DERRAME PLEURAL

Definição e importância do problema

Derrame pleural define-se como acumulação anormal de líquido no espaço pleural.

Os derrames pleurais em idade pediátrica são habitualmente secundários a outra patologia subjacente, surgindo, mais frequentemente, nos países desenvolvidos, como complicação da pneumonia bacteriana.

Estima-se que 2 a 12% das pneumonias se compliquem com esta patologia, sobretudo nos casos sujeitos a internamento, em que esta percentagem aumenta para 28%.

Outras causas mais raras são a insuficiência cardíaca, doenças autoimunes, síndroma nefrótica e neoplasias.

Neste capítulo são abordados apenas os derrames que surgem em concomitância ou como complicação de pneumonia.

Etiopatogénese e classificação

A sua base fisiopatológica consiste num desequilíbrio entre o processo de formação e de depuração/filtração do líquido na cavidade pleural (líquido com baixo teor proteico ~1 g/dL).

O movimento de líquido através dos capilares pleurais segue a lei de Starling, dependendo das pressões hidrostática e coloidosmótica.

São considerados dois tipos de derrame pleural, de acordo com o respectivo mecanismo de formação: transudados e exsudados.

Os transudados, em que não se verifica compromisso inflamatório da pleura, resultam de um desequilíbrio entre a pressão hidrostática e oncótica, podendo por isso estar associados a insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica ou hipotiroidismo.

Os exsudados resultam de compromisso inflamatório da pleura (pleurisia), com consequente aumento da permeabilidade capilar e extravasão de proteínas para o espaço pleural.

O quadro 1 explicita os critérios de definição de transudado e de exsudado.

QUADRO 1 – Derrame pleural: transudado e exsudado

CaracterísticasTransudadoExsudado

Abreviaturas: LP- líquido pleural; S- sérico;
NB: 1) *Valores baixos de glucose ou pH habitualmente verificados em situações neoplásicas,tuberculose,pancreatite e doenças autoimunes.
2) A concentração de triglicéridos no líquido pleural > 110 mg/dL corresponde a elevada probabilidade (~99%) de quilotórax; se for < 50 mg/dl a probabilidade é baixa (<5%).

AspectoLímpidoTurvo/purulento
Densidade< 1.015> 1.015
Células (/mm3)< 1.000> 1.000 (predomínio de neutrófilos)
LDH (UI/L)< 200> 250
LDH (LP/S)< 0,6> 0,6
Proteínas (g/dL)< 2,5> 3
Proteínas (LP/S)< 0,5> 0,5
Glucose (mg/dL)> 40< 40
pH7,4-7,6< 7,2
Coloração GramNegativaPositiva em < 1/3 dos casos

Na prática clínica são classicamente considerados os seguintes tipos de exsudados de causa infecciosa, sobre os quais recai a abordagem (vide Glossário e Quadro 2):

  • Empiemas (líquido purulento e ou com germe identificado)
  • Derrame parapneumónico não purulentos (geralmente serofibrinosos)

QUADRO 2 – Etiologia dos exsudados pleurais de causa infecciosa

EmpiemasDerrames parapneumónicos não purulentos
S. pneumoniaeS. pneumoniae
S. aureusMycoplasma pneumoniae
Haemophilus influenzae tipo bOutras bactérias
 Vírus

Manifestações clínicas

A sintomatologia depende predominantemente da data em que a criança é observada pela primeira vez e do tempo de evolução da doença.

Os sintomas mais comuns incluem febre alta, resistente aos antipiréticos, prostração, cianose, anorexia, tosse e dispneia. As crianças de maior idade podem queixar-se de dor pleurítica em pontada, exacerbada com a inspiração ou associada a tosse.

Verifica-se igualmente taquipneia e tosse seca desencadeada pelas mudanças de posição, submacicez à percussão e diminuição ou abolição das vibrações vocais e do murmúrio vesicular; raramente é detectado atrito pleural. Por vezes a criança adopta uma atitude escoliótica côncava para o lado do derrame.

O derrame pleural parapneumónico habitualmente surge como complicação de pneumonias causadas por Streptococcus pneumoniae, Staphylococcus aureus, Streptococcus do grupo A e Haemophilus influenzae.

Identifica-se uma causa bacteriana na generalidade dos casos, embora apenas seja possível isolar o microrganismo em 25-49% dos casos, seja por antibioticoerapia prévia ou pela presença de microrganismos fastidiosos como o Mycoplasma pneumoniae.

A formação do empiema segue três fases distintas:

  1. Exsudativa: derrame parapneumónico simples, não loculado, com concentrações de glucose e pH normais e contagem celular reduzida; esta fase dura 24 a 72 horas;
  2. Fibrinopurulenta: derrame pleural loculado pela formação de septos de fibrina, com concentração de glucose e pH reduzidos, e LDH elevada; esta fase dura 7 a 10 dias;
  3. Organizativa: resulta da organização de fibroblastos na superfície pleural visceral e parietal, resultando em padrão respiratório restritivo; esta fase ocorre 2 a 4 semanas após a formação do empiema.

Exames complementares

A base do diagnóstico assenta na clínica, na imagiologia, na toracocentese e na análise do líquido pleural (LP).

Para a confirmação da existência do derrame pleural já suspeitado clinicamente, é necessária a realização de radiografia de tórax em projecção póstero-anterior, perfil e decúbito lateral do lado do derrame, podendo verificar-se: preenchimento do fundo de saco nos derrames mínimos; hipotransparência da região inferior do pulmão, com apagamento da cúpula diafragmática e do fundo de saco costo-diafragmático, sendo o limite superior desta hipotransparência curvo e oblíquo para cima e para fora (linha de Ellis-Damoiseau), quando o derrame é medianamente abundante; hipotransparência de um hemitórax com desvio do mediastino para o lado oposto e alargamento dos espaços intercostais, no caso de derrame abundante. Na incidência póstero-anterior uma hipotransparência que ocupa entre ¼ e ½ do campo pulmonar é classificada como moderada, e uma hipotransparência que ocupa mais de metade do campo pulmonar é classificada como grande. (Figura 1)

FIGURA 1. Radiografia do tórax PA: sinais de derrame pleural esquerdo (linha de Damoiseau). (NIHDE)

É ainda possível observar pela radiografia sinais de um foco de pneumonia, por vezes mascarado pelo derrame, pneumatocelos, pneumopatia intersticial e adenopatias.

A ecografia torácica completa os dados da radiografia do tórax, sendo de grande utilidade nos casos em que a radiografia identifica sinais de hemitórax opaco. É útil na confirmação da presença de líquido no espaço pleural, determinação da natureza do derrame, quantificação do derrame e identificação de locais ideais para punção para toracocentese ou colocação de drenos torácicos. Pode ainda detectar loculação, fornecendo informações úteis quanto às fases evolutivas do empiema.

A tomografia computorizada diferencia complicações pleurais de processos intraparenquimatosos e tem indicação na falência da aspiração de líquido pleural e falência de tratamento médico.

A toracocentese para análise do líquido pleural é um método seguro e determina a causa do derrame pleural. Quando se detecta pus (empiema) é necessário efectuar drenagem. Em crianças de maior idade o derrame pleural > 1 cm no decúbito lateral é considerado suficiente para tentar a realização de toracocentese.

A cultura do líquido pleural é positiva em 25 a 49% dos casos; técnicas que aumentam a capacidade de detecção de microrganismos incluem a aglutinação por látex to antigénio de S. pneumoniae, a PCR para S. pneumoniae e Streptococcus do grupo A e a detecção de antigénio de Streptococcus do grupo A.

Relativamente ao estudo das células, são relevantes os seguintes achados: contagem de leucócitos > 50.000/ mm3 são características de derrames parapneumónicos complicados/empiema (embora, numa fase inicial, as contagens possam ser 10.000-50.000/mm3); o predomínio de neutrófilos aponta para derrames parapneumónicos; predomínio de linfócitos para tuberculose, doença do tecido conjuntivo ou infecções fúngicas; predomínio de eosinófilos é a favor de infecções parasitárias.

A análise do LP permite ainda definir o estádio evolutivo do derrame. O metabolismo das bactérias e dos leucócitos no LP resultam numa diminuição do pH e da glucose e a destruição de neutrófilos e fagócitos resultam num aumento da LDH.

Considera-se que o derrame é complicado quando a extensão ultrapassa um hemitórax, o pH é inferior a 7,2, a concentração de glucose é inferior a 40 mg/dL e/ou a cultura é positiva.

A hemocultura deve ser sempre solicitada; é positiva em 10 a 22% dos derrames parapneumónicos complicados se a colheita de sangue for realizada antes do início da antibioticoterapia. 

Tratamento

Medidas gerais

O tratamento dos derrames pleurais inclui as seguintes opções, para além das medidas gerais: antibióticos, toracocentese, drenagem pleural com ou sem agente antifibrinolítico, descorticação por toracoscopia vídeo-assistida (VATS), ou por toracotomia aberta.

Na maioria dos doentes com derrame pleural há necessidade de tratamento em regime de internamento, embora os doentes com derrames pequenos e resposta favorável ao tratamento possam ser tratados em regime de ambulatório.

As medidas gerais incluem suprimento adequado de fluidos, electrólitos e calorias, analgesia e utilização de antipiréticos.

A oxigenoterapia depende da observação de sinais de hipoxemia e fadiga muscular, A existência de insuficiência respiratória obriga a considerar a transferência para uma unidade de cuidados intensivos (UCI).

Antibioticoterapia

A presença de derrame pleural parapneumónico não altera a escolha empírica da antibioticoterapia dos doentes com pneumonia. A escolha inicial recai sobre os antibióticos que cubram os agentes patogénicos mais prevalentes de acordo com a idade da criança.

Quando se obtém isolamento do agente etiológico, pode estreitar-se o espectro, com base no resultado da coloração pelo Gram, provas de detecção de antigénios, ou culturas de LP.

Para a antibioticoterapia empírica mais recentemente sugerida para utilização em doentes internados utiliza-se ceftriaxona ou cefotaxima associadas a vancomicina ou clindamicina, se considerarmos a probabilidade de Staphylococcus aureus ou anaeróbios.

A pneumonia causada por estirpes de pneumococo de resistência intermédia à penicilina (CIM=0,1-1 mcg penicilina/mL) responde normalmente a penicilina em altas doses ou a uma cefalosporina de terceira geração. A pneumonia causada por estirpes resistentes (CIM ≥ 2 mcg penicilina/mL) tem resposta a cefalosporinas de 3ª geração e à vancomicina.

O empiema causado por Streptococcus do grupo A pode ser tratado com penicilina durante 10 dias. O empiema causado por Staphylococcus aureus pode ser tratado com penicilina sintética resistente às penicilinases ou com vancomicina com uma duração de, pelo menos, 21 dias. Se a etiologia do empiema for Haemophilus influenzae deve usar-se uma cefalosporina de terceira geração.

Na generalidade dos casos a antibioticoterapia deve durar, pelo menos, 10 dias após desaparecimento da febre. O tratamento pode ser completado por via oral, em regime de ambulatório, quando o doente se encontrar há 2-5 dias sem febre e sem dreno torácico.

Salienta-se que, de um modo geral, se aplicam neste âmbito as noções descritas a propósito da pneumonia.

Drenagem

Se a extensão da hipotransparência correspondente a derrame ocupar mais de 1 cm na radiografia em decúbito lateral é necessária realização de ecografia torácica, para determinar se o derrame é simples ou loculado.

No caso dos derrames simples pode ser efectuada uma drenagem inicial de 10-20 mL/kg seguida de antibioticoterapia intravenosa e, no caso de ausência de apirexia ao fim de 48 horas, será necessária inserção de dreno torácico. A inserção inicial de dreno torácico deve ocorrer nos casos em que existem sinais de dificuldade respiratória e nos derrames grandes.

No caso dos derrames complicados (loculados ou com características macroscópicas ou citoquímicas sugestivas de empiema) o tratamento passa pela fibrinólise com colocação de dreno torácico ou drenagem cirúrgica. O cateter deverá ter o maior diâmetro interno possível para drenar com maior facilidade áreas loculadas, sendo que poderá ser necessário colocar mais do que um dreno. As múltiplas toracocenteses evacuadoras deverão ser evitadas.

A resposta à drenagem deve ser monitorizada pela quantidade de LP que sai e pela temperatura corporal. Se o débito do LP for inferior a 10-15 mL/dia e houver melhoria clínica, deve retirar-se o cateter. A duração média da drenagem é de 5 a 10 dias. A drenagem máxima deverá ser de 500 mL/hora e o dreno deverá ser clampado se a drenagem exceder 10 mL/kg em uma hora.

Se se verificar manutenção do quadro febril e reacumulação de LP com sinais de dificuldade respiratória para além das 72 horas após o início de antibioticoterapia e toracostomia, está indicada a descorticação cirúrgica. Ressecam-se, deste modo, as aderências pleurais, o que contribuirá para uma drenagem efectiva do espaço pleural, encurtando a permanência no hospital.

A descorticação por toracotomia aberta está indicada nos casos em que haja formação de uma camada fibrosa que reduz a expansão pulmonar. Trata-se de uma técnica cirúrgica para remoção do tecido fibrinoso nos casos de empiema organizado ou fibrinopurulento que não respondam adequadamente aos procedimentos anteriormente descritos.

Agentes fibrinolíticos

A utilização de agentes fibrinolíticos para desfazer as aderências fibrosas nos derrames loculados está amplamente suportada pela literatura tanto nos adultos como nas crianças, embora não existam dados que fundamentem a utilização de uroquinase, alteplase ou estreptoquinase.

A utilização destes agentes está contraindicada em casos de fístula broncopleural ou evidência de ar ectópico pelo risco de fenómenos de anafilaxia ou hemorragia intrapleural.

Prognóstico

Os derrames pleurais parapneumónicos não complicados respondem à terapêutica conservadora com internamento hospitalar, em geral num período não superior a uma semana. Quando é necessário recorrer à drenagem, a duração média do internamento aumenta para duas semanas.

O seguimento a longo prazo revelou que menos de 10% das crianças têm sintomas residuais.

A mortalidade é de 3,3%, sendo superior em idades inferiores a 2 anos e em crianças com patologia pulmonar subjacente.

Prevenção

Quanto à prevenção volta a referir-se o que foi dito no capítulo das pneumonias. Efectivamente, a imunização sistemática na idade pediátrica permitiu tornar rara a pneumonia por Haemophilus influenzae, assim como as suas possíveis complicações.

A utilização da vacina anti-pneumocócica abrangendo 13 serótipos foi determinante no sentido de redução da prevalência da doença invasiva pneumocócica.

A vacinação contra o vírus da gripe permite evitar as respectivas complicações da gripe, designadamente infecções bacterianas das vias respiratórias inferiores.

A prevenção das complicações do derrame pleural diz respeito essencialmente à sua detecção precoce, e a medidas terapêuticas atempadas e correctas, de acordo com o que se referiu anteriormente.

GLOSSÁRIO

Derrame parapneumónico > derrame pleural associado a pneumonia que, numa fase inicial, é simples (i.e. sem septações/loculações) e estéril.

Empiema > presença de bactérias detectadas pela coloração de Gram ou líquido francamente purulento na cavidade pleural.

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PNEUMONIA ADQUIRIDA NA COMUNIDADE

Definição e importância do problema

A pneumonia (ou pneumonite) define-se pela presença de inflamação envolvendo os pulmões, pleura, vias aéreas, alvéolos, estruturas vasculares e tecido conjuntivo.

Este quadro pode ser causado por agentes infecciosos (vírus ou bactérias), agentes químicos (alimentos aspirados, hidrocarbonetos ou substâncias lipóides) e agentes físicos (corpos estranhos, radiações).

A pneumonia classifica-se como:

  1. Adquirida na comunidade (PAC): surgindo na criança previamente saudável sem internamento nos 7 dias precedentes ao diagnóstico, sendo este efetuado nas primeiras 48 horas de internamento;
  2. Adquirida no hospital: surgindo a partir das primeiras 48 horas após o internamento; a pneumonia associada a ventilação mecânica é aquela que surge após, pelo menos, 48 horas do momento da entubação.

A Organização Mundial de Saúde estima que a PAC é diagnosticada na ordem de 156 milhões de novos casos por ano, o que corresponde a uma incidência anual de 14,5 por 10.000 nos países desenvolvidos. Nas crianças de idade inferior a 5 anos com o diagnóstico de PAC, 50% necessitam de internamento. A mortalidade é inferior a 1 para 1.000 nos países desenvolvidos.

Os principais factores de risco, aumentando a probabilidade de pneumonia e a sua gravidade, incluem: irmãos em idade escolar, sobreocupação da residência e doença crónica (doença cardíaca congénita, displasia broncopulmonar, fibrose quística, asma, doença de células falciformes, doença neuromuscular, doença do refluxo gastresofágico, fístula tráqueo-esofágica e imunodeficiências congénitas ou adquiridas).

Etiopatogénese

O agente microbiológico responsável pelo quadro de pneumonia é, geralmente, desconhecido, dado que a sua identificação exigiria utilização de técnicas invasivas.

O diagnóstico etiológico de presunção baseia-se em inúmeros pressupostos, tais como: a clínica; a epidemiologia local; aspectos radiológicos; variações sazonais; e idade do doente. Os vírus são responsáveis por cerca de 80 a 85% dos casos de pneumonia, sobretudo no grupo etário abaixo dos 5 anos, exceptuando o período neonatal. Entre tais agentes, os mais frequentes são os vírus respiratórios sincicial (VRS), parainfluenzae 1,2,3 e influenzae A e B.

Globalmente, Streptococcus pneumoniae é o agente bacteriano mais comum. Nas crianças a partir dos 5 anos estão frequentemente implicados Mycoplasma pneumoniae e Chlamydia pneumoniae.

As causas infecciosas de pneumonia variam de acordo com o grupo etário e distribuem-se da seguinte forma:

  1. Período neonatal: o agente mais frequente é o Streptococcus do grupo B; outros agentes incluem Escherichia coliStaphylococcus aureus e Streptococcus pneumoniae;
  2. 1 mês a 5 anos: os vírus são os agentes infecciosos mais comuns, sendo o mais frequente o vírus sincicial respiratório; outros vírus incluem o influenza A e B, parainfluenza (geralmente tipo 3), adenovírus, metapneumovírus humano, rinovírus e coronavírus; menos frequentes, mas levando a quadros clínicos de maior gravidade, são os agentes bacterianos, que incluem Streptococcus pneumoniaeHaemophilus influenzae tipo b, Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes (sobretudo associados a necrose e concomitantemente ou posteriormente a infecções por vírus influenza ou varicela); de referir ainda a prevalência crescente de Mycoplasma pneumoniae e Chlamydia pneumoniae neste grupo etário;
  3. 5 a 18 anos: o Streptococcus pneumoniae é o agente mais frequente de pneumonia típica; Mycoplasma pneumoniae surge a partir dos 5 anos, sendo que a prevalência da infecção por Chlamydia pneumoniae tem vindo a aumentar neste grupo etário.

Entre as duas semanas e 3 a 4 meses de vida pode ocorrer a pneumonia afebril, mais frequentemente causada por Chlamydia trachomatis, sendo Mycoplasma hominis e Ureaplasma urealyticum agentes possíveis.

A vacinação universal anti – Haemophilus influenzae tipo b virtualmente eliminou este agente como causador de pneumonia nos países desenvolvidos; a vacinação antipneumocócica diminuiu a frequência de pneumonia em 53% e, praticamente, a necessidade de internamento nas crianças de idade inferior a 2 anos. A vacina antipneumocócica diminuiu também o número de casos de sobreinfecção pneumocócica em contexto clínico de pneumonia de causa vírica, probabilidade a considerar seriamente.

O Quadro 1 sistematiza os agentes infecciosos causadores de pneumonia por grupo etário.

QUADRO 1 – Agentes infecciosos mais comuns causadores de PAC de acordo com o grupo etário

RN (< 1 M)1 – 3 M> 3 M – 5 A> 5 A

Abreviaturas: RN = recém-nascido; M = meses; A = anos

Streptococcus grupo B
E. coli
Staphylococcus aureus
Streptococcus pneumoniae
Vírus sincicial respiratório
Vírus influenza
Vírus parainfluenza
Adenovírus
Streptococcus pneumoniae
Staphylococcus aureus
Streptococcus pyogenes
Chlamydia trachomatis
Vírus sincicial respiratório
Vírus influenza
Vírus parainfluenza
Adenovírus
Streptococcus pneumoniae
Mycoplasma pneumoniae
Staphylococcus aureus
Streptococcus pneumoniae
Mycoplasma pneumoniae
Chlamydia pneumoniae
Streptococcus pyogenes

A pneumonia segue-se geralmente a uma infecção das vias respiratórias superiores seguida de invasão do aparelho respiratório inferior por agentes infecciosos, o que determina resposta imunitária e inflamação.

A transmissão dos agentes infecciosos é feita através de gotículas e a invasão ocorre por aspiração ou inalação (no caso dos agentes bacterianos) e contiguidade (no caso dos agentes víricos). Mais raramente pode ocorrer bacteriemia prévia à pneumonia e a disseminação será, neste caso, hematogénica. O período de incubação dura cerca de 1 a 3 dias.

O sistema de defesa do hospedeiro inclui barreiras anatómicas/mecânicas (filtração de partículas na nasofaringe, expulsão de partículas pelo epitélio ciliado, produção de muco, complemento e imunoglobulina A), imunidade humoral, resposta fagocitária e imunidade mediada por células.

O preenchimento alveolar por leucócitos e transudado origina diminuição da distensibilidade/compliance pulmonar, aumento da resistência, obstrução e colapso das vias aéreas de pequeno calibre; como consequência, surgimento de áreas de retenção de ar e alteração das relações de ventilação-perfusão. A infecção grave está associada a necrose do epitélio brônquico e parênquima pulmonar.

Sob o ponto de vista histológico, estão classicamente descritas quatro entidades para a pneumonia por pneumococo: ingurgitamento; hepatização vermelha; hepatização cinzenta e resolução. A primeira destas fases está associada a presença de bactérias nos alvéolos e ao exsudado seroso associado, o qual progride posteriormente para a hepatização vermelha por passagem de eritrócitos para os alvéolos. A fase seguinte, hepatização cinzenta, resulta da migração de leucócitos para a área afectada. Por fim, surge a fagocitose do micróbio, e a eliminação da fibrina e detritos conduz à resolução da pneumonia.

Os sintomas e sinais (designadamente os auscultatórios e imagiológicos), globalmente relacionam-se com o envolvimento parenquimatoso.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica, dependente de vários factores (como o agente patogénico, a resposta do hospedeiro e a gravidade), é inespecífica, não existindo sinal patognomónico. Os sinais mais sugestivos são a febre e a tosse. Outros sinais como a taquipneia e aumento do esforço respiratório podem anteceder a tosse.

No lactente, sendo comum a verificação de antecedentes próximos de infecção das vias respiratórias superiores, a pneumonia pode manifestar-se apenas por irritabilidade, dificuldade na alimentação e vómitos.

Nas crianças de maior idade, para além dos sintomas comuns das crianças mais pequenas, pode surgir dor pleurítica. Outros sintomas possíveis são a dor abdominal, e a cefaleia por vezes associada a rigidez da nuca: tal quadro pode relacionar-se, respectivamente com o compromisso inflamatório dos lobos pulmonares inferiores e superiores.

A verificação, em lactentes de idade inferior a 20 semanas, de sinais respiratórios (tosse, retracções costais, adejo nasal, sinais auscultatórios – fervores crepitantes, ou outros) associados a conjuntivite, sugere o diagnóstico de pneumonia por Chlamydia trachomatis.

Na criança de maior idade, a presença de febre, tosse, odinofagia, otalgia, broncospasmo, vómitos e diarreia deve levantar a hipótese de por Mycoplasma pneumoniae.

Para além de dados positivos da semiologia do foro respiratório, a presença de sinais de infecção cutânea, nomeadamente abcessos, pode estar em consonância com os agentes etiopatogénicos Staphylococcus aureus e Streptococcus do grupo A. A associação de sinais de pneumonia a otite média aguda, sinusite e meningite pode ter como agentes etiológicos microbianos Streptococcus pneumoniae ou Haemophilus influenzae.

O exame físico deverá compreender obrigatoriamente:

  • Avaliação do estado geral: grau de actividade, vitalidade, prostração, estado de hidratação, capacidade de alimentação ou recusa, vocalização, temperatura, palidez, cianose, etc.. Geralmente as crianças com quadro de pneumonia confirmada radiologicamente têm uma aparência tóxica; a febre, apesar de inespecífica, geralmente é elevada e pode apresentar-se isoladamente em cerca de 25% das crianças com menos de 5 anos com pneumonia revelada radiologicamente (casos estes em que geralmente se acompanham de leucocitose- leucócitos > 20.000/μL).
  • Valorização da semiologia do sistema respiratório: a presença de taquipneia é o sinal mais sensível e específico, apesar de ter menos utilidade nos primeiros 3 dias de doença (definindo-se em excursões respiratórias por minuto ou rpm, em função da idade: < 2 meses -> 60 rpm; 2-12 meses -> 50 rpm;1-5 anos -> 40 rpm; ≥ 5 anos -> 20 rpm); outros sinais associados a dificuldade respiratória e a hipoxemia, incluem: tiragem, gemido e adejo nasal, cianose; podem ser notórios a presença de fervores crepitantes, diminuição do murmúrio vesicular, sopro tubário, egofonia, broncofonia, pectorilóquia áfona, frémito e macicez à percussão; também, expiração prolongada e sibilante; a presença de sinais de atrito pleural associados a diminuição do murmúrio vesicular e macicez à percussão pode estar associada a derrame pleural;

A presença de determinados sinais e sintomas pode apontar para determinado agente patogénico, conforme explícito no Quadro 2. Contudo, é importante referir a dificuldade na distinção entre infecção por bactérias e vírus com base em parâmetros clínicos, sendo que poderá haver coinfecção em 10-40% dos casos.

QUADRO 2 – Manifestações clínicas mais prováveis de acordo com o agente etiopatogénico

Pneumonia bacteriana clássica Pneumonia atípica Pneumonia vírica
Febre Presente Presente (excepto na pneumonia afebril da infância) Presente
Início Súbito + ou – Súbito Gradual
Infecção precedente das vias respiratórias superiores Frequente Ausente Constante
Estado geral Aparência de doente Conservado Conservado
Sintomas associados Tosse Taquipneia Letargia Vómitos Hipoxemia Mialgias Cefaleias Fotofobia Odinofagia Tosse seca Mialgias Cefaleias Odinofagia
Sintomas extra-respiratórios  Exantema Anemia hemolítica Poliartrite Conjuntivite Conjuntivite Amigdalite Gastroenterite
Auscultação pulmonar Diminuição do murmúrio vesicular Fervores crepitantes Sibilos Sibilos Fervores subcrepitantes Alterações difusas e bilaterais

Outro aspecto que é determinante na abordagem destes doentes é a avaliação da gravidade da pneumonia, conforme se explicita no Quadro 3.

Exames complementares

O diagnóstico de pneumonia é essencialmente clínico; com efeito, não há necessidade de realização de exames complementares no contexto de infecção ligeira das vias respiratórias inferiores, não complicada, sem indicação para internamento.

A radiografia de tórax confirma o diagnóstico, embora com algumas limitações: – fraco indicador da etiologia; – atraso do aparecimento das alterações radiológicas em relação às alterações clínicas; – possibilidade de inexistência de alterações no doente hipovolémico até à reposição hídrica; – variabilidade provável de interpretação entre observadores; e – ausência de associação com o prognóstico.

Em suma, poderá não existir relação entre os aspectos radiográficos e a clínica, sobretudo nos lactentes e crianças mais pequenas. Também é possível encontrarmos sinais imagiológicos de pneumonia significativa na ausência ou com escassez de sintomatologia.

As indicações para se proceder a radiografia de tórax são:

  • Doença com critérios de gravidade (ver Quadro 3);
  • Confirmação do diagnóstico quando a apresentação clínica suscita dúvida;
  • Indicação de internamento (para documentar a presença, dimensão e características do infiltrado parenquimatoso e avaliar potenciais complicações);
  • Diagnóstico de complicações (particularmente na criança com doença prolongada e sem resposta à antibioticoterapia);
  • Exclusão de pneumonia em crianças de idades entre 3 e 36 meses, com febre (temperatura axilar > 39 ºC) e valor de leucócitos ≥ 20.000/mm3; e em crianças com idade entre 3 e 10 anos, com febre (temperatura axilar> 38 ºC), tosse e valor de leucócitos ≥ 15.000/mm3).

QUADRO 3 – Avaliação de gravidade de acordo com as características clínicas na pneumonia

Pneumonia ligeiraPneumonia grave
Temperatura axilar < 38,5 ºCTemperatura axilar ≥ 38.5 ºC

Esforço respiratório ligeiro ou ausente:

    • Aumento da frequência respiratória
    • Tiragem ligeira ou ausente
    • Ausência de gemido
    • Ausência de adejo nasal
    • Ausência de apneia
    • Dispneia ligeira

Esforço respiratório moderado a grave:

    • Frequência respiratória> 70 rpm (nos lactentes)
      ou> 50 rpm (na criança de maior idade)
    • Tiragem moderada a grave
    • Gemido
    • Adejo nasal
    • Apneia
    • Dispneia grave
Coloração rosadaCianose
Estado de consciência conservadoAlteração do estado de consciência
NormoxemiaHipoxemia
Ingestão alimentar conservada; ausência de emeseAusência de ingestão alimentar e/ou sinais de Desidratação
Frequência cardíaca normalTaquicárdia
Tempo de reperfusão capilar < 2 segundosTempo de reperfusão capilar ≥ 2 segundos

Tendo em conta as limitações atrás descritas relativamente aos achados radiológicos do tórax, há um certo número de orientações que poderão ser úteis para o clínico, valorizando sempre a anamnese e o exame físico.

  1. Dum modo geral pode dizer-se que a consolidação lobar se associa às infecções por pneumococo e os infiltrados intersticiais às infecções por vírus, embora estes diferentes padrões possam surgir associados a qualquer etiologia.
  2. Classicamente estão descritos três padrões de densidades pulmonares: o padrão alveolar (associado mais frequentemente ao pneumococo e outras bactérias), que se caracteriza por consolidação lobar ou segmentar e broncograma aéreo; o padrão de pneumonia intersticial (causada habitualmente por vírus e Mycoplasma) que se apresenta como um aumento reticulonodular e hiperinsuflação, com possível progressão para pequenas consolidações dispersas devido a atelectasias; por último descreve-se o padrão de broncopneumonia, mais frequentemente associada a Staphylococcus aureus e outros agentes (por ex. Streptococcus pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae ou vírus ), que se apresenta como um padrão bilateral difuso, reforço peribrônquico e pequenos infitrados nodulares que se estendem até à periferia. No caso da pneumonia estafilocócica podem ainda existir sinais de necrose parenquimatosa (abcessos, pneumatoceles) e derrame pleural.
  3. As pneumonias “bolhosas” (acompanhadas de pneumatoceles) podem igual relacionar-se com S pyogenes (grupo A), S pneumoniae (raramente) e com Klebsiella pneumoniae (formas complicadas especiais).
  4. As pneumonias “redondas” (hipotransparências arredondadas de limites relativamente bem definidos) usualmente são solitárias, de diâmetro superior a 3 cm e localizadas posteriormente; o agente mais frequentemente implicado nestes casos é o Streptococcus pneumoniae.
  5. A hiperinsuflação com processo inflamatório intersticial nos lactentes de idade inferior a 20 semanas é característica da pneumonia afebril da infância, geralmente causada por Chlamydia trachomatis.
  6. A presença de adenopatia mediastínica ou hilar pode ser sugestiva de pneumonia por Mycobacterium tuberculosis.
  7. Como regra geral, pode estabelecer-se que a presença de pneumatoceles, cavitações ou derrame pleural extenso é sugestiva de etiologia bacteriana.

Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se a ecografia (por ex. quando há suspeita de derrame pleural), a TAC e a RM.

FIGURA 1. Pneumonia por Mycoplasma pneumoniae. (NIHDE)

FIGURA 2. Padrão radiográfico de tipo intersticial acompanhado de enfisema importante (por vírus sincicial respiratório) – PA e perfil. (NIHDE)

FIGURA 3. Caso de pneumonia do lobo superior direito (1), visualizando-se sinais de broncograma aéreo (2); concomitância de derrame pleural direito-obliteração do seio costofrénico direito (3). Relativamente ao derrame há a assinalar: linha da pleura visceral (4); e linha de Damoiseau (5). (Cortesia do Dr. Mário Coelho)

FIGURA 4. Pneumonia estafilocócica. Imagens de pneumatoceles (PA e perfil). (NIHDE)

FIGURA 5. Padrão radiográfico de pneumonia lobar (identificada etiologia pneumocócica) – (PA e perfil). (NIHDE)

FIGURA 6. Padrão radiográfico de pneumonia “redonda” (opacidades arredondadas observáveis em ambos os campos pulmonares). (NIHDE)

FIGURA 7. Pneumonia estafilocócica. Sinais de derrame pleural à esquerda. (NIHDE)

FIGURA 8. Pneumonia estafilocócica. Radiografia do tórax (perfil); sinais de piopneumotórax. (NIHDE)

As figuras 1 a 8 mostram diversos padrões radiológicos torácicos de pneumonia correspondentes a crianças assistidas no Hospital Dona Estefânia, Lisboa, quer em ambulatório, quer em internamento.

