cerca de 24 horas após início do quadro, valores acima de 6576 pg/mL são preditivos de evolução mais prolongada e de eventual necessidade de ventilção mecânica (sensibilidade de 85% e especificidade de 64%).

Nalguns centros perinatais, em casos especiais, utilizam-se β 2-agonistas (salbutamol inalado) cujo efeito se traduz no aumento da expressão e activação de ENaC e Na, K-ATPase que facilitam a eliminação do líquido pulmonar fetal.

Prevenção

Salientam-se algumas medidas preventivas que podem deduzir-se da etiopatogénese atrás descrita:

  • redução do número de cesarianas electivas e prevenção da prematuridade tardia;
  • precaução na administração de fluidos à parturiente (por ex. como veículo de ocitócicos e outros fármacos), os quais deverão incorporar sódio a partir de determinado volume de administração como forma de reduzir ou evitar a transferência excessiva de água para o feto;
  • prevenção da asfixia perinatal.

FIGURA 1. Representação esquemática e quadro radiológico de taquipneia transitória no pós-parto imediato (fase inicial com opacidades ao nível do ângulo cárdio-frénico direito e 1/3 superior do campo pulmonar esquerdo. (URN-HDE)

FIGURA 2. Padrão radiográfico de taquipneia transitória (RN correspondente à Figura 1): desaparecimento das opacidades após 24 horas. (UCIN-HDE)

Tratamento

Na TT essencialmente aplicam-se as medidas gerais de suporte, já descritas em contexto de disfunção respiratória.

Como particularidades, cabe referir:

  • garantir suprimento hídrico ~70-80 mL/kg/dia e de glucose ~4-6 mg/kg/minuto;
  • oxigenoterapia (em geral com FiO2 ente 40 e 60%) ou qbp para manter SpO2 entre 90 e 95%, Pa O2 entre 45-70 mmHg, Pa CO2 entre 45-60 mmHg, e pH entre 7,25 e 7,40;
  • em função da gravidade do quadro poderá estar indicada, em raras situações, a ventilação invasiva;
  • tratando-se dum diagnóstico de exclusão, alguns casos de SDR precoce mais tarde confirmados como TT poderão ter sido submetidos a antibioticoterapia segundo critérios descritos adiante, na Parte sobre Infecção do Feto e Recém-nascido.

Prognóstico

A mortalidade é baixa, descrevendo-se nalgumas séries taxas ~0,8% em RN de termo e ~7% em RN pré-termo.

Quanto a morbilidade, nalguns estudos a médio e longo prazo foi verificada maior incidência de episódios de sibilância recorrente no contexto familiar de doença atópica.

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SÍNDROMA DE DIFICULDADE RESPIRATÓRIA DO RECÉM-NASCIDO PRÉ-TERMO (DOENÇA DA MEMBRANA HIALINA)

Definição e importância do problema

A síndroma de dificuldade respiratória (SDR) do RN pré-termo ou SDR do tipo I (anteriormente designada doença da membrana hialina/DMH), constitui um problema respiratório típico da imaturidade pulmonar resultante da deficiência em surfactante pulmonar (SP) endógeno.

O termo “surfactante” corresponde à designação funcional de um material heterogéneo e complexo de natureza lipoproteica, relativamente insolúvel, com grande plasticidade (distendendo-se em grau variável) cuja propriedade principal consiste em diminuir a tensão superficial na interface ar-líquido da porção respiratória do pulmão.

Constituindo a causa mais frequente de dificuldade respiratória no RN pré-termo, a sua gravidade (com repercussão na mortalidade) é inversamente proporcional à idade de gestação.

Globalmente, a DMH ocorre em cerca de 0,5 a 1% dos nados-vivos: em cerca de 60-80% dos RN pré-termo com <28 semanas, em cerca de 15-30% dos pré-termo com idades gestacionais compreendidas entre 32 e 36 semanas, raramente em RN de termo.

O Quadro 1 integra os factores clássicos que aumentam ou diminuem o risco de DMH.

QUADRO 1 – Factores de Risco de DMH.

Risco aumentado

Prematuridade, sexo masculino, gemelaridade/ segundo gémeo, hipóxia e acidose, corioamnionite, cesariana electiva, diabetes materna, hidropisia fetal, etc..

Risco diminuído

Hipóxia intrauterina crónica, ruptura prolongada de membranas ovulares, hipertensão materna, restrição do crescimento intrauterino (RCIU), administração de corticóides pré-natais, administração de tocolíticos, hormonas tiroideias, etc..

Etiopatogénese

Na génese do problema respiratório em análise importa realçar três factores relacionados com a imaturidade:

  1. Deficiência do surfactante pulmonar (SP) (da secreção, e/ou da inactivação ao nível do alvéolo pulmonar) conduzindo, como foi referido, a menor distensibilidade ou compliance alveolar/pulmonar – a causa primária.
    Com efeito, possuindo este composto fosfolipídico-proteico um efeito regulador tensioactivo (diminuição da tensão superficial dos alvéolos e bronquíolos respiratórios durante a expiração), a sua presença no alvéolo (aumentando a compliance pulmonar e a relação V/P) evita o seu colapso durante a expiração e a sobredistensão durante a inspiração. Assim, garante a manutenção da capacidade residual funcional (CRF) e facilita as trocas gasosas em cada ciclo respiratório.
    Por outro lado, importa relevar outra acção do SP: durante a inspiração, ao promover o recrutamento alveolar uniforme, reduz o gradiente de pressões entre o interstício e o alvéolo, diminuindo assim a probabilidade de formação de edema pulmonar.
    A deficiente síntese ou libertação de surfactante associada à incapacidade de se criar uma capacidade residual adequada, e a particularidade de a parede torácica ser mais complacente, levam a atelectasia (atelectrauma), resultando em alvéolos perfundidos, mas não ventilados, o que conduz a hipóxia. (ver adiante Metabolismo do surfactante pulmonar)
    A diminuição da compliance pulmonar, a redução do volume corrente, o aumento do espaço morto fisiológico, o aumento do trabalho respiratório, assim como a insuficiente ventilação alveolar conduzem a hipercápnia. A combinação de hipóxia, hipercápnia e acidose produz vasoconstrição arterial incrementando o shunt direita-esquerda através do foramen ovale, ductus arteriosus e no interior do próprio pulmão.
    Verifica-se secundariamente redução do fluxo sanguíneo pulmonar com lesão isquémica, quer das células que produzem surfactante (pneumócitos de tipo II) e dos pneumócitos de tipo I, quer das células do leito vascular, o que favorece a saída de material proteico intravascular para o espaço alveolar. (Figura 1)
    O colapso alveolar em áreas disseminadas do parênquima, a formação de depósitos hialinos e eosinófilos de fibrina agregando células alveolares necrosadas forrando os ductos alveolares e os bronquíolos terminais (daí o nome de “membranas hialinas”, conceito anatomopatológico, sendo que as mesmas são raramente observadas antes das 6-8 horas de vida extrauterina) e o edema intersticial contribuem para agravar a diminuição da compliance ou distensibilidade do pulmão, de tal modo que será necessária pressão mais elevada que a verificada em condições normais para expandir os alvéolos e vias terminais. (Figura 2)
    A Figura 3 ilustra a consequência do défice ou disfunção do surfactante pulmonar, com alteração do formato da curva volume/ pressão (incapacidade distensão alveolar com o aumento da pressão intralveolar, e incapacidade de manutenção do volume residual).
  2. Hipodesenvolvimento estrutural do pulmão
    Reportando-nos às fases do desenvolvimento pulmonar embrionário e fetal, cabe referir que no RN pré-termo viável foi já atingido o estádio canalicular ou sacular. Nestes estádios as vias aéreas distais são de estrutura tubular, têm paredes espessas e a distância entre o leito capilar e o interstício é superior à que se verifica no termo da gestação, o que constitui factor limitativo quanto às trocas gasosas.
    Por outro lado, sendo a área membranocapilar muito permeável, tal facto facilita a passagem de plasma para o interstício e espaço alveolar.

Figura 1. Patogénese da doença respiratória do RN por défice de surfactante.

FIGURA 2. Aspecto histológico post-mortem de pulmão de RN pré-termo com DMH: parede dos alvéolos forrada por camada amorfa, homogénea, eosinófila (membranas hialinas). (URN-HDE)

FIGURA 3. Curva volume/ pressão no RN com SDR por DMH. (Défice de surfactante e incapacidade de manutenção do volume residual).

  1. Maior distensibilidade/compliance da parede torácica do RN pré-termo
    Reiteram-se aqui as particularidades fisiológicas no RN pré-termo traduzidas essencialmente por maior tendência para a distorção da caixa torácica durante a respiração, o que contribui para aumentar o trabalho respiratório.
    Nos RN afectados por DMH, a parte inferior da parede torácica é puxada para dentro ao mesmo tempo que o diafragma desce; consequentemente a pressão intratorácica torna-se negativa o que conduz à formação de atelectasia. A parede torácica altamente complacente do RN pré-termo, por outro lado, oferece menos resistência (em comparação com o que acontece no RN não imaturo) à tendência para o colapso, com incapacidade para a manutenção de ar residual no fim da expiração.
    Outro aspecto particularmente relevante no RN pré-termo tem a ver com as características das fibras musculares do diafragma (teor diminuído em fibras do tipo I, menos resistentes à fadiga). Por outro lado, a hipotonia muscular em geral, própria do pré-termo, e em especial dos músculos intercostais, acentua-se nos períodos de sono REM (rapid eye movements), períodos que têm maior duração no pré-termo relativamente ao RN de termo.

Metabolismo do surfactante pulmonar

Para que as propriedades tensioactivas do SP sejam mantidas de forma constante na superfície alveolar existem mecanismos de regulação do seu metabolismo. Tal metabolismo engloba diversos estádios: síntese, armazenamento e secreção pelos pneumócitos do tipo II, eliminação e reciclagem ou recuperação. (Figura 4)

FIGURA 4. Metabolismo do surfactante pulmonar. Semivida ~12-18 horas. (CMV<> corpo multivesículas)

O surfactante extraído do pulmão (SP) tem uma composição semelhante em diversas espécies, incluindo a humana: fosfolípidos – cerca de 84%, lípidos neutros – cerca de 8%, e proteínas – cerca de 8%. Dos fosfolípidos, cerca de 65% corresponde a compostos de fosfatidilcolina saturada ou dipalmitoilfosfatidilcolina (DPPC), e 15% a fosfatidilglicerol (FG), a fosfatidilinositol (FI) e a fosfatidiletanolamina.

Os referidos lípidos estão associados a quatro proteínas específicas (apoproteínas) designadas como SP-A, SP-B, SP-C e SP-D. As SP-A e SP-D são hidrofílicas, ao passo que SP-B e SP-C são proteínas hidrofóbicas, sem afinidade para moléculas lipídicas; tais proteínas são fundamentais no metabolismo do surfactante.

De referir que o SP evidencia propriedades imunológicas antibacterianas e anti-inflamatórias, possivelmente relacionadas com as apoproteínas SP-A e SP-D.

O surfactante pulmonar (SP) é sintetizado a partir da 20ª – 22ª semana de gestação em células específicas – no retículo endoplásmico de células alveolares diferenciadas, os pneumócitos do tipo II – (SP intracelular) que, por sua vez, libertam aquele (exocitose) para o espaço alveolar – (SP extracelular). Apesar da sua concentração tecidual pulmonar, somente é detectado no líquido amniótico entre as 28 e 32 semanas.

A síntese do surfactante depende em parte do pH normal, da temperatura e da perfusão sanguínea. A asfixia, a hipoxémia e a isquémia pulmonar, particularmente se associadas a hipovolémia, hipotensão e estresse pelo frio, podem suprimir a síntese de surfactante. Por outro lado, o epitélio revestindo a via respiratória pode também ser lesado e sofrer necrose por elevadas concentrações do oxigénio e pelo trauma da ventilação artificial (efeitos do volume insuflado e da pressão gerada); estes eventos contribuem também para a lesão e hipoprodução de surfactante.

Até às 35 semanas, na biossíntese do SP tem papel primordial a enzima metil-transferase (transformação de fosfatidil-etanolamina em palmitil-miristil – lecitina); este surfactante é mais vulnerável a noxas. Após as 35 semanas tem papel primordial a enzima fosfocolina-transferase, a qual promove a transformação do diglicérido-fosfocolina em dipalmitoil-lecitina (SP de “melhor qualidade”), pois é mais resistente às noxas.

O aumento quantitativo do SP, com o desenrolar da gestação, é acompanhado de modificação na composição dos fosfolípidos e das apoproteínas; com efeito, no que respeita aos primeiros, inicialmente predomina FI, enquanto por volta da 35ª semana predomina FG; quanto às apoproteínas, verifica-se aumento de SP-A pela 35ª semana. Nas situações de DMH é menor o teor em FG e SP-A.

Progredindo a gestação, a monocamada fosfolipídica sofre catabolismo transformando-se em vesículas que sofrem endocitose (captação pelo pneumócito II) reorganizando-se de novo em corpos multivesiculares que irão ser submetidos a catabolismo nos lisossomas, formando-se ácidos gordos livres; uma parte destes é perdida, enquanto outra é reutilizada a partir do retículo endoplásmico, repetindo-se o ciclo. O coeficiente de reutilização ou reciclagem da monocamada fosfolipídica é cerca de 95%.

