Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A síndroma de aspiração meconial (SAM) é um problema respiratório secundário à invasão das vias aéreas distais (bronquíolos terminais e alvéolos) por líquido amniótico com mecónio, de que resulta hipoventilação alveolar com hipóxia e acidose proporcional ao número de alvéolos obliterados.

A aspiração de líquido amniótico sem mecónio, por vezes acompanhada de sangue, ou contendo germes microbianos, pode surgir, quer nas extracções por cesariana, quer nos partos por via baixa e ainda nas situações de asfixia perinatal, em que se verifica respiração do tipo gasping. Refere-se, a propósito, a associação frequente entre líquido amniótico tinto de mecónio, listeriose e outras infecções congénitas.*

Em cerca de 5-12% de todos os nascimentos verifica-se líquido amniótico meconial, que se pode associar a depressão neonatal. No entanto, a presença de mecónio na traqueia – que se verifica apenas em metade daquele contingente – não implica necessariamente o aparecimento de disfunção respiratória; com efeito, só em cerca de 1/3 dos RN com mecónio na traqueia surge SDR.

*Existe a possibilidade de aspiração para a via aérea de conteúdo gástrico contendo secreções ácidas ou leite em qualquer momento do período neonatal ou mais tarde; este quadro é habitualmente designado “pneumonia de aspiração”.

Na prática, a SAM surge em cerca de 5% dos RN com líquido amniótico tinto de mecónio, o que corresponde a incidência média de 2/1.000 nados-vivos. Aproximadamente 30% destes RN necessitam de apoio ventilatório, e em 3-5% o desfecho é fatal.

De salientar que a SAM constitui um problema respiratório típico no RN de termo ou quase de termo por razões apontadas adiante. É rara antes das 37 semanas de gestação e frequente após as 42 semanas.

Comprovou-se maior associação de SAM a mães fumadoras, diabetes mellitus materna, pré-eclâmpsia/eclâmpsia, oligoâmnio, restrição de crescimento fetal com disfunção placentar e pós-maturidade.

A importância da SAM deriva fundamentalmente da mortalidade significativa, sobretudo:

  • Por hipertensão pulmonar persistente (HPP) surgindo em cerca de 2 a 30%, verificando-se as taxas mais elevadas nos países em desenvolvimento sem meios de terapia intensiva); e
  • Pela morbilidade, relacionada principalmente com sequelas neurológicas e pulmonares.

Etiopatogénese

O mecónio, lesivo para os pulmões, é uma substância viscosa complexa, estéril, composta essencialmente de líquido amniótico deglutido, colesterol, ácidos e sais biliares, mucopolissacáridos, enzimas pancreáticas intestinais, vernix caseosa, lanugo e restos de células escamosas.

A palavra “mecónio”, que vem do tempo de Aristóteles, e deriva do grego “mekoniun, significando “extracto de papoila ou ópio”; efectivamente, segundo o entendimento dos médicos da antiguidade, a associação entre depressão neonatal e mecónio era comparada ao efeito do ópio sobre a respiração do RN.

Comparativamente ao tipo de mecónio translúcido e fluido, o mecónio espesso tipo “puré de ervilhas” está mais frequentemente associado a complicações, designadamente por facilitar o crescimento bacteriano e a obstrução acentuada da via respiratória.

A eliminação de mecónio in utero é um acontecimento raro antes do termo da gestação (37 semanas); no entanto, tal eliminação é progressivamente mais provável depois desta idade, o que está em relação com o teor mais elevado, a partir de então, da motilina, hormona que promove o peristaltismo intestinal; ou seja, a maturidade intestinal e o nível plasmático de motilina constituem factores predisponentes de eliminação de mecónio.

Como factor desencadeante tem papel crucial a hipoxémia intrauterina que, gerando um estímulo vagal, promove o peristaltismo e o relaxamento do esfíncter anal.

Como foi referido antes, o mecónio pode ter acesso à via aérea/ser aspirado, ainda in utero, sendo que a hipoxémia intra-parto poderá constituir estímulo do centro respiratório originando gasping intraparto e antes da saída da cabeça.

Tradicionalmente a explicação fisiopatológica da SAM assenta em três pilares: obstrução mecânica da via aérea, inactivação do surfactante e hipertensão pulmonar arterial.

No entanto, nas últimas décadas, estudos científicos apontaram para o possível papel da activação do sistema imune como denominador comum na SAM. O mecónio, um potente activador de mediadores inflamatórios (citocinas, complemento, prostaglandinas, radicais livres de O2), reconhecido como “agente estranho” pelo sistema imune (complemento e toll-like receptors), desencadeia reacção inflamatória sistémica (ver adiante).

Assim, para além do processo obstrutivo das vias aéreas que se verifica, a etiopatogénese da SAM é abordada actualmente duma forma muito mais alargada; este facto tem implicações diagnósticas e terapêuticas.