A Figura 9 integra o esquema de projecção radiográfica do tórax que facilita a compreensão das opacidades detectadas conforme a localização.

FIGURA 9. Esquema da projecção radiográfica do tórax (de frente e de perfil)

Os exames laboratoriais têm indicação na doença que cumpre critérios de gravidade (ver Quadro 3), nos casos em que ocorreu uma potencial complicação e ou que necessitam de internamento.

O hemograma, a proteína C reactiva (PCR), a procalcitonina (PCT) e a velocidade de sedimentação são pouco específicos e de escassa utilidade na orientação terapêutica do doente. Contudo, no que respeita à tentativa de destrinça entre causa bacteriana versus vírica, os seguintes achados poderão orientar respectivamente do seguinte modo:

  • leucócitos > 15.000/mm3 versus < 10.000/mm3;
  • PCR < 2 mg/dL versus > 6 mg/dL;
  • PCT < 0,01 mcg/L versus > 0,5 mcg/L;
  • eosinofilia sugere pneumonia por Chlamydia trachomatis.

O ionograma sérico pode ter um papel na determinação do estado de hidratação e em situações de hiponatremia estará presente associação a síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética.

Os testes serológicos para determinação dos títulos de IgM e IgG para o Mycoplasma Chlamydia, são também úteis no estudo destas pneumonias, embora apenas permitam confirmar a etiologia a posteriori.

A prova tuberculínica deve ser ponderada em casos especiais, dependendo do contexto epidemiológico. (Ver Parte sobre Infecciologia).

Os exames microbiológicos estão indicados na doença grave, na presença de complicações e nos casos que cumprem critérios de internamento. A hemocultura, positiva em apenas 10 a 12% dos casos de pneumonia (embora aumente para 30 a 40% nos casos em que surge derrame parapneumónico ou empiema) e deve ser feita antes do início da antibioticoterapia.

A aplicação de técnicas de imunofluorescência nas secreções nasofaríngeas é relevante para o diagnóstico de pneumonia vírica e, nas secreções oculares, para o diagnóstico de pneumonia por Chlamydia trachomatis. Esta pesquisa deve ser considerada nas crianças internadas, podendo auxiliar na decisão terapêutica e quanto à necessidade de isolamento de doentes.

A o exame cultural das secreções nasofaríngeas e da expectoração não está indicado tendo em conta a frequência elevada de colonização por bactérias a esse nível.

Técnicas microbiológicas como broncoscopia com lavado broncoalveolar, aspiração por punção e biopsia pulmonar, por serem invasivas, estão reservadas para casos graves e com fraca resposta à terapêutica.

Em síntese, a utilidade principal dos exames laboratoriais diz respeito sobretudo à fase de seguimento e à avaliação da resposta à terapêutica.

Tratamento

A decisão terapêutica inicial depende da necessidade de internamento. Os critérios para internamento são:

  • Idade ≤ 3 meses;
  • Hipoxemia avaliada de modo rápido e não invasivo por oximetria transcutânea;
  • Desidratação ou intolerância oral;
  • Sinais de dificuldade respiratória moderada a grave (taquipneia, tiragem, adejo nasal, apneia; cianose, gemido);
  • Aparência tóxica;
  • Doença crónica subjacente (doença cárdio-pulmonar, patologia genética, doença neurológica, metabólica ou imunodeficiência);
  • Complicações (derrame parapneumónico ou empiema);
  • Falência de terapêutica em ambulatório (agravamento ou ausência de resposta em 48 a 72 horas).

Numa fase inicial deverá ser instituída terapêutica de suporte, incluindo fluidoterapia, antipiréticos e oxigénio suplementar (se houver hipoxémia) com o objectivo de obter saturação em O≥ 92%. Na suspeita de pneumonia bacteriana a terapêutica antibiótica dita empírica (antes do eventual isolamento de agente) deve ser prontamente instituída.

Recém-nascidos e lactentes com menos de 3 meses devem ser internados para terapêutica endovenosa com ampicilina e ceftriaxona, ou cefotaxima, ou gentamicina. No caso de suspeita de pneumonia por Chlamydia trachomatis ou pneumonia afebril do lactente deve ser usado ummacrólido (eritromicina, azitromicina ou claritromicina).

O antibiótico de eleição de uma pneumonia não complicada, entre os 3 meses e os 5 anos, é a amoxicilina, mesmo considerando que 15% a 40% dos pneumococos são resistentes à penicilina; trata-se, no entanto de uma resistência intermédia (MIC 0.06-2.0mcg/ml), o que implica o uso de doses altas de amoxicilina (de 80mg/Kg/dia a 90mg/Kg/dia). As alternativas são a cefuroxima – axetil e a amoxicilina + ácido clavulânico.

Quando a suspeita diagnóstica recai sobre Mycoplasma e Chlamydia pneumoniae, sobretudo nas crianças em idade escolar e adolescentes, devem ser usados macrólidos (azitromicina ou claritromicina).

Nas formas de pneumonia presumivelmente bacteriana exigindo internamento hospitalar, a terapêutica empírica inclui ampicilina IV ou penicilina G como 1ª linha e em 2ª linha, cefuroxima (150mg/kg/dia) ou cefotaxima, ou ceftriaxona IV. Se as manifestações clínicas entretanto sugerirem etiologia estafilocócica (empiema, pneumatoceles, etc.), à terapêutica inicial deve acrescentar-se vancomicina ou clindamicina.

Nos casos de pneumonia lobar sugerindo etiologia por S. pneumoniae ou por S. pyogenes (grupo A) os antibióticos de primeira escolha para os doentes internados são a penicilina G 200.000 – 400.000 U/kg/dia ou ampicilina IV. Como alternativas: ceftriaxona ou cefotaxima (adicionar vancomicina se suspeita de S. pneumoniae de resistência elevada à penicilina); ou penicilina G e clindamicina (se suspeita de S. pyogenes).

Nos casos de pneumonia “bolhosa” detectada de início, os antibióticos de escolha são flucloxacilina e aminoglicosídeo.

A duração do tratamento antimicrobiano é em geral 7-10 dias, salientando-se a duração entre 14 e 21 dias nas pneumonias bolhosas.

O Quadro 4 especifica as doses de alguns antimicrobianos utilizados no tratamento das pneumonias adquiridas na comunidade, não referidas no texto. A via endovenosa, se estabelecida de início, deverá manter-se por 24 – 48 horas após desaparecimento da febre.

Quando não se verificar resposta à terapêutica antibiótica, a causa mais provável é vírica. Outros agentes bacterianos devem, no entanto, ser considerados (S. aureus; pneumococos multirresistentes, H. influenzae resistente à ampicilina, e anaeróbios) tendo em conta contextos clínicos especiais.

QUADRO 4 – Posologia e via de administração de alguns antimicrobianos utilizados em casos de pneumonia

AntimicrobianoVia de administraçãoDose (mg/kg/dia)Intervalo
AmoxicilinaOral80-1008/8 h
AmpicilinaEndovenosa150-2006/6 h
Amoxicilina-ácido clavulânicoOral80-100 (14:1)8/8 h
AzitromicinaOral10 mg/kg no 1º dia seguido de 5 mg/kg 2º- 5º dias24/24 h
CefotaximaEndovenosa2008/8 h
CeftriaxonaEndovenosa50-10024/24 h
ClaritromicinaOral ou endovenosa1512/12 h
EritromicinaOral ou endovenosa406/6 h
FlucloxacilinaOral508/8 h
Endovenosa100-200

A antibioticoterapia inicial deverá ser revista se houver identificação do agente etiológico e do seu perfil de sensibilidade aos antimicrobianos. A identificação de Streptococcus peumoniae com concentrações inibitórias mínimas para penicilina ≤ 2 mcg/mL (estirpes sensíveis e com sensibilidade intermédia) não justifica a mudança de antibiótico quando a opção inicial foi a ampicilina ou amoxicilina em dose adequada; nos restantes casos a terapêutica deverá ser alterada para cefotaxima ou ceftriaxona. Salienta-se o número crescente de S. pneumoniae resistentes à penicilina.

Prognóstico e Seguimento

De uma maneira geral o prognóstico é excelente com a recuperação sem complicações na maior parte dos casos. A tosse é o principal sintoma que pode persistir (3 a 4 meses), principalmente após uma pneumonia vírica ou pneumonia por Bordetella perstussis. A grande maioria das pneumonias por bactérias patogénicas comuns e por microrganismos atípicos responde à terapêutica antimicrobiana.

Cerca de 80% dos infiltrados regridem em 3 semanas e os restantes em 3 meses. As complicações mais frequentes das pneumonias bacterianas são os derrames pleurais incluindo empiemas.

A radiografia de tórax deverá ser repetida 3 semanas após o diagnóstico apenas em casos em que ocorrem complicações, pneumonia recorrente, sintomas persistentes, atelectasia grave ou na pneumonia redonda.

Prevenção

A imunização de rotina da criança tem tido um papel preponderante na prevenção de pneumonia em idades pediátricas em geral; e, em especial, reduzindo drasticamente a fequência de pneumonias associadas à rubéola, tosse convulsa, e à infecção por H. influenzae tipo B. A vacina antipneumocócica 13- valente induz imunidade contra os serótipos do S. pneumoniae que mais frequentemente provocam doença na criança, pelo que o seu uso generalizado levará necessariamente à diminuição da incidência de doença pneumocócica invasiva de forma significativa. A vacinação contra o vírus influenza poderá também prevenir uma das complicações desta infecção, a pneumonia.

Glossário

Pneumonite > inflamação do pulmão envolvendo a pleura, tecido conjuntivo, vias aéreas, alvéolos e estruturas vasculares.

Broncopneumonia > pneumonia com envolvimento primário das vias aéreas e interstício, com infiltração parenquimatosa secundária envolvendo vários lóbulos, o que ocorre em associação a infecção por Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus.

Pneumonia lobar > pneumonia com envolvimento de um lobo ou de um segmento de um lobo o que corresponde à apresentação clássica da pneumonia por Streptococcus pneumoniae.

Pneumonite intersticial > inflamação primária do interstício e peribrônquica, com infiltração parenquimatosa secundaria; resulta geralmente de infecção por vírus.

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ANOMALIAS CONGÉNITAS DO SISTEMA RESPIRATÓRIO

Importância do problema

As anomalias congénitas do sistema respiratório, implicando em geral resolução cirúrgica, são situações raras de expressão clínica muito variável.

Com a evolução da tecnologia de imagem aplicada no período pré-natal é hoje possível o diagnóstico antecipado de muitas destas situações, o que contribui para a melhoria do prognóstico.

Etiopatogénese

A morfogénese das estruturas da árvore respiratória (tracto respiratório inferior) que derivam primordialmente do intestino primitivo do embrião, é classicamente dividida em cinco períodos: estes são contados a partir da separação do divertículo “em dedo de luva” ou saccuilus pulmonalis que emerge da face ventral do tubo digestivo primitivo pelos 24 dias de gestação, bifurcando-se pelos 26-28 dias (esboços dos brônquios principais):

  • Período embrionário (4ª -7ª semana)
    Neste período inicia-se a separação do primórdio respiratório a partir da face ventral do intestino anterior como resultado da formação do septo tráqueoesofágico; estão então constituídos dois “tubos” independentes: o esófago e o tubo laringotraqueal.
  • Período pseudoglandular (7ª-16ª semana)
    Neste período ocorrem determinados eventos em simultâneo: ramificação da árvore respiratória até aos bronquíolos terminais, migração das estruturas vasculares, e desenvolvimento da cartilagem, glândulas mucosas e musculatura lisa nos brônquios a partir do mesênquima.
  • Período canalicular (16ª-26ª semana)
    Neste período formam-se os bronquíolos respiratórios, os ductos alveolares e os alvéolos a partir dos bronquíolos terminais.
  • Período sacular (26ª-36ª semana)
    Os eventos importantes deste período são o crescimento das unidades para as trocas gasosas e a produção de surfactante alveolar.
  • Período alveolar (a partir da 36ª semana)
    Neste período completa- se a formação das estruturas envolvidas na função respiratória continuando o crescimento da superfície de trocas gasosas.

A perturbação deste processo em diversas datas e por efeito de diversos factores dá origem a diversas anomalias congénitas; neste capítulo é feita menção especial a quatro situações deste foro, de possível solução cirúrgica: enfisema lobar congénito, quisto broncogénico, malformação adenomatóide quística e sequestração broncopulmonar.

1. ENFISEMA LOBAR CONGÉNITO

Definição e importância do problema

O enfisema lobar congénito consiste na insuflação anormal de um pulmão anatomicamente normal resultando provavelmente de um defeito intrínseco da cartilagem bronquiolar favorecendo broncomalácia.

Poderá verificar-se compressão extrínseca por anomalias vasculares intratorácicas. Como consequência verifica-se colapso do brônquio afectado durante a expiração levando a retenção progressiva de ar no pulmão por dificuldade de saída daquele. O lobo mais frequentemente afectado é o superior esquerdo (LSE), seguindo-se em frequência o lobo médio direito e o superior direito.

Existem descritos casos raros de compromisso multilobar. Em 50% dos casos não é possível identificar a etiopatogénese. A prevalência do enfisema lobar congénito é ~1/20.000.

Manifestações clínicas

O enfisema lobar congénito pode ser assintomático durante algum tempo (dias), sendo habitual um quadro de dificuldade respiratória, de instalação mais ou menos rápida, nos primeiros dias de vida; é possível que o mesmo seja desencadeado pelo choro. Por vezes a instalação do quadro é aguda.

As manifestações poderão surgir mais tarde, na idade pré-escolar. Podem ocorrer pneumonias recorrentes.

O quadro clínico é explicável pela compressão exercida pelo lobo afectado sobre o pulmão normal.

Exames complementares e diagnóstico diferencial

Esta situação pode ser diagnosticada por ecografia no período pré-natal.

Através da radiografia do tórax realizada perante manifestações de dificuldade respiratória torna-se evidente o sinal de hipertransparência na área do lobo afectado (em geral LSE) com herniação e desvio do mediastino para o lado oposto; a hemicúpula diafragmática homolateral está aplanada (Figura 1).

O diagnóstico diferencial faz-se com pneumotórax e com anomalia adenomatóide quística na sua forma de apresentação de quisto gigante.

A tomografia axial computadorizada ajuda nesta destrinça, bem como esclarece a possível confusão com compressão extrínseca do brônquio por estruturas mediastínicas. Nestes casos a broncoscopia pré-operatória pode tornar-se indispensável.

Poderá estar indicada a cintigrafia de perfusão/ ventilação nos casos de enfisema lobar que se admite tenha sido adquirido após ventilação com pressão positiva de longa duração.

Também está indicada a observação por cardiologista pediátrico que procede a ecografia cardíaca pela elevada probabilidade de associação a anomalia cardiovascular.

FIGURA 1. Padrão radiográfico convencional do tórax (Enfisema lobar à esquerda). TAC torácica (imagem bolhosa) (NIHDE)

Tratamento

Uma vez comprovado o diagnóstico, o tratamento é cirúrgico.

Se o quadro for de instalação aguda, pode ser necessária uma toracotomia de urgência.

Se se demonstrar que a causa da insuflação é broncomalácia, procede- se a lobectomia. Se existir compressão extrínseca, a intervenção tem como objectivo retirar a causa: com a remoção da causa o lobo afectado retomará a sua função normal.

Se no pré-operatório se tornar indispensável apoio ventilatório, deve ser utilizada ventilação oscilatória de alta frequência.

2. QUISTO BRONCOGÉNICO

Definição

O quisto broncogénico gera-se a partir do divertículo respiratório, em que um grupo de células, que se desenvolve independentemente do tracto respiratório, se separa deste.

Pode ter várias localizações sendo a mais frequente no mediastino posterior ou médio, por de trás ou junto à árvore traqueo-brônquica “mãe” (carina, hilo pulmonar); está frequentemente ligado a esta por um pedículo obliterado ou permeável.

Em geral é central e único.

Pode, raramente, localizar-se no esófago, pericárdio ou no próprio parênquima pulmonar, assumindo nesta última localização a forma multilocular.

No que respeita a características morfológicas, os quistos broncogénicos têm 2 a 10 cm de diâmetro, parede bem individualizada e contêm muco, pus ou sangue.

Manifestações clínicas

Mais frequentemente as manifestações têm início na idade pré-escolar traduzindo- se por sinais de broncospasmo, sinais de compressão, ou por infecções respiratórias de repetição, nalguns casos relacionadas com infecção do próprio quisto quando este comunica com a árvore tráqueo-brônquica.

Os quistos de localização intercarinal podem manifestar-se muito mais precocemente, já no recém-nascido, com insuficiência respiratória, o que implica correcção precoce; podem ser causa de morte súbita.

Noutros casos são assintomáticos, sendo então identificados como achados no âmbito da realização de exame radiográfico do tórax por motivos diversos.

Exames complementares

A radiografia do tórax poderá evidenciar massa paratraqueal ou imagem esferóide com parede fina (semelhante a “balão” ou grande “bolha” correspondente a área de distensão gasosa).

A TAC e a RMN, com maior discriminação imagiológica, possibilitarão a identificação de pequenos quistos intercarinais.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas e o padrão radiográfico do tórax convencional evidenciando imagem de distensão gasosa ou “bolhosa” única poderão levar a admitir a presença doutra situação – o quisto pulmonar – com patogénese semelhante ao quisto broncogénico, mas derivando das células do bronquíolo respiratório. O referido quisto pulmonar é, no entanto, periférico (e único) com um padrão radiográfico que evidencia parede melhor definida do que no caso do quisto broncogénico.

Por sua vez, o quisto pulmonar pode confundir-se com pneumatocele o qual apresenta parede menos espessa. O quisto pulmonar, quando infectado, pode confundir-se com abcesso pulmonar.

Tratamento

O tratamento, quer do quisto broncogénico, quer do quisto pulmonar, é a excisão cirúrgica.

3. MALFORMAÇÃO ADENOMATÓIDE QUÍSTICA

Definição e importância do problema

Esta anomalia é caracterizada por crescimento desordenado (histologia de tipo hamartoma ou displasia) dos bronquíolos terminais impedindo quase completamente o crescimento e desenvolvimento alveolar no lobo de um pulmão; como consequência há formação de múltiplos quistos desorganizados alternando com zonas de parênquima não afectado, sendo que os referidos quistos não comunicam com a árvore tráqueo-brônquica e podem comprimir as estruturas vizinhas.

Surge com uma frequência aproximada de 1-4/100.000 nascimentos.

São descritos 3 tipos: 1 (50%), macroquístico, com um ou mais quistos de diâmetro superior a 2 cm; 2 (40%), microquístico com histologia semelhante à do tipo 1; 3 (10%) em que a lesão é sólida simile bronquíolos preenchidos por epitélio cubóide ciliado e não ciliado.

Manifestações clínicas e diagnóstico

As manifestações são precoces, no pós-parto traduzidas por síndroma de dificuldade respiratória conduzindo a insuficiência respiratória; a manifestação mais tardia inaugural pode ser infecção respiratória com recorrências.

A ecografia fetal permite o diagnóstico entre a 12ª e a 14ª semana de vida intra-uterina; por vezes verifica-se inexplicavelmente a sua regressão espontânea o que prova a complexidade de tal anomalia congénita. Em certas formas surge hydrops fetalis.

Após o nascimento a radiografia do tórax é essencial para o diagnóstico definitivo, chamando-se a atenção para o diagnóstico diferencial com a hérnia diafragmática de Bochdaleck (esta última abordada no capítulo 308).

Em casos especiais pode proceder-se à tomografia axial computadorizada.

Tratamento

O tratamento é a excisão cirúrgica – lobectomia – mesmo no doente assintomático, de preferência antes dos 12 meses de idade, face à possibilidade de evolução sarcomatosa ou carcinomatosa.

Quando as lesões são de grandes dimensões pode verificar-se hipoplasia do pulmão e hipertensão pulmonar implicando medidas de suporte respiratório em unidade de cuidados intensivos.

4. SEQUESTRAÇÃO PULMONAR

Definição e etiopatogénese

Esta anomalia é caracterizada pela presença de segmento de parênquima pulmonar não funcionante, sem comunicação evidente com a árvore tráqueo-brônquica; a sua vascularização é anómala, recebendo a totalidade ou a maior parte da sua irrigação arterial sanguínea por vasos oriundos directamente da circulação sistémica.

São descritos dois tipos:

  • intralobar em que o tecido sequestrado está contido no lobo normal;
  • extralobar, ocorrendo quando a lesão está separada do lobo pulmonar normal e também fora da pleura visceral; este tipo está mais frequentemente associado a outras anomalias congénitas

Manifestações clínicas e diagnóstico

O início das manifestações é muito variável, desde a idade pediátrica à idade adulta. Em geral traduzem-se, quer por sinais e sintomas de infecções respiratórias, quer relacionáveis com shunt de alto débito em relação com os vasos anómalos.

A sintomatologia é predominantemente respiratória, mas a presença de shunts de alto débito, por si só, ou pelas malformações cardíacas congénitas associadas, pode produzir manifestações cardiocirculatórias.

Com efeito, a infecção respiratória é habitual neste tecido pulmonar não funcionante, pelo que as crianças com infecções respiratórias de repetição de causa não evidente devem ser consideradas suspeitas de serem portadoras deste tipo de malformação e investigadas nesse sentido.

A radiografia do tórax convencional, nos casos de tipo intralobar, pode evidenciar sinais de opacidade ou de lesão quística com nível líquido.

A ecografia doppler é o exame de eleição, mas pode haver necessidade de se associar TAC com reconstrução a 3 dimensões, ou ângio-ressonância. (Figura 2)

Deve ser feito o estudo por ecografia e cintigrafia do fígado quando a lesão está localizada na base direita, pois há casos de hérnia diafragmática com fígado intratorácico que podem levar a erros de diagnóstico.

A
B

FIGURA 2. Sequestração pulmonar: A – Radiografia do tórax convencional evidenciando opacidade ovóide no terço inferior do hemitórax esquerdo; B – TAC torácica evidenciando opacidades arredondadas confluentes em “mapa geográfico” (NIHDE)

Tratamento

O tratamento da sequestração pulmonar intralobar é a lobectomia ou, caso possível, a segmentectomia, tendo sempre em atenção a necessidade de laquear o vaso anómalo face ao risco de hemorragia e morte intra-operatória.

Os casos de sequestração extralobar que, na sua maioria, são assintomáticos e descobertos por acidente, poderão ser seguidos sem intervenção cirúrgica a qual só estará indicada se se verificar infecção ou sintomatologia cardiocirculatória.

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ANOMALIAS DA PAREDE DO TÓRAX – ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR

Introdução

Neste capítulo é feita uma abordagem multidisciplinar, sucinta, de determinadas deformações do tórax, quer congénitas, quer adquiridas, as quais poderão estar ou não associadas a outras anomalias, e em muitos casos fazendo parte de diversas síndromas plurimalformativas.

Na perspectiva da actuação terapêutica, as referidas deformações foram considerados dois grupos respectivamente: do foro médico e do foro cirúrgico. É dada ênfase a este último grupo pelas especificidades do tratamento, o qual deverá ter lugar em centro especializado.

1. DEFORMAÇÕES DO FORO “MÉDICO”

Tórax assimétrico postural

Alguns lactentes, em especial com antecedentes de prematuridade, exibem nos primeiros meses de vida, tórax assimétrico, em geral associado a assimetria da cabeça.

Trata-se de crianças que permanecem durante muito tempo em decúbito, sempre na mesma posição, mais inclinadas para um lado do que para outro. A cabeça e o tórax cedem no lado comprimido (efeito de postura), achatando- se e perdendo a simetria.

Para corrigir tal situação bastará mudar de vez em quando a posição da criança no berço ou virá-la para o lado oposto durante algum tempo, para prevenir ou corrigir a deformação.

Tórax com rosário costal

Raquitismo

O ponto de união costocondral palpa-se com facilidade em muitos lactentes saudáveis nos primeiros meses de vida; no entanto, não chega a ser visível.

No raquitismo encontra-se, por vezes já no segundo trimestre, o chamado “rosário costal”, designação clássica para traduzir a tumefacção esferóide “em conta de rosário” na junção osteocartilaginosa das costelas; com efeito, à inspecção notam-se nódulos arredondados dispostos de cada lado da linha média da face anterior do tórax, desde as costelas superiores às inferiores.

FIGURA 1. Padrão radiográfico de pneumonia no contexto de raquitismo grave (“Pulmão raquitico”) (NIHDE)

A correcção desta situação consiste no tratamento do raquitismo com vitamina D e, eventualmente, suplemento de cálcio.

No âmbito do raquitismo, cabe referir, a propósito:

  • o chamado “pulmão raquítico”, quadro clínico hoje praticamente inexistente, associado às síndromas de raquitismo grave e às infecções respiratórias de repetição/pneumonias no contexto de tal afecção. A etipatogénese relaciona-se com as alterações da dinâmica respiratória associadas, quer às deformações do tórax, quer à hipotonia muscular acompanhante; as costelas, com défice de calcificação, não resistem às tracções musculares e compressões deixando-se deformar (Figura 1).
  • a cinta raquítica ou sulco de Harrison
    A tracção exercida pelo diafragma pode ocasionar, na parte inferior do tórax, um pouco acima do rebordo costal, um sulco ou depressão horizontal que se acentua durante a inspiração. Como o raquitismo se acompanha de hipotonia muscular, o abdómen, consideravelmente abaulado, impele para fora as costelas situadas abaixo das inserções diafragmáticas, assumindo, nos casos mais típicos, a forma de tórax em sino.

Escorbuto

No caso do escorbuto (situação que nos países desenvolvidos hoje pertence à história) existe também rosário costal, no entanto com etiopatogénese diferente da do raquitismo.

Com efeito, no escorbuto o esterno encontra-se deprimido, sendo precisamente o deslocamento do esterno para trás que origina subluxação das condrocostais e, consequentemente, a sua “saliência” com formato de “contas do rosário”. No entanto, as contas deste “rosário“ são angulares, em “baioneta”, contrastando com as do raquitismo, largas e achatadas ou esferóides. Recorde-se que não se observam as deformações de tipo raquítico da cabeça e tórax.

A correcção deste defeito consiste, essencialmente, na administração de vitamina C, atendendo igualmente ao tratamento de eventuais complicações do foro respiratório (ver Parte sobre Nutrição).

Tórax “em barril” ou enfisematoso

Nas situações de enfisema pulmonar crónico as costelas tornam-se horizontais e o tórax globoso, arredondado; é o exagero da disposição normal da primeira infância.

Este tipo de tórax encontra-se transitoriamente na bronquiolite aguda e nas crises de asma. Com carácter permanente é mais raro, associando-se na maioria das vezes a fibrose quística ou asma grave.

2. DEFORMAÇÕES DO FORO “CIRÚRGICO”

As deformações da parede anterior do tórax (DPAT) distribuem-se num espectro quanto à morfologia, simetria, grau de compromisso funcional e anomalias associadas. Assim há considerar: – deformações em que o esterno se projecta posteriormente ( pectus excavatum ou “tórax em funil” ) ou; – deformações em que o esterno se projecta anteriormente ( pectus carinatum ou “tórax em quilha ou de pombo”).

Há ainda deformações difíceis de classificar, como a deformidade em Pouter Pigeon e deformações várias das articulações condrocostais. As síndromas de Poland, de Jeune, e a fenda esternal associam-se a DPAT, com fisiopatologia diferente, mas não são contemplados neste capítulo.

As figuras 2 e 3 ilustram as deformações da parede torácica com que o clínico se depara mais frequentemente.

FIGURA 2. Pectus excavatum no contexto de síndroma de Poland (Atrofia do grande peitoral) (NIHDE)

FIGURA 3. Casos ilustrativos do espectro das deformações da parede anterior do tórax (documentação anatómica e imagiológica: (A) Pectus excavatum (simétrico); (B) Pectus carinatum (simétrico); (C) Deformidade de Pouter Pigeon; (D) Deformidade costocondral

Pectus excavatum

Introdução

No pectus excavatum a depressão do esterno e cartilagens costais adjacentes assume diferentes conformações proporcionando grande variabilidade na sua apresentação. Frequentemente a depressão é profunda, simétrica, bem definida e localizada, preferencialmente no terço inferior do esterno. De ocorrência menos comum é a depressão aplanada, pouco profunda, embora extensa, do esterno e cartilagens costais. Quando a estrutura torácica é assimétrica há uma predominância da depressão no lado direito.

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

Trata-se da DPAT mais frequente (90%), com uma prevalência estimada de 1/ 400, cinco vezes mais comum nos rapazes; com antecedentes familiares em 25% dos casos, em 10% tal anomalia associa-se a síndroma, a anomalias axiais como escoliose, e ou a antecedentes de cirurgia torácica ou lesão traumática. Podendo ser evidente na data de nascimento, em geral só é notada durante a infância, ou mesmo na adolescência.

A etiopatogénese não está completamente esclarecida. A teoria mais aceite para explicar todo o espectro de morfologias encontradas nos pacientes com as DPAT em geral é a do sobrecrescimento da cartilagem na junção esternocostal que, ao exercer força mecânica sobre o corpo do esterno, determina uma alteração do seu posicionamento.

Manifestações clínicas

Um grande número de pacientes com pectus excavatum apresenta postura característica, com ombros arredondados e projectados para diante, com acentuação da curvatura de transição toracoabdominal devido à protusão dos arcos costais.

Embora muitos autores reportem sintomatologia relacionada com alterações da função cardíaca, pulmonar e limitação na prática de exercício físico, este não é, o quadro habitual. Em casos extremos, o conflito de espaço intratorácico poderá comprometer a expansão pulmonar, causar obstrução ao fluxo de vasos importantes e/ou desencadear arritmias pela pressão exercida sobre o coração. No entanto, o predomínio de pacientes sem qualquer repercussão sobre o sistema cardiorrespiratório torna irrelevante a avaliação por rotina da função pulmonar e cardíaca de todos os doentes.

O impacte de ordem psicológica e, consequentemente, interpessoal são óbvios, especialmente na adolescência. Os adolescentes evitam a prática de exercício físico e tentam esconder a deformidade com roupas largas ou posturas incorretas.

O pectus excavatum pode estar associado a diversas síndromas tais como síndroma de Marfan, de Pierre Robin, de Coffin Lowry, de Poland, etc..

Exames complementares

O estudo imagiológico para documentação das dimensões do tórax, avaliação de possíveis alterações secundárias da coluna vertebral e órgãos intratorácicos, e planeamento do procedimento cirúrgico é considerado essencial. A tomografia computadorizada (TC) é actualmente o exame de imagem mais utilizado, uma vez que permite uma avaliação tridimensional das deformações óssea e cartilagínea.

A caracterização e a magnitude da depressão podem ser avaliadas por vários parâmetros mensuráveis ou índices, sendo o índice de Haller o mais citado. Calcula-se dividindo a distância esternovertebral (desde a superfície posterior do esterno até à superfície anterior da coluna vertebral) pelo diâmetro transverso do tórax. Classicamente, um índice de Haller > 3,25 é considerado critério objectivo para correção cirúrgica

Numa tentativa de evitar a exposição à radiação e os seus efeitos adversos, o grupo de investigação liderado por um dos autores (JCP) desenvolveu uma metodologia de reconstrução de imagem semelhante à obtida da TC, usando ressonância magnética e/ou scanner a laser 3D, sem radiação, o que poderá substituir a TC na abordagem pré-operatória destes doentes.

Tratamento

De acordo com a experiência dos autores (JCP, et al), nas crianças e adolescentes com DPAT do tipo pectus excavatum, segue-se o algoritmo exposto na figura 4 ditando as possíveis atitudes de tratamento: conservador ou cirúrgico.

FIGURA 4. Algoritmo de orientação clínica de pacientes com Pectus excavatum

A- Tratamento conservador

O exercício físico (designadamente a prática do remo e natação) pode desempenhar papel importante na correção da postura e atenuação da deformação ao desenvolver determinados grupos musculares, especialmente nos casos de deformação ligeira.

De realçar, no entanto, que o exercício físico, por si só, não esgota as soluções de tratamento para pectus excavatum.