O SP de localização extracelular, em termos morfológicos, apresenta-se em 4 formas: corpos lamelares (estrutura semelhante a fios enrolados), mielina tubular, grandes vesículas precursoras da camada monomolecular e pequenas vesículas; as vesículas organizam-se em corpos multivesiculares (CMV). Os corpos lamelares, cujas lamelas uma vez no espaço extracelular se reorientam, dão origem à mielina tubular (estrutura semelhante a fios entrelaçados em malha), monocamada fosfolipídica rica em DPPC; ora é esta a forma estrutural de SP verdadeiramente responsável pela diminuição da tensão superficial na superfície alveolar.

Embora raras, determinadas alterações genéticas podem contribuir para síndroma de dificuldade respiratória por disfunção do surfactante pulmonar. Trata-se de alterações dos genes das proteínas B e C (SP-B e SP-C) e do gene duma proteína transportadora do surfactante através da membrana (transportador designado por ABCA3) que originam formas letais familiares de dificuldade respiratória fora do contexto de imaturidade.

Outras causas familiares raras de disfunção do surfactante incluem principalmente a displasia acinar, a displasia alveolar capilar, a linfangiectasia pulmonar e a proteinose alveolar (deficiência congénita da SP-B).

Manifestações clínicas e radiológicas

Os primeiros sinais de dificuldade respiratória são sempre precoces, muitas vezes não detectados; em percentagem significativa dos casos existe associação com um certo número de factores predisponentes; asfixia perinatal, sofrimento fetal, nascimento por cesariana, anestesia, hemorragias maternas e/ou “shock” no período pré-parto, diabetes materna, etc..

A dificuldade respiratória surge muito precocemente, sempre antes da 4ª hora de vida. Por vezes, a SDR surge imediatamente após o nascimento; se a SDR surgir após a 8ª hora de vida, poderá, em princípio, excluir-se a doença da membrana hialina.

Salienta-se que nos casos de prematuridade extrema (RN de peso <1000 gramas) as manifestações são menos exuberantes, por vezes traduzidas pelo aparecimento precoce de episódios de apneia e de cianose.

Um dos componentes da SDR, precoce e típico, é o gemido expiratório que testemunha esforço do RN no sentido de encerramento da glote e numa tentativa de impedimento de saída de ar dos alvéolos. O gemido tem também um significado prognóstico: a sua diminuição ao cabo de algumas horas de evolução, tal como verificação de diurese, poderão traduzir uma melhoria.

Uma vez iniciado o quadro, assiste-se a um agravamento progressivo: taquipneia crescente (que pode durar vários dias), retracções supra-esternal e intercostal, retracção esternal inferior originando o chamado “tórax em funil”, também de intensidade crescente, adejo nasal, e cianose cada vez mais difícil de melhorar numa atmosfera com O2.

A auscultação pulmonar evidencia uma diminuição do murmúrio vesicular e, por vezes, fervores finos, possivelmente causados pelo descolamento ou abertura alveolar, e não pela existência de líquido alveolar. A auscultação cardíaca pode evidenciar bradicárdia nas situações acompanhadas de hipoxémia grave.

Frequentemente existem os seguintes sinais acompanhantes:

  • hipotonia, hipoactividade motora espontânea e reflexa, relacionadas com a gravidade da hipoxémia e acidémia e/ou lesões hemorrágicas do SNC associadas e secundárias àquelas.

A hipotonia extrema, hipotermia e hipotensão são consideradas sinais de mau prognóstico.

Quanto aos sinais radiológicos, a imagem típica é constituída por um retículo-granitado difuso, bilateral (zonas de atelectasia alveolares) a que se sobrepõe a imagem do desenho brônquico hiper-arejado (aerobroncograma). Classicamente, descrevem-se 4 estádios de gravidade:

  1. reticulogranitado fino e disperso;
  2. I + aerobroncograma ultrapassando a silhueta cardíaca;
  3. II + desaparecimento do contorno da silhueta cardíaca;
  4. III + desaparecimento dos limites do diafragma (imagem radiográfica chamada “pulmão branco”). (Figura 5)

O quadro radiológico é sobreponível ao que surge nos casos precoces de pneumonia por Streptococcus do grupo B.

Exames laboratoriais

A PaO2 é baixa (valor normal = 98-100 mmHg), sendo de mau prognóstico as situações em que é inferior a 45 mmHg. O pH é inferior a 7,35 em geral (normal ~7,35-7,45).

Quanto à PCO2, de início pode ser normal ou baixa (fase da taquipneia ou luta fisiológica contra a hipóxia); (valores normais compreendidos entre 33,5 e 41,1 mmHg). Depois das primeiras horas, os valores tendem a elevar-se, atingindo valores superiores a 65 mmHg nas formas mais graves, numa fase de exaustão.

O ionograma plasmático pode evidenciar valores elevados de potassémia, sintomáticos de lesão celular grave por hipoxémia.

FIGURA 5. Imagem radiográfica de DMH (graus IV-III) – “Pulmão branco”. Aerobroncograma e hipoventilação global. (UCIN-HDE)

Evolução e complicações

Descrevem-se 3 períodos na evolução natural da doença:

  1. Agravamento progressivo em 24 a 36 horas;
  2. Manutenção da gravidade máxima entre as 24 e 48 horas;
  3. Melhoria pelo 3º – 4º dia, traduzindo tendência para reversibilidade da doença (o que é facilitado por terapêutica bem conduzida).

Tal melhoria traduz-se por diurese espontânea, melhoria da oxigenação e diminuição das necessidades de O2.

Além da hipoxémia e acidose existe a possibilidade de complicações: pneumotórax, sobreinfecção, hemorragia (pulmonar, do SNC, das supra-renais), ligadas ou não a coagulação intravascular disseminada.

Outra complicação é constituída pela doença pulmonar crónica.

Diagnóstico diferencial

Tendo em conta a evolução natural da DMH (fundamentalmente, SDR iniciada nas primeiras quatro horas de vida, com agravamento nas 24-36 horas subsequentes), o diagnóstico diferencial pode fazer-se com outros quadros respiratórios de início precoce tais como:

  1. Pneumonia por Streptococcus beta hemolítico do grupo B (surgindo em RN pré-termo e de termo), em que a infecção origina compromisso dos pneumócitos II e défice e/ou alteração do surfactante traduzida, designadamente, por quadro radiológico semelhante;
  2. Défice congénito total ou parcial da apoproteína SP-B (proteinose alveolar); taquipneia transitória (capítulo seguinte), salientando-se que a designação de SDR de tipo I dada à DMH, e de SDR de tipo II dada à taquipneia transitória surgiu por se admitir, até há algumas décadas que determinados quadros respiratórios de início precoce eram sempre explicados por défice de surfactante; para se estabelecer a destrinça, numa situação considerou-se tipo I, e na outra, tipo II);
  3. Cardiopatias congénitas;
  4. Anomalias congénitas do sistema respiratório inferior como por ex. hipoplasia pulmonar;
  5. Síndromas acompanhadas de hipertensão pulmonar persistente, etc. (ver atrás Etiopatogénese).

Para além da radiografia do tórax, a ecocardiografia pode ser útil como avaliação inicial para excluir quadros de hipertensão pulmonar, disfunção miocárdica ou canal arterial permeável com repercussão hemodinâmica.

Prevenção

Na sua essência, a prevenção da DMH baseia-se na prevenção da prematuridade o que implica, entre outras medidas, uma vigilância pré-natal adequada incluindo, claro está, a detecção sistemática de factores de risco.

Uma vez que está demonstrado o papel eficaz dos corticóides administrados à grávida em risco de parto prematuro no que respeita, designadamente à estimulação da maturidade pulmonar fetal, existe consenso quanto à aplicação de um conjunto de normas a seguir sintetizadas:

  1. À grávida em situação de risco de parto prematuro, a ACOG (American College of Obstetricians) recomenda a administração de corticóides entre as 24 e 36+6 semanas de gestação, com parto previsível dentro de 1 semana, sendo que se deverá ponderar a hipótese de eventuais contraindicações da respectiva administração;
  2. Tal actuação preventiva não é incompatível com a administração de tocolíticos à grávida com o objectivo de prevenir o parto prematuro;
  3. O corticóide indicado é a betametasona por via IM em duas doses de 12 mg com intervalo de 24 horas;
  4. Reforça-se a indicação de corticóide nos casos de ruptura prematura de membranas em idade gestacional inferior a 32 semanas na ausência de sinais de corioamnionite; tal actuação diminui o risco associado de hemorragia intraperiventricular;
  5. Há que atender ao possível risco de efeitos adversos sobre o crescimento e neurodesenvolvimento da criança resultantes de eventuais ciclos de tratamento ao longo da gravidez.

Tratamento

Algumas normas gerais quanto a cuidados, assim como aspectos essenciais da oxigenoterapia, assistência respiratória com CPAP nasal e ventiloterapia foram abordadas no capítulo anterior.

Relativamente à entidade clínica DMH, cabe mencionar algumas especificidades quanto a cuidados gerais e à terapêutica substitutiva com surfactante. Aliás, o RN pré-termo com tal patologia constitui um bom modelo no que respeita à administração de cuidados ao RN pré-termo em UCIN ou em unidade de cuidados especiais.

Cuidados gerais

  1. Estabilização na sala de partos
    RN colocado em ambiente de termoneutralidade, sob fonte de calor ou em incubadora ou dentro de saco de polietileno, para evitar a hipotermia e o consumo de oxigénio (~34-35ºC); a hipertermia também deve ser evitada, sendo objectivo manter temperatura cutânea abdominal entre 36ºC e 37ºC; a fim de melhorar a distribuição de oxigénio aos tecidos, se possível, atrasar a laqueação do cordão ~30-45 segundos, com o RN em nível inferior ao da placenta no sentido de promover transfusão de sangue placentar.
  2. Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base
    Nas primeiras 48 horas o suprimento hídrico deve ser da ordem de 50-70 mL/kg/dia e, depois, até 100-150 mL/kg/dia em função do balanço hídrico que deve ser rigoroso (registo das perdas insensíveis, da diurese e doutras perdas) com a finalidade de garantir diurese >1 mL/kg/hora, pressão arterial média ~30-50 mmHg, natrémia entre 135 e 145 mEq/L e hematócrito ~35-40%. A eventual acidose respiratória regride com ventiloterapia correcta; se surgir acidose metabólica haverá que ter precaução com a administração de alcalinizante (bicarbonato de sódio).
  3. Equilíbrio hemodinâmico
    Na DMH existindo elevada probabilidade de choque (hipotensão, oligoanúria, taquicárdia e acidose metabólica, mesmo sem diminuição da Pa O2) haverá, por vezes a indicação de administrar:
    • expansores da volémia: soro fisiológico na dose de 10 mL/kg em 20-30 minutos;
    • inotrópicos em perfusão contínua (dopamina na dose de 2-8 mcg/kg/minuto, ou dobutamina: 5-15 mcg/kg/minuto).
  4. Suporte nutricional
    Na fase inicial, até estabilização hemodinâmica, está contraindicada a alimentação por via entérica, havendo que providenciar suprimento energético para as necessidades básicas: em regra, perfusão de glucose IV na dose de 4-6 mg/kg/minuto acompanhada de vigilância da glicémia e glicosúria para reajustamentos; após estabilização hemodinâmica inicia-se a nutrição parentérica e a alimentação entérica mínima (não nutritiva) por sonda gástrica, idealmente com leite materno, com o objectivo de estimular a maturação das células do tubo digestivo.
  5. Tratamento da infecção
    As infecções perinatais constituem uma das causas de prematuridade, ou seja, podendo um parto pré-termo espontâneo constituir um epifenómeno de infecção. Assim, haverá que proceder à respectiva avaliação e actuar, entre outras medidas, com antibioticoterapia após colheitas de sangue (para hemograma, determinação da PCR, hemoculturas, etc.).