O processo obstrutivo das vias aéreas por mecónio pode ser total ou parcial. Tratando-se de processo obstrutivo total nas vias aéreas de grande calibre, o mesmo poderá ser fatal se não revertido:

  • Se o processo se verificar nas zonas de pequeno calibre, poderão surgir zonas de atelectasia;
  • Se o processo obstrutivo for parcial, poderá gerar-se um mecanismo valvular facilitando a entrada do ar e dificultando a sua saída, o que comporta risco de ruptura da via aérea.

Verificando-se, em condições fisiológicas, redução do calibre das vias aéreas durante a expiração, o obstáculo intraluminal contribui para redução mais acentuada do referido calibre; por outro lado, a acumulação progressiva de ar pelo referido mecanismo valvular poderá levar a hiperinsuflação pulmonar e a situações diversas de ar ectópico como enfisema intersticial, pneumotórax e/ou pneumomediastino.

Outra consequência da presença de mecónio nas vias aéreas é o compromisso da ventilação-perfusão levando a hipóxia, hipercápnia e acidose.

Salienta-se que, no contexto de SAM, e considerando os antecedentes de hipóxia fetal, crónica ou subaguda, haverá que contar com o efeito da mesma hipóxia sobre a musculatura da parede arterial pulmonar (artérias intracinares) levando a hiperplasia, quer em espessura, quer em comprimento. Assim, será compreensível o surgimento de possível hipertensão pulmonar (arterial), agravando os efeitos atrás descritos.

Pormenorizando a já referida repercussão do mecónio aspirado no sistema imune, importa reter as seguintes noções:

  1. Depressão da função bactericida dos neutrófilos determinando susceptibilidade a infecções;
  2. Resposta inflamatória alveolar e parenquimatosa na qual intervêm macrófagos, neutrófilos, mediadores tais como citocinas (FNT-α, IL-1 β, e IL-8) e eicosanóides (tromboxano B2, leucotrienos B4 e D4, e 6-cetoprostaglandina F1-α, etc.);
  3. Outro efeito do processo inflamatório é a ruptura da barreira alvéolo-capilar com passagem de proteínas do soro para as vias aéreas;
  4. Efeitos vasculares (alteração da vasorreactividade, vasoconstrição das artérias pulmonares, shunt direito – esquerdo, etc.) em que intervêm mediadores vasoactivos (tais como endotelina-1, prostaglandina PGE2, tromboxano A2);
  5. Efeitos metabólicos traduzidos por disfunção e/ou inactivação do surfactante, sobressaindo a alteração e o défice das proteínas SP-A e SP-B, sendo que tais efeitos resultam essencialmente da acção lesiva dos sais biliares do mecónio sobre os pneumócitos do tipo II.

Manifestações clínicas

A SAM na sua forma mais típica corresponde a uma forma de SDR evidente no pós-parto imediato com as seguintes particularidades:

  • RN impregnado de mecónio, por vezes com sinais de dismaturidade ou pós-maturidade (pele seca, unhas grandes também com mecónio, restrição de crescimento fetal, etc.), com depressão do sensório, que obriga a manobras de reanimação, e esboçando movimentos respiratórios de amplitude e ritmo irregulares e ineficazes (gasping);
  • Evolução com gravidade crescente (taquipneia, cianose progressiva, com ulterior aparecimento de gemido, retracção costal e adejo nasal).

Podem ser notórios o aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax por hiperinsuflação pulmonar e a auscultação de roncos e de fervores crepitantes e subcrepitantes dispersos.

Os sinais clínicos que poderão levantar a suspeita de hipertensão pulmonar persistente secundária são: cianose generalizada e intensa, hipoxémia refractária às medidas de oxigenoterapia/assistência respiratória, e labilidade dos parâmetros de oxigenação (por exemplo, diminuição acentuada da SpO2) após manuseamento do RN, por vezes atingindo 50-55%).

É frequente, neste tipo de SDR, a coexistência de:

  • Sinais neurológicos concomitantes (tremores, convulsões, hiporreflexia, alteração do tono muscular);
  • Sinais cardiocirculatórios: sopros transitórios (por shunt direita-esquerda em relação com hipertensão pulmonar, etc.), cardiomegália (por espoliação de reservas de glicogénio do miocárdio secundariamente à hipoxémia mantida);
  • Hipoglicémia (por esgotamento das reservas de glicogénio: glicólise anaeróbia inicial e ulterior falência, também por hipoxémia mantida).