Abordagens inovadoras, não cirúrgicas estão em desenvolvimento e avaliação, incluindo o tratamento com vacuum bell. O tratamento com o chamado vacuum bell é uma alternativa promissora em casos seleccionados de pectus xxcavatum, desde que o tórax seja flexível, particularmente em pacientes mais jovens com deformação ligeira a moderada. Trata-se dum dispositivo com a forma de campânula que é centrado no ponto de depressão mais profunda da parede anterior do tórax, exercendo pressão negativa sobre esta / efeito ventosa. O resultado de elevação do esterno e costelas é imediato durante a aplicação do dispositivo. Deve ser aplicado 2-3 vezes por dia iniciando com 20 minutos e aumentando a duração de dia para dia, de acordo com a tolerância. A duração do tratamento está relacionada com a idade do paciente, gravidade da deformação e frequência de uso do dispositivo.

A aplicação da vaccum bell pode levar ao aparecimento de petéquias ou hematoma subcutâneo pelo que não está indicado na presença de coagulopatias ou vasculopatias.

B – Tratamento cirúrgico

A idade ideal para a realização da cirurgia é a adolescência pois, por um lado, a estrutura torácica ainda é elástica e flexível, e por outro, aproximando-se o tempo da maturidade óssea e o fim do crescimento, haverá menor probabilidade de recorrência.

Para além dum índice de Haller superior a 3,25, a opção cirúrgica deverá valorizar a vontade do doente, de acordo com a sua percepção da autoimagem e o impacte psicossocial que a deformação tem na sua vida. Por outro lado, intervenção cirúrgica implicará prévios consentimento informado dos pais e assentimento do adolescente.

Não cabendo no âmbito do livro descrição das técnicas utilizadas com protocolo de seguimento especializado, apenas serão citadas: – de Mark Ravitch, descrita em 1949 (procedimento aberto); e a – de Donald Nuss, descrita em 1998 (procedimento minimamente invasivo) através de toracoscopia e aplicação de prótese.

Pectus carinatum

Aspectos gerais

A apresentação clássica do Pectus Carinatum é a protusão do terço inferior do esterno com proeminência máxima na junção xifosternal, a qual pode ser bastante evidente. Na maioria dos casos há um estreitamento do diâmetro latero-lateral do tórax, as costelas projetam-se anteriormente com menor curvatura que o habitual, e o esterno pode estar rodado devido a diferentes taxas de crescimento costal dos dois hemitórax. Menos frequentemente, o pectus carinatum apresenta-se com protusão unilateral das cartilagens costais associada a rotação do esterno para o lado oposto.

A protusão do esterno com ou sem protusão das costelas é a segunda DPAT mais comum (10%). A predominância masculina é mais acentuada neste grupo. À semelhança do pectus excavatum, pode ocorrer de forma esporádica, mas muitos pacientes têm familiares com antecedentes de DPAT de qualquer tipo. Pode também ser parte de uma síndroma (por ex , síndroma de Marfan) ou doença do tecido conjuntivo. Constitui uma das anomalias esqueléticas da doença de Mórquio (mucopolissacaridose).

Pelas suas características, o pectus carinatum está associado, mais a sintomatologia do foro psíquico, do que a alterações fisiopatológicas relacionadas com a própria deformação. Dada a impossibilidade de disfarçarem o defeito com roupas largas, especialmente nos casos mais severos, os pacientes podem apresentar transtornos psicológicos graves.

Tratamento

O tratamento clássico começou por ser cirúrgico, geralmente uma modificação do procedimento de Ravitch, descrito anteriormente e que ainda hoje é utilizado nalguns casos de deformação acentuada. Actualmente, o tratamento de primeira linha é conservador e foi descrito por Haje e Bowen; consiste na utilização de uma ortótese que exerce pressão selectiva sobre o esterno. Há a vantagem de o procedimento não ser invasivo e não deixar cicatriz, exigindo, no entanto, grande motivação do paciente para o cumprimento do esquema terapêutico de uso diário e prolongado (até 2 anos). (Figura 6). A ortótese deve ser usada durante todo o dia, exceptuando os períodos de exercício físico. As complicações são dor local e abrasão cutânea.

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AVALIAÇÃO AUDIOLÓGICA

Definição

De acordo com a EFAS (European Federation to Audiology Societies), a Audiologia é uma área especializada do conhecimento devotada à função e disfunção do sistema auditivo: diagnóstico, reabilitação, perturbações da comunicação, formação e investigação. Neste contexto, importa esclarecer que a Audiologia não se ocupa da prescrição farmacológica nem das técnicas cirúrgicas para reabilitar a audição.

Introdução

Função auditiva

A audição é uma função complexa que resulta da integração central (e interpretação) dos sons previamente captados e processados pelo órgão periférico, sendo o sinal transmitido pela via auditiva ao córtex auditivo. Qualquer som será analisado nas suas três principais dimensões: frequência, amplitude e tempo. A via auditiva está completamente desenvolvida na data do nascimento; no entanto, sofre complexos fenómenos de maturação. Com efeito, a plasticidade do sistema nervoso central permite que, por exposição ao som, haja um desenvolvimento de conexões neuronais a nível cortical até aos seis meses de idade. A via auditiva sofre também maturação ao longo dos primeiros anos de vida. Inicialmente os tempos de condução nervosa estão diminuídos, atingindo os valores dos adultos cerca dos dezoito meses de idade.

O Quadro 1 refere os apectos mais significativos do desenvolvimento da via auditiva e o Quadro 2 a relação entre audição e linguagem.

QUADRO 1 – Desenvolvimento da via auditiva

• Nos RN a via auditiva periférica está completamente desenvolvida.

• O sistema auditivo é modelado durante o 1º ano de vida pela experiência auditiva, sobretudo pela exposição à fala.

• Embora as crianças só produzam palavras reconhecíveis ao ano de idade, podem reconhecer nomes de objectos familiares, entoar a fala e exercer funções auditivas muito sofisticadas muito antes de produzir a sua própria fala.

• Ao nascer, o sistema auditivo periférico possui as capacidades semelhantes às do adulto, pronto a estabelecer as conexões neurais baseadas na experiência auditiva.

• O tronco cerebral vai-se desenvolvendo ao longo dos dois primeiros anos.

• A via auditiva periférica não possui plasticidade, mas esta é mantida a nível do SNC.

QUADRO 2 – Audição e linguagem

• A fala é emitida em diferentes contextos (de timbre, velocidade de produção).

• O ser humano pode caracterizar os sons em fonemas e palavras com grande fidelidade e exactidão, começando estas capacidades a desenvolver-se após o nascimento.

• A aquisição de linguagem perceptiva precede a linguagem expressiva. Os bebés aprendem a organização dos sons na sua língua nativa na 2ª metade do 1º ano de vida.

• Pequenas alterações da audição podem alterar a aquisição e a percepção de linguagem (sobretudo em condições de ruído – escolas).

Surdez infantil

Considera-se surdez significativa a hipoacusia permanente, superior a 40 decibéis (dB), nas frequências conversacionais, no melhor ouvido.

Esta definição tem em conta que, a partir destes valores, a hipoacusia tem repercussões negativas na aquisição de linguagem e no desenvolvimento de competências comunicativas da criança. Existem vários graus de hipoacusia: ligeira, moderada, grave e profunda, correspondendo a dificuldades crescentes de comunicação audio-verbal.

Etiologicamente, a hipoacusia pode ser classificada em sensorioneural relacionada com patologia (endo ou retrococlear), de transmissão relacionada com patologia (ouvido externo ou médio) e mista.

Na maior parte dos casos, a hipoacusia de transmissão é adquirida, constituindo a otite sero-mucosa a causa mais frequente.

No entanto, menor grau de hipoacusia pode influenciar negativamente a integração social e escolar da criança. Na infância ocorrem frequentemente períodos mais ou menos longos (semanas, meses ou anos) em que as crianças sofrem de hipoacusia de transmissão, bilateral ou unilateral, o que influencia o seu desenvolvimento. Estes períodos correspondem a episódios de otite serosa (otite com efusão ou otite com derrame) os quais podem decorrer com hipoacusia de transmissão de grau variável até 40dB, e que é reversível.

O Quadro 3 caracteriza os diferentes graus de deficiência auditiva em relação a perda tonal média.

QUADRO 3 – Graus de deficiência auditiva

1. Deficiência Auditiva Ligeira

2. Deficiência Auditiva Média

3. Deficiência Auditiva Grave

4. Deficiência Auditiva Profunda

5. Deficiência Auditiva Total

1. Perda tonal média: >20 e <40 dB

2. Perda tonal média: >40 e <70 dB

3. Perda tonal média: >70 e <90 dB

4. Perda tonal média: >90 e <120 dB

5. Perda tonal média: 120 dB à (dB = decibéis)

Importância do problema

Estima-se que a incidência da hipoacusia infantil significativa ocorra em 1-2/1000 recém-nascidos aparentemente saudáveis; trata-se da doença congénita mais frequente para a qual existe rastreio e intervenção precoce. Reconhece-se a existência de factores de risco que podem aumentar a incidência de surdez.

Em determinadas situações de maior risco de hipoacusia a incidência pode aumentar para 1/100 recém-nascidos. Grande parte dos factores de risco relaciona-se com ocorrências desfavoráveis durante o período perinatal (muito baixo peso, prematuridade, hipóxia perinatal, sépsis, ototoxicidade, hiperbilirrubinémia grave, etc.). Em idade escolar a hipoacusia significativa pode ter uma prevalência de 8 por cada mil crianças.

FIGURA 1. Exemplo de criança com hipoacúsia de transmissão por anomalia congénita do ouvido externo e médio

As causas genéticas correspondem a cerca de 30% dos casos de surdez congénita, relacionável na maioria dos casos com transmissão autossómica recessiva. Em geral, a surdez surge isolada, mas poderá estar integrada em síndroma; há descritas cerca de 400 síndromas que incluem défice auditivo. (Figura 1)

Existem mais de 20 loci descritos para a surdez isolada, mas um único locus – DFNB1 – é responsável por uma elevada proporção dos casos: trata-se do gene GJB2, que codifica a proteína conexina 26. Mutações neste gene são responsáveis por aproximadamente 50% dos casos de surdez congénita isolada não infecciosa.

As causas infecciosas pré-natais (rubéola, sífilis, toxoplasmose, citomegalovírus) são, felizmente, cada vez menos frequentes.

A hipoacusia pode classificar-se quanto à cronologia do seu aparecimento, em congénita ou adquirida (período perinatal ou ao longo da vida). Assim, a criança pode ser portadora de deficiência auditiva desde o período pré-lingual (congénita ou adquirida no período perinatal) ou adquirida no período de aquisição de linguagem (ex: meningite bacteriana), pós-lingual (expresssão tardia de surdez congénita, meningite bacteriana, traumatismo craniano, etc.). O prognóstico é diferente conforme as competências linguísticas que já existiam quando surgiu a hipoacusia.

Rastreio auditivo neonatal

Desde longa data tem havido tentativa de programas de rastreio da deficiência auditiva, nomeadamente no período neonatal, utilizando métodos baseados na pesquisa de reacções motoras dos recém-nascidos após apresentação de estímulos auditivos de elevada intensidade. Estes testes baseavam-se na interpretação das reacções dos recém-nascidos feita por observadores treinados, consumindo, assim, muitos recursos humanos. Existia, no entanto, uma grande variabilidade de resultados entre os vários observadores, e além da fraca confiabilidade, os referidos testes apenas detectavam graus de surdez grave e profunda; por isso, foram abandonados.

Em 1972 o Joint Committee on Infant Hearing, grupo multidisciplinar, elaborou uma lista de circunstâncias em que os recém-nascidos tinham risco acrescido de ocorrência de surdez devendo, por isso, ser obrigatoriamente sujeitos a rastreio que era habitualmente efectuado pelos nove meses de idade. Esta lista de factores de risco foi sendo progressivamente alargada ao longo dos anos.

No entanto, uma vez que cerca de 50% das crianças surdas não possuem nenhum factor de risco de surdez, houve necessidade de pôr em acção rastreios universais no recém-nascido. Durante a década de noventa foram organizados rastreios universais dos recém-nascidos, mercê da disponibilidade de técnicas de rastreio sensíveis, específicas, rápidas, de preço acessível e de aplicação fácil: os aparelhos de oto-emissões acústicas (OEA) que surgiram nesta altura. Estes rastreios foram divulgados a partir dos Estados Unidos, sendo a sua aplicação facilitada pelo ulterior aparecimento de aparelhos automáticos, quer de oto-emissões acústicas, quer de potenciais evocados auditivos. Estes aparelhos dão resposta do tipo “Apto”, “que passa” ou sem problema, e “Inapto” ou com problema a esclarecer. Não necessitando de interpretação dos resultados por parte do técnico, podem ser utilizados por pessoal sem formação específica em audiologia (enfermeiros, médicos, pediatras, voluntários), após um determinado tempo de treino. Estes rastreios devem ser coordenados por profissionais da área da audiologia pediátrica e com o apoio de uma unidade de audiologia com recursos técnicos e humanos apropriados.

Actualmente os rastreios universais da audição dos recém-nascidos são aplicados na maioria dos países desenvolvidos, segundo critérios padronizados. Prevê-se que nos próximos anos surjam critérios normativos para as diferentes características técnicas dos mesmos. A eclosão destes programas, cujo objectivo é o diagnóstico de hipoacusia significativa antes dos 3 meses de idade e o início da reabilitação até aos 6 meses, permite a muitos recém-nascidos usufruirem dos benefícios da intervenção precoce que se traduzem em níveis de aquisição de linguagem superiores aos que iriam adquirir se o diagnóstico continuasse a ser tardio. De salientar que estudos publicados pelo grupo do Colorado vieram demonstrar que a idade de intervenção (abaixo dos seis meses de idade) constitui o factor que mais positivamente influencia a reabilitação e aquisição de linguagem para qualquer grau de surdez.

A maioria dos rastreios é organizada em 3 fases, com início ainda na maternidade, nas primeiras horas de vida. São utilizadas técnicas automáticas, potenciais evocados automáticos ou oto-emissões acústicas automáticas.

De acordo com as recomendações do GRISI (ver adiante), na instituição onde se procede ao rastreio considera-se equipamento indispensável: dois aparelhos, de OEA (de diagnóstico ou automático) e/ou de PEATC (de diagnóstico ou automático).

Os bebés que não “passam” ou não são considerados “aptos” na primeira fase (por exemplo por existência de exsudado no ouvido médio, colapso ou obstrução do canal auditivo externo), serão sujeitos à segunda fase do rastreio, geralmente uma ou duas semanas depois. Pode utilizar-se a mesma técnica que foi utilizada na primeira fase, verificando-se que na maioria dos casos o resultado será normal. Caso contrário, a criança será encaminhada para uma consulta de otorrinolaringologia e sujeita a estudo através da técnica de potenciais evocados auditivos diagnósticos e impedancimetria. Esta terceira fase, diagnóstica, deverá ter lugar até aos quatro meses.

Os programas de rastreio auditivo deverão ser integrados, apoiados por programas de reabilitação/habilitação e estimulação precoce apropriados que envolvem a adaptação protética, a estimulação auditiva e verbal e, por vezes, a aplicação de implantes cocleares. Há, por isso, necessidade de formar equipas multiprofissionais dotadas de meios técnicos apropriados, motivadas para o objectivo final que consiste em diagnosticar e habilitar/reabilitar precocemente, apoiando as famílias nas suas decisões e necessidades. Estas equipas deverão incluir pediatras, otorrinolaringologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas de fala, professores de surdos, psicólogos, assistentes sociais e administradores hospitalares, entre outros. É evidente que novos desafios se perfilam aos profissionais envolvidos nesta área, pois, como foi dito, os grandes objectivos são a identificação, o correcto diagnóstico e o início de intervenção cada vez mais precocemente; daí a necessidade de meios técnicos sofisticados e de treino específico na área da audiologia pediátrica.

O Quadro 4, adaptado do Joint Committee on Infant Hearing discrimina os critérios considerados de alto risco que determinam o rastreio da audição.

QUADRO 4 – Critérios de alto risco para rastreio auditivo (RN em UCIN)

• História familiar de surdez infantil de origem hereditária.

• Infecções intrauterinas tais como por citomegalovírus, rubéola, sífilis, herpes e toxoplasmose.

• Anomalias craniofaciais, incluindo anomalias do pavilhão auricular e canal auditivo externo.

• Peso de nascimento <1,5 Kg.

• Hiperbilirrubinémia não conjugada atingindo níveis que necessitam de exsanguinotransfusão.

• Medicações ototóxicas, incluindo, designadamente aminoglicosídeos, usados em terapêuticas múltiplas ou em combinação com diuréticos de ansa.

• Meningite bacteriana.

• Índice de Apgar de 0 a 4 ao primeiro minuto ou de 0 a 6 aos 5 minutos.

• Ventilação assistida durante cinco ou mais dias.

• Estigmas associados a síndroma conhecida por se associar a hipoacusia sensorial ou de condução.

De salientar, a propósito, a filosofia expressa pelo European Consensus on Infant Screening em 1998: “… embora os sistemas de saúde na Europa variem de país para país em termos de organização e financiamento, deverão ser postos em marcha, sem atrasos, programas de rastreio de audição neonatal. Assim, serão dadas aos novos cidadãos da Europa mais oportunidades e melhor qualidade de vida no próximo milénio”.

No âmbito de uma política nacional de saúde para o diagnóstico precoce da surdez e intervenção, constituiu-se o Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez (GRISI). Este grupo de trabalho, aberto e multidisciplinar, reúne profissionais com experiência nesta área.

O objectivo deste grupo coordenado pela autora é o desenvolvimento de um programa nacional de detecção e intervenção auditiva precoces, padronizando técnicas e metodologias, através de acções conjuntas entre os vários organismos oficiais e associações profissionais.

O Quadro 5 define as condições consideradas indispensáveis para garantia de rendibilidade e de qualidade do rastreio considerado universal.

QUADRO 5 – Condições para rastreio universal (qualidade e rendibilidade)

1. Um mínimo de 95% dos recém-nascidos deverá de ser sujeito a rastreio conclusivo (só poderão ser perdidos para seguimento cerca de 5%).

2. Deverão ser utilizados métodos objectivos (potenciais evocados auditivos ou oto-emissões acústicas) e testar-se os 2 ouvidos.

3. O rastreio deverá detectar todas as crianças com hipoacusia significativa, isto é, com limiares superiores a 35 dB no melhor ouvido.

4. A taxa de falsos positivos deve ser inferior a 3% (normo-ouvintes evidenciando alterações no âmbito do rastreio).

5. A taxa de verdadeiros casos positivos deve situar-se entre 2-4/1000.

6. É desejável taxa zero de falsos negativos.

FIGURA 2. Organização do rastreio auditivo neonatal universal

FIGURA 3. Rastreio de crianças em UCIN

As Figuras 2 e 3 resumem os esquemas organizativos respectivamente do Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU) – sem risco conhecido, e rastreio considerado de alto risco, em crianças internadas em UCIN (Quadro 4 já referido).

Estes esquemas são aplicados no Hospital Dona Estefânia desde 2003.

Rastreio auditivo pós-neonatal

Na hipótese de não se ter procedido ao rastreio auditivo no período neonatal, há que atender aos indicadores de risco de surdez em geral, os quais constam do Quadro 6, de grande utilidade na prática clínica, quer para pediatras quer para médicos de família. O referido quadro chama igualmente a atenção para as situações com necessidade de acompanhamento, e associadas ao aparecimento tardio de perda auditiva.

QUADRO 6 – Indicadores de risco de surdez

Crianças até aos dois anos:

· Preocupação/suspeita dos pais em relação ao desenvolvimento da fala, linguagem ou audição.

· Meningite bacteriana e outras infecções associadas com perda auditiva neurossensorial.

· Traumatismo crânio-encefálico acompanhado de perda de consciência ou fractura do crânio.

· Estigmas ou sinais de síndromas associadas a perdas auditivas de condução e/ou neurossensoriais.

· Medicamentos ototóxicos (incluindo, mas não limitados a agentes quimioterápicos ou aminoglicosídeos, associados ou não a diuréticos de ansa).

· Otite média de repetição/persistente, com efusão por períodos de, pelo menos, 3 (três) meses.

Crianças que necessitam de acompanhamento até aos 3 anos de idade:

– Alguns RN podem “passar” no rastreio auditivo, mas necessitam de acompanhamento periódico pois têm risco aumentado de aparecimento tardio de perda auditiva neurossensorial ou de condução.

– Crianças com indicadores abaixo referidos, requerem avaliação a cada 6 (seis) meses.

Indicadores associados ao aparecimento tardio de perda neurossensorial:

– Antecedentes familiares de perda auditiva tardia na infância.

– Infecções congénitas (rubéola, sífilis, herpes, citomegalovírus, toxoplasmose).

– Neurofibromatose tipo II e doenças neurodegenerativas.

Indicadores associados ao aparecimento tardio de perda de condução:

– Otite média de repetição/recorrente ou persistente com derrame.

– Defeitos anatómicos e outras alterações que afectam a função da trompa de Eustáquio.

– Doenças neurodegenerativas.

Provas diagnósticas

Uma vez realizado o rastreio, cabe referir a abordagem diagnóstica que pode ser realizada nos casos em que foi detectada alteração da função auditiva através daquele.

A avaliação audiológica das crianças utiliza um conjunto de provas cujos resultados devem ser cruzados e interpretados em conjunto. Cada prova tem um valor relativo e constitui uma “janela” que avalia uma determinada área/função da via auditiva. De um modo geral as provas diagnósticas podem ser classificadas em comportamentais e fisiológicas (também denominadas objectivas).

Provas comportamentais

As alterações do comportamento da criança após exposição a um som-teste são avaliadas por um audiologista. As condições do teste são controladas pelo técnico e os resultados deverão ser reprodutíveis (não deverão existir variações intra e inter-teste). São, por isso, provas objectivas e precisas. Trata-se de provas que exigem que a criança tenha o desenvolvimento psicomotor necessário e que a mesma coopere na execução do teste. O técnico deverá ter a capacidade para determinar que tipo de teste é o mais indicado para cada criança, baseado no desenvolvimento psicomotor, e não na idade cronológica.

Podem dividir-se em provas limiares, quando visam a detecção da menor intensidade sonora perceptível para cada som-teste (limiar para aquela frequência), e supralimiares quando a intensidade do som-teste se situa acima do limiar de percepção.

São abordadas as seguintes provas comportamentais:

  • Prova dos reflexos incondicionados
    Assim chamada porque são desencadeadas reacções reflexas inatas dos recém-nascidos a sons de intensidade audível. É habitualmente utilizada até aos 6-7 meses de idade. Consiste na detecção de reflexos incondicionados (reacções de sobressalto, abertura dos olhos, pestanejo, suspensão de actividades motoras tais como a sucção) a sons de intensidades supralimiares e de várias frequências. É muito importante para complementar a informação obtida através de provas fisiológicas, não devendo ser utilizada isoladamente (Figuras 4 e 5).

FIGURA 4. Exemplos de instrumentos que produzem sons, utilizados para testar os reflexos incondicionados

FIGURA 5. Reflexos incondicionados – A criança vira a cabeça na direcção da fonte sonora

  • Prova dos reflexos de orientação condicionada
    A partir do momento em que a criança se senta e segura a cabeça (6-7 meses), é possível estudar reacções de orientação do olhar para a fonte sonora no plano horizontal, sendo possível condicioná-la utilizando técnicas de condicionamento operante. É apresentado um som de suficiente intensidade para que a criança vire o olhar na direcção da fonte sonora. Após esta reacção da criança ao som, é apresentado um reforço positivo ao seu comportamento. O reforço comportamental poderá ser uma luz que se acende, um brinquedo eléctrico que se liga ou um boneco que se torna visível. Cada vez que a criança “vira o olhar” em resposta à apresentação do som-teste, recebe o reforço positivo. Quando a criança se encontra condicionada, isto é, quando consistentemente vira a cabeça e procura o reforço após a apresentação do som-teste, pode ser feita uma determinação de limiares auditivos para cada frequência: o estímulo vai diminuindo de intensidade até que a criança não responde mais (limiar auditivo). O processo de determinação de limiares vai-se repetindo para as várias frequências. As crianças que não permitam a colocação de auscultadores terão de ser testadas em campo livre, sendo os limiares obtidos respeitantes ao melhor ouvido.
    A criança um pouco mais velha, ao permitir a colocação de auscultadores e de vibrador ósseo, poderá ser testada separadamente aos dois ouvidos, por via aérea e por via óssea (Figura 6).

FIGURA 6. Reflexos de orientação condicionada – A criança é condicionada a olhar para o brinquedo cada vez que ouve o estímulo sonoro; recebendo um reforço positivo, o boneco começa a mexer-se e a luz acende-se

  • Audiometria condicionada por jogos
    A criança mais velha, geralmente a partir dos dois anos e meio, poderá ser condicionada utilizando jogos: é-lhe explicado que, cada vez que ouvir o som-teste, deverá colocar uma peça do jogo. O som-teste poderá ser apresentado em campo livre, através de auscultadores ou de vibrador. Inicia-se o exame pela apresentação de um som com uma intensidade suficiente para que a criança oiça; e depois vai-se diminuindo a intensidade e variando a frequência, de modo a obter os limiares para as frequências entre 250 a 4000 Hz. (Figura 7)
    As limitações das provas comportamentais são: exigem condições técnicas adequadas a crianças (cabines insonorizadas de dimensões adequadas, audiómetros adaptados a colunas calibradas para campo livre, técnicos treinados em audiometria infantil, sendo por vezes necessários dois em simultâneo); a criança tem que cooperar, o que nem sempre é possível, devido à sua idade ou a atraso do desenvolvimento psicomotor; a resposta comportamental pode extinguir-se rapidamente, pelo que muitas vezes a prova terá que ser interrompida, recomeçado de novo, quando a criança volte a cooperar, por vezes no dia seguinte.
    Pelas limitações descritas, quando as respostas não são claras e consistentes, há necessidade de complementar as provas comportamentais com provas fisiológicas, sendo cruzados os resultados de ambas as provas.

FIGURA 7. Audiometria lúdica (condicionada por jogos) – A criança coloca uma peça do jogo se, e quando, ouvir o som-teste

Provas fisiológicas

No grupo das provas fisiológicas consideram-se as seguintes modalidades: provas de impedância (incluindo o timpanograma e a prova dos reflexos acústicos); a prova dos potenciais evocados auditivos (incluindo uma nova modalidade designada por “potenciais estáveis” – ASSR ou Auditory Steady State Response), e a prova das oto-emissões acústicas.

  • Timpanograma
    Esta prova permite avaliar as condições físicas do ouvido médio (mobilidade da cadeia tímpano-ossicular, pressão dentro do ouvido médio, meio de transmissão do som: gás ou exsudados). Deverá utilizar-se uma sonda de frequência 226 Hz a partir dos 4 meses de idade, e de 1000 Hz em bebés até esta idade.
    Há três tipos principais de resultados obtidos pelo timpanograma: tipo A, B e C. No tipo A, o gráfico corresponde a um ouvido normal, com uma mobilidade normal do sistema tímpano-ossicular; o segundo (B) corresponde a um aumento significativo da impedância do ouvido médio, com imobilidade da cadeia tímpano-ossicular, na maior parte das vezes correspondendo à presença de derrame dentro do ouvido médio; o timpanograma do tipo C corresponde a situações intermédias, com pressões negativas dentro do ouvido médio, por funcionamento anómalo da trompa de Eustáquio.
  • Prova dos reflexos acústicos
    Esta prova que perdeu a importância diagnóstica que teve no passado, com a utilização generalizada das oto-emissões acústicas e dos potenciais evocados auditivos a referir adiante, testa a integridade da via auditiva (arco reflexo da via auditiva-nervo facial). O princípio utilizado é o seguinte: apresentando um som-teste de intensidade superior ao limiar auditivo do ouvido (+ 60 dB), desencadeia-se um reflexo que consiste na contracção dos músculos do ouvido médio, no ouvido testado e no ouvido contralateral (reflexos ipsi e contralaterais). Como principais limitações citam-se: tempo exigido para o teste, durante o qual a criança deverá estar imóvel; não poder ser executada na presença de líquido no ouvido médio; e imobilidade da cadeia tímpano-ossicular. A presença de reflexos normais significa normalidade das duas vias testadas (aferente e eferente), mas a sua ausência não permite a afirmação de hipoacusia.
  • Potenciais evocados auditivos (PEA)
    São provas que avaliam as variações dos potenciais eléctricos entre vários pontos da superfície da calote craniana em resposta a um estímulo auditivo aplicado a cada um dos ouvidos. Podem designar-se, quanto à sua latência, em potenciais de curta, média e longa latência. Muitas vezes estes potenciais são denominados quanto à origem das ondas que examinam (ex: potenciais evocados auditivos do tronco cerebral ou PEATC). Tais provas exigem que o doente se encontre perfeitamente relaxado, preferencialmente adormecido, havendo muitas vezes necessidade de recorrer à sedação ou anestesia. São de extrema utilidade, pois permitem confirmar os limiares auditivos obtidos pelas provas comportamentais; em casos de crianças muito jovens, não cooperantes ou com deficiência, estas provas podem ser as únicas a fornecer dados acerca das capacidades auditivas. As respostas obtidas deverão ser interpretadas por um técnico treinado e relacionadas com a clínica e com os resultados das restantes provas.
    Os potencias evocados auditivos mais utilizados na clínica audiológica pediátrica são os potenciais evocados auditivos precoces, de curta latência ou do tronco cerebral (ERA, BERA, PEATC). A prova consiste no seguinte: são colocados eléctrodos na superfície da calote craniana sendo registado o traçado electroencefalográfico (EEG) do doente, o que corresponde à actividade eléctrica de base. Registam-se as variações da actividade eléctrica recolhida pelos eléctrodos, após a apresentação de um estímulo auditivo por meio de auscultadores a cada um dos ouvidos separadamente, sendo este som-teste repetido rapidamente (por exemplo, repetido 2 000 vezes, a uma cadência de 11,3 por segundo). O estímulo auditivo mais utilizado é um “click”, estímulo transitório com um espectro frequencial centrado entre 2000 e 4000 Hz.
    O computador analisa as ondas, extraindo a resposta eléctrica da via auditiva da actividade eléctrica cerebral (EEG), sendo identificadas ondas positivas (I, II, III, e complexo IV-V) que representam a activação de diversas zonas da via auditiva. (Quadro 7)
    A intensidade do estímulo vai depois sendo diminuída, em degraus de 10 dB, até que as ondas se vão extinguindo progressivamente. Quando a chamada onda V se extingue (geralmente a mais resiliente), verifica-se se o limiar auditivo se situa cerca desta intensidade. Este limiar corresponde ao limiar obtido por audiometria comportamental entre os 2000 e os 4000 Hz. Com esta prova não é possível a determinação de limiares electrofisiológicos para as restantes frequências. Além do limiar electrofisiológico, podem medir-se as latências das ondas e os intervalos entre as ondas, o que permite um diagnóstico topográfico das lesões da via auditiva, contribuindo para o esclarecimento etiológico da hipoacusia.
    Esta prova tem elevadas especificidade e sensibilidade, estando disponível na maioria das unidades de audiologia desde há décadas.
    Actualmente existem no mercado aparelhos automáticos com algoritmos de decisão, em que o próprio aparelho procede à identificação das ondas e à sua análise, dando resultados do tipo “Apto ou que passa”, ou “Inapto ou com problema” que exige esclarecimento, tal como foi descrito a propósito dos rastreios.

QUADRO 7 – Origem provável das ondas dos PEATC

• Onda I – Cóclea e porção mais distal do VIII par
• Onda II – Porção proximal do VIII par e Núcleos Cocleares
• Onda III – Complexo Olivar Superior
• Onda IV – Leminiscus Lateralis, Núcleos Cocleares e Complexo Olivar Superior
• Onda V – Coliculus Inferior
  • Otoemissões acústicas (OEA)
    Com esta prova são utilizados sons de fraca intensidade com origem nas células ciliadas externas (cóclea) ocorrendo nos ouvidos normo-ouvintes, quer espontaneamente, quer em resposta a estímulos auditivos. Podem classificar-se em OEA espontâneas (sem utilização clínica), OEA evocadas (transitórias), e OEA de produtos de distorção.
    Após a sua produção na cóclea estas ondas sonoras “caminham” por via retrógrada, fazendo vibrar a cadeia tímpano-ossicular, transmitindo-se estas vibrações ao ar do canal auditivo externo onde serão detectadas por um microfone. Após processamento destas respostas obtêm-se valores que serão representados graficamente e que podem ser utilizados para fins diagnósticos. Considera-se que, quando as oto-emissões acústicas estão presentes, o ouvido tem um limiar auditivo igual ou melhor que 40 dB; por outro lado a ausência de OEA, que pode resultar de oclusão do canal auditivo externo, presença de líquido dentro do ouvido médio, ou disfunção coclear, significa que o ouvido deverá ter limiares auditivos piores que 40 dB.
    As OEA não permitem a definição de limiares auditivos, mas constituem um teste importante para avaliar a função coclear. Utilizam-se, sobretudo, em rastreios auditivos (rastreio universal da audição de recém-nascidos, rastreio da audição após meningite, e também na monitorização de fenómenos de ototoxicidade e de surdez induzida por ruído).
    Em suma, a avaliação audiológica correcta deverá basear-se num conjunto de testes adaptados para cada idade e para cada criança; é mais difícil nas crianças muito pequenas, com atraso psicomotor, com perturbações da esfera do autismo e nas crianças com multideficiência (cerca de 30% das crianças com surdez).
    O papel dos profissionais de saúde (pediatras, clínicos gerais, técnicos) com responsabilidade na avaliação do desenvolvimento das crianças, deverá ser proactivo, no sentido de detectar a deficiência auditiva cada vez mais precocemente. Com efeito, no passado, muitas vezes o diagnóstico apenas se fazia aos dois ou três anos, quando a criança apresentava um manifesto atraso de aquisição da linguagem verbal.