Particularidades da ventiloterapia

1. Convencional

Como particularidades da ventiloterapia (convencional, designadamente utilizando os ventiladores SIMV/ realizando ventilação mecânica intermitente sincronizada) na DMH cabe referir:

    • Utilizar sempre a menor PIP (pressão positiva inspiratória ou pressão positiva intermitente, segundo a gíria habitual);
    • Manter pH entre 7,20 e 7,35 e Pa CO2 entre 45 e 65 mmHg, (evitando valores inferiores a 40 mmHg, aceitando a chamada “hipercápnia permissiva” – acidose respiratória – na fase aguda da doença tendo como fundamento dados da medicina baseada na evidência: a hipocápnia nos primeiros dias de vida comporta alto risco de displasia broncopulmonar;
    • A ventilação de alta frequência/HFV – designadamente nas modalidades oscilatória (HFOV) ou em jacto (HFJV) poderá melhorar a oxigenação e facilitar a eliminação de CO2 nos casos em que existe escassa resposta à ventilação convencional;
    • Limitar a duração de FiO2 >60% e SpO2 entre 91% e 95%;
    • Não retardar o início do “desmame” da ventiloterapia. (consultar adiante o capítulo sobre ventiloterapia)
2. CPAP nasal (nCPAP) ou estratégia minimamente invasiva

Pressupondo a necessidade de garantir os objectivos referidos em (I.) quanto a parâmetros bioquímicos e biofísicas, actualmente aconselha-se a utilização precoce, já na sala de partos, de nCPAP, o que garante melhor adaptação à vida extrauterina, estabilização hemodinâmica e redução da necessidade de ventilação mecânica. Surge assim o conceito de assistência respiratória minimamente invasiva.
Fazendo parte desta estratégia, realça-se que o surfactante, a administrar sempre que indicado, pode ser administrado através da cânula nasal/ sistema nCPAP – com pressão entre 5 e 10 cm H2O-, para além do método clássico através de tubo endotraqueal/TET através da cânula nasal. (ver adiante)

Administração de surfactante exógeno

Tipos

Na actualidade, os tipos de surfactante utilizados podem ser divididos em dois grandes grupos: os produtos contendo componentes do surfactante endógeno de pulmão animal, e os preparados sintéticos ou recombinantes.

Como exemplos de surfactantes naturais mais utilizados em Portugal citam-se: o Curosurf® (fracção fosfolipídica de pulmão porcino de cuja composição fazem parte: DPPC e fosfolípidos, e SP-B e SP-C) e o Survanta® (fracção fosfolipídica de pulmão bovino cuja composição inclui: DPPC e fosfolípidos, tripalmitina, acido palmítico, SP-B e SP-C).

Como exemplos de surfactantes sintéticos ou recombinantes sem apoproteínas citam-se: o ALEC® (Artificial Lung Expanding Compound) e o Exosurf® (palmitato de colfosceril).

De acordo com os estudos meta-analíticos frequentemente actualizados no âmbito da Cochrane Library verifica-se melhoria mais acentuada e mais precoce, assim como menor morbilidade e menor mortalidade, com a utilização dos surfactantes naturais como medida complementar da assistência ventilatória.

Posologia

No caso do Survanta® a dose de administração de fosfolípidos é 100 mg/kg/dose ou 4 ml/kg/dose. A repetição das doses, se necessário, deve ser de 6 – 6 horas, no máximo de 4 doses. Em situações graves de quadro radiológico de pulmão branco bilateral, é admissível a sua repetição ao fim de 4 horas.

No caso do Curosurf® a dose de administração de fosfolípidos é 100-200 mg/kg/dose ou 1,25 a 2,5 ml/kg/dose. A primeira dose de Curosurf® deve ser 200 m/kg, sendo que poderá proceder-se a repetição da administração com mais 2 doses de 100 mg/kg cada, com 6-12 horas de intervalo.

Em situações clínicas muito graves pode ser feita a administração com um intervalo mais curto (4-6 horas). Em circunstâncias especiais, de acordo com o quadro clínico-radiológico, poderá eventualmente ser necessário administrar mais 2 doses de 100 mg/kg cada, tendo em consideração que não se deverá ultrapassar a dose de 400 mg/kg.

Técnica de administração

Compreendendo-se que a administração do SP (por TET ou por cânula nasal-nCPAP) deverá ser feita em UCIN ou unidade de cuidados especiais com equipa treinada e apoio de monitorização, são referidos aspectos genéricos.

Os vários tipos de surfactante são administrados em bolus lento:

  • Em circuito fechado através de um adaptador e sonda própria ligada a uma peça em Y colocada na extremidade proximal do tubo endotraqueal (TET);
  • Ou em circuito aberto em 4 ou 5 bolus contínuos, através de um cateter colocado dentro do tubo endotraqueal;
  • Ou em cânula nasal – modalidade nCPAP.

Mudanças na posição do corpo durante a administração das doses, podem contribuir para uma distribuição mais homogénea do surfactante.

Em situações graves, em doentes especialmente predispostos a situações de ar ectópico (por ex. pneumotórax), o surfactante pode ser administrado através dum sistema de infusão contínua lenta, durante 30 minutos a uma hora.

Estratégias clássicas de administração

A administração de surfactante pode ser:

  • Profiláctica e precoce (no bloco de partos, imediatamente ao nascimento), por ex. nos RN de idade gestacional <28 semanas (que necessitam de entubação traqueal/TET ou que tenham aplicada nCPAP; ou
  • De recuperação ou resgate, tardia, quando se verificarem critérios clínico-radiológicos de DMH ou quando se verificar agravamento da doença, designadamente considerando o défice de oxigenação objectivado pelo índice de oxigenação.

Salienta-se que nos RN pré-termo em risco de SDR, a nCPAP profiláctica aplicada no pós-parto imediato constitui a estratégia de eleição.

Efeitos colaterais da aplicação de surfactante

São descritos os seguintes:

  • Hemorragia pulmonar e infecções pulmonares secundárias;
  • Hiperinsuflação; este efeito pode ocorrer em RN com situações menos graves em que a administração do surfactante leva a melhoria rápida da compliance e do volume corrente, condicionando em certos casos, um estado de hiperinsuflação, o que poderá levar, especificamente, a enfisema intersticial e/ou pneumotórax;
  • Outras complicações como aquelas relacionadas com a abertura do canal arterial, enterocolite necrosante ou hemorragia intraperiventricular não têm sido influenciadas pela terapêutica com surfactante;
  • Obstrução das vias aéreas (“inundação” com surfactante); este efeito ser explicado pelo eventual volume excessivo do preparado de SP e pela viscosidade de alguns preparados; a este propósito salienta-se a eventual necessidade de ajustamento dos parâmetros de ventilação transitoriamente, até se ter comprovado distribuição homogénea daquele nas vias aéreas.
Variantes de actuação

Reconhecendo os benefícios da terapêutica substitutiva com surfactante, para além do efeito potencial protector da nCPAP profiláctica, nalguns centros são aplicadas as seguintes variantes:

  • Método INSURE (intubate surfactant e extubate)
    Entubação para adminitração de surfactante, profiláctica e precoce ou de recuperação ou resgate, seguida de extubação, seguindo-se de imediato (dentro de minutos ou <1 hora) a aplicação de nCPAP desde que exista quadro de estabilidade;
  • Método MIST (minimally invasive surfactant therapy)
    Entubação com TET, instilando surfactante na traqueia, em RN com respiração espontânea e com nCPAP previamente aplicada;
  • Método LISA (less invasive surfactant therapy)
    Aplicação de sonda fina de modo a não obstruir a traqueia (habitualmente itilizada para alimentação oro ou nasogástrica), instilando surfactante na traqueia, em RN com respiração espontânea ou em nCPAP. Como a sonda (fina) não obstrui totalmente a traqueia, deixando espaço em torno, esta variante pode efectivamente aplicar-se em RN com respiração espontânea ou em nCPAP.

Com estas estratégias têm-se verificado benefícios, tais como redução da duração de nCPAP, permitindo em geral o desmame da referida nCPAP mais precocemente.

Como nota final importa sintetizar que a ventiloterapia e a administração de surfactente estão indicadas nos casos em que não se consegue SpO2 >90% com FiO2 entre 40% e 70% e recebendo nCPAP.

Prognóstico

Os progressos realizados ao longo dos anos nos países com recursos no âmbito dos cuidados pré-natais, a corticoterapia pré-natal, a aplicação da filosofia do transporte in utero, a assistência intra-parto, os cuidados de terapia intensiva a cargo de equipas experientes (designadamente, a terapêutica de substituição pós-natal com surfactante e as estratégias de ventilação aperfeiçoadas) conduziram a diminuição significativa da mortalidade (<10%).

Embora cerca de 85%-90% dos sobreviventes com DMH e submetidos a ventilação mecânica não evidenciem sequelas quanto a função respiratória e neurodesenvolvimento, o prognóstico é globalmente mais favorável nos RN de peso >1.500 gramas.

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PROBLEMAS RESPIRATÓRIOS DO RECÉM-NASCIDO. GENERALIDADES

Definições e importância do problema

Define-se problema respiratório no RN (ou, no sentido genérico, síndroma de dificuldade respiratória/ SDR) como a verificação de dois ou mais dos seguintes sinais:

  • Frequência respiratória >60/minuto;
  • Cianose respirando ar;
  • Adejo nasal;
  • Retracções costais ou xifoideia;
  • Gemido expiratório. (Figura 1)

Outro critério para definir síndroma de dificuldade respiratória baseia-se na valorização do chamado índice de Silverman-Andersen. (Quadro 1)

Não havendo dificuldade respiratória, o índice de Silverman-Andersen será 0 (zero), isto é, 0/10. Numa perspectiva de avaliação prática inicial, convencionou-se considerar a existência de dificuldade respiratória nas situações em que o referido índice é igual ou superior a 4 na primeira hora de vida, e igual ou superior a 3 a partir da segunda hora de vida.

FIGURA 1. RN com dificuldade respiratória, sendo notórias a retracção xifoideia e a cianose.

QUADRO 1 – Índice de Silverman–Andersen.

resp = respiração; abd = adominal
PontuaçãoExpansão torácicaRetracção
intercostal
Retracção
xifoideia
Adejo nasalGemido
expiratório
0Boa, síncrona com expansão abdominal0000
1Amplitude irregular sem sincronismo com resp. abd.Ligeira ou ausenteLigeiraLigeiroAudível com estetoscópio
2Expansão torácica com retracção abd.AcentuadaAcentuadaAcentuadaAudível sem estetoscópio


Na literatura científica é clássico considerar o termo de síndroma de dificuldade respiratória como sinónimo de “síndroma de dificuldade respiratória típico da prematuridade ou doença da membrana hialina” (imaturidade pulmonar por défice de surfactante).

Notas importantes: 1- A presença de estridor pode sugerir colapso da via aérea superior por laringo ou traqueomalácia; e, se for acentuado, obstrução mecânica alta. 2 – A auscultação de sibilâncias ou de expiração prolongada pode estar relacionada com estenose traqueobrônquica.

Genericamene, aplica-se a designação de insuficiência respiratória às situações de dificuldade respiratória em que são valorizados critérios biológicos, tais como determinação de pH e gases no sangue. Salienta-se, no entanto, como excepção a este conceito, a verificação de apneia prolongada: este critério clínico, isoladamente, legitima a definição de insuficiência respiratória. Adiante, a propósito dos critérios para ventilação na UCIN, será dada ênfase a este conceito fisiopatológico.

Os problemas respiratórios manifestam-se em cerca de 3 a 5% dos RN de acordo com estatísticas englobando nados-vivos seguidos em maternidade. Considerando a globalidade dos RN pré-termo, tais problemas surgem em cerca de 1/3 dos mesmos.

Este tipo de patologia constitui uma causa importante de morbilidade e de mortalidade neonatais, nomeadamente no RN pré-termo. Tal pode ser explicado pelas seguintes circunstâncias:

  • Complexidade dos mecanismos de adaptação pulmonar à vida extrauterina;
  • Defeitos do desenvolvimento pulmonar condicionando anomalias congénitas;
  • Imaturidade anatómica e funcional do sistema respiratório no RN pré-termo;
  • Susceptibilidade do RN às infecções.

Particularidades da fisiologia da respiração no RN

Resistência pulmonar ao fluxo de gases

As particularidades anatomofisiológicas mais importantes com influência no fluxo de ar são descritas na caixa a seguir.

    • O  pequeno calibre das vias aéreas do RN explica os valores elevados da resistência pulmonar ao fluxo do ar (no RN= 25 a 30 cm H2O/L/seg.; no adulto = 1,9 a 2 cm H2O/Litro/segundo).
    • A traqueia do recém-nascido mede 5-6 mm de diâmetro (10 mm aos 3 anos e 15-18 mm na idade adulta) e 40 mm de comprimento (contra 11  a 13 cm no adulto).
    • A língua grande do RN impede ou dificulta a respiração pela boca, o que condiciona um tipo de respiração predominantemente por via nasal.
    • O diafragma desempenha papel importantíssimo (em termos quantitativos, cerca de 80%) na mecânica ventilatória relativamente aos outros músculos torácicos. Poderão, portanto, deduzir-se as enormes repercussões que decorrem das paralisias diafragmáticas de origem obstétrica, por exemplo.
    • O tórax é muito flexível, (tem maior distensibilidade) isto é, a grelha costal é exageradamente “mole”, o que explica a propensão para se verificarem sinais de retracção com maior acuidade no RN pré-termo (maior compliance torácica).
    • O reflexo da tosse não está perfeitamente desenvolvido, o que explica a facilidade de se verificarem sindromas de aspiração alimentar em caso de regurgitação.
    • Ao movimento do ar opõem-se a resistência ao fluxo e as propriedades elásticas.   
    • Resistência ao fluxo=1/r4, isto é, a resistência ao fluxo é inversamente proporcional à 4ª potência do raio das vias aéreas.
    • A Resistência pode traduzir-se pela ratio:  variação da pressão/variação do débito ou fluxo (processo dinâmico).
    • Para que se verifique deslocação de ar dum local para outro, é necessário que exista um gradiente de pressões.