Exames complementares

Nos casos de SAM estão indicados os seguintes exames complementares (para além doutros a ponderar em função de cada situação específica):

  1. Gasometria – revelando sinais de hipoxémia, hipercápnia e acidose (de início, respiratória por retenção de CO2 e ulteriormente mista devida à produção de ácido láctico por glicólise anaeróbia face à falência do metabolismo aeróbio por hipoxémia);  
  2. Hemograma – revelando, em geral, leucocitose com neutrofilia com aparecimento de bastonetes e outras formas mais jovens da série branca face ao estresse da hipoxémia; e trombocitopénia por sequestração e consumo de plaquetas no território pulmonar;
  3. Radiografia ântero-posterior do tórax – permitindo evidenciar alguns ou todos os seguintes achados:
    • opacidades nodulares bilaterais de limites mal definidos, de densidade variável e confluentes, separadas por pequenas zonas de “hiperarejamento” (enfisema) ou de parênquima de aspecto normal, que, no conjunto, se assemelham a imagem em “favo de mel”;
    • imagens de enfisema e de atelectasia (Figuras 1 e 2);
    • cardiomegália;
    • abaixamento das cúpulas diafragmáticas compatível com distensão enfisematosa;
    • sinais de pneumotórax e/ou de pneumomediastino.
  4. Análise de urina – como particularidade deste tipo de SDR, cabe referir um método espectrofotométrico que pode identificar o tipo de pigmentos biliares presentes no mecónio (absorção a 405 nm) absorvidos ao nível do epitélio pulmonar e transportados pelo plasma até ao glomérulo renal;
  5. Ecocardiografia doppler – este exame é fundamental para avaliar a contractilidade cardíaca; poderão ser evidenciados sinais sugestivos de shunt direito-esquerdo em contexto de HPP; poderão eventualmente também ser detectados sinais de doença cardíaca estrutural associada , tais como síndroma de disfunção do ventrículo esquerdo, estenose aórtica e interrupção do arco aórtico;
  6. Electrocardiograma (ECG) – nas situações de asfixia intra-parto, o ECG pode evidenciar alterações do segmento ST sugerindo isquémia subendocárdica.

Tratamento

Medidas gerais

Pressupõe-se que as medidas gerais a seguir descritas são posteriores à actuação prioritária no bloco de partos no contexto de RN com líquido amniótico com mecónio (ver capítulo sobre reanimação do RN no bloco de partos).

Assim, procede-se à monitorização cardiorrespiratória e hemodinâmica reiterando-se a necessidade de vigilância em unidades de cuidados especiais ou intensivos.

É fundamental a estabilização hemodinâmica, a manutenção do equilíbrio hidroelectrolítico e acido – base e os suprimentos energético e hídrico adequados.

FIGURA 1 e 2. Síndroma de aspiração meconial: padrão radiográfico do tórax com opacidades nodulares irregulares alternando com áreas de enfisema e de parênquima de aspecto normal. (URN-HDE)

Medidas específicas (a ponderar caso a caso)

  • Ventilação mecânica: alta frequência preferencialmente, ou convencional;
  • Terapêutica substitutiva com surfactante, sobretudo nas SAM graves;
  • Antibioticoterapia a aplicar em função do contexto clínico de cada caso;
  • Óxido nítrico inalado (NOi) com acção relaxante específica sobre a musculatura vascular pulmonar – como estratégia de diminuição da pressão da artéria pulmonar e de melhoria da oxigenação arterial; a respectiva abordagem ultrapassa os objectivos do livro);
  • ECMO (oxigenação por membrana extracorporal – em geral utilizando-se circuito de derivação veno-arterial) e indicada nos casos refractários às medidas anteriores e sempre que o IO seja igual ou superior a 40; a sua descrição ultrapassa os objectivos do livro.

No campo da investigação estão a decorrer estudos sobre:

  • Terapêuticas para combater o processo inflamatório;
  • Potenciais inibidores do sistema de complemento e dos chamados toll like receptors; e
  • Anticorpos monoclonais específicos.

Prevenção

Os aspectos fundamentais da prevenção da SAM dizem respeito a:

  • Vigilância pré-natal rigorosa:
    • detecção de factores de risco (doenças maternas e fetais que possam conduzir a hipóxia fetal) e encaminhamento da grávida atempadamente para centro especializado, com unidade de cuidados especiais ou intensivos neonatais;
  • Actuação correcta intraparto:
    • a propósito da reanimação do RN, recorda-se que foi referido nas situações de “líquido amniótico com mecónio” com hipotonia, bradicárdia e diminuição do esforço respiratório: não está indicado o procedimento da rotina de entubação traqueal para aspiração por se ter demonstrado a sua ineficácia quanto a prevenção de SAM, associada a efeitos adversos major.

Prognóstico

Como complemento dos dados descritos atrás a propósito da importância do problema da SAM, importa dar ênfase a certos aspectos considerados relevantes quanto ao prognóstico:

  • Risco de problemas neurológicos futuros, designadamente convulsões recorrentes;
  • Prevalência de paralisia cerebral da ordem de 9%, havendo antecedentes concomitantes de asfixia perinatal grave;
  • Disfunção pulmonar;
  • Hiperreactividade brônquica.

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