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PATOLOGIA INFLAMATÓRIA AGUDA LARÍNGEA

Importância do problema

Para compreender a importância de patologia inflamatória da laringe há que salientar aspectos particulares de anátomo-fisiologia e semiologia.

  1. A laringe da criança não é uma laringe do adulto mais pequena; tem características particulares que são importantes: a região supraglótica é muito elástica e ampla; o espaço glótico é mais arredondado do que o do adulto; o espaço subglótico é muito pouco distensível, o mais estreito da laringe, sendo mesmo mais estreito que a traqueia e medindo 4 milímetros de diâmetro no recém-nascido (ao contrário do adulto em que a glote é o espaço mais estreito da laringe). Assim, um edema subglótico, aumentando em 1 milímetro a espessura, reduz a via aérea em cerca de 50%.
  2. A frequência respiratória no recém-nascido é cerca de 40 por minuto, na criança 30 por minuto e no adulto 20. A dispneia laríngea é definida como bradipneia inspiratória (o tempo inspiratório está prolongado) com sinais de tiragem ou retracção torácica (a inspiração torna-se um fenómeno activo com utilização dos músculos respiratórios acessórios, como os intercostais e os esterno-cleido-mastoideus). Nos recém-nascidos a dificuldade respiratória de causa laríngea traduz-se por taquipneia rapidamente ineficaz.
  3. A dispneia laríngea pode acompanhar-se de estridor*. Sistematizando, pode afirmar-se que o estridor inspiratório corresponde a lesões supraglóticas, ao passo que o inspiratório-expiratório (bifásico) corresponde a lesões glóticas e subglóticas.
  4. As doenças inflamatórias da laringe em idade pediátrica podem classificar-se em infecciosas (epiglotite, laringite espasmódica ou estridulosa, laringite subglótica e laringo-tráqueo-bronquite ou falso “croup”), químicas (refluxo gastresofágico , ingestão de caústico), traumáticas (entubação, corpo estranho) e alérgicas.
  5. Discute-se se a laringite, para além da etiologia infecciosa (vírica ou bacteriana) poderá traduzir hiperreactividade da via aérea.

*Estridulação: termo que significa ruído áspero, por vezes estridente e agudo, que se produz na via aérea superior , em geral na inspiração; é um sinal de estenose da laringe (por ex. devido a inflamação). Emprega-se, por analogia, o termo “laringite estridulosa ou espasmódica”. (ver adiante)

Neste capítulo são descritas três entidades clínicas representativas da patologia inflamatória aguda da laringe, salientando-se que na literatura médica existe variabilidade na terminologia, designadamente anglófona e francófona.

1. Epiglotite

Definição e importância do problema

O termo de epiglotite (ou processo inflamatório da epiglote surgindo entre os 1 e 4 anos) tem sido substituído por supraglotite por alguns autores. A sua incidência era cerca de 3 a 9 casos por 10.000 internamentos pediátricos antes do aparecimento da vacina anti Haemophilus influenzae tipo b. Após a generalização da vacina contra este microrganismo, a incidência diminuiu para cerca de 0,4 a 0,6 casos /10.000 internamentos.

Etiologia

Haemophilus influenzae tipo b era, até existir vacina, o agente mais frequentemente implicado em (> 90% dos casos).

Situação hoje mais rara, podem estar implicados menos frequentemente outros germes: Streptoccocus do grupo A, B, C, Staphylococcus aureus, Streptoccocus pneumoniae e, nos imunocomprometidos, Herpes simplex, Pseudomonas e Candida.

Manifestações clínicas

O início é agudo, com febre alta, odinofagia intensa e sialorreia (“baba-se”). A criança está pálida, com a boca aberta, ansiosa, irritável, dispneica com ou sem estridor (ruído inspiratório agudo por obstrução da laringe supraglótica), prefere estar sentada com hiperextensão do pescoço e inclinação do tronco para diante para melhorar a respiração, e tem uma voz “abafada” pelo edema supraglótico.

Tratamento

Havendo suspeita de epiglotite (emergência médica), há que adoptar a seguinte conduta:

  1. Medidas gerais
    1. Não tentar observar a faringe nem laringe com espátula nem executar manobras invasivas (tirar sangue por ex.) para não provocar choro e obstrução aguda respiratória.
    2. Transportar a criança com a mãe ao serviço de imagiologa para proceder ao estudo de perfil das partes moles cervicais, o qual evidenciará o aumento da epiglote.
    3. Se se confirmar o diagnóstico, levar a criança para o bloco operatório e induzir anestesia geral por máscara com criança sentada ao colo da mãe.
    4. Uma vez entubada e com a via aérea controlada, pode observar-se então a laringe que demonstra a epiglote edemaciada muito vermelha e exsudativa, quase “em carne viva”.
    5. Proceder a hemocultura iniciando antibioticoterapia endovenosa no bloco antes da transferência para a unidade de internamento.

    O diagnóstico etiológico é feito com base no resultado da hemocultura, e não por colheitas faríngeas ou laríngeas.

  2. Terapêutica antimicrobiana
    Dada o aumento da resistência do Haemophilus às penicilinas, utilizam-se hoje as cefalosporinas de 2ª ou 3ª geração como tratamento de primeira linha durante 5 dias:
    1. Cefuroxima: 75-100 mg/Kg/dia excepto se se suspeitar de envolvimento meníngeo; ou
    2. Cefotaxima: 75-180 mg /Kg/dia se houver suspeita de envolvimento do sistema nervoso central; ou
    3. Ceftriaxona: 100 mg/Kg/dia em dose única diária.

    O tratamento pode ser continuado com amoxicilina e ácido clavulânico oral. A corticoterapia e a epinefrina não são eficazes; a primeira pode provocar complicações hemorrágicas gastrintestinais nestes casos.
    A data da extubação tem sido controversa porque o estado da epiglote não tem relação directa com a dificuldade respiratória, e a persistência da febre não constitui critério para se manter a entubação. Assim, em regra procede-se extubação ao fim de 48 horas do início da terapêutica.

2. Laringite espasmódica ou estridulosa

Etiologia

Os agentes etiológicos mais frequentes da laringite espasmódica ou estridulosa são vírus: rhinovirus e parainfluenza. No entanto, esta situação clínica pode fazer parte doutras afecções como gripe, papeira, varicela, sarampo, ou tosse convulsa. Independentemente do agente etiológico primário, poderá surgir sobreinfecção bacteriana por Streptococcus pneumoniae ou Haemophilusinfluenzae.

Manifestações clínicas

Pode verificar-se inicialmente mal estar geral, tosse iritativa, febrícula e pigarro, surgindo entre os 6 e 36 meses. O aparecimento de estridor agudo nocturno, rude, disfonia ou rouquidão e retracção torácica supraesternal permitem o diagnóstico. Se ao fim de dias ocorrer febre alta e expectoração purulenta, há que suspeitar de infecção bacteriana. Em geral a situação é mais benigna e de menor duração do que a descrita a seguir, na alínea 3.. Os pródromos pré-estridor são ligeiros ou inexistentes.

Tratamento

É sintomático com aerossolterapia com soro fisiologico, anti-inflamatórios e antipiréticos. Se se suspeitar de infecção bacteriana, deve utilizar-se amoxicilina com ácido clavulânico; como alternativa, cefalosporinas de primeira ou segunda geração, ou macrólidos.

3. Laringite subglótica e laringo-tráqueo-bronquite (falso croup)*

Etiologia

Trata-se duma situação de etiologia habitualmente vírica; os vírus mais frequentes são os parainfluenza virus tipos I e II. No entanto, podem também estar implicados os vírus respiratório sincicial e influenzae A e B. Ocorre sobretudo entre os 6 meses e os 3 anos, sendo raríssima antes dos 6 meses.

A designação “croup” deriva da língua inglesa (no tempo em que a situação era provocada na maioria das vezes pela difteria), significando no sentido estrito “garrotilho”. Hoje em Portugal fala-se vulgarmente em «falso croup» dado que em > 99% dos casos as crianças com tal sintomatologia estão imunizadas contra a difteria. Na literatura inglesa manteve-se a designação de croup significando laringotraqueobronquite de qualquer etiologia infecciosa glótica, supra ou subglótica e traqueal superior.

Manifestações clínicas

As duas situações são descritas em conjunto pela semelhança do quadro clínico, considerando-se fases diferentes do mesmo processo inflamatório, com tendência descendente.

A doença, frequente entre os 6 e 36 meses, inicia-se com uma infecção do tracto respiratório superior durante 1 a 3 dias com febrícula, mal estar geral e disfonia. A tosse aparece subitamente, conhecida como “tosse de cão” e a ocorrência do edema subglótico leva ao aparecimento da dispneia e do estridor bifásico rude (inspiratório e expiratório, de tonalidade grave) (laringite subglótica). Se a infecção atingir a árvore brônquica verifica-se aumento de secreções, respiração mais ruidosa e agravamento da obstrução respiratória (laringo-tráqueo-bronquite).

Diagnóstico

É feito essencialmente pela clínica. A radiografia ântero-posterior das partes moles cervicais mostra o fim proximal da traqueia em “bico de lápis” devido ao edema subglótico.

A entidade designada por traqueíte bacteriana não se distingue da laringotraqueobronquite. Surgindo em crianças mais velhas (4-5 anos) relativamente às situações anteriormente descritas, o estado geral é no entanto mais precário, apontando para etiologia bacteriana.

No diagnóstico diferencial do estridor há que atender à importância da anamnese, equacionando as possíveis causas: infecciosa (abordada antes), mecânica (aspiração de corpo estranho, laringomalácia, estenose congénita, compressão extrínseca por angioedema ou outras causas), metabólica (laringospasmo por hipocalcémia), neurológica (paralisia das cordas vocais), etc..

Tratamento

Para obter humidificação eficaz estão indicadas nebulizações com aparelhos ultrassónicos. Em regime hospitalar poderá proceder-se à inalação de adrenalina racémica (0,5 mL/kg – até máximo de 3 mL – de soluto a 1/1000) diluída em soro fisiológico até perfazer no máximo, 10 mL, quer através de nebulizador, quer através de ventilador de pressão positiva intermitente; o efeito pode verificar-se ao cabo de 20-30 minutos.

Os corticóides (hidrocortisona por via endovenosa: 100mg 6-6 h; ou prednisolona por via oral: 1-2 mg/Kg/dia) durante cerca de 3 dias estão também indicados pela acção anti-inflamatória, embora o seu efeito seja mais lento. Em função do estado clínico poderá haver necessidade de entubação traqueal.

Pode também utilizar-se budesonido nebulizado (dose de 2 mg) associado a O2 ou ar a um fluxo de 5 L/minuto, em geral com efeito rápido.

A mistura de hélio e O2 = Heliox (com 20% de O2) pelo método de inspiração por fluxo laminar diminui a resistência da via aérea e poderá evitar a entubação traqueal.

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OTOMASTOIDITE AGUDA

Definição

Otomastoidite aguda é definida como processo inflamatório agudo da mastóide, num doente sem história de otite média crónica purulenta simples ou colesteatomatosa.

Aspectos epidemiológicos

A referida situação é mais frequente em crianças com idade inferior a 8 anos podendo, contudo, ocorrer em qualquer idade. Um terço dos doentes com o diagnóstico de otomastoidite aguda apresenta história prévia de otite média aguda (OMA) de repetição.

A incidência de otomastoidite aguda diminuiu com a introdução da antibioticoterapia na terapêutica da OMA (de uma incidência de 0,4% dos episódios de OMA a desenvolverem otomastoidite na década de 60, para 0,004% na passada década de 90). Nos últimos anos, contudo, tem-se verificado um aumento do número de internamentos por otomastoidite aguda. A explicação para este facto parece ser, por um lado, o aumento de resistências aos antibióticos pelo abuso destes fármacos e, por outro lado, a redução do número de miringotomias durante os episódios de OMA.

Etiopatogénese

Todos os doentes com OMA apresentam inflamação da mucosa da mastóide, com ou sem derrame. Quando o processo inflamatório, a nível da mastóide, ultrapassa o mucoperiósteo e envolve o osso, verifica-se desmineralização e erosão dos septos das células mastoideias, com a formação de empiema intramastoideu. Esta fase é descrita como otomastoidite coalescente, com a mastóide a ser transformada numa grande cavidade abcedada, cerca de 2 semanas após OMA.

A dificuldade de drenagem do pus acumulado pode levar à exteriorização da infecção pela área cribiforme ou pela fissura timpanomastoideia, com sinais inflamatórios cutâneos da região mastoideia, apagamento do sulco retroauricular e empurramento para diante do pavilhão auricular, tradução semiológica de otomastoidite aguda. Se o processo se estender ao periósteo forma-se um abcesso do subperiósteo e periostite.

Nas últimas duas décadas foram realizados vários estudos para identificação dos agentes implicados nos casos de otomastoidite aguda. Ao contrário do que se poderia esperar os resultados não foram sobreponíveis aos dos estudos dos agentes implicados na OMA. Os microrganismos mais frequentemente isolados foram Streptococcus pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e Staphylococcus aureus coagulase negativo.

Estes resultados têm implicações práticas importantes: o antibiótico escolhido na terapêutica inicial da otomastoidite aguda, enquanto se aguarda o resultado dos exames culturais, deverá ter uma potente acção anti-estafilocócica, para além de dever incluir no seu espectro terapêutico os agentes mais frequentemente implicados na OMA (Haemophilus influenzae e M. catarrhalis).

Manifestações clínicas

O quadro clínico da otomastoidite aguda é caracterizado por sintomas otológicos sugestivos de OMA, seguidos pelo aparecimento de sinais inflamatórios sobre a mastóide (dor, eritema e edema retroauricular, apagamento do sulco retroauricular com deslocamento do pavilhão para a frente e para baixo, e abaulamento da parede póstero-superior do canal auditivo externo). Os sinais inflamatórios surgem habitualmente entre o 4º e o 10º dia após o início das queixas otológicas, podendo esse período variar de 1 a 60 dias. A febre faz geralmente parte do quadro clínico, apesar de a sua ausência não excluir o diagnóstico.

Para a confirmação diagnóstica e detecção precoce de complicações intracranianas, a maioria dos autores defende a utilização, por norma, de tomografia computadorizada (TC) do ouvido e crânio-encefálica. Para o diagnóstico radiológico de mastoidite coalescente não basta a presença de níveis hidro-aéreos ou espessamento da mucosa das células pneumatizadas da mastóide; é necessária a demonstração de erosão dos septos ósseos das células mastoideias ou do cortéx mastoideu.

Dado que, na maioria dos casos, a realização de TC em crianças exige sedação ou anestesia geral, deve, sob a mesma anestesia, proceder-se à colheita de material para estudo microbiológico.

QUADRO 1 – Complicações da otomastoidite aguda

*Tríade: OMA supurada, dor na órbita ipsilateral, paralisia do recto externo

Extracranianas – Propagação da infecção

• Região retroauricular (Abcesso retroauricular)

• Região pré-auricular (Abcesso zigomático)

• Região inferior (pescoço) (Abcesso de Bezold)

• Região retroauricular (Abcesso retroauricular)

• Ouvido interno (Labirintite)

• Apex petroso (Síndroma de Gradenigo)*

• Seio sigmoideu (Trombose do seio sigmoideu)

• Seio longitudinal (Hidrocefalia otítica)

Intracranianas

• Meningite

• Abcesso subdural

• Abcesso epidural

• Abcesso cerebral

• Abcesso cerebeloso

Tratamento

É consensual, entre os diferentes autores, que o tratamento dos casos de otomastoidite aguda não complicada, implica miringocentese, com ou sem colocação de tubo transtimpânico, associada a antibioticoterapia endovenosa, instituída precocemente (amoxicilina + ácido clavulânico: (80 mg/ kg/dia de amoxicilina) ou cefalosporina de 3ª geração (cefotaxima: 50-100 mg/kg/dia; ou ceftriaxona: 50-80 mg/kg/dia) em regime de internamento.

Se não houver melhoria em 24 a 48 horas, ou se se suspeitar de complicação, deve instituir-se medidas cirúrgicas adequadas, e ser alterada a antibioticoterapia, segundo os resultados do exame cultural.

A terapêutica deverá durar 3 semanas.

Complicações

Embora a incidência de otomastoidite aguda tenha diminuído significativamente com o aparecimento dos antibióticos, a prevalência de complicações graves continua elevada.

As complicações desta situação clínica dependem da zona para a qual o processo infeccioso se estende; podem ser classificadas em extracranianas e intracranianas. (Quadro 1)

Consideram-se grupos de risco para o desenvolvimento de complicações os doentes com perfuração espontânea da membrana timpânica e otorreia no momento do diagnóstico, e aqueles em que os agentes etiológicos são Streptococcus pyogenes ou Staphylococcus aureus.

Os doentes em que foi realizada miringocentese antes do diagnóstico clínico de otomastoidite aguda parecem ter menor risco de desenvolvimento de complicações graves.

Prognóstico

O prognóstico de otomastoidite aguda é habitualmente bom e tem melhorado graças a vários factores, nomeadamente, melhor compreensão da fisiopatologia da doença, antibioticoterapia específica, disponibilidade de exames complementares de diagnóstico e possibilidade de intervenção cirúrgica atempada. No entanto, quando o diagnóstico se acompanha de complicações intracranianas graves, pode ser reservado.

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OTITE SEROMUCOSA

Definição e importância do problema

A otite seromucosa (OSM) pode definir-se como uma inflamação subaguda ou crónica da mucosa do ouvido médio, com tímpano fechado, que cursa com derrame líquido não purulento, de duração superior a 8 semanas. Na actualidade é mais frequentemente designada por otite média com derrame (OMD) ou efusão.

O derrame pode ser seroso (fino, aquoso, dourado), mucoso/mucóide (espesso, viscoso, tipo cola) ou sero-mucoso. Se crónico, pode conter cristais de colesterina.

Trata-se de uma doença de elevada prevalência na idade pediátrica. A incidência máxima situa-se entre os 2 e 5 anos de idade. Em cerca de 80% dos casos é bilateral.

Etiopatogénese

A etiopatogénese é incerta. Aos agentes microbianos implicados sobrepõem-se aos da OMA. No entanto, é de salientar o isolamento de Helicobacter pylori em cerca de 15% dos derrames e de Alloiococcus otitidis em cerca de 48%, de acordo com diversos estudos.

Reportando-nos ao que é referido sobre classificação e terminologia no capítulo 75, pode concluir-se que existe estreita relação entre OMA e OSM no que respeita à história natural que, contudo, tem pontos controversos.

Tendo em consideração determinados estudos epidemiológicos, após um episódio de OMA tratado com antibióticos ocorre OSM/OMD em 70% dos casos (40% após 1 mês, 20% após 2 meses e 10% após 3 meses). Por outro lado, diversas metanálises concluiram que, embora haja tendência para resolução espontânea, a mesma poderá somente ter lugar 3-4 anos após início das manifestações tendo como critério o padrão timpanográfico avaliado de modo seriado (passando de tipo B para tipo não B.

Admite-se que o facto de terem sido detectadas bactérias intracelulares em 36% das biópsias da mucosa do ouvido médio em doentes com OSM poderá explicar a tendência para a cronicidade pela organização das bactérias em biofilmes (ver Glossário geral).

O processo começa muitas vezes por uma otite média aguda com derrame purulento que provoca alterações na mucosa do ouvido médio e da trompa; o derrameao ser esterilizado pela acção dos antibióticos, não é eliminado ou reabsorvido*. Noutros casos a disfunção resulta de alterações anatómicas ou funcionais. O mau funcionamento tubário compromete a ventilação e a drenagem do ouvido médio, dando origem a uma pressão negativa na caixa timpânica. Secreções infectadas existentes no cavum podem, assim, ser aspiradas para o ouvido médio e o processo reactivar-se.

*Abstraindo a designação de OSM/OMD, de facto, o derrame neste contexto pode ser seroso, mucóide, seropurulento ou mucopurulento.

A inflamação, a falta de arejamento, e a pressão negativa do ouvido médio devida à reabsorção do ar, levam a alterações estruturais da mucosa traduzidas por um infiltrado celular composto por macrófogos, fibroblastos e neutrófilos. Este complexo processo gera a formação de uma grande quantidade de glândulas produtoras de muco que segregam constantemente para o interior do ouvido médio. Com o tempo, por acção enzimática, a membrana timpânica sofre um processo de atrofia e de adelgaçamento. A mesma fica menos resistente às variações de pressão, pode deprimir-se e, inclusivamente, colar-se ao fundo da caixa.

Factores de risco

São considerados factores de risco de OSM os considerados para a OMA as infecções frequentes do tracto respiratório superior, a alergia, o barotraumatismo, a disfunção da trompa de Eustáquio, a idade do primeiro episódio de otite, a frequência de infantários superlotados, o fumo passivo, os estados de imunodeficiência e o baixo nível económico e social.

A OSM é frequente nas crianças com adenoidites de repetição, rinossinusites e otites recorrentes.

Também as anomalias crânio-faciais, a síndroma de Down e a fenda palatina (completa ou submucosa) constituem importantes factores de risco. Quase todas as crianças com fenda palatina têm OSM devido a disfunção da trompa de Eustáquio.

Manifestações clínicas

Ao contrário do que se passa com a otite média aguda, as crianças com OSM não apresentam sinais e sintomas de infecção aguda tais como otalgias intensas, febre ou mal-estar.

Pode ser assintomática ou revelar-se por perda de audição, perturbações do equilíbrio, alterações do comportamento, atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem e maus resultados escolares.

FIGURA 1. Otite seromucosa. Tímpano opaco, com uma coloração rósea-amarelada clara

Em certos casos não é possível identificar pela história clínica o momento do início da doença. A evolução pode ser tão insidiosa que os pais das crianças ficam surpreendidos quando é feito o diagnóstico de OSM. Noutras situações há um episódio agudo ou recorrente, otite ou rinite, que desencadeia os sintomas. A criança começa a ficar desatenta, apresenta alterações de comportamento, sobretudo irritabilidade, aumenta o volume do som da televisão, e pede para repetirem as palavras. Se a situação se prolongar sem que seja identificada, poderão surgir problemas de aprendizagem da fala e da linguagem e perturbações do rendimento escolar.

Diagnóstico

É raro as crianças pequenas queixarem-se de perda da audição, pelo que o diagnóstico precoce está muito relacionado com a atitude dos pais, dos professores e do exame periódico feito pelo pediatra ou médico de família. Se houver suspeitas de perda da audição, perturbação do equilíbrio ou otalgia recorrente, a criança deve ser avaliada por um especialista de oto-rino-laringologia.

A otoscopia pode ser difícil de interpretar. Por vezes, mesmo para um especialista bem treinado, não é fácil diferenciar entre otite seromucosa crónica agudizada e OMA. A ausência de sinais e sintomas de infecção aguda favorecem o diagnóstico de OSM.

O tímpano está geralmente deprimido, com o cabo do martelo horizontal, aspecto opaco, róseo-amarelado claro (Figura 1), e hiperémia difusa e radiária. Nalguns casos pode observar-se níveis hidro-aéreos ou bolhas de ar no ouvido médio através da transparência do tímpano. Os sinais são geralmente bilaterais.

O timpanograma é um exame essencial para confirmar a presença de líquido no ouvido médio. Na otite seromucosa arrastada o traçado é aplanado.

O audiograma revela sinais de surdez de transmissão de grau variável, em média de 25 a 30 dB, mas a perda pode ser muito maior.

A endoscopia nasal poderá evidenciar um desvio do septo nasal, edema alérgico dos cornetos, pus nos meatos médios ou hipertrofia das adenóides.

Tratamento

Têm sido tentadas várias modalidades de tratamento da OSM, em geral sem qualquer eficácia. Os casos agudos podem resolver-se pela acção de antibióticos, descongestionantes nasais ou anti-inflamatórios.

Nas situações crónicas o problema é mais complicado. De notar que cerca de 10% das otites agudas tratadas com antibiótico apresentam ainda um derrame intratimpânico, passados 3 meses. É preciso, por isso, vigiar e saber esperar. É possível identificar uma bactéria patogénica (sobretudo H. influenzae ou Moraxella) em cerca de 30% dos derrames. Poderá tentar-se tratamento com amoxicilina / clavulânico. A tentação de prosseguir com outros antibióticos com maior espectro de acção deve ser desencorajada, por ser ineficaz.

Os anti-inflamatórios, os mucolíticos e os corticosteróides têm um efeito diminuto na evolução da OSM crónica. Os anti-histamínicos só devem ser usados quando existem sinais de alergia comprovada.

Se a situação não se resolver, o tratamento recomendado consiste na aplicação de tubos de ventilação transtimpânica (timpanostomia) nos casos em que o derrame tem duração superior a 3/4 meses, a perda de audição é superior a 25/30 dB, ou existe já atrofia do tímpano, bolsas de retracção ou ameaça de colesteatoma.

Os tubos têm a finalidade de promover a ventilação e facilitar a drenagem do ouvido médio. São expulsos espontaneamente em geral ao cabo de 6 meses a um ano. As crianças devem evitar a entrada de água nos ouvidos durante o banho para se prevenir a infecção. Devem usar tampões auriculares e bandas de protecção. O mergulho (mar, piscinas) deve ser proibido. A adenoidectomia é feita muitas vezes no mesmo tempo operatório que a aplicação dos tubos.

Complicações e prognóstico

A otite seromucosa não tratada pode dar origem a complicações graves. A atrofia do tímpano e a pressão negativa no ouvido médio geram os mecanismos que conduzem à depressão timpânica, bolsas de retracção, erosão da cadeia ossicular, otite adesiva e colesteatoma. A audição pode ficar gravemente comprometida. Por outro lado, a membrana timpânica atrófica está em grave risco de perfurar se surgir otite aguda.

A aplicação dos tubos não resolve todos os problemas. De facto, ulteriormente poderão surgir infecções e perfuração do tímpano. Certos doentes terão que ser submetidos a mais do que uma timpanostomia.

Prevenção

A prevenção deve incidir sobre a atenuação ou eliminação dos factores de risco diagnosticados, o correcto tratamento das infeccções das vias aéreas superiores e a otoscopia de controlo.

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OTITE MÉDIA AGUDA

Definição e importância do problema

A otite média aguda (OMA) pode ser definida como uma infecção aguda da mucosa do ouvido médio (incluindo trompa de Eustáquio, cavidade do ouvido médio e mastóide), de instalação súbita e curta duração, até 3 semanas, acompanhando-se de sinais e sintomas tais como otalgia e febre.

É uma doença com elevada prevalência em idade pediátrica, sobretudo entre os 6 e os 11 meses de idade, decrescendo à medida que a idade avança. Por volta dos três anos de idade cerca de 45% das crianças terão tido já 3 ou mais episódios de otite.

Fala-se em otite recorrente quando ocorrem pelo menos 3 episódios de OMA em seis meses ou 4 ou mais num ano.

Trata-se da segunda doença infecciosa mais frequente na criança e a principal causa de perda auditiva e de prescrição de antibióticos no nosso meio. Daí o enorme impacte social e económico que comporta.

Etiopatogénese

As principais bactérias causadoras de OMA, evidenciadas por culturas obtidas por timpanocentese, são o S. pneumoniae (35 a 50%), que é o mais prevalente em todas as idades, o H. Influenzae (20 a 30%) e a Moraxella catarrhalis (10 a 20%). Outros agentes isolados incluem S. pyogenes, S. aureus, Mycoplasma pneumoniae e bactérias Gram-negativas como E. coli, P. aeruginosa, e Klebsiella. No recém-nascido têm sido isolados S. aureus, Streptococcus B e Enterobactérias Gram-negativas.

Em diversos estudos demonstrou-se que a infecção por vírus facilita a colonização bacteriana da nasofaringe e que, entre 10 e 60% das crianças com infecções víricas das vias respiratórias superiores têm OMA.

Os vírus podem ser isolados em cerca de 20-30% dos exsudados do ouvido médio, destacando-se como de maior prevalência rinovírus, vírus sincicial respiratório, influenzae e parainfluenzae, adenovírus e coronavírus . A otite média aguda predomina nos meses frios, quando as infecções por vírus das vias aéreas superiores são mais frequentes.

A disfunção da trompa de Eustáquio desempenha um papel central na eclosão da otite. Poderá resultar de uma agressão vírica que conduz a obstrução da trompa por congestão da mucosa ou por existirem factores anatómicos ou fisiológicos desfavoráveis. Como consequência surge um défice de ventilação do ouvido médio. A reabsorção do ar contido nesse espaço gera uma pressão negativa que contribui para a aspiração, através da trompa, dos germes patogénicos que colonizam o cavum faríngeo, com localização especial nas adenóides. O facto de a trompa de Eustáquio nas crianças ser mais curta, mais horizontal e flácida do que no adulto, favorece também o refluxo das secreções infectadas para o ouvido médio. Em certos casos a infecção pode fazer-se por via hematogénica ou através de perfuração do tímpano. Os vírus constituem um factor predisponente para a infecção bacteriana.*

*Classificação anátomo-clínica (Terminologia)

As várias modalidades de inflamação no ouvido externo, médio e interno originaram uma grande variedade de termos. Com efeito, frequentemente assistimos à utilização de mais de uma terminologia para a mesma situação. Ou seja, adoptando diferentes critérios surgem diversas terminologias.

Critério anatómico– Otite: inflamação em qualquer território do ouvido; Otite externa: inflamação no ouvido externo (problema dermatológico); Otite média: inflamação no ouvido médio (problema respiratório); Labirintite: inflamação no ouvido interno (problema otoneurológico).

Critério patológico– Otite média serosa- inflamação em que a caixa do tímpano contém líquido (derrame ou efusão) seroso de baixa tensão superficial; Otite média mucóide ou “mucosa”: inflamação em que a caixa do tímpano contém líquido de viscosidade variável, por vezes semelhante a cola; Otite média purulenta: inflamação em que a caixa do tímpano contém líquido purulento. Nestes casos o tímpano pode estar fechado ou aberto (perfurado). NB- Por vezes o líquido[derrame ou efusão] é seromucóide (ou seromucoso)

Critério temporal– A otite média pode ser, quanto à duração do quadro clínico: aguda (< 3 semanas); subaguda (3 a 8 semans); crónica (> 8 semanas).

Factores de risco

A idade constitui um factor de risco de OMA. Quanto mais precocemente em idade surgir a otite, maiores são as possibilidades de recorrência. Um primeiro episódio de otite antes dos seis meses constitui factor de mau prognóstico.

Outros factores de risco incluem alergia, défices imunitários, fenda palatina, anomalias crânio-faciais, factores genéticos e frequência de infantários, sobretudo os superlotados com dimensões exíguas e funcionando em condições precárias de higiene. Também o fumo passivo, ambientes poluídos, a climatização artificial alterando a temperatura e humidade dos espaços comuns, a não alimentação com leite materno, o baixo nível socioeconómico e uso de chupeta favorecem a infecção.

Manifestações clínicas

Os sintomas variam conforme a fase da doença e a idade do doente. O sintoma mais específico da OMA é a otalgia. Em geral há otalgia moderada, hipoacúsia e febre. Pode haver autofonia e acufenos. Como a otite coincide muitas vezes com infecções por vírus do tracto respiratório superior, tal como foi referido antes, poderá haver obstrução nasal, rinorreia anterior e posterior, e tosse.

FIGURA 1. Otite média aguda. Fase de hiperémia (Otoscopia)

Nos lactentes predomina a febre, a irritabilidade e os sintomas gastrintestinais. A dor expressa-se muitas vezes pelo choro ou pela recusa alimentar. Por vezes, a criança com fácies de sofrimento, adopta posição de pescoco em flexão lateral, elevação do ombro homolateral e palma da mão tapando o ouvido. Se a doença progredir, há aumento da pressão do pus no ouvido médio, o tímpano pode perfurar e iniciar-se um período de otorreia. Com a saída do pus a dor acalma e os sintomas gerais atenuam-se. A cura ocorre naturalmente, ou pela acção medicamentosa.