Compliance pulmonar

Esta designação (com terminologia de língua inglesa rotineiramente utilizada na gíria médica) define a característica de distensibilidade (complacência) alveolar, traduzida pela relação entre variação de Volume (V)/variação de Pressão (P), em mL/cm H2O; ou seja, o fenómeno da possibilidade de o alvéolo se distender, aumentando o seu volume (V) como resposta a um determinado aumento de pressão (P), durante a inspiração.

No recém-nascido a compliance é cerca de 2 mL/cm H2O aos 3 minutos de vida, 4 aos 60 minutos de vida e 5-14 pela idade de 7 dias, enquanto no adulto é da ordem dos 170 mL/cm H2O. (Figura 2)

Não será, portanto, difícil compreender a necessidade de um esforço muscular bastante superior para encher de ar os alvéolos no período neonatal pela menor compliance ou distensibilidade pulmonar, então verificada.

A força oposta (o inverso da) à distensibilidade é a resistência elástica do tórax ou elastância; tal resistência – elástica no RN – resulta quase exclusivamente da tensão superficial (TS) ou forças de tensão ao nível da superfície de contacto ar-líquido nos alvéolos (sendo que no adulto a comparticipação de tais forças é apenas 50%).

FIGURA 2. Curva volume/ pressão no recém-nascido (inspiração e expiração).

A TS depende da ausência ou presença de surfactante: mais surfactante à menor TS à maior aumento do volume alveolar. A pressão intra-alveolar (P) necessária para se opor à tendência de os alvéolos colapsarem é dada pela fórmula de La Place,

P = 2 x TS 
            R

em que R = raio do alvéolo; quanto maior o R (alvéolo mais expandido), menor pressão (P) necesária para o “abrir ou o expandir” mais. (ver adiante surfactante)

Volumes pulmonares no período neonatal

Na Figura 3 podemos comparar, de modo estático, os volumes pulmonares num RN normal e num RN em que a função respiratória está alterada.

Para compreender a fisiopatologia e a resposta a eventuais intervenções terapêuticas, incluindo a ventilação artificial não invasiva, importa igualmente recordar aspectos básicos (dinâmicos) da mecânica pulmonar, tendo como modelo a Figura 3-A (Fases do ciclo respiratório).

A frequência respiratória corresponde ao número de excursões respiratórias/ciclos respiratórios por minuto. Durante uma inspiração normal, o sistema respiratório gera pressão negativa intratorácica com consquente entrada de ar nos pulmões (volume corrente).

Reportando-nos ao esquema da Figura 3-A, importa referir que, numa inspiração provocada artificialmente por insuflação de ventilador artificial, é gerada uma pressão positiva inspiratória (PIP), também designada por pressão inspiratória máxima de “pico”. Tempo inspiratório ou Ti corresponde à curva ascendente de convexidade superior prolongando-se com o plateau.

O volume de ar introduzido nos pulmões (durante certo tempo, o tempo inspiratório/TI – traduzido por curva ascendente) é mantido na via aérea durante certa pausa para a difusão de gases nos alvéolos (para simplificar, a duração do plateau/horizontalidade da linha após concluída a inspiração, não foi especificada no esquema).

A esta pressão obtida na via aérea durante esta pausa, chama-se pressão plateau, a qual depende da PIP e da distensibilidade pulmonar (compliance).

FIGURA 3. Volumes pulmonares num RN normal e num RN com SDR.

Figura 3-A Fases do ciclo respiratório

Durante a expiração normal, o pulmão é esvaziado de forma passiva em função da retracção elástica pulmonar (Tempo expiratório/Te <> curva descendente de concavidade superior que não toca na linha de base, mantendo-se ligeiramente distanciada e superior a esta por se gerar uma pressão final positiva expiratória (PEEP), superior à que corresponde à linha basal.

Efectivamente, em situação fisiológica, de normalidade, no final da expiração (quer da expiração normal, quer da expiração forçada – ver atrás CRF e VR – ), os alvéolos não se colapsam, ficando medianamente distendidos, precisamente por se gerar, no final, a referida PEEP fisiológica, garantindo a normalidade das trocas gasosas e evitando, pois, a atelectasia.

Existe tecnologia permitindo gerar, aumentar e regular de modo controlado a PEEP artificialmente: amplificando a designada PEEP fisiológica, a partir do volume residual, pode contribuir-se, de modo minimamente invasivo, para a melhoria das trocas gasosas.

Trocas gasosas ao nível dos pulmões

Relação ventilação-perfusão

Em condições óptimas de trocas gasosas ao nível da membrana alvéolo-capilar, a relação entre a ventilação alveolar (VA) e o débito sanguíneo capilar (Q) deve ser igual a 1.

Na Figura 4 podemos esquematicamente examinar as situações em que tal relação está alterada.

  • Hipoventilação alveolar
    Está esquematizada na hipótese C: VA/Q <1: é o que acontece nas situações de obstrução brônquica ou de depressão respiratória impedindo que o ar alveolar seja suficientemente renovado, estando intacta a pefusão sanguínea capilar. Há, consequentemente, ao mesmo tempo, diminuição da PO2 e elevação da PCO2.

FIGURA 4. Anomalias da relação ventilação-perfusão em A, B, C e D. Alvéolo normalmente irrigado e ventilado em E.

  • Shunts
    Nestas circunstâncias, verifica-se uma mistura de sangue venoso com sangue arterial, o que traz como consequência uma diminuição da PaO2.
    Na hipótese A: o sangue perfunde alvéolos não ventilados (v. g. atelectasias, membranas hialinas). O sangue não oxigenado vai eventualmente misturar-se, a jusante, com o sangue oxigenado, proveniente de capilares vizinhos eferentes de alvéolos onde se processou a oxigenação (shunt capilar).
    Na hipótese B: neste caso, não se verifica passagem de sangue através dos capilares pulmonares, por exemplo, em caso de foramen ovale ou de canal arterial (shunt anatómico).
    Os shunts anatómicos capilares são característicos da circulação de tipo fetal, embora possam ser restabelecidos em certas circunstâncias de vida extrauterina, mesmo que não exista malformação cardiovascular; é o que se passa em situações de acidose e hipoxémia.
    O diagnóstico destes shunts baseia-se na prova da “hiperóxia” e que consiste na administração de O2 a 100% durante 20 minutos e concomitante medição de PaO2. A situação será tanto mais grave quanto maior a percentagem de O2 no ar inspirado para obter PaO2 normal.*

*Citada por razões históricas dado o desenvolvimento de novas tecnologias para atingir o mesmo objectivo.

A Figura 5 mostra a relação entre a pressão alveolar de O2 (PAO2) e a pressão arterial de O2 (PaO2) em função do grau de mistura de sangue arterial (mais oxigenado) com sangue venoso (menos oxigenado) em situações de curto-circuito (shunt) direito-esquerdo; ou seja, para idêntica pressão alveolar de O2, a pressão arterial de O2 é tanto maior quanto menor a percentagem de mistura de sangue não oxigenado (por ex. com pressão alveolar de O2 de 200 mHg obtém o PaO2 de 200 mmHg se não houver mistura (0%); se houver mistura de 20% de sangue não oxigenado com a mesma pressão de O2 obtém-se Pa de 100 mmHg (menor).

  • Espaço morto
    Corresponde à hipótese assinalada em D: VA/Q >1; os alvéolos são normalmente ventilados, mas não são irrigados. Existe aumento da PCO2 sem diminuição da PO2.
Afinidade da hemoglobina para o oxigénio

A existência de hemoglobina fetal F no RN modifica a afinidade desta para o O2.

Como se pode depreender da Figura 6, a curva de dissociação da hemoglobina desloca-se para a esquerda, dada a afinidade aumentada da hemoglobina para o oxigénio em tais circunstâncias; tal afinidade resulta dum défice de 2,3-diphosphoglicerato (2,3-DPG), défice tanto maior quanto menor for a idade gestacional.

Verifica-se, pelo contrário, deslocação para a direita quando diminui o pH, aumenta a PCO2, ou aumenta a temperatura.

Como resultado duma muito maior captação de O2 pela HbF a quantidade de O2 a distribuir pelos tecidos é muito menor, o que implica (para que se verifique uma oxigenação tecidual eficiente), uma taxa de Hb circulante no RN superior à doutro grupo etário.

FIGURA 5. Evolução da PaO2 em função. 1) da PAO2 (pressão de O2 no ar alveolar); 2) da importância da mistura sangue venoso – sangue arterial (Shunt dto – esq.).

FIGURA 6. Curva de dissociação de HbO2.

Noções complementares em síntese

    • A relação ventilação/perfusão (V/Q) deve ser idealmente = 1. Os shunts veno-arteriais intrapulmonares e a hipoventilação alveolar resultam em alteração dessa relação, sendo a principal causa de alteração das trocas gasosas no recém-nascido com síndroma de dificuldade respiratória (SDR).
    • O dióxido de carbono (CO2) difunde-se rapidamente do sangue para o alvéolo e a sua eliminação depende da ventilação alveolar por minuto, a qual é determinada pelo produto do volume corrente menos o espaço morto e a frequência.
    • Ventilação alveolar por minuto = (volume corrente – espaço morto) x frequência.
    • O volume corrente é o volume de gás inalado (ou exalado) em cada respiração (ou em cada ciclo respiratório do ventilador); o espaço morto corresponde à parcela do volume corrente que não participa nas trocas gasosas (volume contido nas vias aéreas); frequência é o número de ciclos respiratórios por minuto.
    • O aumento, tanto do volume corrente como da frequência, leva a um aumento da ventilação alveolar e, consequentemente, a uma redução da pressão arterial de dióxido de carbono (Pa CO2). No entanto, como o espaço morto se mantém constante, as alterações no volume corrente são mais eficazes na eliminação de dióxido de carbono do que as alterações na frequência.
    • A hipoxémia resulta habitualmente de uma perturbação da relação ventilação/perfusão ou de shunts direita-esquerda. No recém-nascido com SDR, a principal causa de hipoxémia é a deficiente ventilação dos alvéolos relativamente à sua perfusão. Os shunts podem ser intracardíacos (cardiopatias congénitas cianosantes) ou extracardíacos (pulmonares ou via canal arterial patente).

Etiopatogénese e classificação

Para além dum sistema repiratório intacto, para o início e manutenção da respiração normal, torna-se essencial a contribuição dum certo número de condições básicas descritas no capítulo sobre adaptação fetal à vida extrauterina.

Assim, tendo em conta os fenómenos da adaptação cardiorrespiratória fetal à vida extrauterina, e examinados os factores com influência no início e manutenção da função respiratória, será mais fácil compreender a classificação das SDR com base na etiopatogénese (Quadro 2); nesta perspectiva, são consideradas duas grandes causas: as de localização no sistema respiratório, e as de localização extra-sistema respiratório.

Como em toda e qualquer situação clínica, para o diagnóstico diferencial dos quadros clínicos de SDR, torna-se fundamental a realização de história clínica e de exames complementares em função dos dados colhidos e observados. Em termos de anamnese, por exemplo: a verificação de prematuridade aponta para SDR do tipo I; a verificação de líquido amniótico meconial aponta para síndroma de inalação amniótico-meconial; antecedentes de amnionite, ruptura prolongada de membranas e/ou de febre intraparto sugerem pneumonia, integrada ou não num quadro de infecção sistémica, etc..

QUADRO 2 – Classificação das síndromas de dificuldade respiratória (SDR) no RN.

Causa no sistema respiratório

1 – SDR tipo I (doença da membrana hialina)
2 – SDR tipo II (taquipneia transitória ou “pulmão  húmido”)
3 – SDR por inalação amniótico-meconial
4 – SDR dita secundária (pneumonia fetal e/ou neonatal, síndromas associadas a “ar ectópico” (pneumotórax, pneumomediastino, etc.), hemorragia pulmonar, displasia broncopulmonar, síndromas associadas a anomalias congénitas (hérnia diafragmática de Bochdalek, agenésia pulmonar, hipoplasia pulmonar, etc.)

Causa extra-sistema respiratório

1  – SDR por anomalias cardiovasculares
2  – SDR de causa metabólica (acidose, alcalose, hipoglicémia, etc.)
3  – SDR de causa neuromuscular (hemorragia do SNC, efeito de fármacos, anomalias congénitas do SNC – por ex. defeito de Arnold-Chiari, paralisia do frénico associada a paralisia do plexo braquial, etc.)
4  – SDR de causa hematológica (anemia grave de etiologia diversa, síndromas associadas a policitémia/hiperviscosidade, etc.)
5  – SDR de causa funcional (choque hipovolémico de etiologia diversa, infecção sistémica, etc. ).

Actuação inicial

Para além de um conjunto de procedimentos prioritários, importa um exame físico rigoroso e exames complementares fundamentados:

  • O RN deverá ser colocado em incubadora, em condições de assépsia e de termoneutralidade;
  • Deverá promover-se a monitorização das frequência cardíaca e respiratória, da oxigenação, da pressão arterial e da temperatura;
  • Deverá garantir-se o equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base;
  • Deverá prevenir-se e detectar-se eventual infecção.

Estes objectivos conseguem-se através de vigilância ou monitorização clínica, biofísica, bioquímica e imagiológica em unidade de cuidados especiais ou em unidade de cuidados intensivos.

No âmbito dos exames complementares de imagem assumem particular importância, em primeiro lugar a radiografia do tórax e, em certos casos, a ecografia torácica.

O Quadro 3 proporciona dados imagiológicos torácicos importantes para a orientação diagnóstica.

QUADRO 3 – Tórax e sinais radiológicos.

Imagem observadaOrientação diagnóstica

Pulmão Denso

Granitado difuso com ou sem broncograma “Miliar” de nódulos grosseiros assimétrica
Opacidade difusa

 

Doença da membrana hialina
Inalação – Infecção
Pneumonia – Hemorragia pulmonar

Pulmão Húmido

Diminuição homogénea da transparência
Linha cisural
Opacidades perivasculares

 

Perturbações da reabsorção do líquido alveolar/edema pulmonar

Pulmão Arejado

Hipertransparência acentuada dum campo pulmonar
Hipertransparências difusas, lineares, paralelas aos brônquios

 

 

Pneumotórax; Malformações
Enfisema lobar
Enfisema intersticial

Diafragma

Cúpula abaixada
Cúpula elevada

 

Enfisema; Pneumotórax
Paralisia do nervo frénico; Atelectasia

Mediastino

Hipertransparência em torno da silhueta cardíaca




Desvio mediastínico

 

 

Pneumomediastino
Hérnia diafragmática
Eventração diafragmática
Agenesia pulmonar
Hipoplasia pulmonar
Atelectasia
Enfisema lobar congénito
Malformação quística
Tumor
Hidrotórax
Pneumotórax

A ecografia torácica é de grande utilidade em situações compatíveis clinicamente com derrame pleural ou pericárdico, para avaliação da dinâmica do diafragma havendo suspeita de paralisias, e ainda, para avaliação do grau de recrutamento alveolar (de arejamento ou colapso).

Na perspectiva de detecção de insuficiência respiratória e de eventual repercussão multiorgânica – que poderão determinar a transferência do RN para UCIN – estão indicados determinados procedimentos:

  • Oximetria de pulso para determinação da saturação em O2 (SpO2)
    Na oximetria de pulso utiliza-se um foto-sensor cutâneo (oxímetro de pulso, de preferência com dois aparelhos: na mão direita e noutra extremidade) para determinar de modo contínuo a percentagem de saturação de Hb em oxigénio (SpO2) disponível para transporte do mesmo. Idealmente, a SpO2 no RN de termo deve ser ≥95% nas primeiras 7-12 horas pós-parto).
    A SpO2 (que nos dá na prática clínica diária a monitorização cutânea contínua da oxigenação) é afectada pela curva de dissociação da oxi-hemoglobina. (ver atrás, Figura 6)
    O método tem limitações, citando-se alguns exemplos: saturações de 88-93% correspondem a PaO2 entre 50 e 80 mmHg. Valores extremos, elevados ou baixos, têm fraca correlação com a PaO2 (exemplo: saturação de 98 ou 99% pode corresponder a PaO2 variando entre 95 e >200 mmHg).
    Como vantagens citam-se: fácil de utilizar; não requer calibração manual; os valores determinados são pouco influenciados pela temperatura e perfusão da pele (ao contrário do que acontece com o monitor de pressão transcutânea de O2).
    Com os referidos monitores (oxímetros) é possível proceder, também, à monitorização das frequências cardíaca, respiratória e da pressão arterial.
  • Determinação inicial do pH e gases no sangue
    • PaO2
      Com a determinação da pressão arterial de O2 há possibilidade de regular a concentração de oxigénio necessária para manter os valores fisiológicos de 70-80 mmHg.
      De notar que um valor inferior pode ser responsável por hipóxia celular com consequente acidose metabólica, e um valor exageradamente elevado pode ser tóxico para os vasos retinianos com possibilidade de sequelas no RN pré-termo, nomeadamente retinopatia, podendo originar cegueira.
    • PCO2
      A determinação da pressão de CO2 permite apreciar o valor da ventilação alveolar. Os valores normais oscilam entre 35 e 45 mmHg.
      Um aumento da pressão de CO2 (hipercápnia) pode ser sinal de obstrução, atelectasia, perturbação do mecanismo central da respiração, ou de patologia neuromuscular.
      Uma hipocápnia, pelo contrário, pode constituir a tradução do fenómeno de compensação respiratória duma acidose metabólica e, também, eventualmente de perturbações do mecanismo central da respiração
    • pH
      O valor normal deste parâmetro está compreendido entre 7,35 e 7,40. De notar também que uma acidose grave pode ter consequências deletérias: vasoconstrição dos capilares pulmonares e sequelas ao nível do S.N.C.
      No RN pré-termo é actualmente considerada lícita a estratégia de hipercapnia permissiva: tolerar PCO2 mais elevadas (45-55 mmHg), tentando reduzir o tempo de suporte ventilatório ao RN. Neste contexto, valores de pH ≥7,22 nos primeiros cinco dias de vida do RN pré-termo com SDR, e de ≥7,20 nos dias seguintes, são amplamente aceites de acordo com as normas europeias de abordagem do SDR.
    • BE (“Excesso de base”)
      Este parâmetro permite calcular a quantidade de iões básicos necessária para neutralizar uma perturbação de origem metabólica no espaço extracelular (no RN = ± 0,5 peso do corpo em kg). Num estado normal de equilíbrio, o BE = 0. Portanto, uma acidose metabólica corresponde a um BE negativo cujo valor se correlaciona com o número de mEq de bicarbonato necessário para a correção da acidose.
  • Capnografia não invasiva
    Método não disponível em todas as unidades neonatais, poderá ser útil na detecção de apneia, quer de tipo central, quer obstrutiva.
  • Outros exames e índices de avaliação
    • Salientando-se que nas situações de patologia respiratória poderá verificar-se compromisso multiorgânico, cabe referir que após concretização de procedimentos prioritários, e uma vez verificada a estabilização clínica hemodinâmica, poderão estar indicados determinados exames complementares tais como hemograma com plaquetas, hematócrito, grupo sanguíneo, PCR, glicémia, ionograma, estudo da coagulação, exames microbiológicos, hemocultura, exame sumário da urina, urocultura, etc..
    • Na valorização do grau de insuficiência respiratória são classicamente usados os seguintes índices:
      1. não invasivos: SpO2/FiO2;
      2. invasivos:
        • PaO2/FiO2;
        • índice de oxigenação (PMA x FiO2/PaO2); e
        • diferença alvéolo-arterial de oxigénio (A-a DO2= PAO2-PaO2).
[PMA: pressão média na via aérea; PaO2: pressão parcial arterial de O2 pós-ductal; A-a DO2: diferença alvéolo-arterial de oxigénio; PAO2: pressão alveolar de O2]. Estes índices serão igualmente abordados adiante, no capítulo sobre “ventilação mecânica”.

Cuidados básicos ao RN com problemas respiratórios

Em obediência aos princípios da actuação atrás sintetizados, os cuidados básicos ao RN com SDR (em unidades de cuidados intermédios ou em UCIN) deverão contemplar determinados critérios, abordados nesta alínea.

Balanço hidroelectrolítico

Torna-se fundamental proceder aos registos do peso diário assim como do suprimento de fluidos e electrólitos, do débito urinário (pós-algaliação ou colocação de saco colector), das perdas pelas fezes e das perdas insensíveis. Com efeito, a manutenção do balanço hidroelectrolítico dentro da normalidade é condição indispensável para garantir ventilação-perfusão normais e trocas gasosas eficazes.

Humidade e temperatura ambientais

O ambiente termo-neutro (a garantia do consumo mínimo de oxigénio) implica humidade relativa ~ou >50%. Por outro lado, uma humidificação dentro dos limites recomendados contribui para diminuir a perda de líquidos através da pele e, consequentemente, a perda de calor corporal. Situações que implicam entubação traqueal necessitam de humidade relativa >60%.

Nos RN de peso <1.000 gramas poderá haver necessidade de humidade relativa ~80-90% e manutenção de temperatura cutânea abdominal de 36,9ºC (nestes casos, com sensor aplicado na pele do abdómen, ligado a sistema automático de aquecimento servocontrolado).

Nos RN de peso entre 1.000-1.499 gramas, com tal sistema automático, deverá providenciar-se temperatura cutânea abdominal de 36,7ºC; se 1.500-1.999 gramas: 36,5ºC.

Recorda-se que a hipotermia (temperatura axilar <36,5ºC: ligeira- 36-36,4ºC; moderada- 32-35,9ºC; grave- <32ºC), originando vasoconstrição pulmonar, poderá levar a situação de hipoperfusão e hipertensão pulmonares, agravando o quadro respiratório. O Quadro 2 do capítulo sobre “prematuridade” especifica a temperatura ambiente recomendável para RN de diversos subgrupos de peso. Exceptua-se a situação de hipotermia induzida como estratégia neuroprotectora nos casos de encefalopatia hipóxico-isquémica, com indicação para a mesma.

Cuidados da pele

A integridade da pele é importante para manutenção do balanço hídrico e da temperatura corporal; por outro lado, a perda da integridade da mesma comporta igualmente risco de infecções sistémicas. Na prática clínica deverá evitar-se sempre que possível o uso de adesivos e outras práticas que contribuam para a lesão da pele, chamando-se a atenção para a necessidade de protecção daquela sobre proeminências ósseas, sobretudo no RN de prematuridade extrema (<1.000 gramas).

Posição do RN

A colocação de doentes com dificuldade respiratória em posição correcta é muito importante para garantir a melhoria da função respiratória e a eficácia dos restantes cuidados. A este propósito cabe salientar o seguinte:

  • Estando o RN submetido a ventilação mecânica, mudanças de posição do corpo, não planeadas ou mal efectuadas, podem alterar a posição do TET (ver adiante);
  • A posição em decúbito dorsal prolongada, leva a atelectasias segmentares posteriores;
  • A colocação do RN em posição de decúbito lateral durante ventilação mecânica pode ajudar no que diz respeito a melhoria de áreas de atelectasia ou de enfisema intersticial;
  • A posição em decúbito ventral tem sido referida como bastante vantajosa por melhorar a ventilação, permitindo a total expansão pulmonar e facilitando a drenagem de secreções (RN monitorizado).

Nota importante: esta posição está proscrita em RN saudáveis em berço convencional, para dormir.

Manutenção da permeabilidade das vias aéreas

Determinadas medidas com o objectivo de manter a permeabilidade das vias aéreas (facilitando a oxigenação do sangue e permitindo a remoção do CO2) incluem:

  • Aspiração suave de secreções, drenagem postural, vibração torácica e percussão suave, sobretudo em situações de atelectasia ou de pneumonia;
  • A aspiração das vias aéreas, realizada por pessoal de enfermagem especializado, deverá ser reduzida ao mínimo, nomeadamente no RN pré-termo extremo; com efeito, aspirações excessivas, sem indicação clínica para tal, poderão conduzir a lesões traumáticas e, por vezes, a efeitos secundários graves como por ex. pneumotórax.

Após a descrição dos cuidados básicos, importa descrever de modo sucinto os cuidados especiais que, fundamentalmente, correspondem à assistência respiratória.

Assistência respiratória ao RN

Independentemente da etiologia e gravidade do problema respiratório neonatal, no conceito lato de assistência respiratória (ou suporte respiratório) incluem-se:

Métodos não invasivos

  • A administração de suplemento de oxigénio (oxigenoterapia), em proporções variadas utilizando diversas técnicas e procedimentos adiante descritos, em função dos parâmetros clínicos e biológicos de cada caso;
  • Suporte respiratório com pressão positiva/CPAP nasal.

Métodos invasivos

  • Ventilação mecânica invasiva convencional implicando entubação traqueal e ventiladores sofisticados e incluindo a administração de gases inalados (tais como mistura oxigénio-hélio/heliox ou óxido nítrico/iNO);
  • Ventilação de alta frequência oscilatória (VAFO);
  • ECMO (oxigenação por membrana extracorporal).

De salientar que, com os progressos da ciência e tecnologia, a tendência actual é a utilização de métodos e estratégias cada vez menos invasivos.

A assistência respiratória ao RN deve ser progressiva e, idealmente, o menos invasiva possível, com base na etiologia do processo. Os processos em que predomina a diminuição da distensibilidade/compliance pulmonar, aumento do trabalho respiratório e perda do volume residual funcional beneficiarão se for incrementada a pressão na via aérea. Nos casos em que predomina o aumento da resistência da via aérea, haverá benefício se se aumentar o fluxo do gás.

 

Neste capítulo faz-se referência à assistência respiratória por métodos não invasivos.

Modalidades de oxigenoterapia

A oxigenoterapia pode ser aplicada, quer nas situações em que se verifica respiração espontânea, quer em RN submetidos a ventilação artificial, segundo várias modalidades.

Nos casos de RN respirando espontaneamente, com SDR ligeira, evidenciando adequada ventilação-minuto, e sinais de hipoxémia ligeira (SpO2 <89%) poderá haver necessidade de providenciar apenas suplemento de O2 [variando a FiO2, e pressupondo que o dispositivo/fonte de O2 possua um misturador para regular a referida FiO2], no sentido de obter valores da SpO2 entre 90 e 95%.