Diagnóstico

O diagnóstico de OMA baseia-se fundamentalmente em três critérios:1- início abrupto de sinais e sintomas de inflamação do ouvido médio; 2- presença de derrame/efusão no ouvido médio demonstrada por qualquer dos seguintes sinais: abaulamento, imobilidade ou hipomobilidade do tímpano, ou otorreia; 3- eritema/hiperémia do tímpano ou otalgia.

A otoscopia é, pois, essencial. Deve ser feita com a criança confortavelmente sentada ao colo da mãe, sobretudo se tiver menos de 3 anos, bem imobilizada e com otoscópio de luz de halogénio. O canal externo deve ser limpo de detritos e de cerúmen. O espéculo deve ter um diâmetro apropriado ao conduto e não deve ser introduzido profundamente para não lesar a fina pele do canal. Sobre o critério 3- podemos observar, de acordo com a evolução da doença, hiperémia difusa do tímpano e cabo do martelo (Figura 1), desaparecimento do reflexo luminoso, hiperémia radiária, edema e perda de caracteres, hiperémia e abaulamento da membrana, traduzindo exsudado sob pressão dentro da caixa, ou perfuração com saída de pus.

A valorização dos dados otoscópicos é difícil, sobretudo nos lactentes.**

**Por razões históricas, justifica-se mencionar dois sinais utilizados em décadas passadas, os quais são falíveis: –sinal de Vachez ou dor desencadeada por compressão do tragus; sinal de Savulesco ou dor despertada por ligeira compressão da ponta da mastóide. NB→A hiperémia isolada do tímpano na criança com febre não constitui critério diagnóstico fidedigno de OMA; poderá, sim, ter origem num processo inflamatório com origem na pele que forra o canal auditivo externo.

FIGURA 2.

    1. Timpanograma [tipo A]:Traçado triangular “em bico”, normal
    2. Timpanograma [tipo B]:Traçado com linha horizontal ligeiramente curva, “em cúpula baixa”, indicando derrame/efusão
    3. Timpanograma [tipo C]:Traçado triangular baixo, “em bico”, indicando rigidez do sistema tímpano-ossículos

Outros exames complementares, habitualmente do domínio do especialista de ORL, poderão ser utilizados: timpanometria/timpanograma (exame seguro no diagnóstico de derrame na caixa do tímpano) (Figura 2 evidenciando três dos padrões gráficos mais representativos, entre outros), reflectometria acústica, otoscopia pneumática, etc..

A otoscopia pneumática com espéculo de Siegle permite avaliar a mobilidade/distensibilidade da membrana do tímpano; menor distensibilidade ou mobilidade se o ouvido médio contiver líquido.

No RN é obrigatório proceder a exame microbiológico do esxsudado do ouvido médio, muitas vezes hemoculturas e, eventualmente, punção lombar para exame do LCR. Com efeito, nas crianças com < de 3 meses, os respectivos agentes causais muitas vezes são diferentes dos anteriormente descritos. Em tais circunstãncias poderá estar indicado o internamento da criança.

Tratamento

Como primeira linha de actuação, há a referir o analgésico (só paracetamol:15 mg/kg cada 6 horas; ou, nas crianças com > de 6 meses, só ibuprofeno: 5 mg/kg cada 8 horas) e a necessidade de manter a permeabilidade nasal (aspiração cuidadosa de secreções e instilação de soro fisiológico).

Em cerca de 70 a 80% dos casos de otite média aguda verifica-se a cura sem tratamento, ao fim de 3 a 4 dias.

Com base nesta evidência e no que respeita à antibioticoterapia é aconselhável seguir o esquema que a AAP sugere em função da idade e do diagnóstico, de certeza ou duvidoso: a) < 6 meses: antibioticoterapia mesmo na eventualidade de haver dúvidas quanto ao diagnóstico; b) 6-24 meses: antibioticoterapia a ponderar em função do estado clínico ou decisão de antibioticoterapia se diagnóstico de certeza; c) antibioticoterapia em caso de diagnóstico de certeza, se situação for considerada grave.

Considera-se situação não grave: temperatura rectal < 39,5ºC nas 24 horas anteriores e otalgia moderada. Pressupõe-se que, em caso de decisão de não antibioticoterapia há condições de vigilância do estado clínico e possibilidade de ulterior antibioticoterapia face à evolução deste.

A escolha empírica do antibiótico deve ter em conta a idade da criança, as resistências locais conhecidas, a existência de recorrências e eventuais alergias conhecidas aos fármacos.**

** Tendo em conta a incidência e a eliminação espontânea de diversos agentes causais, assim como as diferentes morbilidade e taxa de complicações possíveis, a antibioticoterapia , em princípio, deve ser dirigida contra S pneumoniae. Para as estirpes de S pneumoniae sensíveis à penicilina, qualquer dos beta-lactâmicos por via oral pode ser eficaz. Para as estirpes de sensibilidade intermédia, o beta-lactâmico oral para o qual a concentração inibitória mínima é sempre inferior ao pico de concentração sérica é a amoxicilina.

A amoxicilina (80-90 mg/ kg/dia de 12-12h) continua a ser o antibiótico preferido no tratamento do primeiro episódio de otite aguda ou na otite ocasional. A duração da antibioticoterapia, motivo de controvérsia, deve ser individualizada. Habitualmente 7-10 dias são considerados correctos e aconselháveis em crianças com < 2 anos, embora a literatura refira estudos comprovando eficácia aplicando o esquema de 5 dias.

No caso das crianças que frequentam infantários, com otites recorrentes ou outros factores de risco significativos, é preferível usar logo de início a associação amoxicilina /ácido clavulânico, na relação ponderal de 7/1 dada a existência, muito provável, de estirpes resistentes produtoras de beta- lactamases.

Na prática utiliza-se a dose de amoxicilina de 80 mg/kg/dia na suspensão oral (400 mg de amoxicilina/57 mg de ácido clavulânico em 5 ml). A reavaliação é feita às duas semanas e ao fim de um mês.

Outras alternativas terapêuticas em função de resultados de exames microbiológicos incluem a cefuroxima axetil (30-40mg/kg/dia em 2-3 tomas), o cefaclor (30-50mg /kg/dia em 2-3 tomas) e a cefixima (8-12mg/kg/dia em 1-2 tomas).

Nos casos de alergia à penicilina recorre-se aos macrólidos (eritromicina 50 mg /kg/dia em 7-10 dias nas crianças com menos de 6 meses; azitromicina 10 mg /kg/dia, dose diária durante 3 dias nas crianças com mais de 6 meses).

A ceftriaxona tem sido recomendada ultimamente por vários autores como tratamento das otites resistentes ou recorrentes, na dose de 50-80 mg/kg/dia, em injecção única intramuscular diária durante 3 a 5 dias seguidos. A droga alcança altas concentrações no ouvido médio sendo, assim, bastante eficaz.

Em certas situações o tratamento médico é insuficiente e há que recorrer a tratamento cirúrgico. A paracentese do tímpano (miringotomia) com aspiração do exsudado do ouvido médio está indicada nos casos de otalgia intensa com sinais muito marcados de infecção, otites de repetição resistentes à terapêutica médica, ou presença de complicações como a paralisia facial ou meningite.

Complicações e prognóstico

Na infecção aguda do ouvido médio podem ocorrer complicações locais tendo em conta as relações anatómicas de vizinhança com estruturas delicadas, ou complicações gerais tal como em qualquer outra infecção. Embora estas últimas sejam hoje raras, poderão desenvolver-se designadamente em situações de imunodeficiência, ou de agentes microbianos particularmente virulentos.

A complicação mais frequente é a perfuração timpânica persistente, com ou sem destruição de parte da cadeia dos ossículos; a consequência será surdez de tipo transmissão. Qualquer perfuração que não respeite os limites da membrana do tímpano na porçãp mais alta – membrana de Shrapnell – incorrerá no risco de epidermização invasiva do ouvido médio a partir do canal auditivo externo, o que comporta a probabilidade de ulterior processo crónico e aparecimento de colesteatoma.

A mastoidite é hoje uma complicação rara. Contudo cabe referir que a destruição dos tabiques ósseos e a colecção de pus transformam o osso numa cavidade cujas paredes estão em íntimo contacto com a meninge, o seio cavernoso sigmoideu (seio lateral), a terceira porção do nervo facial no seu trajecto intrapetroso, e o labirinto posterior. Por outro lado, poderá verificar-se exteriorização da infecção intra-óssea para o espaço subcutâneo com consequente abcesso subcutâneo. Tais eventos patológicos poderão originar diversos quadros clínicos: meningite, paralisia do nervo facial, abcesso, labirintite, etc..

Na era actual o prognóstico em geral é bom pressupondo diagnóstico e tratamento correctos e precoces.

Prevenção

É importante reduzir ao mínimo os factores de risco já referidos, assim como tratar e corrigir correctamente todas as situações agudas para se evitar as recorrências e as complicações.

A prevenção prolongada (6 meses) com antibióticos tem sido preconizada, sobretudo para a otite recorrente. Esta questão é polémica.

As vacinas contra S. pneumoniae têm-se revelado úteis para prevenir as infecções provocadas por essa bactéria contribuindo para diminuir a prevalência atrás referida, embora de modo não muito significativo (< 6-8%). De salientar que ainda não existem vacinas verdadeiramente eficazes contra a maioria dos agentes patogénicos que causam OMA.

Os tubos transtimpânicos (timpanostomia) e a adenoidectomia são recomendados para prevenir os casos graves de otites recorrentes.

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RINOSSINUSITE

Definição e importância do problema

Rinite (termo sinónimo de coriza) é definida como a inflamação aguda ou crónica das fossas nasais a qual origina como sinais predominantes rinorreia e obstrução nasal.

A rinossinusite é um processo de inflamação da mucosa naso-sinusal. Pode ser classificada de acordo com a sua evolução temporal e a intensidade dos sintomas, em aguda, subaguda, crónica ou recorrente.

A rinossinusite aguda caracteriza-se por sinais e sintomas de infecção aguda das vias respiratórias superiores, que duram mais do que 10 dias e menos do que três semanas. Na sinusite crónica os sintomas persistem por mais de três meses, enquanto na subaguda duram entre 3 semanas a três meses.

É importante referir, a propósito, que o nariz e os seios perinasais são revestidos por um epitélio ciliado pseudoestratificado. Tendo em conta que existe uma identidade anatómica e funcional entre a mucosa nasal e a sinusal e que ambas estão em continuidade, a inflamação sumultânea destas mucosas é muito frequente, razão pela qual é preferível a designação de rinossinusite. Portanto, relativamente ao termo sinusite há que ter presente este conceito.

Os agentes patogénicos infecciosos mais frequentemente associados a rinite são os rinovírus. Na sinusite predominam as bactérias.

Neste capítulo é abordada a sinusite de causa infecciosa bacteriana.

Etiopatogénese

Na situação sinusite aguda, as principais bactérias patogénicas que têm sido isoladas, quer por colheita do meato médio, que por punção sinusal são: S. pneumoniae, H. influenzae, Moraxella catarrhalis, S. aureus e Streptococcus pyogenes.

Na sinusite crónica, predominam Streptococcus aneróbios, Bacteróides sp e Fusobacterium sp.

A integridade da mucosa naso-sinusal, assim como o bom funcionamento dos mecanismos de transporte mucociliar, são essenciais para a manutenção de uma fisiologia normal. Todos os factores que alteram a composição da camada do muco ou o funcionamento dos cílios favorecem a infecção.

É importante também que a ventilação e a drenagem dos seios sejam adequadas e que os orifícios de drenagem estejam funcionantes.

A unidade ostiomeatal constitui a zona chave de toda a fisiologia dos seios: é o espaço para onde drenam os seios frontais, os seios etmoidais anteriores e os maxilares. Corresponde a uma zona complexa e bastante estreita nas crianças, que pode facilmente ser obstruída por edema inflamatório da mucosa, secreções espessas, pólipos, ou alterações anatómicas. A obstrução dos ostia produz dificuldades de ventilação e drenagem dos seios, retenção de secreções e pressão negativa intra-sinusal que facilita a aspiração de bactérias patogénicas para dentro dos seios com consequente infecção.

A sinusite aguda é muitas vezes precedida de uma infecção por vírus, que prepara o terreno para a infecção bacteriana. Na sinusite crónica ou na recorrente predominam os factores gerais ou as anomalias locais.

Os seios mais afectados são, por ordem decrescente, os maxilares, os etmoidais e os esfenoidais. Os seios frontais só são afectados a partir dos 7 anos. Muitas vezes há um processo de poli ou de pansinusite.

Factores de risco

Os factores de risco de sinusite são semelhantes aos factores de risco de otite. Deve referir-se que as infecções por vírus das vias aéreas superiores, tais como metapneumovírus, rinovírus, influenzae, parainfluenzae, sincicial respiratório e adenovírus, constituem importantes factores de risco, tanto de sinusite aguda como de crónica ou recorrente.

FIGURA 1. Radiografia do cavum de perfil revelando sinais de hipertrofia das adenóides

FIGURA 2. TAC dos seios perinasais, no plano coronal. Opacificação dos seios revelando um extenso processo de polissinusite

Também outras doenças sistémicas como a fibrose quística, a síndroma de cílio imóvel, a síndroma de Down e os estados de imunodeficiência constituem importantes factores de risco. A rinite alérgica, a asma e a sinusite estão intimamente associadas. A poluição, o fumo passivo, a exposição a lareiras e a inalação de irritantes contribuem também para a eclosão ou manutenção da sinusite.

Como factores locais são de salientar os pólipos nasais, os corpos estranhos, os desvios do septo nasal, as anomalias anatómicas do meato médio, os traumatismos, as infecções das amígdalas e das adenóides.

Salienta-se que cerca de 14% das crianças com sinusite crónica têm deficiência de IgA, de IgG ou subclasses, sindroma de cílio imóvel ou mucoviscidose. O refluxo gastresofágico está muitas vezes presente nas sinusites crónicas ou resistentes ao tratamento médico.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Na sinusite aguda os sintomas são idênticos aos de uma infecção aguda por vírus das vias aéreas superiores: obstrução nasal, rinorreia anterior e posterior, febre, mal estar de expressão facial, e tosse. Pode ser difícil o diagnóstico diferencial baseado na clínica, quer com a rinite por vírus, quer com a rinite alérgica. Se os sintomas forem mais marcados do que um simples resfriado (febre alta, edema periorbitário), durarem mais de 10 dias ou se se agravarem alguns dias após o início, é provável que o diagnóstico seja de rinossinusite aguda bacteriana.

Na sinusite crónica existe obstrução nasal, rinorreia purulenta anterior e posterior, tosse persistente, mau hálito e dor faríngea. Muitas vezes verifica-se otite sero-mucosa acompanhante. A dor de expressão facial franca é rara na criança. Os sintomas persistem por mais de 3 meses.

Exames complementares

A rinoscopia anterior é dificil de realizar nas crianças, dadas as reduzidas dimensões das fossas nasais e a resistência que oferece tal exame. Pode ser realizada com um otoscópio e espéculo auricular: permite verificar o estado da mucosa, a existência de secreções, corpos estranhos, pólipos, a permeabilidade nasal e alterações do septo e dos cornetos. A aplicação local de um vasoconstritor facilita o exame.

Maior valor tem a endoscopia nasal com o endoscópio de Hopkins ou fibroscópio que, feita por especialista treinado, permite observar toda a fossa nasal, o meato médio, determinar a origem da rinorreia purulenta, colher secreções para exame bacteriológico, tecidos ou células para exame histológico, e verificar a importância do volume das adenóides.

O estudo radiológico dos seios perinasais, nas posições de Waters, Hirtz e perfil deve ser valorizado de acordo com o contexto clínico, dado que existem muitos resultados falsos positivos. Podem encontrar-se níveis hidro-aéreos ou opacificação total dos seios. O edema da mucosa só tem significado se for superior a 4 mm. A radiografia do cavum (Figura 1) é útil para o estudo das adenóides e seio esfenoidal.

A tomografia computadorizada, sobretudo no plano coronal, é mais esclarecedora. Deve ser reservada para o estudo das complicações das sinusites, sinusites crónicas (Figura 2), tumores e para ajuda ao planeamento operatório. A ressonância magnética (RM) tem interesse no diagnóstico de certas sinusites fúngicas, nas complicações orbitárias e endocranianas, e na avaliação da extensão local dos tumores.

Tratamento

O tratamento médico tem por objectivo erradicar a infecção, restabelecer a permeabilidade ostial e o mecanismo de transporte mucociliar, por forma a promover boa ventilação e drenagem dos seios.

O tratamento com antibióticos é muitas vezes empírico. Deve ter em conta a prevalência bacteriana para a região e as resistências conhecidas. Devido ao uso e abuso da prescrição de antibióticos, quer a resistência do pneumococo à penicilina, quer a de Haemophilus (30%) e a de Moraxella (70%) aos beta-lactâmicos, têm vindo a aumentar de forma continuada.

Na sinusite aguda os antibióticos de eleição são: a amoxicilina/clavulanato utilizando a dose máxima de amoxicilina e a formulação de 7: 1; ou a cefuroxima. Como alternativas: azitromicina ou claritromicina.

O tratamento deve ter a duração de cerca de duas semanas; a azitromicina utiliza-se durante 5 dias. Não havendo melhoria clínica procede-se a colheita de pus para exame bacteriológico com TSA (teste de sensibilidade aos antibióticos), e a eventual mudança de antibiótico até conhecimento do resultado daquele.

Nas complicações das sinusites, quer orbitárias, quer intracranianas, devem usar-se antibióticos de largo espectro, em doses elevadas e por via endovenosa. A colheita do pus (no meato médio ou por punção sinusal) é fundamental na tentativa de isolamento da bactéria responsável e determinação da sua sensibilidade aos antibióticos.

Na sinusite crónica o tratamento é idêntico, mas deve ser prescrito para um período mínimo de 4 semanas. Os antibióticos de eleição são a amoxicilina/clavulanato ou a clindamicina; como alternativa, a penicilina (para a posologia consultar os capítulos anteriores).

Haverá igualmente que tratar eventuais alergias, deficiências imunológicas, mucoviscidose e o refluxo gastresofágico.

As lavagens nasais com soro e os corticosteróides tópicos têm um papel importante no tratamento da sinusite. Os antialérgicos só devem ser usados se se demonstrar alergia.

O tratamento cirúrgico deve ser encarado com grandes reservas. Está indicado nos casos graves, nalgumas complicações ou em situações de falência de tratamento médico, em crianças com mais de 12 anos. Consiste numa cirurgia endoscópica ou, microscópica funcional. As lesões a excisar são mínimas. O que importa é permeabilizar os orifícios e drenar os seios. Outras indicações são a imperfuração coanal, a polipose nasal ( mucoviscidose ) ou os mucocelos. A adenoidectomia pode ser ponderada face ao contexto clínico.

Prognóstico

A maior parte das sinusites agudas cura com tratamento médico. No entanto, alguns casos, agudos ou crónicos, podem originar complicações graves, quer sejam locais (como o mucocelo, o mucopiocelo ou a osteomielite), orbitárias (como a celulite periorbitária, a celulite orbitária, o abcesso orbitário) e a tromboflebite do seio cavernoso; ou endocranianas como a meningite, o abcesso epidural, o empiema subdural e o abcesso cerebral.

Muitas destas situações devem ser tratadas em meio hospitalar, com antibióticos adequados, por via endovenosa e em altas doses, com vigilância rigorosa e, eventualmente, com recurso à cirurgia.

Prevenção

Há que ter em atenção os factores de risco já referidos e tratar correctamente as situações agudas ou recorrentes para evitar complicações ou a cronicidade.

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ADENOIDITE

Definição e classificação

Adenoidite é o processo inflamatório localizado nas vegetações adenóides; classicamente são consideradas duas formas clínicas: adenoidite aguda e adenoidite crónica.

1. Adenoidite aguda

O quadro clínico de adenoidite aguda é sobreponível ao da rinofaringite. Ocorre predominantemente em crianças dos 6 meses aos 8 anos sendo causada em 15 a 70% dos casos por vírus (rino-, adeno-, mixo-, e enterovírus e, nas muito jovens, por vírus sincicial respiratório). Nas formas bacterianas, os agentes mais frequentes são Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e Moraxella catarrhalis.

As manifestações clínicas compreendem febre alta que, inicialmente, pode ser inexplicável até aparecer uma rinorreia posterior branca a esverdeada, obstrução nasal por hipertrofia adenoideia e rinorreia anterior. A infecção pode estender-se ao ouvido médio (dando origem a otite média aguda ou com derrame), à faringe e à árvore laringo-tráqueo-brônquica. O exame objectivo apenas detecta a presença da rinorreia anterior e posterior ou de otite, não sendo possível observar a nasofaringe em crianças senão com a endoscopia. A radiografia de perfil do cavum não proporciona qualquer informação válida nestes casos.

A antibioticoterapia de primeira escolha compreende amoxicilina/clavulanato ou macrólido azitromicina; como alternativa: cefalosporina de 2ª geração. A duração da terapêutica antibiótica é 10 dias (sendo de 5 dias para a azitromicina).

O tratamento sintomático consiste na aspiração de secreções, administração de analgésicos, antipiréticos e anti-histaminicos se houver confirmação de que a criança tem antecedentes de atopia.

A adenoidectomia é indicada nos casos recidivantes, nos que se acompanham de grande obstrução nasal, e nas formas complicadas: otite aguda de repetição, otite média com derrame persistente, ou associadas a complicações do tracto respiratório inferior.

2. Adenoidite crónica

Ocorre em crianças sujeitas a um regime de vida que as expõe a agressões ambientais e infecciosas (creches, infantários, exposição frequente a lareiras, pais que fumam em casa), com antecedentes de atopia, ou com hipertrofia adenoideia. Tais crianças têm uma rinorreia anterior e posterior persistente que vai da hidrorreia ao exsudado francamente purulento; são frequentes os episódios febris e a roncopatia.

O tratamento consiste no afastamento dos factores agressivos, limpeza nasal com soro fisiológico ou “água do mar” tratada e antialérgicos se indicado. A colheita do exsudado nasofaríngeo evitando a contaminação cutânea à passagem do estilete é útil, demonstrando, muitas vezes, a presença de mais de uma bactéria patogénica. A adenoidectomia tem indicação na presença de complicações nos órgãos vizinhos (otites, sinusites persistentes ou laringo-tráqueo-bronquites), ou de obstrução nasal persistente.

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AMIGDALITE

Definição e classificação

Este termo refere-se vulgarmente à infecção das amígdalas palatinas, apesar de o mesmo processo poder ocorrer nas amígdalas linguais e adenóides (adenoidites) ou nos cordões linfóides da faringe. A amigdalite pode dividir-se em aguda, recidivante e crónica.

1. Amigdalite aguda

Etiologia

A amigdalite é provocada pelos mesmos germes descritos na faringite aguda. A amigdalite, no entanto, tem habitualmente uma etiologia vírica até aos 3 anos de idade e uma predominância bacteriana dos 5 aos 15 anos. O Streptococcus beta-hemolítico do grupo A está presente em cerca de 5% dos casos em crianças mais pequenas, verificando-se as maiores incidências entre os 5-8 anos e entre os 12-14 anos.

Sistematizando, as amigdalites agudas podem ser divididas duma forma empírica em:

1) Não específicas, que constituem a maioria dos casos e são provocadas por bactérias e vírus comuns; e

2) Específicas as quais incluem essencialmente a angina de Vincent, a diftérica, do sarampo, escarlatina, difteria, herpética, herpangina e da mononucleose (vírus de Epstein-Barr/ VEB).

Manifestações clínicas

A maioria das amigdalites víricas origina sintomas ligeiros de odinofagia e febrícula que desaparecem ao fim de alguns dias. A favor duma etiologia vírica são a existência de rinofaringite associada, de envolvimento da árvore laringo-tráqueo-brônquica, de adenomegálias cervicais difusas e pouco exuberantes, de sinais gerais menos intensos e de fórmula leucocitária normal ou evidenciando ligeira leucocitose com linfocitose.

Destas, salientam-se:
a) Herpangina (coxsackievirus A) em que aparecem pequenas vesículas nos pilares amigdalinos e palato mole; rebentando, dão origem a ulcerações redondas de fundo cinzento. Acompanham-se de, intensa odinofagia, febre alta e não de adenomegálias.
b) Mononucleose infecciosa (vírus de Epstein-Barr); trata-se de uma doença sistémica que origina amigdalite pseudomembranosa ou ulcero-necrótica com grande astenia, febre alta, múltiplas adenopatias e hepatoesplenomegália. O leucograma mostra linfocitose, linfócitos atípicos e monocitose. O diagnóstico é confirmado por provas serológicas, salientando-se: detecção qualitativa de anticorpos heterófilos (Paul Bunnell); detecção de anticorpos específicos VEB IgG-VCA e IgM-VCA (Viral Capsid Antigen).

Nas amigdalites bacterianas as adenopatias são mais confinadas às regiões jugulo-digástricas, os sinais gerais mais exuberantes e a fórmula leucocitária apresenta leucocitose com neutrofilia.

Destas destacam-se:

  1. Angina de Vincent. Habitualmente unilateral, ocorre em crianças com má nutrição e má higiene oral, sendo causada por uma associação fuso-espiralar e anaérobia.
  2. Escarlatina. Causada por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A, tem um início abrupto, com febre alta, taquicárdia desproporcionada à febre, vómitos e uma amigdalite eritematosa. A erupção eritemato-papular aparece 24 horas depois nos ombros e tórax e estende-se a todo o corpo acentuando-se nas pregas de pele, poupando a planta dos pés, a palma das mãos e face. Ao 6º dia a erupção melhora e dá lugar a uma descamação cutânea que pode durar até 6 semanas. O exantema relaciona-se com a produção duma toxina eritrogénica cuja reacção à injecção intradérmica diluída (teste de Dick) confirma o diagnóstico.

A observação permite distinguir 4 tipos de amigdalites:

  1. Eritemato-pultáceas em que as amígdalas se apresentam vermelhas com ou sem exsudado esbranquiçado. Podem ser causadas por bactérias ou vírus, sendo impossível distinguir a sua etiologia, somente pelo aspecto das amígdalas (Figura 1).
  2. Úlcero-necróticas em que a amígdala se apresenta com úlceras de fundo sujo e exsudado purulento. Se unilateral, há que admitir angina de Vincent (associação fuso-espiralar). Se bilateral, há que admitir mononucleose (vírus de Epstein-Barr) ou hemopatias como a agranulocitose e a leucemia.
  3. Vesiculosas como acontece na herpangina.
  4. Pseudomembranosas, caracterizadas pelo aparecimento de pseudomembranas de fibrina sobre as amígdalas; podem ser causadas por agentes etiológicos bacterianos comuns e pelo vírus de Epstein-Barr (Figura 2).

FIGURA 1. Amigdalite eritemato – pultácea (isolamento de Streptococcus A (NIHDE)

FIGURA 2. Amigdalite pseudomembranosa (mononucleose infecciosa) (NIHDE)

Diagnóstico

É realizado através da anamnese e observação do doente. Os exames complementares servem para o diagnóstico etiológico e incluem: a colheita de exsudado faríngeo e amigdalino para exame cultural, a fórmula leucocitária; as transaminases (na hipótese de mononucleose); e exames que permitem o diagnóstico rápido do Streptococcus beta hemolítico com a detecção do poliósido C da superfície da bactéria (antigénio).

Uma vez que número significativo de bactérias se localizada nas criptas amigdalinas, um exsudado com resultado negativo não exclui a presença duma bactéria patogénica localizada na superfície da amígdala.

A medição do título de anti-estreptolisinas O (TASO) é útil apenas quando combinada com a colheita do exsudado faringo-amigdalino. Se o TASO está elevado e a colheita é positiva, está-se na presença da doença. Se o TASO é normal e a colheita é positiva pode tratar-se dum portador são ou de status pós-infecção*.

Notas importantes: a) O valor do TASO não deve constituir, só por si, critério para tratamento antimicrobiano e não constitui rotina a sua determinação; b) Os exames bacteriológicos ou detecção de antigénios apenas estão indicados em situações em que: o exsudado possa levantar dúvidas quanto à etiologia estreptocócica; haja antecedentes de amigdalites de repetição de febre reumática, glomérulo – nefrite aguda ou síndroma de choque tóxico por Streptococcus; e eventualmente nos contactos em função de contextos epidemiológicos específicos.

Tratamento

  1. Amigdalites víricas. São tratadas sintomaticamente com análgésicos, antipiréticos e regime alimentar adaptado à odinofagia.
  2. Amigdalites bacterianas. A penicilina continua a ser o tratamento de escolha uma vez que o Streptococcus beta-hemolítico do grupo A é sensível a este antibiótico. Em regra usa-se a penicilina G benzatínica por via intramuscular em dose única (600.000 U se menos de 25 kg, e 1.200.000 U se 25 kg ou mais). Como alternativa podem utilizar-se formulações do mercado na proporção de 6/3/3, respectivamente para penicilina G benzatínica, penicilina G procaínica e penicilina G aquosa. A falência do tratamento com a penicilina pode indicar a comparticipação duma bactéria produtora de beta-lactamase ou de flora mista predominantemente anaeróbia. Segundo a Academia Americana de ORL, o tratamento com um antibiótico resistente à beta-lactamase é preferível à penicilina.
    Dum modo geral poderão ser aplicados os princípios de antibioticoterapia descritos a propósito da faringite bacteriana. De referir que o período de contagiosidade cessa após 24 horas do início do tratamento antimicrobiano.
  3. Angina de Vincent. O tratamento consiste em lavar a boca com uma solução de água oxigenada e soro fisiológio para além da administração de penicilina G e metronidazol; como alternativa poderão ser utilizados, amoxicilina / clavulanato, macrólido ou doxiciclina.
  4. Escarlatina. Especificamente, no que respeita à amigdalite no contexto de escarlatina, aplicam-se os princípios já enunciados a propósito da faringite aguda bacteriana.

Complicações

Poderão surgir as seguintes complicações:

  1. Celulite e abcesso periamigdalino: verifica-se na extensão progressiva da infecção da amígdala para os tecidos moles periamigdalinos (celulite) a partir do polo superior da amígdala ou para o espaço periamigdalino com acumulação localizada de pus (abcesso). Em ambos os casos o tratamento deve ser parentérico, aplicando-se os princípios clássicos para o tratamento da celulite da face. Estando em causa Haemophilus influenzae do tipo B, S. aureus ou S. pyogenes (grupo A), os antibióticos de escolha são a cefuroxima, ou a amoxicilina/clavulanato; como alternativa, cefalosporina de terceira geração. No caso do abcesso está indicada a drenagem.
  2. Abcessos parafaríngeos e retrofaríngeos: ocorrem pela extensão da infecção através do músculo constritor superior da farínge. O tratamento é semelhante ao anterior
  3. Adenite cervical supurada: consiste na persistência dum gânglio cervical aumentado e abcedado, podendo ter como agentes etiológicos Staphylococcus aureus ou Streptococcus beta-hemolítico. O tratamento consiste em antibioticoterapia parentérica contra estes dois agentes e a drenagem do abcesso se necessário. Tratando-se de S aureus: flucloxacilina; se Streptococcus: penicilina. Como alternativas: cefalosporina de 1ª geração ou clindamicina.
  4. Glomerulonefrite e febre reumática: podem ocorrer 1 a 3 semanas após a amigdalite por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A.
  5. Estão descritos casos duma doença neuropsiquiátrica autoimune em crianças, após infecção por Streptococcus beta-hemolítico. A patogénese parece ser semelhante à da coreia de Sydenham sendo aquela designada pela sigla PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal Infections).
  6. Síndroma de Lemierre: consiste na associação de amigdalite, tromboflebite da veia jugular interna, múltiplos abcessos metastáticos sobretudo no pulmão, articulações e ossos, septicémia por Fusobacterium necrophorum (gram-negativo, anaeróbio, habitualmente saprófita da faringe). O tratamento consiste no internamento e na administração de antibiótico resistente às beta-lactamases e metronidazol durante 6 semanas.
  7. Fascite necrosante: pode ocorrer em relação, quer com Streptococcus beta hemolítico, quer com Staphylococcus aureus, a partir duma amigdalite.

2. Amigdalite recidivante

A definição de amigdalite recidivante varia com os autores. Dum modo geral define-se com base na verificação de 3 episódios por ano em 3 anos consecutivos, 5 episódios por ano em 2 anos consecutivos, ou mais de 6 episódios num ano. As causas das recidivas incluem a modificação do equilíbrio ecológico entre as bactérias saprófitas e as patogénicas, a fibrose progressiva da amígdala que dificulta a penetração antibiótica, aparecimento de estirpes produtoras de beta-lactamases, o não cumprimento correcto da terapêutica, e a constante reinfecção por indivíduos próximos que são portadores sãos.