Importa realçar contudo que a assistência respiratória poderá ser levada a cabo com ar ambiente, o qual contém proporção de 21% de O2 (por ex., já na sala de partos no contexto de reanimação neonatal).

Portanto, o suplemento de oxigénio deve ser aquecido à temperatura do RN, e humidificado, podendo ser administrado segundo diversas modalidades.

Cânulas nasais com baixo fluxo de gás

Trata-se do método clássico de administração de oxigénio consistindo na aplicação de cânula nasal dupla/pronga (ou em alternativa, sonda única empregando sonda vulgar de calibre 8 FG introduzida numa das narinas até cerca de 3 cm).

Com esta modalidade deve utilizar-se um debitómetro de precisão permitindo débitos <1 L/minuto (por ex. 0,25 – 0,50 – 0,75 L/min, etc.). Determinando a concentração de oxigénio na hipofaringe (FhO2) com este método, é possível estabelecer a seguinte relação, respectivamente entre débito e FhO2:

0,25 L/min<>30%; 0,50 L/min<>45%; 0,75 L/min<>60%; 1 L/min<>65%

Nota importante: no RN pré-termo (<28 semanas) em que a camada da pele é extremamente delgada, pode verificar-se absorção transcutânea de oxigénio se o mesmo RN não estiver vestido (e se eventualmente o ambiente da incubadora proporcionar elevada concentração de FiO2); assim, poderá verificar-se incremento de PaO2 ~9 mmHg (~1,2 kPa) se a FiO2 do habitáculo for ~95%.

Cânulas nasais com alto fluxo de gás

Actualmente, nos pacientes com respiração espontânea, verifica-se a tendência de utilização de uma modalidade de cânulas nasais para inalação de alto fluxo.

Trata-se dum método de assistência respiratória não invasiva permitindo administrar gás aquecido (34-37ºC) e humidificado (95-100%) a um fluxo constante; este fluxo constante é mais elevado que o fluxo inspiratório do paciente e do que o utilizado em cânulas nasais convencionais atrás citadas. O O2 com percentagem de ar misturado e regulável é o gás mais utilizado.

Tendo como referência os fluxos atrás descritos para as cânulas nasais convencionais, cabe salientar que a definição de alto fluxo ainda não é consensual; na prática corrente, considera-se aceitável considerar alto fluxo: – no RN pré-termo ou de termo à 1 L/min; – em lactentes à 2 L/min; – em crianças maiores à 6 L/min; – em adultos à até 60 L/min. Constitui prática corrente iniciar o procedimento com o fluxo ~2 L/kg/min. (Figuras 7 e 8)

O sistema de inalação de alto fluxo (ou alto débito) tem diversas vantagens, destacando-se as seguintes:

  • O efeito de “lavagem” do espaço morto da nasofaringe; – o preenchimento de todo o espaço aéreo da nasofaringe com gás “limpo”, removendo o ar expirado ao ponto de o paciente inspirar novo gás oxigenado no ciclo seguinte;
  • Eliminação de CO2 promovendo maior rendimento da oxigenação;
  • Promoção do recrutamento alveolar gerando-se uma pressão de distensão alveolar contínua;
  • Com a aplicação do sistema de alto fluxo contínuo poderá gerar-se, inavertidamente, pressão positiva contínua, isto é, efeito CPAP. (ver adiante)

Como indicações principais citam-se:

  • Na fase pós-extubação traqueal;
  • Pós-ventilação com CPAP;
  • Como tratamento de SDR em RN pré-termo com idades gestacionais ~32-34 semanas ponderando outros aspectos da situação clínica na globalidade.

Pressão positiva contínua na via aérea

Nos RN com respiração espontânea pode administrar-se suplemento de O2 em fluxo contínuo empregando:

  • dispositivo com a funcionalidade e tecnologia exclusivamente para CPAP;
     ou
  • ventilador convencional que, para além da modalidade PIP associada a fluxo contínuo possui simultaneamente funcionalidade para pressão de distensão contínua. 
  1. Ao conceito genérico de pressão positiva contínua/ pressão de distensão alveolar contínua, isto é, de maior expansão alveolar no fim da expiração (em comparação com os casos em condições fisiológicas naturais, de normalidade), dá-se o nome de CPAP (Continuous Positive Airway Pressure). Trata-se, pois, de aplicação de apoio respiratório, artificial, com fluxo contínuo do gás ao mesmo tempo que o paciente respira espontaneamente.
  2. Este conceito de maior expansão alveolar no fim da expiração, superior à verificada fisiologicamente no fim de cada expiração, sobrepõe-se ao de PEEP (Positive End Expiratory Pressure-pressão positiva), aplicável a pacientes que, não respirando espontaneamente, têm aplicado dispositivo/aparelho que promove simultaneamente pressão positiva intermitente (PIP ou PPI).
  3. À pressão de distensão contínua que se obtém quando é utilizda simultaneamente PIP (modalidade mista), dá-se o nome de PEEP. (por ex.,  diz-se: – o doente X, com respiração espontânea está em CPAP de 5 cm H2O; e – relativamente ao doente Y, ventilado simultaneamente com pressão positiva intermitente (por ex. PIP de 30 cm H2O) e com a mesma pressão de distensão contínua, diz-se: está com PIP de 30 cmH2O e PEEP de 5 cm H2O (e não, PIP de… e CPAP de…).

Na impossibilidade de dispor de ventilador com diversas funcionalidades ou de aparelhagem sofisticada exclusivamente para pressão positiva contínua (CPAP), pode utilizar-se um dispositivo simples em que a pressão positiva é gerada criando uma resistência ao fluxo gasoso.  

O esquema básico que integra a Figura 9  pretende elucidar sobre os componentes de tal dispositivo aplicado à via aérea do RN com respiração espontânea.

Importa então considerar determinados aspectos do funcionamento, excluindo pormenores técnicos sobre calibres das tubagens e pressões obtidas em função dos fluxos de gás.  As setas indicam o trajecto do gás (inalado ou exalado); um sistema valvular permite que o gás inalado e exalado circule repectivamente em tubagens diferentes. (ver caixa)

    1. Fonte de gás com misturador de O2+Ar com sistema de aquecimento e humidificação; fluxo contínuo e débito de 5-10 L/ minuto;
    2. Monitor de FiO2 (Oxímetro;)
    3. Ramo inspiratório da tubagem em conexão com a via aérea implicando sistema valvular intercalado (abertura da válvula na inspiração e encerramento na exalação), evitando fluxo retrógrado (portanto, sem interferência com a fase da expiração espontânea);
    4. Ligação do ramo inspiratório à via aérea (a montante), utilizando quer prongas nasais, quer máscara, quer tubo endotraqueal (TET); na figura 9 está representada a modalidade de máscara;
    5. Extremidade distal da tubagem veiculando o gás exalado (ramo expiratório, a jusante da via aérea), com três derivações:
      • uma derivação (A) termina em tubo que mergulha em copo ou frasco em plano inferior (em contacto com o ar ambiente); o comprimento do tubo mergulhado na água, entre a extremidade distal do mesmo e o nível da água, dá o valor em centímetros da pressão gerada que se deseja (positiva, de distensão contínua). Daí, a designação de ”pressão em cm de H2O”. Habitualmente usa-se pressão de 5 cm de H2O;
      • uma derivação (B) em ligação a monitor de pressão do gás  na tubagem;
      • uma derivação (C) em ligação a balão de tipo anestésico (ovóide) como reservatório do gás exalado; para o bem funcionamento do sistema tal balão deve estar insuflado;  
    6. No polo distal do balão de reserva existe um sistema regulador de saída do gás exalado segundo diversas modalidades; uma delas é precisamente (também) através de outro tubo mergulhado num recipiente com água, o qual produzirá “bolhas” com a saída do gás.  

FIGURA 7. Esquema de administração de oxigenoterapia com FiO2 variável (alto ou baixo débito/fluxo) por cânulas nasais (prongas). (A, B, C, D, E, F)
A) Misturador Ar+O2; B) Sistema de aquecimento/leitura digital da temperatura e humidificação do gás; C) Tubagem, acompanhada por fios exteriores ligados a sensores e com aplicação de duas cânulas nasais em V ou em T; D) Sensor de oxímetro de pulso aplicado no pulso direito (pré-ductal); E) Oxímetro de pulso com indicação digital de saturação em O2 /SpO2 ; F) Formato variável das prongas nasais (em V ou em T).

FIGURA 8. RN submetido a oxigenoterapia com aplicação de pronga nasal em dois T. É visível sonda gástrica de cor verde para evitar distensão gasosa referida adiante, a propósito do sistema CPAP.

FIGURA 9. ESQUEMA BÁSICO DO SISTEMA DE PRESSÂO POSITIVA CONTÍNUA NA VIA AÉREA
(1)- Misturador O2+ar, regulável; (2)- Sistema de aquecimento e humidificação do gás; (3)-Paciente respirando espontaneamente, com pronga nasal aplicada; esta deriva da tubagem – ramo inspiratório (A); no paciente, as setas nos dois sentidos representam inspiração/expiração; (B)- Ramo expiratório da tubagem, veiculando gás exalado pelo paciente, ligada a tubo mergulhado em (4)- Recipiente com água: a exalação provoca “bolhas” em número e intensidade proporcional ao valor do débito do gás inalado; (5)- Tubo derivando do ramo expiratório submerso noutro recipiente com água; o comprimento em cm da parte submersa corresponde ao valor da pressão positiva que é gerada no fim da expiração “em cm de H2O”.

FIGURA 10. Oxigenoterapia em campânula.

A Figura 9 representa em esquema os componentes básicos do sistema de CPAP referido (chamado sistema subaquático ou “de bolhas”), excluindo referência a sistemas valvulares e a calibres dos vários tubos).

A distensão gástrica pode ser um efeito secundário da CPAP nasal; contudo, esta técnica não contraindica a alimentação por via entérica. Para prevenir tal efeito deve aplicar-se sonda orogástrica nos RN submetidos a CPAP nasal.

Outras modalidades (clássicas)

Como alternativa às cânulas nasais e prongas nasais, alguns centros utilizam diversas modalidades de “máscaras” faciais obrigando ao cumprimento das regras quanto a débitos a utilizar em função das dimensões e das diversas marcas do mercado.

Por fim, e por razões históricas, importa citar modalidades menos utililizadas actualmente (não totalmente obsoletas), podendo servir como recurso (consultar anterior edição desta obra):

Campânula
Trata-se de campânula transparente de perspex /acrílico fechada, cúbica ou cilíndrica, com uma abertura semicircular correspondente ao pescoço do RN (ficando a cabeça dentro da mesma) e um orifício de comunicação com a fonte de oxigénio; a campânula pode ser usada quer em berço, quer dentro da própria incubadora.
Esta modalidade permitindo, através da grande abertura em torno do pescoço do RN, a saída do CO2 expirado pelo RN (evitando a acumulação do mesmo dentro da campânula) está indicada em situações necessitando de FiO2 > 25%.
Haverá, pois,  que monitorizar a FiO2 dentro da campânula com oxímetro colocado a meia distância entre o nariz e boca e a SpO2 com oxímetro de pulso (sensor aplicado, de preferência sobre o pulso direito /pré-ductal,  ou em alternativa sobre o  dedo grande do pé/pós-ductal ). Salienta-se que, de acordo com a situação clínica, poderá haver há indicação para avaliar os valores pré e pós-ductais implicando a aplicação de dois oxímetros (ver capítulo sobre “hipertensão pulmonar persistente”). Figura 10

Incubadora
Nos casos em que o RN necessite de FiO2 < 25% poderá administrar-se oxigénio conectando a fonte de O2 directamente ao interior do habitáculo da incubadora; nestas circunstâncias poderá compreender-se que a FiO2 monitorizada com oxímetro tal como se referiu para a campânula- pode diminuir sempre que se abre a “janela” da incubadora, o que constitui uma limitação pelas oscilações que provoca na mesma FiO2.

Monitorização em UCIN

Recorda-se, a propósito, que as UCIN são unidades assistenciais com equipamento sofisticado integrando equipas fixas de enfermeiros e de pediatras-neonatologistas com formação especializada em intensivismo neonatal, e agregando a si outros especialistas que dominam certas técnicas, como cirurgiões neonatais, gastrenterologistas, cardiologistas, pneumo-broncologistas, etc. O conceito de assistência de tipo intensivo implica a disponibilidade de equipas próprias em permanência, 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano.

Para a vigilância e terapia intensivas torna-se necessário proceder a técnicas invasivas como cateterismo arterial e venoso. Pelas condições indispensáveis de ambiente em assépsia rigorosa é possível a realização de intervenções cirúrgicas em áreas reservadas e isoladas da UCIN, como laqueação do canal arterial no RN pré-termo e correcção cirúrgica de hérnia diafragmática de Bochdalek.

Do equipamento sofisticado fazem parte, nomeadamente, incubadoras “abertas” e fechadas (clássicas) com mecanismo de regulação de temperatura automática (servocontrolada), monitores electrónicos e ventiladores, aparelhos de fototerapia, etc..

De facto, os problemas respiratórios neonatais tipificam perfeitamente o paradigma do internamento em UCIN, designadamente pelas repercussões multissistémicas da disfunção respiratória. Salienta-se – pelo que foi dito – que a necessidade de ventilação mecânica não constitui a única indicação de internamento na mesma.

Assim, é oportuno discriminar os critérios clássicos utilizados para transferência de RN para UCIN ou Unidade de Cuidados Especiais (com ou sem problemas respiratórios):

  • RN pré-termo de peso inferior a 1.500 gramas;
  • A verificação de necessidade de assistência ventilatória em função dos dados colhidos pelo exame clínico, dos resultados da determinação de pH e gases no sangue (gasometria);
  • Problemas hemodinâmicos tais como choque de etiologia diversa (designadamente infecciosa), hipertensão arterial, hipotensão e hipoperfusão, defeitos cardíacos e insuficiência cardíaca, etc.;
  • Problemas hematológicos (diátese hemorrágica grave, CID, etc.);
  • Problemas neurológicos com repercussão multissistémica (status epilepticus, doenças neuromusculares, etc.);
  • Problemas metabólicos, alterações do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base;
  • Infecções sistémicas;
  • Alterações da termo-regulação;
  • Patologia dita cirúrgica major implicando vigilância pré- e pós-operatória.

Nesta perspectiva, são descritas sucintamente as modalidades mais correntes de monitorização do RN realizada em UCIN.

Monitorização não invasiva

  • O tópico sobre “admissão na UCIN” da alínea sobre “cuidados ao RN pré-termo” tipifica de modo sucinto os diversos tipos de aparelhos para monitorização básica: de frequência cardíaca e respiratória (implicando aplicação de eléctrodos sobre a pele, com possibilidade de obtenção de traçados de registo digital), de temperatura cutânea e de ambiente, de pressão arterial por método doppler tipo Dinamap e de oximetria de ambiente (para determinação da FiO2).
  • Para além do oxímetro de pulso já referido e utilizado também em UCIN, cabe referir ainda os monitores para determinação da pressão transcutânea de O2 e de CO2. Com o aparecimento do oxímetro de pulso, o monitor transcutâneo de oxigénio (Ptc O2) – com eléctrodo aplicado sobre a pele, produzindo determinada temperatura indispensável para vasodilatação da pele, passou a ser menos utilizado.
  • A monitorização da Ptc CO2 é extremamente importante na prática clínica uma vez que permite determinar de modo contínuo tal parâmetro, com grande aproximação ao valor da pressão arterial de CO2 (PaCO2).
    Existem, no entanto, algumas limitações relacionadas com o funcionamento dos dois últimos monitores: 1) necessidade de recalibração diária; 2) necessidade de recolocação em diferentes zonas da pele após cada 4 a 6 horas (ou de 2 em 2 horas nos RN mais imaturos) face à irritação da pele (eritema ou queimadura superficial causada pela temperatura exigida para a eficácia do funcionamento do eléctrodo; 3) resultados difíceis de interpretar em situações clínicas acompanhadas de má perfusão cutânea, em que a sua utilização é pouco eficaz.
  • A monitorização do CO2 expirado por aplicação do respetivo sensor junto à conexão do TET (capnografia) é um meio prático e fiável de avaliação da evolução do CO2 permitindo a leitura da curva de registo da mesma uma deteção precoce de alterações tendentes à retenção ou à depuração exagerada de CO2 em doentes sob suporte ventilatório mecânico convencional.
  • A avaliação ecocardiográfica é muito importante pelos achados obtidos, nomeadamente em termos de status cardíaco (por ex. grau de preenchimento das cavidades cardíacas), de resistências pulmonares e periféricas, e de shunt intrapulmonar.

Monitorização invasiva

  • A gasometria arterial (determinação do pH e gases no sangue arterial) constitui a avaliação mais padronizada e aceite do status respiratório. Requer punção arterial (por ex. da artéria radial ou temporal direitas, pré-ductais) ou a manutenção de uma linha arterial contínua.
    Na prática corrente, estando o RN internado em UCIN, no período neonatal precoce obtém-se sangue arterial da artéria umbilical uma vez que em praticamente todos os RN com SDR é colocado um cateter arterial umbilical, viabilizando uma linha de monitorização arterial contínua, permitindo monitorização dos referidos parâmetros. Em geral procede-se a colheitas de sangue arterial periodicamente em função da clínica com seringa aplicada a sistema de torneira com três ou mais vias segundo técnica que ultrapassa os objectivos do livro; outra alternativa é a determinação contínua com monitor electrónico que incorpora sensor em contacto com o sangue arterial, o que implica o emprego de cateteres especiais.
  • A pressão arterial por método directo (hoje menos vulgarizada dado o desenvolvimento de métodos não invasivos) também pode ser realizada através do cateter arterial especial com equipamento ligado a monitor-transdutor.
  • A gasometria venosa não tem valor quanto à determinação da pressão de O2, sem qualquer correlação com a PaO2. O pH é ligeiramente mais baixo e a pressão de CO2 (venosa, não arterial) é ligeiramente mais elevada.
  • A gasometria capilar obtida através de colheita de sangue capilar (arterializado) – em geral obtido por punção na região calcaneana – proporciona informação útil; as limitações são semelhantes às da punção venosa.
  • A pressão venosa central (PVC) pode ser monitorizada pelo cateter venoso umbilical com extremidade atingindo a aurícula direita. No RN valores da ordem de 4-8 cm H2O, são geralmente aceites como normais. No entanto, actualmente alguns dados indirectos relativamente à pré-carga e pós-carga podem ser obtidos de modo não invasivo através da ecografia com doppler.

Nota importante: tal como foi referido a propósito dos exames iniciais, na UCIN o RN com SDR necessita de avaliação seriada, devendo os exames a realizar – os já citados e outros, implicando colheitas de sangue – ser programados com vista a reduzir ao mínimo as expoliações e o número de punções, dados os riscos inerentes.

Indicações da ventilação mecânica*

Habitualmente, nos pacientes que não estão em respiração espontânea, são estabelecidos dois tipos de critérios (clínicos e biológicos) para início de ventilação mecânica implicando, em princípio, entubação traqueal e internamento em UCIN:

Clínicos

  • Índice de Silverman >7 sem melhoria na sequência de período anterior de assistência respiratória, designadamente na modalidade de pressão de distensão contínua por via nasal aplicada a RN em respiração espontânea (CPAP nasal/ nCPAP, isto é, sistema de fluxo contínuo de mistura de ar/O2, gerando pressão positiva no fim da expiração, e garantindo menor esvaziamento e maior distensão alveolares do que em situação normal);
  • Apneia recorrente: dois ou mais episódios/hora com necessidade de ventilação manual para reversão e/ou ausência de resposta ao tratamento com xantinas;
  • Doenças do foro neurológico e neuromuscular, congénitas ou adquiridas, implicando ausência de movimentos respiratórios ou movimentos respiratórios irregulares ou de fraca amplitude;
  • Doenças sistémicas diversas, idem;
  • RN submetidos a tratamento com fármacos interferindo no automatismo e dinâmica respiratórios.

*As noções básicas de assistência respiratória por métodos invasivos são abordadas em capítulo próprio adiante.

Resultados da determinação de pH e gases no sangue (gasometria)

  • PaO2 <50 mm Hg (6,7 kPa) ou SpO2 <88% com FiO2 >60% (se ≤32 semanas de gestação) [ou com FiO2 >80%(se >32 semanas)]
  • PaCO2 >60 mmHg (8,0 kPa): associada a pH <7,20 se idade gestacional >32 semanas;
  • PaCO2 >50 mmHg (6,7 kPa) associada a pH <7,25 se idade gestacional ≤32 semanas;
  • Acidose metabólica grave (pH <7,20) na ausência de resposta a alcalinizantes (bicarbonato de sódio, por ex.) e/ou a expansores de volume.

Nota importante:
Correspondência entre as medidas de pressão kPa (capa pascal) e mmHg: valor de KPa x 7,5 corresponde a valor em mmHg

No RN pré-termo, após ventilação não invasiva, não existem critérios universalmente aceites para ventilação mecânica; contudo, segundo a comprovação científica actual, é amplamente aceite a necessidade de suporte ventilatório invasivo se, após se ter tentado rendibilizar o suporte não invasivo, persistirem as seguintes condições:

  • Dificuldade respiratória importante (tiragem, gemido expiratório, polipneia);
  • Hipercapnia (Ph <7.22 com PCO2 ≥65 mmHg);
  • Apneia recorrente (>2/hora) nas 6 horas prévias;
  • Apneia major ou bradicardia necessitando de ressuscitação empregando ventilação com pressão positiva.

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DOENÇA METABÓLICA ÓSSEA DA PREMATURIDADE

Definição, importância do problema e aspectos epidemiológicos

A doença metabólica óssea (DMO) da prematuridade é uma situação clínica caracterizada por défice de mineralização da substância osteóide (por suprimento deficitário de cálcio ou fósforo) observada no RN/lactente em fase de crescimento com antecedentes de prematuridade, na idade pós-concepcional correspondente à gestação de termo.

Trata-se dum problema clínico cuja frequência é inversamente proporcional ao peso de nascimento e idade gestacional, compreendendo um espectro variado de alterações: desde a desmineralização ligeira (osteopénia), à desmineralização grave acompanhada de fracturas (raquitismo).

A importância desta situação decorre essencialmente de determinado tipo de morbilidade que tem acompanhado a diminuição da mortalidade de RN pré-termo; por outro lado, a partir da década de 70, começou a chamar-se a atenção para a necessidade de suplementação mineral, principalmente de fósforo, nas primeiras semanas de vida extrauterina para garantir uma mineralização óssea semelhante à verificada in utero, em RN pré-termo.

A DMO surge mais frequentemente na raça negra e em lactentes nos quais se verificou perda de peso mais acentuada no período neonatal precoce; estes últimos integram fundamentalmente os RN de idade gestacional <28 semanas e peso de nascimento <1.000 gramas, evidenciando alterações radiológicas ósseas em cerca de 60% dos casos.

Em diversos estudos epidemiológicos tem sido demonstrada maior frequência da doença em RNMBP alimentados com leite materno (~40%) comparativamente a RNMBP alimentados com fórmula para pré-termo (~20%). Em cerca de 30% dos casos de osteopénia verifica-se evolução para a forma mais grave de DMO: o raquitismo.

Etiopatogénese

O cálcio (Ca) é o catião mais abundante do organismo: cerca de 98% do cálcio corporal encontra-se nos ossos, constituindo um dos seus principais componentes inorgânicos (o RN de termo contém ~28 gramas de Ca).

O fósforo (P) constitui o segundo ião mais abundante do organismo. A sua distribuição é preferencialmente óssea, encontrando-se cerca de 80% no esqueleto (o RN de termo contém ~16 gramas de P), e cerca de 9% no músculo esquelético; o restante 1% distribui-se pelos lípidos da membrana celular, pelos compostos de alta energia (ATP), proteínas intracelulares de tradução de sinal, ARN e ADN.

A deposição crescente (ou acréscimo) de Ca e de P, quer durante a vida intrauterina, quer no período neonatal, depende duma oferta adequada dos referidos minerais, de vitamina D, e duma regulação hormonal que, por um lado, favoreça a mineralização e, por outro, limite a reabsorção óssea, promovendo aumento do conteúdo mineral ósseo.

O acréscimo ou incorporação mineral no feto (com ênfase para o Ca e P) ocorre a partir das 24 semanas de idade gestacional, continuando até ao final da gestação na presença de relação Ca/P constante (relação ideal de 2/1 ao nível ósseo e 1,7/1 no conteúdo extra-ósseo corporal). O pico máximo da referida incorporação mineral surge entre as 34 e 36 semanas de gestação (Ca<>120-140 mg/kg/dia e P <> 60-80 mg/kg/dia).

Vários factores hormonais favorecem o processo de mineralização óssea fetal:

  • A proteína relacionada com a PTH (PrPTH) que tem papel importante na manutenção do gradiente de Ca transplacentar;
  • A produção placentar de 1,25(OH)2 – vitamina D regulando a produção de proteínas transportadoras de Ca;
  • As baixas concentrações de PTH limitando a mobilização mineral óssea;
  • A presença de concentrações elevadas de calcitonina, favorecendo a deposição mineral;
  • Libertação de factores de crescimento semelhantes à insulina (IGF-I), estimulando o crescimento ósseo e incrementando a mineralização;
  • Elevados níveis de estrogénios circulantes no sangue materno, favorecendo a mineralização.

O resultado final da acção conjunta destes factores é a ocorrência de 80% da mineralização óssea no terceiro trimestre de gestação.

Estudos recentes demonstraram uma associação entre carência materna de vitamina D e ulterior alteração do desenvolvimento neurocognitivo dos lactentes filhos, disfunção notória já a partir dos 3 meses de idade.

Após o nascimento, a absorção intestinal constitui o factor determinante do suprimento mineral.

Em suma, um dos factores que contribui para a génese da DMO no RN/ lactente com antecedentes de prematuridade é a existência de reservas deficitárias de minerais, designadamente de cálcio e de fósforo; com efeito, como foi referido, cerca de 80% da mineralização óssea ocorre no 3º trimestre da gestação.