O tratamento consiste na utilização de antibióticos que atinjam as estruturas mais profundas das amígdalas fibrosadas (clindamicina ou cefalosporinas), na detecção e tratamento dos portadores sãos próximos do doente, na imuno-estimulação e na amigdalectomia.

3. Amigdalite crónica

Ocorre sobretudo em crianças mais velhas e adultos. Existe odinofagia, habitualmente sem febre, com ou sem rubor das amígdalas e pilares. As amígdalas são habitualmente mais duras à palpação e a sua expressão liberta caseum amigdalino, uma mistura de alimentos retidos e pus, que dá mau hálito. Habitualmente não existem adenopatias. As colheitas de exsudado amigdalino permitem habitualmente o isolamento de flora mista aeróbia-anaeróbia. O tratamento consiste na amigdalectomia.

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FARINGITE

Definição e importância do problema

Faringite é um termo geral usado para descrever a inflamação ou infecção da faringe, incluindo o anel de Waldeyer. Nas crianças o termo rinofaringite pode sobrepor-se a adenoidite. Em relação à orofaringe, há autores que falam em faringo-amigdalite em vez de faringite. Assim, subentende-se que faringite é uma infecção da orofaringe com ou sem componente inflamatório das amígdalas palatinas. Se este componente é predominante e domina o quadro clínico, fala-se em amigdalite. As faringites podem ser divididas em agudas e crónicas.

O estabelecimento da flora normal da faringe inicia-se logo após o nascimento, sendo a mesma colonizada por lactobacilos e estreptococos anaeróbios. Aos 6 meses de idade já se encontram actinomicetas, fusobactérias e bacteróides. As fusobactérias atingem o auge com a dentição e, ao ano de idade, com uma relação da flora saprófita aeróbia e anaeróbia de 1/10. Streptococcus do grupo A é um habitante normal da nasofaringe em 15-20% das crianças. Colheitas feitas em crianças assintomáticas demonstraram que, para além da flora saprófita, podem existir Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus beta-hemolítico do grupo A, Fusobacterium necrophorum, Arcanobacterium haemolyticum, Moraxella catarrhalis Legionella pneumophila e Staphylococcus aureus.

1. Faringite aguda

Etiopatogénese

As formas agudas ocorrem sobretudo na época invernal e são frequentemente víricas, incluindo adenovírus, rinovírus, influenza, parainfluenza, vírus sincicial respiratório e VEB. As formas bacterianas instalam-se sobre as víricas ou ocorrem primariamente, sendo habitualmente causadas por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e Moraxella catarrhalis.

De todas as bactérias a mais frequente é o Streptococcus beta-hemolítico do grupo A, pelo que convém relembrar algumas noções básicas sobre Streptococcus: 1) É uma bactéria gram positiva, classificada em 18 grupos (de Lancefield) designados por uma letra maiúscula, consoante o componente de hidrato de carbono antigénico da sua parede celular; 2) Ainda são classificados consoante a capacidade de hemolisar eritrócitos de carneiro: o beta-hemolítico causa hemólise, o alfa-hemolítico causa hemólise parcial e o gama-hemolítico não causa hemólise; 3) A patogenicidade da bactéria é dada pela proteína M com 80 serótipos; a mesma é responsável pela resistência bacteriana à fagocitose; 4) A existência no hospedeiro, de uma IgG anti-proteína M específica a um dos serótipos, confere imunidade contra esse estreptococo; 5) Produz cerca de 20 exotoxinas das quais 2 são importantes: a estreptolisina 0, antigénica, e a estreptolisina S que não é antigénica; 6) Ainda produz 3 endotoxinas eritrogénicas. 7) Não se isolaram até hoje estreptococos resistentes à penicilina; no entanto já foram obtidos em laboratório, verificando-se que todos eles têm ausência de proteína M (portanto, fagocitáveis).

A faringite também pode ser provocada por fungos, sobretudo Candida, em crianças submetidas a tratamento frequente com antibióticos ou imunocomprometidas.

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

As infecções víricas produzem odinofagia com febrícula, sensação de secura, irritação faríngea com pigarro que se pode estender à árvore laringo-tráqueo-brônquica com tosse, inicialmente seca, e depois com expectoração. A faringe apresenta-se ligeiramente vermelha: habitualmente tais infecções não se acompanham de adenopatias.

As infecções bacterianas produzem habitualmente dor mais intensa, febre alta, odinofagia intensa, mal estar geral e, por vezes, dor abdominal. A faringe apresenta-se mais vermelha, por vezes com exsudado que pode fluir da nasofaringe; nestas situações as adenopatias cervicais são frequentes. Frequentemente a sintomatologia é sobreponível à das infecções víricas.

Na perspectiva do diagnóstico etiológico através de exames complementares sugere-se a consulta do capítulo seguinte.

Tratamento

As formas víricas tratam-se com repouso, hidratação, analgésicos, antipiréticos e dieta adequada à odinofagia.

As formas bacterianas obrigam a antibioticoterapia com as seguintes opções : 1) amoxicilina na dose de 50 mg/kg/dia dividida em 2-3 doses, durante 10 dias (eventualmente em dose única diária); ou 2) penicilina G benzatínica na dose de 50.000 unidades/kg via intramuscular (máxima dose: 1.200.000 U); em regra 600.000 U se a criança tiver menos de 25 kg, e 1.200.000 U se 25 kg ou mais ; ou 3), como alternativa se houver alergia à penicilina: cefalosporinas de primeira geração como cefradina (50 mg/kg/dia em 3 tomas), ou cefadroxil (30 mg/kg/dia em 2 tomas), durante 10 dias, ou ainda, clindamicina (20 mg/kg/dia em 3 tomas até máximo de 1,8 g/dia), também durante 10 dias.

No caso de alergia à penicilina ou cefalosporinas devem utilizar-se macrólidos (por ex. eritromicina, 40-50 mg/kg/dia em 3 tomas e 10 dias ou claritromicina, 15 mg/kg/dia em 2 tomas e 10 dias, ou azitromicina, 12 mg/kg/dia em 1 toma em 5 dias até máximo de 500 mg/dia).

2. Faringite crónica

Enquanto a faringite aguda é mais frequente nas crianças, a crónica é rara devido à ausência de factores de cronicidade mais frequentes no adolescente e adulto, tais como, álcool, tabaco e roncopatia, com consequente secura faríngea.

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INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA (VIH) E SÍNDROMA DE IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA​

Definição e importância do problema

A síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA) – descrita neste capítulo como exemplo de imunodeficiência secundária – é uma doença provocada por um vírus que destrói os mecanismos de defesa imunitária do organismo (os linfócitos T) expondo-o a diversas infecções oportunistas graves (candidíase esofágica e broncopulmonar, criptococose disseminada do sistema nervoso central, pneumonia intersticial por Pneumocystis jiroveci ou por micobactérias atípicas, etc.). A estas acrescentam-se ainda, em todos os estádios de doença, certas neoplasias como sarcoma de Kaposi e linfomas, raros em idade pediátrica. Trata-se, pois, dum problema grave de saúde pública que comporta elevadas taxas de morbilidade e de mortalidade.

Pouco tempo depois de descritos os primeiros casos em 1981, e do primeiro caso pediátrico em 1982, foram identificados os agentes responsáveis por esta entidade clínica: primeiramente, o vírus da imunodeficiência humana do tipo 1 (VIH1), hoje disseminado em todas as regiões do Mundo; e, mais tarde, o vírus da imunodeficiência humana tipo 2 (VIH2), mais comum em determinadas regiões da África Ocidental, designadamente Guiné.

Os agentes microbianos em causa são retrovírus humanos ARN que se integram no genoma das células-alvo como um pró-vírus, sendo que o genoma vírico é copiado durante a replicação celular, persistindo na pessoa infectada durante toda a vida.

Aspectos epidemiológicos

Apesar de demonstrada a presença do VIH em estado latente em várias células e fluidos corporais, só o sangue, sémen, secreções cervicais uterinas e leite humano estão implicados na transmissão da infecção. São, pois, três as vias de transmissão do VIH: contacto sexual; via percutânea (agulhas e instrumentos cortantes) ou exposição das mucosas a sangue ou outros fluidos corporais com altos títulos de VIH; transmissão vertical mãe-filho, na gravidez, durante o trabalho de parto e pelo aleitamento materno.

Devido a medidas de exclusão de dadores de sangue potencialmente infectados, tratamentos de inactivação vírica de derivados do sangue e utilização desde há alguns anos de factores da coagulação recombinantes, a transfusão de sangue ou produtos derivados tornou-se uma via raríssima de transmissão VIH nos países desenvolvidos.

De acordo com dados da OMS, no final de 2013 havia em todo o mundo cerca de 3,2 milhões de indivíduos com menos de 15 anos infectados com VIH. Estima-se que nesse ano tenha morrido mais de meio milhão de crianças e jovens com tal problema.

Dados disponíveis do Departamento de Doenças Infecciosas /Unidade de Referência e Vigilância Epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) desde 1983 indicam até Dezembro de 2014 um total de 53.072 casos de infecção por VIH, sendo que o total acumulado em indivíduos menores de 15 anos é de 526 casos de infecção. Cerca de 15.334 correspondem a SIDA (0,8 % em crianças e 17,5% em mulheres, 3/4 das quais em idade reprodutiva).

Portugal tem uma das mais elevadas taxas da UE, com 920 novos casos em 2014. A via sexual foi o modo mais frequente de transmissão nos novos casos, com um decréscimo de casos de infecção associados a consumo de drogas. Nos países industrializados, incluindo Portugal, quase todas as novas infecções das crianças e jovens menores de 15 anos foram adquiridas por via vertical (cerca de 25-40% no decurso da gravidez e, entre 60-75%, durante o parto), sendo poucos os casos de infecção por via sexual. Em 2014 registaram-se 4 novos casos de infecção de transmissão vertical em indivíduos com menos de 15 anos, 2 filhos de mães portuguesas e 2 filhos de mães estrangeiras. A infecção adquirida através de sangue pode acontecer em crianças vindas dos PALOP. Na adolescência surgem os casos de infecção por via sexual, que podem ser diagnosticados só na idade adulta.

Ao aleitamento materno também é atribuído papel de transmissão, que é cerca de 16%, salientando-se que os maiores índices se verificam durante a infecção aguda da mulher lactante, em relação directa com a duração da amamentação, e com a evidência de patologia mamária acompanhada de eliminação de sangue pelo mamilo (fissuras).

Antes do advento da profilaxia ou tratamento com fármacos antirretrovíricos a taxa de transmissão perinatal (vertical ou mãe-filho) do VIH1 era estimada entre 13% e 39%. Com a generalização das estratégias de profilaxia ao longo do tempo têm-se verificado progressos assinaláveis, sobretudo nos países mais desenvolvidos. Em Portugal também se verificou esta tendência, assinalando-se uma redução significativa da transmissão perinatal de VIH1 de 25% (em 1994) para 1,7% (em 2014).

Em relação a VIH2 a taxa de transmissão vertical é pouco provável, estimada em menos de 2%.

A determinante materna de maior risco de transmissão do VIH à criança é uma maior carga vírica (infecção recente). Outros factores associados com um risco aumentado de transmissão incluem: doença materna avançada com imunodeficiência severa, condições intraparto com aumento da exposição do feto ao sangue materno, inflamação da membrana placentária, parto prematuro, parto prolongado, ruptura prolongada de membranas e co-infecção com vírus da hepatite C e outras doenças sexualmente transmissíveis. O aleitamento materno em países onde não é possível a sua evicção constitui também um risco adicional importante.

É possível hoje, tendo em conta os factores de risco mencionadas, diminuir a transmissão vertical de VIH para menos de 2% com estratégias que incluem:

  • uma terapêutica antirretrovírica adequada à mãe de modo a manter cargas víricas indetectáveis na gravidez;
  • cesariana electiva e profilaxia antirretrovírica na gravidez, no parto e ao RN, dependendo do risco em causa; e,
  • evicção do aleitamento materno.

Manifestações clínicas

A infecção por VIH na criança e no adolescente origina um largo espectro de manifestações clínicas e uma evolução variada, representando a SIDA o espectro clínico terminal mais grave.

A história natural da infecção pelo VIH caracteriza-se por um período assintomático muito variável. A progressão da doença depende de factores como: as características do vírus, carga vírica, grau de imunossupressão, precocidade da terapêutica e da adesão à mesma.

A apresentação clínica varia com o grau de imunossupressão. Entre outros sinais e sintomas, crianças com imunodeficiência ligeira podem apresentar linfadenopatia, hepatomegália, esplenomegália, parotidite; com imunodeficiência moderada pode haver infecções bacterianas recorrentes, candidíase arrastada, diarreia crónica, pneumonia intersticial linfóide (LIP), anemia, neutropénia e trombocitopénia; manifestações de imunodeficiência grave a muito grave incluem infecções oportunistas (pneumonia por Pneumocystis jiroveci, infecções invasivas por Candida, infecção disseminada por Citomegalovírus, infecções crónicas ou disseminadas por Herpes simplex ou Varicela zoster, infecção por Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium avium complex disseminada, enterites crónicas por Cryptosporidium ou Isospora), atraso acentuado do desenvolvimento (wasting syndrome), encefalopatia, e tumores malignos (raros na criança).

De acordo com critérios propostos pelos CDC e AAP para idades <13 anos, são consideradas quatro formas clínicas agrupando um conjunto de determinados sinais, sintomas e de resultados de exames complementares, a saber:

Forma assintomática ou N

Nesta forma clínica verifica-se ausência de sintomatologia ou apenas um dos parâmetros da forma clínica seguinte-A.

Forma ligeira ou A

Esta forma caracteriza-se pela verificação de dois ou mais dos parâmetros seguintes desde que não se verifique qualquer dos que fazem parte das formas B ou C.

Os parâmetros que definem a forma A são: hepatomegália, esplenomegália, parotidite, linfadenopatia (de dimensões superiores a 0,5 cm em duas cadeias ganglionares diferentes).

Forma moderada ou B

Esta forma integra os seguintes parâmetros: Hb < 8g/dL, neutrófilos < 1.000/mm3, meningite bacteriana, sépsis ou pneumonia, candidíase oral durando > 2 meses, miocardiopatia, febre > 1 mês, varicela disseminada ou complicada, toxoplasmose no RN, nefropatia, nocardiose, pneumonia intersticial linfocitária-PIL ou LIP, herpes zoster com 2 episódios em mais de um dermátomo, > 2 episódios anuais de estomatite por vírus Herpes simplex (HSV), pneumonite ou esofagite por HSV no RN, hepatite, diarreia recorrente ou crónica, infecção por CMV no RN.

Forma grave ou C

Para se incluir o caso nesta forma é condição necessária a verificação de qualquer dos parâmetros a seguir mencionados, exceptuando a LIP: infecções bacterianas graves e recorrentes, sistémicas ou localizadas, confirmadas por exame cultural com a frequência de, pelo menos, 2 episódios por ano; encefalopatia persistindo mais de 2 meses, comprovada por exames imagiológicos-TAC, RM; linfoma; sarcoma de Kaposi; desnutrição grave acompanhada de diarreia crónica, febre de duração superior a 30 dias; toxoplasmose cerebral iniciada após o período neonatal, histoplasmose disseminada, estomatite/esofagite/ pneumonite por HSV em crianças de idade superior a 1 mês e de duração superior a 1 mês; pneumonia por Pneumocystis; infecções disseminadas por micobactérias de diversas espécies; infecções por CMV após o período neonatal; candidíase esofágica ou pulmonar; coccidioidomicose disseminada; criptococose; diarreia crónica por criptosporidíase ou isosporíase.

Exames complementares

A suspeita de infecção é levantada pelo conhecimento de dados epidemiológicos indicadores de exposição provável ao vírus, ou pela existência de sinais e sintomas sugestivos de infecção. A precocidade do diagnóstico possibilita a adopção de medidas de profilaxia e terapêutica numa fase ainda com a imunidade preservada e, deste modo, o prolongamento do período assintomático e a consequente melhoria da qualidade de vida da criança e da família.

Como se disse, a infecção por VIH na criança nos países desenvolvidos incluindo é quase exclusivamente adquirida por via vertical. O primeiro passo é, pois, a identificação da infecção na mãe, pelo que se recomenda a realização de estudo serológico para VIH em todas as grávidas, sendo que a primeira avaliação deveria ser mesmo pré-concepcional.

O conhecimento da infecção em tempo útil na mãe tem múltiplas vantagens permitindo:

  • na mulher infectada:
    • receber terapêutica antirretrovírica apropriada e profilaxia contra infecções oportunistas;
    • efectuar quimioprofilaxia com antirretrovíricos; e
    • programar cesariana electiva para prevenção da transmissão à criança e impedir o aleitamento materno, dependendo da situação; e,
  • no recém-nascido:
    • iniciar quimioprofilaxia antirretrovírica e profilaxia para o Pneumocystis jiroveci nos casos de exposição até se saber se existe ou não infecção; e
    • facilitar o diagnóstico e terapêutica precoces da infecção.

O diagnóstico é sempre laboratorial (com excepção dos países mais pobres onde se aceita o diagnóstico de SIDA, com base na aplicação dos critérios clínicos e epidemiológicos definidos pela OMS), dispondo-se para tal de exames serológicos e virológicos.

O diagnóstico de infecção na criança com menos de 18 meses é feito por PCR-DNA.

Após um resultado positivo deve ser efectuada de imediato outra colheita para confirmação.

A PCR-DNA, por necessitar de menor quantidade de sangue e pelo facto de os respectivos resultados serem mais rápidos, deve ser o método escolhido.

O diagnóstico provável de infecção por VIH na criança é feito com um destes testes positivo procedendo a duas colheitas. O diagnóstico definitivo é efectuado com dois resultados positivos.

→ nos RN de mães seropositivas para o VIH, a PCR-DNA ou o exame cultural devem ser efectuado nas primeiras 48 horas de vida, entre o 1º e o 2º mês, e entre o 4º e o 6º mês. Se os resultados forem negativos, deve realizar-se estudo serológico para VIH por ELISA / WB de 3 em 3 meses e, depois, entre o 1 ano de idade e os 18 meses.

→ para o diagnóstico de infecção na criança com mais de 18 meses é suficiente o resultado de serologia positiva (ELISA / WB), que deve ser sempre confirmada. A determinação da carga vírica (PCR-RNA) é usada para avaliar a evolução e resposta ao tratamento.

diagnóstico de infecção por VIH pode ser excluído com elevada probabilidade se:

  • dois ou mais exames virológicos forem negativos, desde que efectuados com idade igual ou superior a 1 mês, e um deles, obrigatoriamente, com idade superior a 4 meses, em criança sem evidência clínica de infecção e não sendo alimentada com leite materno; ou :
  • dois ou mais resultados serológicos negativos para VIH, se a idade for igual ou superior a 6 meses, com, pelo menos, um mês de intervalo, em criança sem evidência clínica de infecção.

A infecção por VIH pode ser definitivamente excluída aos 18 meses se o resultado do estudo serológico for negativo, na ausência de hipogamaglobulinémia, em criança sem evidência clínica de infecção e com resultados de estudos virológicos negativos.
A contagem de linfócitos T CD4+ por citometria de fluxo constitui uma técnica fundamental para determinar o estádio imunológico da infecção, de modo a orientar:

  1. o início da terapêutica antirretrovírica (sabendo-se que a tendência é para se iniciar o mais precocemente possível, independentemente do valor dos linfócitos TCD4+); e
  2. a profilaxia das infecções oportunistas.

Cabe referir, a propósito, que os valores de referência na criança até aos seis anos de idade são mais elevados do que no adulto; por outro lado, é importante salientar que poderá haver discordância entre ausência ou presença de sintomatologia, e ausência ou presença de sinais de imunossupressão.

O Quadro 1 apresenta os valores de linfócitos T CD4+ em três grupos etários até aos 13 anos, em relação com o grau de compromisso imunológico.

QUADRO 1 – Valores de CD4 + de acordo com a idade

Alteração imunológica Contagem de CD4 e idade
< 12meses 1 a 6 anos 6 a 12 anos
Ausente 1 >1500 (>20%) >1000 (>25%) >500 (>25%)
Moderada 2 750-1499 (15-24%) 500-999 (15-24%) 200-499 (15-24%)
Severa 3 <750 (<15%) <500 (<15%) <200 (<15%)

Tratamento

O tratamento da infecção por VIH na criança tem-se tornado cada vez mais complexo e a prescrição de antirretrovíricos deverá ser dirigida por um especialista com experiência nesta área em centros especializados. A escolha dos regimes deve ter em conta que se trata de uma terapêutica para toda a vida e que a adesão é fundamental para obviar o aparecimento de resistências, que vão dificultar as opções terapêuticas no futuro.

O controlo eficaz das necessidades de uma criança infectada obriga necessariamente à disponibilidade de uma equipa multidisciplinar incluindo médico de família, pediatra, infecciologista, enfermeiro, imunologista, virologista, psicólogo, assistente social, farmacêutico e dietista.

Torna-se igualmente necessário proceder à monitorização regular da contagem de linfócitos T CD4+ e da carga vírica no pressuposto de se ter acesso ao perfil genotípico das resistências aos antirretrovíricos.

Há muitos factores a considerar no planeamento de um regime antirretrovírico como: disponibilidade; tolerância; eficácia; farmacocinética; formulações disponíveis; efeitos secundários dos medicamentos; interacção com outros medicamentos e alimentos. Há também que ter em conta o seu impacte na escola, família e vida social.

Antes de se iniciar a terapêutica deve ser efectuado um teste genotípico de resistências, para verificar se há resistências primárias e determinar o genótipo HLA-B5701 para evitar reacções adversas ao abacavir. É também importante esclarecer e formar intensivamente a família, treinando-a na administração dos medicamentos, explicando a importância da adesão e esclarecendo dúvidas. É necessário ainda o seguimento intensivo durante os meses iniciais da terapêutica e a verificação da tolerância, efectuando a monitorização dos linfócitos T CD4+ e da carga vírica, adaptando as doses ao crescimento da criança.

Início da terapêutica antirretrovírica (TAR)

De acordo com as Recomendações Portuguesas para o tratamento da infecção por VIH1 e VIH2, (versão de 2015 da DGS) deve iniciar-se terapêutica antirretrovírica (TAR) nas seguintes situações:

  • Lactentes com o diagnóstico de infecção por VIH (crianças com < 12 meses de idade) independentemente da clínica, valores de CD4+ e carga vírica;
  • Crianças com clínica significativa (formas B ou C);
  • Crianças com idade de 1 ano ou >, assintomáticas ou com sintomas ligeiros (que não se enquadram, no entanto, na forma A) perante valores de CD4+ :
  • *< 25% ou < 1000/mmc entre 1 e 3 anos de idade;
  • *< 25% ou < 750/mmc entre 3 e 5 anos de idade;
  • *< 500/mmc acima dos 5 anos.
  • Crianças com > 12 meses e carga vírica > 100.000 cópias/mL.

Os objectivos da TAR são reduzir a carga vírica para níveis indetectáveis e preservar ou normalizar a função imune impedindo a progressão da doença e tentando reverter eventual doença de órgão já estabelecida.

Fármacos e esquemas terapêuticos

São vários os fármacos antirretrovíricos disponíveis (por vezes em associação) para tratamento da criança e adolescente. Seguidamente são assinalados alguns exemplos com siglas universais tendo em conta o respectivo mecanismo de acção:

  • Inibidores da Transcriptase Reversa Nucleósidos / ITRN: abacavir (ABC), didanosina (ddI), emtricitabina (FTC), lamivudina (3TC), tenofovir (TDF), zidovudina (ZDV, ou AZT).
  • Inibidores da Transcriptase Reversa Não Nucleósidos / ITRNN: efavirenz (EFV), etravirina (ETV), nevirapina (NVP), rilvipirina (RPV).
    Associações mais utilizadas: TDF+FTC, TDF+FTC+EFV.
  • Inibidores da Protease / IP: atazanavir (ATV), darunavir (DRV), fosamprenavir (FPV), lopinavir (LPV). Têm que ser potenciados com ritonavir (r).
  • Inibidores da Fusão: enfuvirtide (T-20).
  • Inibidores da Entrada: maraviroc (MVC).
  • Inibidores da Integrase: dolutegravir (DLV), raltegravir (RAL).

Actualmente o regime de 1ª linha preferido em crianças sem terapêutica prévia e sem evidência de resistência aos antirretrovíricos engloba: 2 ITRN + 1IP (em crianças com < 3 anos prevendo adesão irregular) ou 2ITRN + 1ITRNN. Relativamente a IP prefere-se a combinação LPV/r para crianças pequenas; e outras combinações para crianças mais velhas: FPV/r, ou ATV/r, ou DRV/r.

A utilização dos diversos fármacos tem em conta a idade e o peso do paciente.

A terapêutica pode ser alterada nos casos de toxicidade ou falência.

Em suma: a prescrição dos antirretrovíricos deve ser cuidadosamente ponderada e individualizada tendo em conta todos os factores apontados, pois, para além das repercussões que possa vir a ter na sobrevivência e na qualidade de vida das crianças infectadas, tem custos muito elevados.

Prevenção

Para a prevenção da transmissão vertical da infecção pelo VIH na criança é importante a adopção das seguintes medidas:

  • rastreio da infecção na grávida;
  • realização de cesariana electiva, sempre que possível;
  • terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido; e
  • evicção do aleitamento materno.

No caso de a grávida ter um seguimento adequado, com carga vírica indetectável, pode questionar-se a necessidade de cesariana e profilaxia no RN.

Em relação à terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido, o esquema utilizado durante a gravidez deverá ser sempre discutido com a mulher, colocando à sua disposição os conhecimentos actuais sobre os riscos e benefícios da administração dos vários antirretrovíricos. Há que ter em conta os cenários possíveis:

  • Mulher submetida a terapêutica antirretrovírica combinada (TARc) durante a gravidez e com carga vírica indetectável, perto do parto, a profilaxia intraparto não é necessária (nos casos de gravidez de termo, sem corioamnionite e sem descolamento placentário), devendo ser administrado AZT “per os” ao RN tão precocemente quanto possível, nas primeiras 4-12 h de vida (é pouco provável que o início depois das 48h tenha algum benefício) e durante 4 semanas.
  • Mulher submetida a TARc e com carga vírica detectável ( < 1000 cópias/mL), perto do parto, AZT intraparto dispensável, se existir comprovada adesão à TARc e evolução favorável da carga vírica, assim como ausência de factores de risco intraparto para transmissão mãe-filho (descolamento placentar, hemorragia, corioamnionite). Caso contrário, deve administrar-se AZT em perfusão ev a iniciar existindo contracções regulares ou ocorrendo ruptura de bolsa de águas, no caso de parto vaginal; ou 3h antes no caso de cesariana electiva e sempre até à laqueação do cordão. Ao RN deve ser administrado AZT durante 4 semanas.
  • Mulher submetida a TARC há menos de 4 semanas ou com carga vírica desconhecida, AZT em perfusão ev + NVP 200 mg “per os” em toma única. Considerar profilaxia combinada no RN, AZT+3TC (4 semanas) + NVP (2 semanas).
  • Mulher submetida a TARc em falência virológica, com carga viríca > 1000 cópias /mL, AZT em perfusão ev; a associação de outros fármacos depende do teste de resistências. No RN: AZT “per os” durante 4 semanas; ponderar regime combinado com base no teste de resistência materno.
  • Mulher em trabalho de parto, sem ter sido medicada com TARc durante a gravidez, deve proceder-se a colheita de sangue para determinar carga vírica e estudo de subpopulações linfocitárias, AZTem perfusão ev+ NVP 200mg “per os” dose única + 3TC 150mg “per os”12/12h. Após o parto deverá manter-se terapêutica com AZT+3TC de 12/12h durante 7 dias ou AZT+3TC+ um inibidor da protease potenciado com ritonavir também durante 7 dias. No RN considerar profilaxia combinada, AZT + 3TC (4semanas) + NVP (2 semanas).
  • Mulher não submetida a TARc na gravidez, sem profilaxia intraparto, administrar profilaxia combinada no RN, AZT + 3TC (4 semanas) + NVP(2 semanas).

A grávida infectada por VIH deve ser seguida em Consulta de Alto Risco, sendo ainda necessário rastrear outras doenças transmissíveis (por citomegalovírus, Herpes simplex 2, toxoplasmose, hepatites B e C, tuberculose, sífilis, gonorreia e por Chlamydia).

A puérpera deve ser encaminhada para uma Consulta de Planeamento Familiar.

Para prevenção das infecções secundárias na criança com infecção por VIH devem ser instituídas medidas adequadas, as quais constituem um pilar essencial no tratamento das mesmas. A profilaxia das infecções secundárias deve ser efectuada pela administração de vacinas, imunoglobulinas e antimicrobiano.

Vacinas

Aos filhos de mulheres seropositivas, com infecção indeterminada ou infectadas, devem ser administradas todas as vacinas inactivadas de acordo com o actual Programa Nacional de Vacinação.

A vacinação com BCG não deverá ser administrada às crianças infectadas (mesmo assintomáticas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres seropositivas deverá ser adiada até que a infecção por VIH seja excluída.

A vacina anti-sarampo, parotidite e rubéola (VASPR) deve ser dada a crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas, com contagem de linfócitos CD4+ ≥15% (contraindicada, no entanto, se houver sinais de imunossupressão grave, declínio rápido do número ou percentagem de CD4+ e em crianças com a forma grave de doença). Deve ser administrada, de preferência, aos 12 meses ou até antes (entre os 6 e os 9 meses) se o risco de agravamento da doença e/ou o risco de exposição ao sarampo for elevado.

Em relação à vacina antipneumocócica, deve efectuar-se um reforço com a vacina com polissacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.

A vacina antivaricela deve ser considerada em crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas com contagem de linfócitos CD4+ ≥25%.

A vacina antigripe deve ser administrada no princípio do Outono às crianças com mais de 6 meses de idade e a todos os seus contactos, incluindo o(s) progenitor(es) seropositivo(s).

Em relação à vacina antipneumocócica deve efectuar-se um reforço com a vacina com polissacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.

A vacinação com BCG não deverá ser administrada às crianças infectadas (mesmo assintomáticas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres seropositivas deverá ser adiada até que a infecção por VIH seja excluída.

Imunoglobulinas

A administração regular (mensal) de imunoglobulina inespecífica intravenosa (IGIV na dose de 400 mg/kg cada 2 a 4 semanas) está indicada em situações de hipogamaglobulinémia (IgG < 250 mg/dL), ausência de resposta humoral a antigénios comuns (vacinas, por exemplo), infecções bacterianas, graves e recorrentes, e crianças vivendo em área endémica de sarampo e sem resposta a 2 doses de vacina.

Tal administração de imunoglobulinas, cuja duração varia em função do contexto clínico, deve também ser considerada em situações pós-exposição a hepatite B, tétano, varicela e sarampo.

Antimicrobianos

Para a prevenção da pneumocistose nas crianças infectadas de acordo com os valores de linfócitos T CD4+ (< 12 meses todos; 1 a 5 anos CD4 < 500 ou <15%; 6 a 12 anos CD4 <200 ou <15%) e nas crianças com menos de 12 meses de idade e até se excluir a infecção, desde que não amamentadas; utiliza-se o trimetoprim-sulfametoxazol (cotrimoxazol), a iniciar pelas 4 semanas de idade na dose de sulfametoxazol de 40 mg/kg/dia , habitualmente em dose única diária, trissemanalmente, em dias seguidos ou alternados.

A azitromicina na dose de 20 mg/kg semanal é utilizada para a profilaxia da infecção por Mycobacterium avium complex (MAC) nas crianças infectadas de acordo com os valores de linfócitos TCD4+: < 12 meses, se CD4 <750; 1 a 2 anos, se CD4 <500; 2 a 6 anos, se CD4 <75; > 6 anos, se CD4 <50).

Seguimento

Dados os problemas habitualmente associados a crianças e famílias com tal patologia (dificuldade de que se reveste o seguimento destas crianças – e de suas mães – decorrentes da complexidade da patologia, da necessidade de aplicação de esquemas terapêuticos rigorosos e de contextos económicos e sociais habitualmente complicados), o acompanhamento deve ficar a cargo de equipas multidisciplinares experientes e proactivas, possível em consulta própria, de modo a propiciar apoio eficaz, eficiente e efectivo. Chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de promover uma boa articulação com as equipas médicas e de enfermagem no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, igualmente implicadas nos cuidados a prestar os quais deverão primar pela qualidade e em espírito de humanização.

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IMUNODEFICIÊNCIAS PRIMÁRIAS ​

Definição e importância do problema

As imunodeficiências primárias (IDP) representam um grupo heterogéneo de patologias decorrentes de defeitos genéticos hereditários que afectam diferentes componentes do sistema imune. Caracterizam-se por uma predisposição aumentada para infecções, doenças autoimunes, linfoproliferativas, atópicas e neoplásicas. Actualmente estão descritas cerca de 350 patologias monogénicas, o que se deve ao avanço na área laboratorial dos testes genéticos.

A prevalência estimada é de 6:100000, com uma incidência de 1:3000 a 1:4000. No entanto, estes achados variam muito entre países: como exemplos, referidos à idade pediátrica, citam-se a França com prevalência de 3,72/ 100.000 e os EUA com 50-83/ 100.000. A frequência, mais elevada em países com elevada consanguinidade, tem aumentado, provavelmente porque os clínicos estão cada vez mais alertados e houve progressos no âmbito dos meios de diagnóstico disponíveis.

O tempo médio entre a primeira consulta e o eventual diagnóstico de IDP varia entre 9 meses a 4,7 anos, sendo que o atraso no diagnóstico e, consequentemente, no início da terapêutica, determinam incremento da morbilidade associada e da mortalidade. Assim, tornam-se fundamentais o elevado índice de suspeição bem como o diagnóstico atempado.

Fisiopatologia e classificação

O sistema imune inato é constituído por células de origem hematopoiética (macrófagos, células dendríticas, natural killer), pela pele e células epiteliais que revestem os tractos gastrintestinal, respiratório e génito-urinário, e ainda por um componente humoral (proteínas do complemento, proteínas de ligação aos lipopolissacáridos (LPS) e péptidos antimicrobianos. As proteínas do complemento são uma classe importante de mediadores solúveis da resposta imune inata contribuindo para promover a inflamação e a morte de microrganismos extracelulares. Relativamente a outros mediadores solúveis, os mais importantes são as citocinas e as quimocinas, produzidas sobretudo pelos macrófagos e células T.

O sistema imune adaptativo é filogeneticamente mais tardio e aparece nos organismos superiores. Envolvendo processos altamente específicos de reconhecimento de substâncias estranhas (antigénios), integra os linfócitos e seus produtos, tais como os anticorpos.

Os anticorpos produzidos pelos linfócitos B reconhecem antigénios extracelulares, enquanto os linfócitos T reconhecem antigénios produzidos por microrganismos intracelulares. Outra diferença importante entre ambos, baseia-se no facto de os linfócitos T reconhecerem apenas antigénios proteicos enquanto os anticorpos são capazes de reconhecer diferentes tipos de moléculas incluindo proteínas, hidratos de carbono e lípidos.

Em suma, considera-se que o sistema imune, por conveniência clínica e fisiopatológica, é constituído por:

  • Linfócitos B (imunidade humoral)
  • Linfócitos T (imunidade celular)
  • Sistema fagocitário (polimorfonucleares e mononucleares)
  • Sistema do complemento (relacionado com a opsonização)*

*Opsonização: revestimento do antigénio por algumas fracções do complemento, anticorpos/imunoglobulinas, ou ambos, o que facilita a fagocitose por células competentes, que apresentam receptores para aqueles.

International Union of Immunological Societies (IUIS) actualizou recentemente a classificação deste grupo de doenças, tendo em conta os novos genes descobertos. Tal classificação, baseada no componente do sistema immune predominatemente afectado, tem como objectivo proporcionar uma linha condutora na abordagem diagnóstica. De facto, qualquer classificação de doenças humanas é algo arbitrária e a das imunodeficiências primárias não é excepção. Nesta perspectiva, distinguem-se classicamente nove grupos de IDP, com prevalência variável, discriminados no Quadro 1. são discriminados nove grupos de IDP, a saber: Dado que os conceitos fisiopatológicos descritos têm relação com certos tópicos da Reumatologia, sugere-se ao leitor a consulta da respectiva Parte do livro.

QUADRO 1 – Classificação das imunodeficiências primárias

GruposAlgumas formas clínicas
1. Imunodeficiências combinadas de células B e T (predominantemente células T)
(Prevalência – 7,46%)
Imunodeficiência combinada grave (SCID); Défice de CD40L; Défice ZAP 70; Síndroma de Omenn; TAP1, TAP2, MAGT1, ITK, PNP; defeitos de reparação do DNA
2. Deficiências de anticorpos
(Prevalência – 56,66%)
Agamaglobulinémia AR (BLNK, TCF3, PIK3R1, CD79) ou ligada ao X (BTK); Imunodeficiência comum variável (ICOS, CD19, CD81, CD20, CD21, TACI, LRBA, BAFFR); S. Hiper IgM (CD40, CD40 ligando; UNG, AID); Défices específicos de anticorpos; Défices de subclasses de IgG; Défice selectivo de IgA.
3. Outras síndromas bem definidas de imunodeficiência
(Prevalência 13,99%)
Síndroma de Wiskott-Aldrich; Ataxia-telangiectasia; Síndroma de Hiper IgE; Síndroma de DiGeorge; Imunodisplasias ósseas
4. Doenças por imunodesregulação
(Prevalência – 3,89%)
Imunodeficiências com hipopigmentação; Linfo-histiocitose hemofagocítica familiar; Síndromas linfoproliferativas ligadas ao X; Síndromas linfoproliferativas autoimunes.
5. Defeitos da fagocitose e psonização
(Prevalência – 8,73%)
Neutropénia congénita grave; Neutropénia cíclica; Doença granulomatosa crónica AR ou ligada ao X; Defeitos adesão leucocitária (LAD1, 2, 3); Susceptibilidade mendeliana às micobactérias; GATA2
6. Defeitos da imunidade inata
(Prevalência 1%)
Displasia ectodérmica anidrótica com imunodeficiência; Deficiência do receptor da IL-1 associado a cinase 4 (IRAK 4); Candidíase mucocutânea crónica; Encefalite a Herpes simplex
7. Doenças auto-inflamatórias
(Prevalência 2,06%)
Febre mediterrânica familiar; Síndromes de febre periódica; Síndrome de Hiper IgD; Criopirinopatias
8. Defeitos do complemento
(Prevalência 4,89%)
Deficiência dos vários componentes da via clássica e alternativa do complemento; Angioedema hereditário (C1q)
9. FenocópiasMutações somáticas (ALPS-sFAS, KRAS ou NRAS); Auto-anticorpos: candidíase mucocutânea (IL17, IL22); Proteinose alveolar pulmonar (GM-CSF); Infecções cutâneas recorrentes (IL6)

Manifestações clínicas

Em 1993 fora publicados pela primeira vez os dez sinais de alarme de IDP pela Jeffrey Modell Foundation (JMF). Quando presentes dois ou mais deve suspeitar-se de uma IDPNo entanto, actualmente considera-se que este critério tem limitações, pois não abrange as patologias autoimune, linfoproliferativa, nem neoplásica.

Na consulta de IDP do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, foram adoptados os seguintes critérios como sinais de alarme e justificação para investigar o quadro clínico:

1. Infecções persistentes ou de repetição

  • ≥ 8 Episódios de otite média aguda (OMA)/ ano
  • ≥ 2 Sinusites/ ano
  • ≥ 2 Pneumonias com menos de 3 anos de intervalo
  • Diarreia crónica e/ou má progressão ponderal
  • ≥ 2 Meses de antibioticoterapia com fraca resposta
  • Necessidade de antibioticoterapia por via endovenosa para resolução das infecções
  • Ausência de seroconversão após infecção por certos agentes (especialmente vírus, como vírus de Ebstein-Barr/VEB)
  • Infecções de repetição ou colonização por vírus
  • Bronquiectasias

2. Infecção grave por germe comum

  • ≥ 2 Episódios da seguinte patologia: meningite, septicémia, celulite, osteomielite, artrite, adenofleimão, abcesso.
  • Primeira infecção grave com a seguinte patologia comprovada: pneumonia com abcesso ou pneumatocele, abcessos viscerais, doença invasiva por Salmonella, doença invasiva causada por Streptococcus pneumoniae ou Neisseria meningitidis após os dois anos de idade, infecção disseminada por micobactérias (Mycobacterium tuberculosis bovis, micobactérias atípicas).
  • BCGite, com compromisso de, pelo menos, dois territórios ganglionares.
  • Infecção grave por vírus, nomeadamente por VEB (meningite, doença linfoproliferativa, mononucleose infecciosa fulminante), Enterovirus (meningoencefalite crónica, sépsis ou hepatite fulminante), Parainfluenza 3 ou HSV-1.

3. Infecção por germe incomum ou em localização incomum

  • Infecção grave por fungos (Pneumocystis jiroveci, Scedosporium sp., Criptosporidium sp., Candida sp., Criptococcus neoformans, Histoplasma capsulatum).
  • Pneumonias por Salmonella, meningites por agentes normalmente não invasivos.
  • Falências vacinais contra o Haemophilus influenza tipo B, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis serogrupo C.

4. Desregulação imune e alergia

  • Fenómenos autoimunes exuberantes, especialmente em crianças com idade inferior a dois anos.
  • Linfo-histiocitoses (incluindo síndroma de activação macrofágica).
  • Fenómenos alérgicos exuberantes em crianças com outras manifestações hematológicas ou imunológicas.

5. Antecedentes familiares de imunodeficiência

  • Mortes precoces na família, abortos de repetição.

6. Outros

  • Eczema grave, aparecimento no primeiro ano de idade e refractário à terapêutica.
  • Doença inflamatória intestinal / colite de início precoce.

Diagnóstico

O diagnóstico precoce das IDP requer um elevado índice de suspeição. A inespecificidade das manifestações clínicas, aliada à relativa raridade, pode motivar atraso na prossecução do objectivo.

A investigação inicial requer a realização de uma anamnese minuciosa. É essencial a exclusão de alterações não imunológicas que podem também predispor a infecções recorrentes, tais como a fibrose quística, inalação de corpo estranho, asma, rinite alérgica, eczema, doenças metabólicas, asplenia congénita, síndroma dos cílios imóveis ou anomalias anatómicas, como as fístulas traqueoesofágicas. Devem também ser excluídas causas secundárias de hipogamaglobulinémia: fármacos (captopril, carbamazepina, antimaláricos, citostáticos, glicocorticóides, fenitoína); infecções graves congénitas ou adquiridas (vírus da imunodeficiência humana, rubéola congénita, citomegalovírus, toxoplasma, vírus de Ebstein Barr, sarampo, tuberculose); desnutrição; doenças malignas e causas de perda excessiva de imunoglobulinas (síndroma nefrótica, queimaduras graves, linfangiectasia, diarrreia crónica ou enteropatia exsudativa). No que respeita aos antecedentes familiares é muito importante inquirir sobre a eventual ocorrência de mortes precoces de causa desconhecida, consanguinidade parental, bem como outros casos IDP na família.

exame objectivo é fundamental e pode orientar o diagnóstico; contudo, um exame físico normal não exclui a presença de IDP . No Quadro 2 estão descritos alguns sintomas e sinais mais específicos associados a algumas IDP.

QUADRO 2 – IDP: Principais achados no exame físico

Alteração ao Exame FísicoIDP associada
Displasia ectodérmicaDefeito NEMO/ NFKB1, IKBA, ORAI-1; STIM-1;
Síndroma de Comel-Netherton
AlopéciaRAG1/2 (Omenn), Defeito FOXN1
MiopatiaORAI-1; STIM-1; S. Barth
Alterações neurológicasDefeito PNP, Síndroma de Chediak-Higashi;
Síndroma de Kostmann
Baixa estaturaSTAT5b, MCM4, S FILS, Hipoplasia cartilagem-cabelo, Síndroma de Shwachman-Diamond, Síndroma de Bloom; Síndroma de Schimke
Múltiplas atresias intestinaisDefeito TTC7A
Surdez/ alterações auditivasDisgenesia reticular, ADA, defeito GATA2
Conjuntivite/ uveíteFebre periódica (TRAPS, Hiper IgD)
Linfoproliferação/ adenopatiasALPS
EczemaSíndroma de Wiskott-Aldrich, DOCK8, STAT3, ITCH, Síndroma de Comel-Netherton; Síndroma de Omenn
VasculiteDefeito C2, C7; defeito MCH1
Urticária pelo frioDefeitos NLRP3, Defeito PLCG2
Proteinose alveolar pulmonarDefeito GATA2, CSF2RA; Auto Acs GM-CSF
Enteropatia/ Doença inflamatória intestinalDefeitos IL10, LRBA, NOD2, XLP2, STXBP2/MUNC18-2; CGC, CVID, IPEX
EndocrinopatiasAPECED, IPEX, Delecção cromossoma 22q11.2
Doença pulmonarDefeito ITCH, LRBA
PneumatocelesDefeito STAT3
PeriodontiteLDA, Síndroma Hiper IgM,
Periodontite juvenil localizada
LinfedemaDefeito GATA2
OsteomielitesDefeito antagonista do receptor IL-1, Síndroma de Majeed
PsoríaseDITRA 8IL36RN); CAMPS (CARD14)
Albinismo parcialSíndroma de Chediak-Higashi, Síndroma de Griscelli;
Síndroma de Hermanansky Pudlak
Candidíase mucocutâneaDeficiência Dectina 1, CARD9, IL 17F, IL 17RA, ACT1; APECED, STAT1 GOF

A investigação laboratorial deve ser realizada por fases e orientada em função da clínica. Nos Quadros 3 e 4 encontram-se discriminados os exames auxiliares de diagnóstico, sendo que a normalidade dos exames de primeira linha não invalida, perante um caso suspeito, a continuidade do estudo com os de segunda linha. Os resultados devem ser sempre interpretados de acordo com a idade do doente. É igualmente importante a programação antecipada das colheitas de produtos biológicos e a comunicação com o laboratório de referência.

A orientação para uma consulta de especialidade é fundamental em todos os casos em que surjam resultados anómalos ou duvidosos dos exames complementares iniciais.

Os exames de imagem (radiografia, ecografia, tomografia axial computadorizada, ressonância magnética) podem contribuir para a caracterização do grau de repercussão sistémica, resposta ao tratamento e avaliação de complicações .

Nas últimas décadas os avanços na biologia molecular permitiram a identificação dos genes responsáveis pela maioria das IDP. O diagnóstico pré-natal, realizado a partir de amostras de sangue fetal, células do líquido amniótico ou de biópsia das vilosidades, é actualmente possível em algumas situações, tais como a deficiência da adenosina desaminase (ADA) e o défice de adesão leucocitária (LAD). Com efeito, os progressos têm possibilitado uma melhoria nos cuidados prestados às crianças permitindo um diagnóstico mais precoce, e às suas famílias propiciando aconselhamento genético.

QUADRO 3 – Suspeita de IDP: exames complementares de primeira linha

Exames Complementares de Primeira LinhaNotas
Hemograma com Contagem Diferencial das Células·  Linfopenia: pode orientar para défice combinado (formas TB+ podem ter número total de linfócitos preservado)
·  Alteração do número dos neutrófilos nos defeitos da fagocitose
·  Trombocitopenia/anemia, em doenças autoimunes; Síndroma de Wiskott-Aldrich
Doseamento das Imunoglobulinas (Ig) IgA, IgM, IgG

Até aos 4-6 meses de vida reflectem a passagem transplacentar de Igs. Utilidade após os 4 meses de idade no diagnóstico dos défices combinados ou humorais puros.
Considerar hipogamaglobulinémia fisiológica de infância entre os 3-7 meses. Valorizar défice de IgA apenas em crianças > 4 anos.

IgE totalValor elevado na Síndroma de Hiper-IgE
Subclasses de IgGSem indicação em crianças < 24 meses
Anticorpos Específicos·  Iso-hemaglutininas: IgM anti-A ou B (excepto se grupo de sangue AB) (presentes no recém-nascido)
·  Títulos de anticorpos contra antigénios proteicos (anti-toxóide tetânico ou diftérico): dependem da interacção entre células T e B; avaliam produção de IgG1; resposta precoce nos primeiros meses de vida.
·  Títulos de anticorpos contra antigénios polissacarídeos (anti-PCP): avalia produção de IgG2; resposta ausente até aos 2 anos de idade [se níveis diminuídos, vacinar e repetir níveis 4 semanas após].
Radiografia do TóraxAvaliar presença de tecido tímico nas crianças pequenas; e bronquiectasias ou pneumatocelos.

QUADRO 4 – Exames complementares de diagnóstico de segunda linha na suspeita de imunodeficiências primárias

 Exames de diagnóstico
Defeitos celulares·  Análise TRECs
·  Imunofenotipagem células T: CD3+ (Linfócitos T), CD3+/CD4+ (LT helper), CD3+/CD8+ (LT citotóxicos), CD3+/HLA-DR+ (LT activados), CD3+/ CD4-CD8- (Células T “duplamente negativas”), CD19+ ou CD20+ (Linfócitos B), CD3-/CD16+ e/ou CD56+ (Células NK)
·  Resposta proliferativa linfocitária após estimulação com mitogénios (inespecíficos: PMA (phorbol-1-myristate-13-acetato), ionomicina ou fitohemaglutinina (PHA)); e com antigénios (estimulação específica, permite uma avaliação mais selectiva) ou células alogénicas
·  Testes hipersensibilidade tardia
·  Repertório Vbeta
Defeitos humorais

·  Análise KRACS
·  Imunofenotipagem células B

Alterações fagócitos

·  Estudo da quimiotaxia dos neutrófilos (expressão de CD11/CD18)
·  Estudo da fagocitose após estimulação com E. coli opsonizada
·  Estudo da capacidade oxidativa dos neutrófilos:

o Teste da redução com “nitroblue” (NBT)
o Teste da dihidrorodamina após estimulação com PMA, Escherichia coli ou mieoloperoxidase (citometria de fluxo)

Estudo complemento· Doseamento de CH50: rastreio de um defeito na via clássica do complemento. Se alterado confirmar pela quantificação dos diversos componentes desta via
· Doseamento de AH50: rastreio de um defeito na via alternativa. Se alterado confirmar pela quantificação dos diversos componentes desta via
Alteração imunidade inata·  Ensaios citotoxicidade NK
·  Ensaios função TLR
Imunodesregulação

·  Painel screen ALPS: vitamina B12, Fas ligando, Il 10
·  Ensaios apoptose
·  Auto-anticorpos

Autoinflamatórios

·  Níveis IgD

Tratamento

Os pontos comuns na abordagem terapêutica das IDP são a prevenção das infecções e o seu tratamento agressivo e atempado. A vacinação com vacinas vivas deve ser protelada até esclarecimento do tipo de IDP em causa, dado que não está indicada nas patologias com deficiências de linfócitos B ou T graves. No caso de necessidade de transfusão sanguínea, apenas devem ser usados produtos irradiados e negativos para o citomegalovírus.

A terapêutica específica varia de acordo com o tipo de IDP, como se pode observar no Quadro 5.

QUADRO 5 – IDP: Terapêuticas para os vários grupos Conclusão

Grupo de IDPTerapêuticas
 Imunodeficiências Combinadas– Imunossupressores
– Profilaxia antibiótica
– Imunoglobulina de substituição
– Substituição enzimática
– Terapia génica
– Transplante de medula óssea

 

Defeitos de Anticorpos

– Imunossupressores
– Profilaxia antibiótica
– Imunoglobulina substituição

 

 

Defeitos de Fagócitos

– G – CSF (factor de crescimento)
– Profilaxia antibiótica
– Interferão gama
– Terapia génica
– Transplante medula óssea
Defeitos de Complemento– Profilaxia antibiótica
– Vacinação

 

Defeitos de Imunidade Inata

– Profilaxia antibiótica
– Vacinação
– Imunoglobulina de substituição
– Transplante de medula óssea

 

Doenças Autoinflamatórias

– Corticoterapia; outros imunossupressores
– Agentes biológicos
– Terapêutica de suporte

 

Alterações da Imunodesregulação

– Profilaxia antibiótica
– Vacinação
– Corticoterapia; outros imunossupressores
– Agentes biológicos

 

 

O diagnóstico das IDP constitui um desafio clínico, pois tal patologia, rara, exige um elevado índice de suspeição, a mesma patologia pode ter manifestações diferentes, e o mesmo defeito genético pode levar a diferentes apresentações de acordo com o tipo de mutação.

Além disso, os exames complementares não são específicos e, muitas vezes, resultados normais não permitem excluir IDP.

Em suma, é muito importante o reconhecimento atempado e a prescrição de terapêutica adequada de forma minorar a comorbilidade e a mortalidade associadas.

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ALERGIA E INTOLERÂNCIA ALIMENTARES

Definição e importância do problema

Ao longo dos últimos anos, coincidindo com o aumento de prevalência das doenças alérgicas (segundo alguns, relacionável com a menor exposição a determinados microrganismos na primeira infância – “hipótese higiénica”), a alergia alimentar tem vindo a ser considerada um importante problema de saúde pública. As reacções adversas relacionadas com a ingestão de alimentos podem ser denominadas duma forma abrangente hipersensibilidade alimentar e divididas em duas categorias principais (Quadro 1):

  1. Alergia alimentar – compreende qualquer resposta imunológica anormal a proteínas alimentares – mais frequentemente mediada pela produção de anticorpos IgE (alergia alimentar mediada por IgE) ou tendo subjacentes mecanismos mediados por células e outros componentes do sistema imunitário (alergiaalimentar não mediada por IgE); existem também situações que podem ser mediadas por IgE em associação com outros mecanismos imunológicos (alergia alimentar mista).
  2. Hipersensibilidade alimentar não alérgica/não imune (mais prevalente e também referida como intolerância alimentar) – abrange a maioria das reacções adversas a alimentos e inclui manifestações clínicas que, decorrendo da ingestão de qualquer constituinte (não proteico) de um alimento ou aditivo alimentar, resultam de fenómenos não-imunológicos, tais como reacções metabólicas, defeitos estruturais, reacções farmacológicas ou reacções idiossincrásicas.

O conceito de hipersensibilidade alimentar designa, assim, de forma lata um vasto leque de reacções adversas a alimentos que podem ser mediadas por uma resposta do sistema imunitário (alergia alimentar) ou por mecanismos não imunológicos (intolerância alimentar). No entanto, a distinção entre alergia alimentar não mediada por IgE e intolerância alimentar nem sempre é clara e não é consensual; tal explica-se pelo facto de ainda: 1- conhecemos pouco os mecanismos subjacentes e; 2- dispormos de escassos os exames laboratoriais para suporte diagnóstico da alergia alimentar não mediada por IgE na prática clínica.

Aspectos epidemiológicos

A epidemiologia da alergia alimentar não é conhecida de forma precisa, devido à escassez de estudos bem desenhados e aos diferentes critérios de diagnóstico e metodologias utilizados nos poucos disponíveis, dificultando a sua comparação.

Em inquéritos realizados em amostras populacionais é habitualmente possível identificar uma frequência elevada de indivíduos convictos de que são “alérgicos” a algum tipo de alimento (até 17% na Europa); contudo, quando se procede a avaliação diagnóstica correcta tal não se confirma na maioria dos casos. Estima-se assim que a prevalência de alergia alimentar na população em geral seja de 0,8% a 5% (em estudos europeus), tendendo a ser mais elevada em populações pediátricas do que na idade adulta.

Os alergénios alimentares mais importantes variam entre as diferentes populações, em função dos hábitos alimentares predominantes e do grupo etário estudado.

Na população pediátrica portuguesa, o leite (comparticipação da lactoglobulina) e o ovo (comparticipação da ovomucina) parecem ser os mais frequentes, seguidos do peixe e cereais. A alergia à soja e ao amendoim, muito prevalente nos países anglo-saxónicos, é bastante mais rara entre nós. A partir da idade escolar começam a ganhar expressão outros grupos alimentares, como os crustáceos e moluscos, os frutos frescos e o amendoim e frutos de casca rija.

Nalguns casos, a alergia alimentar resulta da sensibilização a proteínas que se distribuem de forma ubiquitária em vários alimentos e também em aeroalergénios de origem animal ou vegetal. Quando tal sucede podemos estar perante as chamadas síndromas de reactividade cruzada, em que o doente se sensibiliza primariamente a um determinado alergénio e, mais tarde, começa a reagir a outros que contêm proteínas estruturalmente semelhantes.

Como exemplo, cita-se a chamada síndroma ácaros-marisco em que o doente alérgico a ácaros do pó doméstico desenvolve alergia a crustáceos e moluscos através da sensibilização à proteína muscular tropomiosina. Estão também descritas diferentes síndromas pólen-frutos-vegetais, em que uma sensibilização primária a proteínas de determinados pólenes leva ao aparecimento de alergia a alimentos de origem vegetal contendo proteínas semelhantes, com manifestações clínicas de maior ou menor gravidade consoante o tipo de proteína em causa. Estas formas de alergia parecem apresentar uma incidência crescente.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de alergia alimentar podem ser muito variadas, com envolvimento de múltiplos órgãos e sistemas, predominando o compromisso muco-cutâneo, gastrintestinal e respiratório (Quadro 1). A anafilaxia – por definição, uma reacção de tipo imediato envolvendo mais do que um órgão ou sistema – é a manifestação com maior potencial de gravidade, visto que pode condicionar risco de vida quando não é rapidamente identificada e tratada.

As alergias alimentares de expressão gastrintestinal, manifestando-se por vómitos persistentes, diarreia ou diminuição da ingestão / suprimento calórico ou proteico, podem repercutir-se na progressão ponderal.

Diagnósticos incorrectos e dietas de evicção inadequadas, em especial se estiverem em causa alimentos básicos, podem ter consequências igualmente nefastas. Por isso torna-se importante o correcto e precoce diagnóstico e a instituição de dieta adequada a fim de prevenir carências nutricionais e hipocrescimento.

A ampla diversidade de apresentações clínicas, levanta várias dificuldades diagnósticas, especialmente quando estão em causa situações crónicas e multifactoriais, como o eczema atópico ou a esofagite eosinofílica, alergias não mediadas por IgE, ou quando se confia excessivamente nos resultados dos meios auxiliares de diagnóstico in vitro in vivo, eles próprios com valor preditivo negativo e positivo variáveis.

Diagnóstico

Uma abordagem diagnóstica correcta deve sempre iniciar-se pela colheita cuidadosa da história clínica, incluindo como passos iniciais, a anamnese e o exame objectivo. A anamnese permite caracterizar o padrão de sintomas e identificar os alimentos suspeitos, com base numa correlação consistente entre a sua ingestão e o aparecimento das manifestações clínicas. A execução de diários alimentares pode ser um auxiliar precioso nos casos de sintomatologia crónica, em que a relação causal não seja óbvia ou quando a informação fornecida não é precisa. O exame objectivo poderá permitir a exclusão de outras causas das queixas, identificar sinais de doença alérgica concomitante e avaliar o estado nutricional e desenvolvimento estaturo-ponderal da criança;

A escolha dos exames auxiliares de diagnóstico deve basear-se na apresentação clínica e no presumível quadro imunológico subjacente. Se se suspeitar de um processo imunitário mediado por IgE, os testes cutâneos por picada e os doseamentos de IgE específica sérica constituem importantes auxiliares. Apresentam em geral um excelente valor preditivo negativo (superior a 95%), mas um baixo valor preditivo positivo (inferior a 50%).

Actualmente é possível, para alguns alimentos, testar não apenas os extractos proteicos completos mas também proteínas individuais (purificadas ou obtidas por tecnologia recombinante), com potenciais ganhos em termos de valor preditivo e também melhor esclarecimento de eventuais quadros de reactividade cruzada. É o caso, por exemplo, da caseína/lactoglobulina (leite), da ovomucóide (ovo) e de uma conglutinina do amendoim designada Ara h 2: neste contexto, a presença de IgE indica uma maior probabilidade de alergia clinicamente relevante. A detecção de IgE para outras proteínas como, por exemplo, a Pru p 3 (proteína de transporte de lípidos do pêssego) ou a Pen a 1 (tropomiosina do camarão) indica-nos estarmos provavelmente perante uma síndroma de reactividade cruzada, com possibilidade de reacção a vários alimentos.

A indicação para o doseamento de IgE para extractos proteicos ou componentes moleculares deve sempre ser criteriosa e rigorosamente orientada pela história clínica. Exames baseados no doseamento de outras classes de imunoglobulinas, como a IgG, não estão validados para o diagnóstico de alergia alimentar.

Em estudos recentes demonstrou-se associação de hiperamilasémia e neutrofilia a alergia alimentar imediata.

Na alergia alimentar não imediata de expressão gastrintestinal a endoscopia digestiva com realização de biópsia da mucosa pode ser de grande utilidade. Actualmente não dispomos de outros exames complementares de diagnóstico adequados à prática clínica.

A detecção de IgE não permite distinguir, de forma totalmente segura, entre a presença de alergia clinicamente relevante e a sensibilização assintomática; por outro lado, a sua ausência não permite excluir os quadros de alergia não mediada por IgE. Sendo assim, a confirmação do diagnóstico depende sempre da avaliação da resposta à dieta de eliminação do alimento suspeito, em geral durante 2 a 4 semanas, seguida da realização de prova de provocação oral. As provas de provocação são também essenciais no seguimento destes doentes ao longo do tempo, especialmente nos casos em que se preveja a resolução da alergia (ex. alergia ao leite e ovo). Estas devem sempre ser efectuadas em meio hospitalar por clínicos experientes na sua realização e na abordagem terapêutica de emergência na eventualidade de surgirem reacções.

Diagnóstico diferencial

No âmbito do tópico deste capítulo e tipificando o diagnóstico diferencial de situações cursando com manifestações gastrintestinais, cabe uma referência especial à intolerância à lactose e à alergia às proteínas do leite de vaca.

A lactose é um dissacárido que é desdobrado em glucose e galactose por acção da lactase no intestino delgado (células da bordadura em escova). A intolerância à lactose é mais frequentemente resultante da deficiência secundária da lactase por lesão da mucosa intestinal (formas em geral transitórias, regredindo uma vez resolvida ou compensada a situação gastrintestinal de base – por ex. gastrenterite vírica). Contudo, tal deficiência pode ser congénita por mutações no gene LCT.

A não absorção da lactose resulta em fermentação da mesma com consequente flatulência, diarreia, fezes ácidas e escoriação cutânea perianal. A microbiota intestinal poderá compensar em grau variável a metabolização da lactose.

má absorção da lactose não deve ser confundida clinicamente com alergia às proteínas do leite de vaca. A restrição de lactose na dieta é geralmente suficiente para controlar os sintomas gastrintestinais (sabendo-se que produtos lácteos como queijo e iogurte têm menor teor em lactose).

alergia às proteínas do leite de vaca pode ser mediada ou não por IgE. As proteínas (alergénios) mais frequentemente implicadas são a beta-lactoglobulina, a alfa-lactoalbumina e a caseína (para confirmação do diagnóstico consultar capítulo “Aspectos do diagnóstico da doença alérgica”). O diagnóstico de intolerância à lactose pode ser confirmado por regressão dos sintomas com dieta sem lactose, pelo teste de hidrogénio expirado após ingestão de lactose, ou, em situações especiais, por biópsia.

Tratamento

O tratamento da alergia alimentar assenta fundamentalmente na evicção dos alimentos identificados e responsabilizados pelo quadro clínico. A terapêutica farmacológica não é habitualmente utilizada, à excepção do tratamento de emergência da reacção aguda. A indução de tolerância oral a alimentos tem vindo a ser desenvolvida por vários grupos mas é considerada uma abordagem experimental e não é ainda recomendada como terapêutica de rotina.

Relativamente às medidas de evicção alimentar, deve ser fornecida aos pais, aos prestadores de cuidados e às próprias crianças informação cuidadosa sobre os alimentos a evitar e potenciais situações de risco. Deve ser feito ensino relativamente à necessidade de leitura atenta dos rótulos e do cuidado na manipulação dos alimentos, de modo a evitar a contaminação inadvertida daqueles que o doente irá consumir. O regime alimentar deve ser adaptado individualmente, em função das características e grau de reactividade de cada criança. Em muitos casos, é útil o aconselhamento por dietista, em especial quando estão em causa alimentos básicos ou são necessárias múltiplas evicções.

No que diz respeito ao tratamento de emergência, é essencial elaborar planos de actuação escritos, incluindo informação que permita ao doente e/ou aos pais identificar os sintomas de alarme e definindo critérios para utilização da terapêutica. Reacções ligeiras poderão ser tratadas com anti-histamínico e corticóide sistémico e, no caso de se tratar de um doente asmático deve ser prevista a administração de broncodilatadores por via inalatória. Caso se considere que o doente apresenta alto risco anafilático, deve ser prescrita adrenalina para auto-administração e as pessoas que contactam mais de perto com a criança devem ser informadas e treinadas na sua utilização. Após a terapêutica inicial da reacção, o doente deve ser observado em meio hospitalar, onde deverá permanecer em vigilância durante algumas horas.