O insuficiente suprimento do fósforo estimula a produção de 1,25(OH)2 – vitamina D com consequente aumento da absorção intestinal de cálcio e de fósforo. Por outro lado, verifica-se inibição da libertação de PTH, do que resulta diminuição da perda renal de fósforo e aumento da perda renal de cálcio (hipercalciúria). Com a referida inibição da libertação da PTH obter-se-ia, em princípio, “garantia de não reabsorção óssea” se a produção de 1,25(OH)2 – vitamina D não se mantivesse. Contudo, este metabólito continuando “em acção”, estimula a acção de osteoblastos, levando à remoção de Ca e P ósseos pela activação dos osteoclastos.

Mantendo-se insuficiente o suprimento em cálcio e fósforo, gera-se um círculo vicioso, com consequente intensificação da espoliação de Ca e P ósseos. Em tal circunstância, a par do défice em cálcio resultante do baixo suprimento, observa-se perda renal importante.

Uma vez que pacientes com DMO poderão evidenciar nível sérico normal do metabólito hepático mono-hidroxilado 25(OH) – vitamina D com suplemento de 400 UI de vitamina D, pode concluir-se que a carência da referida vitamina D não constitui, só por si, factor determinante de raquitismo.

Por outro lado, o nível elevado do metabólito renal di-hidroxilado – 1,25(OH)2 – vitamina D, sugere deficiência mineral “numa tentativa” de intensificar a absorção intestinal de Ca e de P para restaurar as respectivas reservas espoliadas no organismo.

Assim, neste processo patológico dinâmico, tal como a deficiência em fósforo afecta a homeostase do cálcio, também a deficiência em cálcio afecta a homeostase do fósforo.

O Quadro 1 resume as principais características bioquímicas das referidas deficiências.

QUADRO 1 – Bioquímica das Deficiências em P e Ca.

→ Deficiência em P:

P sérico < 4 mg/dL, hipofosfatúria (< 1 mg/kg/dia), hipercalciúria (> 4 mg/kg/dia);
Nota: hipercalcémia (> 11 mg/dL) pode surgir nas formas graves de deficiência em P

→ Deficiência em Ca:

Ca sérico < 8,5 mg/dL, hiperfosfatúria, hipocalciúria (< 1 mg/kg/dia)

Factores predisponentes

Na prática clínica, as situações que nos RN com antecedentes de prematuridade favorecem o desenvolvimento de DMO, podem ser assim sistematizadas:

  • Idade gestacional <32 semanas, especialmente com peso de nascimento <1.000 gramas;
  • Má absorção (incluindo de minerais);
  • Alimentação com leite da própria mãe (ou leite humano prematuro) com insuficiente teor em cálcio e fósforo relativamente ao leite “de termo”;
  • Deficiência materna em vitamina D;
  • Nutrição parentérica prolongada no pressuposto de suprimento deficitário de Ca e de P, em comparação com o acréscimo intrauterino em idêntico período de tempo;
  • Tratamento com diuréticos originando perda renal de cálcio proporcional à perda de sódio;
  • Problemas clínicos diversos que determinam o atraso no início da alimentação entérica e/ou deficiente suprimento mineral no regime alimentar em relação com limitações da concentração ou do volume de leite;
  • Imobilização prolongada, conduzindo à diminuição da massa óssea;
  • Utilização de corticóides, determinando diminuição da absorção intestinal, perda renal de cálcio e redução do conteúdo mineral ósseo.

Actualmente, investiga-se nalguns centros o possível papel duma proteína solúvel designada por alfa-Klotho (alfa-Kl, termo baseado na mitologia grega), cujos níveis séricos aumentam com a idade gestacional. A mesma tem influência na indução da resistência ao estresse oxidativo e no metabolismo fosfo-cálcico.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de DMO (que podem passar despercebidas em mais de metade dos casos se não existir índice elevado de suspeita) podem ser detectadas, em geral, cerca das 6 a 12 semanas de idade pós-natal. O respectivo espectro é variado, desde sinais inespecíficos, como ausência de evolução do crescimento longitudinal e do perímetro cefálico, a sinais clássicos da síndroma raquítica nos casos de evolução avançada: craniotabes, fontanela anterior alargada, alargamento das metáfises dos punhos e joelhos, e fracturas.

As fracturas das costelas (por vezes múltiplas e suspeitadas clinicamente em apenas cerca de 10-15% dos casos) poderão ser causa de dificuldade respiratória e dor.

De salientar que a deficiência materna em vitamina D pode originar fracturas no RN.

A dolicocefalia pode ser explicada pela menor consistência dos ossos do crânio (por défice conteúdo mineral ósseo) e postura mantida da cabeça por hipoactividade motora originando deformação; admite-se que tal dolicocefalia possa originar miopia (miopia na ausência de retinopatia da prematuridade).

Exames complementares

Havendo necessidade de detectar a doença o mais precocemente possível, os exames a programar em função do contexto clínico poderão ser realizados, quer atendendo a factores predisponentes ou de risco (por ex. RN pré-termo de peso <1.250 gramas), quer a dados clínico-biológicos já disponíveis:

  • Doseamento da actividade da fosfatase alcalina (quinzenal), assim como do cálcio, fósforo e creatinina séricos (em geral, semanal, desde a segunda semana até à data de alta hospitalar);
  • Colheita de urina de 6 horas para determinação da calciúria (Cau), fosfatúria (Pu) e creatininúria (Cru) (no mesmo dia da determinação sérica);
  • Exame radiográfico ósseo (punho) entre o 28º e 35º dias de vida sempre que haja suspeita clínica e/ou biológica de DMO.

A verificação de P sérico <4 mg/dL em RN alimentado com leite materno sugere défice do referido mineral e possível DMO, a confirmar mediante os resultados da calciúria, fosfatúria e relação calciúria/ creatininúria. De salientar a importância da avaliação periódica do bicarbonato sérico, uma vez que a acidose favorece a “dissolução” óssea.

A fosfatase alcalina (FA) elevada (em concentração cerca de 5 vezes o valor de referência para o adulto), na ausência de doença hepática, estabelece a indicação de estudo radiológico ósseo; trata-se, no entanto, dum marcador pouco sensível. Mais sensível é a isoenzima óssea da FA cuja determinação ainda não faz parte da prática clínica corrente.

  • Considerando, no conjunto, os resultados dos exames atrás descritos, a verificação, no soro ou urina (u) de:
    • P sérico <4 mg/dL associado a:
      • Cau >4 mg/kg/dia + Pu <1 mg/kg/dia ou
      • Cau/Cru >0,6 ou a
      • Relação Cau/Pu ≥1

legitima o diagnóstico de DMO relacionada com suprimento mineral inadequado.

  • Se Cau ≥4,8 mg/dL<> 1,2 mmol/L; e Pu >1,2 mg/Dl <> 0,4 mmol/L;

e relação Cau/Pu <1, considera-se que o suprimento de Ca e P administrado ao RN é adequado.

A fosfatúria pode determinar-se calculando a percentagem de reabsorção tubular de fosfato (%RTF) segundo a fórmula:

Pu (mg/dL) Cr sérica (mmol/L)
% RTF = ______________ x ____________________ x 100
Cru (mmol/L) P sérico (mg/dL)

considerando-se hipofosfatúria se % RTF >95% (<> fosfatúria <1 mg/kg/dia)

De acordo com os critérios de Koo, as alterações radiológicas ósseas, dependendo da gravidade e da duração da desmineralização, podem ser assim sistematizadas:

  • Grau I: presença de rarefacção óssea;
  • Grau II: grau I + alterações metafisárias, alargamento metafisário em taça e alteração subperióstica;
  • Grau III: grau II + fracturas.

De salientar que:

    1. As alterações radiológicas esqueléticas somente se tornam evidentes se se verificar défice de mineralização para além de 30-40%; assim, os sinais bioquímicos podem preceder em 2 a 4 semanas os sinais radiológicos;
    2. Se deverá proceder a radiografia do punho: se P sérico <4 mg/dL nos RN de peso <1.000 gramas, mesmo na ausência de alteração de parâmetros bioquímicos.

Outros exames

  • Doseamento do metabólito 25 (OH)-vitamina D; já foi referido antes que, na presença de suplemento de vitamina D (400 UI/dia), o valor é normal.
    Nota: no que respeita ao metabólito 1,25(OH)2 – vitamina D, a respectiva concentração sérica é normal ou elevada, sendo que a hipofosfatémia estimula a secreção de 1,25(OH)2 – vitamina D.
  • Técnica de densimetria/absorciometria óssea – SPA (sigla do inglês single-photon absorptiometry) que permite avaliar de modo seriado as alterações da mineralização óssea em determinado local; o local onde se convencionou proceder a tal avaliação é a epífise distal do rádio.
  • Técnica de densimetria/absorciometria óssea – DEXA (sigla de dual-energy X ray absorptiometry) que permite medir o conteúdo mineral ósseo de modo seriado e, por conseguinte, monitorizar a velocidade de acréscimo mineral; esta modalidade, permitindo medir com maior precisão o referido conteúdo mineral empregando dose baixa de radiação, não permite, no entanto, fazê-lo à cabeceira do doente, o que constitui uma limitação nos casos de RN submetidos a terapia intensiva.
  • Técnica de ecografia quantitativa
    Trata-se duma nova técnica em expansão em países como a Espanha, Itália e Alemanha, com a vantagem de poder ser utilizada à cabeceira do doente.
    De salientar que estes exames imagiológicos mais sofisticados e mais rigorosos, não estão acessíveis à maioria dos serviços de neonatologia na actualidade.

Prevenção e tratamento

As estratégias que têm como objectivo prevenção primária da DMO devem incidir fundamentalmente sobre a eliminação ou redução da multiplicidade de factores que contribuem para a prematuridade.

Nas situações de prematuridade acompanhada dos factores predisponentes ou de risco está indicada vigilância rigorosa do balanço do Ca e do P, com suplementação dos referidos minerais.

No RN pré-termo, não existe consenso quanto à idade em que se deve iniciar o suplemento de Ca e P. Em geral, nas crianças alimentadas com leite humano, a suplementação (com aditivos do leite materno) inicia-se quando se atinge o volume de 100 mL/dia por via entérica.

Nos casos em que tal não é possível são utilizadas as fórmulas com mais elevado conteúdo de minerais relativamente às fórmulas padrão (fórmulas para pré-termo).

A interrupção de tal suplementação é levada a cabo quando o lactente atinge o peso comparável ao do RN de termo, tendo em consideração diversos estudos realizados sobre o período em que ocorre o acréscimo máximo de minerais in utero. Nos casos de RN com peso de nascimento <1.000 gramas está indicada a suplementação, pelo menos durante 3 meses, ou até ser atingido o peso de 3.500 gramas.

No RN pré-termo está indicada a dose profiláctica clássica de vitamina D, igualmente aplicável a lactentes de termo (160 UI/kg/dia até máximo de 400 UI/dia), pois os mecanismos de hidroxilação hepática (formação de vitamina 25(OH)-vitamina D) e de hidroxilação renal (formação de 1,25(OH)2-vitamina D) estão funcionalmente activos.

Se os parâmetros clínicos, bioquímicos e radiológicos legitimarem o diagnóstico de DMO, para além das medidas já descritas, há que adoptar os seguintes procedimentos:

  • Reduzir ao mínimo – sempre que possível – a interferência de factores predisponentes;
  • Restringir as medidas de fisioterapia que poderão contribuir para o aparecimento de fracturas ósseas;
  • Tratamento das fracturas ósseas (imobilização adequada de membros, etc.);
  • Incrementar o suprimento oral em fósforo utilizando fosfato monossódico (25 mg duas vezes/dia <> 50 mg/dia, podendo ser incrementado até 37,5 mg duas vezes/dia <> 75 mg/dia; este suprimento poderá ser reduzido progressivamente para metade se o valor de P >4 mg/dL e relação Cau/Pu <1 se mantiverem durante duas semanas consecutivas, sendo que a monitorização de Ca e P séricos deverá ser mantida durante 4 semanas;
  • Administrar gluconato de cálcio a 10% por via oral na dose de 100 mg/kg/dia (não concomitantemente para evitar precipitação) se se verificar valor sérico do Ca <8 mg/dL, mantendo-se o suprimento do fosfato monossódico.

Prognóstico

Relativamente às fracturas ósseas, uma das manifestações da forma mais exuberante de DMO (em cerca de 20% dos RNMBP aos 3 meses de idade pós-natal), de acordo com os estudos disponíveis não existe risco elevado de tal patologia em idades subsequentes.

Existindo ainda muitos aspectos controversos relativamente ao conteúdo mineral ósseo futuro e ao risco de osteoporose no adulto, ao analisar os resultados de séries estudadas a médio e longo prazo – nem sempre realizados com metodologias sobreponíveis – é importante entrar em consideração com os resultados de estudos demonstrando que ex utero o acréscimo mineral é mais demorado do que in utero (respectivamente 12 contra 5 semanas para idêntico acréscimo).

Na literatura, também há relatos de casos em que se verificou associação entre baixa estatura na segunda infância e valores mais elevados de FA no período neonatal.

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