A história natural dos sintomas relacionados com alergia alimentar é muito variável, mas na criança a sensibilidade tende com frequência a perder-se com o tempo. Consequentemente, é necessário realizar de provas de provocação periódicas ao longo do seguimento do doente. O cronograma das provas deve ajustado individualmente, tendo em conta múltiplos factores, como a idade do doente, o tipo de manifestações clínicas, o alimento incriminado e a evolução dos níveis de IgE específica sérica. Salienta-se que não é necessário aguardar pela negativação dos testes cutâneos ou doseamentos de IgE, visto que estes podem permanecer positivos mesmo após a aquisição da tolerância. As provas de provocação alimentar devem sempre ser realizados em ambiente hospitalar e com supervisão de especialistas experientes neste tipo de procedimentos.

Prevenção

Ao longo da última década e em resultado de uma análise mais crítica dos resultados de investigação com provas científicas, as recomendações no que diz respeito à prevenção primária da alergia alimentar alteraram-se significativamente.

No que diz respeito à gravidez, não é recomendada actualmente qualquer dieta de evicção, sendo as grávidas aconselhadas apenas a seguir uma dieta diversificada e saudável.

Do mesmo modo, não é recomendada dieta materna com intuito preventivo durante o período de aleitamento. A mãe lactante tem indicação para fazer dieta de evicção apenas nos raros casos de bebés com alergia alimentar em que se prove reactividade clinicamente significativa a proteínas incorporadas no leite materno.

O aleitamento materno exclusivo durante os primeiros 4 a 6 meses de vida parece ter algum efeito preventivo (embora não existam provas científicas inequívocas). Por isso, e considerando dos múltiplos benefícios, o mesmo recomendado para todos os bebés. Não parece haver, no entanto, qualquer vantagem no prolongamento do aleitamento materno exclusivo para além da idade dos 6 meses, existindo inclusivamente estudos admitindo a possibilidade de o atraso na introdução dos alimentos sólido aumentar o risco de alergia alimentar.

Nos bebés de risco atópico (presença de eczema atópico ou história familiar de doença alérgica nos progenitores ou irmãos), quando o aleitamento materno não é possível ou suficiente, é aconselhado o uso de fórmulas lácteas parcial ou extensamente hidrolisadas, podendo haver vantagem nas segundas. No entanto há alguma inconsistência de resultados entre diferentes estudos.

O início da diversificação alimentar não deve ser atrasado para além dos 6 meses de idade e, ao contrário do que se preconizava anteriormente, não há indicação, à luz dos conhecimentos actuais, para atrasar a introdução de qualquer alimento, nem mesmo daqueles considerados mais alergénicos.

Em suma, os conhecimentos sobre a alergia alimentar estão em constante evolução e têm levado a modificações significativas quanto a certos aspectos das abordagens diagnóstica e terapêutica.

QUADRO 1 – Hipersensibilidade alimentar: classificação e manifestações clínicas

Alergia alimentar
(mediada pelo sistema imunitário/por linfócitos TH-2))
Intolerância alimentar
(mecanismos não imunitários)
Mediada por IgE
(início em minutos até 2h após ingestão)
Mista
(intervalo variável entre ingestão e sintomas)
Não mediada por IgE
(início em horas a dias após ingestão)

*A doença celíaca é uma situação particular dado que se trata de uma doença de carácter autoimune desencadeada por uma reacção de hipersensibilidade às proteínas do glúten

– Urticária, angioedema

– Prurido orofaríngeo (síndroma de alergia oral)

– Sintomas gastrintestinais agudos

– Sintomas respiratórios agudos

– Anafilaxia (≥ 2 órgãos ou sistemas)

-Neutrofilia e hiperamilasémia

– Eczema atópico

– Esofagite eosinofílica

– Gastrenteropatias eosinofílicas

– Enterocolite por proteínas alimentares (vómitos incoercíveis, diarreia, desidratação, letargia, hipotensão)

– Enteropatia por proteínas alimentares (sintomas digestivos crónicos, má-absorção, enteropatia exsudativa, má progressão ponderal)

– Proctocolite por proteínas alimentares (dejecções com sangue e muco)

– Síndroma de Heiner (hemossiderose pulmonar induzida por proteínas lácteas)

– Doença celíaca*

– Intolerância a lactose

– Má absorção de oligo ou dissacáridos (lactose, frutose…)

– Doenças hereditárias do metabolismo (ex. intolerância a frutose)

– Reacções idiossincrásicas (ex. aminas vasoactivas, cafeína, glutamato de sódio…)

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ALERGIA MEDICAMENTOSA

Definições e importância do problema

As reacções de hipersensibilidade a medicamentos (RHM) consistem no aparecimento de manifestações semelhantes às das reacções alérgicas, na sequência da toma dum medicamento, na dose tolerada pela maioria das pessoas. De acordo com a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS) correspondem às reacções adversas a fármacos do grupo B, ou bizarras, ou seja, as que ocorrem em indivíduos sensíveis e não dependem de efeitos farmacológicos ou de sobredosagem dos mesmos. No entanto, os aspectos clássicos de “não dependência da dose” e “imprevisibilidade” são actualmente questionados.

De facto, pode existir alguma dependência da dose com alguns medicamentos (ex. anti-inflamatórios não esteróides (AINE) assim como previsibilidade, na presença de algumas doenças (ex. infecção por vírus de Epstein-Barr (VEB) ou infecção por vírus de imunodeficiência humana (VIH), ou ainda após reacção prévia similar aos fármacos em causa ou da mesma classe.

O termo alergia medicamentosa deve ser reservado para as RHM em que foi possível demonstrar o envolvimento dum mecanismo imunológico específico, dirigido para o medicamento suspeito, mediado por anticorpos (maioritariamente, do tipo IgE) ou por células T. Na prática clínica é difícil distinguir este tipo de reacções das não alérgicas, pelo que se deve optar por falar em RHM quando se suspeita de alergia medicamentosa.

As reacções de hipersensibilidade correspondem a menos de 15% das reacções adversas a medicamentos (RAM). Existem poucos estudos que tenham avaliado a prevalência da alergia medicamentosa na idade pediátrica em Portugal. De acordo com os resultados de Martins P e cols. a prevalência de alergia a medicamentos reportada pelos pais de 1169 crianças de infantários de Lisboa e do Porto é de 4,1% e os fármacos mais referidos foram os antibióticos (em 27 reacções) e os AINE (em seis reacções). No entanto, os valores reportados pelos pais sobrestimam a verdadeira frequência da alergia medicamentosa nas crianças, sendo necessário que estas situações sejam devidamente estudadas, na perspectiva de evicções desnecessárias que possam condicionar opções terapêuticas em futuras situações de doença.

A revisão sistemática de Smyth e col. mostrou que nas crianças a incidência das RAM no internamento é maior que no ambulatório, e que 2,9% das RAM condicionaram hospitalização. Estes resultados confirmam que as reacções adversas a fármacos na criança são um problema importante de saúde pública.

Classificação das reacções

Existem várias classificações clínicas das RHM, sendo usual optar por classificar as reacções em imediatas e não imediatas ou tardias, de acordo com a relação temporal entre o início da exposição ao medicamento e o aparecimento da reacção. As reacções imediatas surgem no espaço de 1 a 6 horas após a última administração do fármaco e, em geral, envolvem um mecanismo mediado pela imunoglobulina E (IgE).

Apresentam-se na maioria das vezes com sintomas isolados, como urticária, angioedema, conjuntivite, rinite, broncospasmo, manifestações gastrintestinais (náusea, vómitos, diarreia, dor abdominal), ou anafilaxia, com ou sem colapso cardiovascular (choque anafiláctico).

Relativamente às reacções não imediatas, estas podem surgir a qualquer momento, após uma hora da administração inicial do fármaco. Estão frequentemente associadas a mecanismo alérgico, dependente da célula T. Os exantemas máculo-papulares e a urticária de aparecimento tardio são as manifestações clínicas mais comuns das reacções não imediatas. Outros quadros incluem o eritema fixo, vasculites, doenças bolhosas como a necrólise epidérmica tóxica (NET), a síndroma de Stevens-Johnson (SSJ), e erupções fixas bolhosas generalizadas, a síndroma DRESS (drug rash, eosinofilia e sintomas sistémicos), a pustulose exantemática aguda generalizada (AGEP) e exantemas simétricos envolvendo as regiões intertriginosas e flexurais (SDRIFE). Podem envolver órgãos internos, de modo isolado ou com atingimento da pele, incluindo quadros de hepatite, insuficiência renal, pneumonite, anemia, neutropénia e trombocitopénia.

Em termos de mecanismos fisiopatológicos, os medicamentos são capazes de induzir todos os tipos de reacção descritos por Gell e Coombs, sendo os b-lactâmicos o exemplo paradigmático. Os anticonvulsivantes e o alopurinol tendem a causar reacções predominantemente mediadas por células T enquanto os agentes neuromusculares provocam reacções mediadas pela IgE, em geral.

Factores de risco

O risco de alergia medicamentosa resulta da interacção complexa de factores que não estão ainda completamente clarificados, em relação com o medicamento, o indivíduo e a doença, e co-morbilidades associadas. Relativamente ao medicamento, a imunogenicidade ou seja, a capacidade de o fármaco actuar como hapteno, pro-hapteno ou de se ligar de modo covalente aos receptores imunes (conceito Pi), tem influência directa no risco de desenvolvimento duma reacção de hipersensibilidade.

A administração intermitente e repetitiva do medicamento versus administração prolongada, a utilização da via de administração parentérica comparativamente à via oral, têm sido reportadas como factores de risco, apesar da fraca robustez das provas.

Em relação ao indivíduo destaca-se a história prévia de reacções ao medicamento ou a medicamentos com reactividade cruzada, doenças concomitantes que alterem a resposta imunológica aos medicamentos, como algumas infeções víricas (ex. infecção por VEB e amoxicilina, VIH e cotrimoxazol) e alguns polimorfismos genéticos específicos. O terreno atópico não parece aumentar o risco de surgimento de RHM, relativamente à maioria de medicamentos; isto, apesar de ser apontado o mesmo como factor de risco de gravidade das reacções de anafilaxia à penicilina.

Manifestações clínicas

Relativamente à clínica, existe grande variedade em termos do tipo de apresentação, envolvendo um ou vários órgãos e sistemas, e da gravidade. As manifestações mais frequentes são as cutâneas isoladas. No entanto, quadros de anafilaxia, potencialmente fatais, assim como manifestações tipo doença do soro, síndromas de hipersensibilidade, reacções autoimunes induzidas por fármaco, e febre isolada, fazem parte do espectro clínico.

Diagnóstico

O aparecimento de um sinal ou sintoma não previsível, relacionado no tempo com a administração de um medicamento, deve levar à suspeição do diagnóstico de RHM. A abordagem vai depender do momento da observação da criança, ou seja, se esta ocorre na fase sintomática ou após a recuperação da mesma.

Na fase sintomática é importante a avaliação clínica da gravidade da reacção, incluindo um exame físico e exames laboratoriais variáveis, dependendo do tipo de reacção. Sinais de compromisso respiratório e cardiovascular devem ser pesquisados nas reacções imediatas, enquanto nas reacções não imediatas devem ser monitorizados sinais de alerta gerais e específicos de órgão (Quadro 1).

QUADRO 1 – Sinais de gravidade das reacções de hipersensbilidade a medicamentos

Sinais de gravidade das RHM

a – sem utilidade clínica no tratamento, na fase aguda
b– na suspeita de RHM tardia grave, deve pedir-se hemograma completo, função hepática e renal
Adaptado de Bircher AJ. Symptoms and danger signs in acute drug hypersensitivity. Toxicology 2005;209(2):204

 Sinais visíveis de gravidadeParâmetros invisíveis de gravidade
Reacções imediatas
    • início abrupto de sintomas multissistémicos (respiratórios e mucocutâneos)
    • diminuição da tensão arterial
    • dispneia
    • disfonia
    • sialorreia
    • níveis elevados de triptase séricaa
Reacções não imediatas

Gerais

    • linfadenopatia
    • febre > 38,5ºC

 Específicos de órgão

    • exantema doloroso
    • envolvimento cutâneo > 50%
    • lesões em alvo atípicas
    • erosões da mucosa
    • lesões bolhosas
    • edema centro-facial
    • exantema papular purpúrico com infiltração, necrose
  • alterações nas contagens sanguíneasb
      • citopénias
      • eosinofilia
  • alterações da função hepáticab
  • alterações da função renalb

Independentemente do tipo de reacção, a presença de sinais de gravidade implica a suspensão imediata do(s) medicamento(s) suspeito(s) e a instituição de medidas terapêuticas, adequadas (ver tratamento). Na ausência destes sinais, se o medicamento for considerado imprescindível pode equacionar-se a continuidade da sua administração e o tratamento sintomático da reacção.

  1. O primeiro passo é a história clínica detalhada, de modo a caracterizar o tipo de reacção.
    As questões devem incidir sobre:
    • os sintomas, nomeadamente se estes são compatíveis com RHM
    • cronologia da reacção, ou seja, o início da reacção (no primeiro contacto com o medicamento ou ao fim de alguns dias de exposição), intervalo entre a última dose e o início dos sintomas e o efeito da suspensão do fármaco / medicação
    • lista completa da medicação concomitante no momento da reacção, incluindo o início e término da administração de cada um dos medicamentos
    • exposição prévia ou posterior ao medicamento ou a outros da mesma classe
    • motivo da prescrição do medicamento
    • factores predisponentes, incluindo a eventual existência de alergias, relacionadas ou não com medicamentos; comorbilidades como a urticária crónica ou rinossinusite crónica, as quais podem ser agravadas pela toma de AINE, por exemplo.
    A informação recolhida deve ser enquadrada à luz do conhecimento dos padrões de RHM identificados para os vários medicamentos, pressuposto o acesso a bases de dados médicos, como a Medline ou plataformas electrónicas das Agências de Segurança do Medicamento, como o Infarmed.
    O recurso à escala de Naranjo, um algoritmo para avaliar a relação de causalidade, na maioria das vezes não permite confirmar o diagnóstico, sobretudo na idade pediátrica. Assim, perante uma história suspeita de RHM é necessário avançar com a investigação alergológica.
  2. investigação alergológica inclui a realização de testes cutâneos e provas de provocação para confirmação do diagnóstico e clarificação do mecanismo envolvido na reacção. Os exames laboratoriais têm um papel limitado no diagnóstico e são realizados com fins de investigação.
    Os procedimentos devem ser efectuados na consulta de Imunoalergologia, 4 a 6 semanas após resolução completa da reacção, para evitar resultados falsos negativos.
    Os testes cutâneos intradérmicos para detecção de IgE específica têm sido os únicos que têm revelado um valor preditivo negativo elevado, sobretudo na avaliação da suspeita de reacções imediatas aos antibióticos b-lactâmicos e relaxantes musculares. A sua principal limitação deve-se ao facto de os determinantes antigénicos responsáveis pela alergia na maioria dos fármacos serem desconhecidos.
    Nas reacções não imediatas, podem realizar-se testes epicutâneos – patch tests e/ou a leitura tardia dos testes intradérmicos. No entanto, perante quadros cutâneos mais graves, de AGEP, DRESS, NET e SJS, os testes epicutâneos devem ser os exames de primeira linha.
    Relativamente aos exames laboratoriais, na suspeita de reacções IgE mediadas é ainda recomendável o doseamento das IgE específicas séricas, sobretudo quando ocorrem manifestações clínicas graves, de choque anafiláctico. Contudo, o doseamento de IgE específicas está disponível apenas para um número limitado de medicamentos (ex. penicilinas G e V, amoxicilina,etc.), os resultados têm menor sensibilidade quando comparados com os dos testes cutâneos intradérmicos, e a positividade do teste não implica necessariamente reactividade clínica.
    Nos casos de reacções agudas, as medições séricas de triptase confirmam o envolvimento dos mastócitos na reacção e podem apoiar a posteriori o diagnóstico de anafilaxia explicável por alergia medicamentosa.
    Os testes de activação dos basófilos (BAT) com utilização da citometria de fluxo paradetecção de marcadores de activação celular (ex: CD63), parecem ser promissores no diagnóstico da alergia medicamentosa, assim como os testes de transformação linfocitária (TTL), os quais deverão ser realizados por laboratórios com experiência no estudo das RHM.
    Na maioria das situações, o diagnóstico de hipersensibilidade pressupõe a realização de uma prova de provocação, em meio hospitalar, consistindo na administração controlada de doses progressivas de fármaco, com o intuito de confirmar ou excluir o diagnóstico e, em casos particulares, para obtenção de alternativas terapêuticas consideradas necessárias.

Tratamento

Quando há suspeita de alergia medicamentosa é importante proceder à suspensão da administração do fármaco em causa. Nas crianças com medicações múltiplas devem parar-se todas as dispensáveis e substituir as necessárias por fármacos sem reactividade cruzada.

O tratamento das reacções é sintomático. Nas reacções ligeiras, como os exantemas pouco extensos, a utilização de anti-histamínicos é em geral suficiente. Apresentações mais graves ou agravamento clínico podem requerer corticoterapia sistémica para controle sintomático. Nos casos de anafilaxia com compromisso respiratório e/ou cardiovascular é fundamental administrar adrenalina por via intramuscular com prontidão.

A confirmação do diagnóstico de hipersensibilidade medicamentosa implica a evicção do medicamento envolvido e dos que apresentem reactividade cruzada. Perante situações raras, de inexistência de alternativas terapêuticas sem reactividade cruzada e em que a utilização do medicamento é imprescindível, é possível recorrer à indução de tolerância, ou dessensibilização. Este procedimento envolve a administração controlada de doses progressivas do medicamento até se alcançar a dose terapêutica. A tolerância clínica é transitória exigindo a continuidade da administração diária do medicamento, pois desaparece rapidamente após a suspensão do mesmo.

Existem vários protocolos de indução de tolerância para antibióticos b-lactâmicos, trimetoprim-sulfametoxazol, insulina, ácido acetilsalicílico, entre outros, publicados na literatura. No entanto, a dessensibilização aos medicamentos deve ser realizada por especialistas de Imunoalergologia familiarizados com a técnica, assim como com o tratamento das eventuais reacções de anafilaxia, em ambiente de internamento hospitalar, com acesso fácil e rápido a equipamento de reanimação e a Unidade de Cuidados Intensivos.

Prevenção

A prevenção da alergia medicamentosa pode ser levada a cabo seguindo determinadas recomendações:

  • prescrição apenas dos fármacos essenciais
  • evicção dos fármacos com reacções prévias suspeitas, assim como os que tenham reactividade cruzada
  • introdução controlada de fármaco / agente de diagnóstico com indicação imperiosa e com história de antecedentes de reacção pouco provável (ex: 1/100 da dose, seguido de aumentos de dose de 10x, a intervalos de 30 a 60 minutos até à dose terapêutica)
  • informação do paciente/família sobre a reacção medicamentosa, procedendo ao registo médico do incidente
  • registo e participação das reacções adversas graves ou inesperadas, ao Infarmed, especialmente nos casos de fármacos recentes

Situações particulares

Neste capítulo serão abordados alguns dos pontos mais importantes relativos a três dos principais grupos de produtos farmacológicos implicados nas reacções de hipersensibilidade em idade pediátrica: antibióticos b-lactâmicos, anti-inflamatórios não esteróides e vacinas.

Antibióticos b-lactâmicos

O aparecimento de exantema é frequente nas crianças expostas à penicilina e antibióticos b-lactâmicos. Perante uma história sugestiva de reacção alérgica aos b-lactâmicos devemos realizar testes cutâneos por picada e intradérmicos (TC), incluindo o determinante major, benzilpenicilloyl-polilisina, os determinantes minor e as formas solúveis dos fármacos responsáveis.

Estima-se que 7 a 20% dos indivíduos com suspeita de história de alergia à penicilina tenham testes cutâneos positivos. O valor preditivo negativo destes testes é excelente (>95%), sendo que apenas 1 a 3% dos indivíduos com história positiva e TC negativos desenvolvem reacções ligeiras de urticária e/ou prurido. As reacções sistémicas aos testes cutâneos são raras (<1%) embora existam notificações de óbitos. As determinações da IgE específica têm uma sensibilidade muito baixa, apesar de aumentarem a sensibilidade diagnóstica da investigação alergológica.

Em situações não IgE-mediadas, os testes cutâneos têm uma reduzida sensibilidade, sendo excepção os quadros clínicos graves, como o DRESS, em que os exames de primeira linha na investigação diagnóstica são os patchtest.

As provas de provocação devem ser realizadas para fins de diagnóstico, nas reacções IgE mediadas em que os TC foram negativos e nas reacções não IgE mediadas, em que não estejam contra-indicadas, como são exemplo as reacções cutâneas graves.

Anti-inflamatórios não esteróides (AINE)

Estima-se que a prevalência de hipersensibilidade aos AINE reportada na idade pediátrica seja de 0,3%, podendo atingir os 5%, nas crianças asmáticas. As reacções classificam-se em imediatas, quando o início ocorre nos primeiros minutos a várias horas após a última dose, ou tardias, se surgem após 24 horas.

Admite-se que a hipersensibilidade aos AINE se deve a alterações do metabolismo do ácido araquidónico (ex. reacções respiratórias ou cutâneas), o que implica risco de reacção a outros AINE, em particular, aos que sejam inibidores potentes da cicloxigenase 1 (COX1)(20). No entanto, quadros de urticária, angioedema e/ou anafilaxia associados a um único AINE apontam para a possibilidade de formação de IgE específicas.

O diagnóstico de hipersensibilidade baseia-se na história clínica e realização de prova de provocação oral com o AINE suspeito. Os testes cutâneos e /ou o doseamento de IgE específicas devem ser reservados para situações de suspeita de reacções IgE mediadas, apesar de a validade dos testes ainda não estar bem estabelecida.

É consensual o recurso a provas de provocação para avaliar a tolerância a AINE alternativos. Deve optar-se pelos fármacos de menor risco ou seja, utilizar AINE inibidores fracos da COX1 (ex. paracetamol), inibidores preferenciais da COX(ex. meloxicam e nimesulida) e inibidores selectivos da COX2, (ex. etoricoxib, celecoxib). No entanto, estes dois últimos grupos de fármacos não estão aprovados para uso em crianças pequenas, devendo a sua introdução ser apenas ponderada nas crianças mais velhas (acima dos 8 anos). Em situações particulares, de coexistência de patologia reumatológica e hipersensibilidade aos AINE, podem testar-se os inibidores da COX2, como por exemplo o etoricoxib e o celecoxib.

Vacinas

A alergia às vacinas é um problema comum nas crianças devido ao elevado número de doses administradas, não obstante a incidência de reacções adversas ser rara, de 1 a 3 reacções por milhão de doses de vacina.

Perante a suspeita de alergia às vacinas deve proceder-se à investigação alergológica com a realização de testes cutâneos e/ou doseamento das IgE específicas séricas, para exclusão do diagnóstico de modo a evitar o impedimento desnecessário da vacinação.

Na composição das vacinas podem encontrar-se várias fontes alérgénicas proteicas, relacionadas com os antigénios microbianos (ex. toxóide do tétano e difteria), meios de cultura, conservantes ou estabilizantes.

A vacinação de crianças alérgicas ao ovo é motivo de preocupação, nomeadamente a administração da vacina contra o sarampo, parotidite e rubéola (VASPR), apesar de esta não conter proteínas do ovo, pois é cultivada em células, fibroblastos de embrião de galinha. Em termos de recomendação, salienta-se que a administração da VASPR deve ser a usual, sem a realização prévia de testes nem modificação da dose.

Relativamente às vacinas que têm ovo na sua composição, existe um risco potencial de anafilaxia, dependendo da quantidade de proteínas alergénicas que contenham. Nos últimos anos, o conteúdo de ovalbumina da vacina anti-influenza tem vindo a diminuir, sendo actualmente menor do que 1 mg, o que torna a administração segura mesmo nos casos de alergia grave ao ovo. Apesar disso, a administração da vacina anti-influenza deve ser feita nos Centros de saúde, nas crianças com alergia ligeira ao ovo e nos Centros hospitalares de Imunoalergologia, nos casos de alergia grave ao ovo.

Existem ainda vacinas como a da febre amarela, contendo proteínas do ovo em maior quantidade; por isso, as crianças com alergia ao ovo que tenham necessidade de tomar estas vacinas devem ser referenciadas para a consulta de Imunoalergologia, para serem submetidas a testes com a vacina. A positividade dos testes implica a administração controlada da vacina de acordo com protocolo, com doses crescentes.

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ALERGIA DE EXPRESSÃO CUTÂNEA

Importância do problema e sistematização

Durante a observação de uma criança com patologia cutânea, e provável etiologia alérgica devem de imediato ser avaliadas, não só as características das lesões e sua distribuição, mas também a presença de prurido. Considerando a etiologia alérgica é necessário avaliar a sua gravidade, tendo em conta, não só cada episódio, mas também a probabilidade da sua recorrência e o risco de eventuais reacções graves. Entre as situações consideradas do foro alérgico com expresão cutânea há que distinguir as que comportam ou não um risco subsequente de desenvolvimento de outras doenças alérgicas, nomeadamente respiratórias. No âmbito das situações de alergia de expressão cutânea, são descritas as entidades clínicas dermatite atópica, urticária e prurigo-estrófulo. Relativamente à primeira, neste capítulo foca-se essencialmente a fisiopatologia e o diagnóstico diferencial, abordando-se os restantes aspectos na parte referente à Dermatologia Pediátrica. No que respeita à anafilaxia, que tem a mesma base fisiopatológica que a urticária e angioedema, recorda-se que foi abordada sucintamente noutro capítulo, sendo dada ênfase ao respectivo tratamento neste.

1. Síndroma de eczema / dermatite atópica

Definição e fisiopatologia

A dermatite atópica (DA) é uma doença inflamatória crónica da pele, muito pruriginosa, que com frequência ocorre em associação com problemas respiratórios, para a patogenia dos quais contribuem mecanismos imunológicos de hipersensibilidade imediata e retardada; esta heterogeneidade de respostas tem levado à substituição do termo dermatite atópica por um mais abrangente: síndroma eczema / dermatite atópica (SEDA), podendo ainda dividir-se em não alérgica e alérgica; esta última, por sua vez, pode estar ou não associada à presença de IgE específica (atópica ou não atópica).

Na SEDA existe uma resposta inflamatória, traduzida por um infiltrado linfo-histiocitário circundando os vasos da derme superficial, mesmo ao nível da pele sem lesões.

Na fase aguda o infiltrado linfocitário acentua-se e associa-se a fenómenos de espongiose ao nível da epiderme, a qual, se muito intensa, condicionará a ruptura das ligações entre queratinocitos com a consequente formação de vesículas. Os linfócitos associados aos processos crónicos de inflamação cutânea são portadores de um antigénio à sua superfície (antigénio do linfócito cutâneo), o qual, funcionando como receptor, se ligará ao contra receptor (E-selectina) existente no endotélio vascular.

Na fase crónica, ao nível da epiderme o infiltrado de células T e a espongiose são substituídos por hiperplasia e hiperqueratose, com concomitante aumento do número de células de Langherans com IgE à superfície. Também na derme o infiltrado linfocitário tem uma expressão mais reduzida, relativamente aos macrófagos, mastócitos e eosinófilos.

Para cada uma das fases descritas é possível encontrar um padrão característico de citocinas envolvidas, existindo uma mudança no perfil, inicialmente do fenótipo Th2 (fase aguda), para o fenótipo Th1 (fase crónica), justificando o mecanismo retardado existente na maioria dos doentes com DA.

Para além dos factores genéticos, das alterações constitucionais da pele e dos distúrbios imunes, muitos factores exógenos, específicos e inespecíficos, contribuem para a exacerbação da doença. A tradução clínica é relativamente monótona, sendo o prurido o sintoma sem o qual não se pode estabelecer o diagnóstico de eczema.

Na fase aguda estão presentes o eritema intenso e, por vezes, observam-se vesículas; na fase subsequente, ou subaguda, apresenta-se essencialmente uma secura intensa, ou xerose, com descamação; na fase crónica, para além do prurido associado a lesões em diferentes estádios, aparece outro tipo de lesões resultantes da inflamação persistente e do prurido, como as escoriações e a liquenificação. Os diferentes tipos de lesões de eczema podem coexistir nas distintas fases evolutivas.

A evolução característica ocorre com ciclos de exacerbação, por vezes associados a outras formas de doença alérgica (asma e/ou rinite alérgica que podem ocorrer em cerca de 50% destas crianças). A alteração da barreira cutânea por agentes químicos como solventes, desinfectantes ou soluções alcalinas permitem a persistência de lesões e a penetração de macromoléculas.

2. Urticária e angioedema

Definição e fisiopatologia

Urticária define-se como reacção cutânea característica constituída por pápulas fugazes (< 24 horas) edematosas, com um aspecto típico: redondas ou ovais, de dimensões variáveis, com superfície plana, da cor da pele ou rosa-pálido; o contorno é bem delimitado, por vezes com prolongamentos – os “pseudópodos” e, isoladas ou em grupos, tendem a confluir. Nas formas mais exuberantes existe contorno policíclico em “mapa geográfico”, eritematoso com centro pálido (em anel) (Figuras 1 e 2). O prurido está presente, sendo raros a dor e desconforto. Resultam de fenómeno de alteração vascular com vasodilatação e aumento da permeabilidade de capilares e vénulas da derme superficial.

Por vezes os episódios de urticária repetem-se durante dias ou semanas; convencionou-se a classificação de “aguda” para os casos com recorrências < 6 semanas, e de “crónica” para aqueles casos em que tal duração é superior.

FIGURA 1 e 2. Urticária. Pápulas isoladas e confluentes (NIHDE)

A urticária é uma patologia comum, estimando- se que possa afectar cerca de 15% da população em qualquer idade. O angioedema (edema angioneurótico ou edema de Quincke), correspondendo a um fenómeno (de aparecimento súbito) equivalente à urticária, e ocorrendo de modo circunscrito na hipoderme/tecido subcutâneo/submucoso, tem maior duração (1-5 dias). A área afectada em geral é circunscrita, está tumefacta, edematosa, mais pálida que eritematosa, é mais dolorosa do que pruriginosa e produz desconforto. Os locais onde mais frequentemente surge são pálpebras, lábios, língua, mãos, pés e genitais. Menos frequentemente o tracto gastrintestinal pode ser atingido originando náuseas, vómitos, diarreia e dores abdominais. Em comparação com a alteração vascular que surge na urticária, no angioedema a vasodilatação é menor, o edema é mais exuberante e o infiltrado celular inflamatório subcutâneo e ou submucoso é escasso ou ausente. Salienta-se que o angioedema muitas vezes pode associar-se a episódios de urticária (sobretudo crónica) ou alternar com os mesmos. Raramente (~10% dos casos) o angioedema ocorre sem urticária. As formas crónicas da síndroma urticária/ angioedema estão mais frequentemente associadas a patogénese por agentes físicos, reumática, endócrina, neoplásica e idiopática. Na origem da urticária e do angioedema situa-se o mastócito, célula dérmica cujos grânulos contêm substâncias vasoactivas (histamina, prostaglandinas, bradicinina, calicreína, leucotrienos, factor activador das plaquetas), as quais, libertadas durante o fenómeno reaccional, actuam sobre os vasos. A bradicinina tem papel importante na fisiopatologia do angioedema não associado a urticária. Episódios repetidos de angioedema poderão ocorrer (prevalência entre 1/10.000 a 1/ 50.000), na ausência de urticária, relacionados com défice hereditário (quantitativo ou qualitativo) do inibidor da esterase de C1 (do sistema do complemento) em relação com mutações no gene C1INH. Trata-se de doença autossómica dominante em que a deficiência do inibidor da esterase de C1 conduz à elevação de cininas, particularmente da bradicinina, com consequente vasodilatação e aumento da permeabilidade vascular. Para além das formas hereditárias, estão descritas formas adquiridas de défice de C1INH, por ex. no contexto de doenças autoimunes ou neoplásicas (linfomas B, tumores sólidos, etc.). Como factores desencadeantes de angioedema por défice de C1INH contam-se, entre outros, certos fármacos (IECA, anticonceptivos orais), traumatismos, infecções. O mecanismo mais frequente de desgranulação mastocitária é imunoalérgico e resulta da acção de IgE em combinação com determinados alergénios (medicamentos, proteínas, vegetais e animais, inaladas ou ingeridas). A associação a entidades nosológicas diferenciadas reflecte a diversidade de mecanismos subjacentes ao problema clínico em epígrafe (Quadro 1). A concentração de IgE no sangue circulante é baixa, mas a grande afinidade para a membrana dos mastócitos e a estabilidade da sua persistência nesta ligação explicam porque não são necessárias grandes concentrações de antigénio para se verificar o fenómeno de desgranulação e subsequente reacção.

QUADRO 1 – Urticária/Angioedema Classificação etiopatogénica

Infecções
Alimentos
Fármacos
Agentes biológicos
Defeitos genéticos (ex. angioedema hereditário)
Autoimune
Vasculite urticariana e linfocitária com normalidade do Complemento
Agentes físicos
Frio
Pressão
Vibratória
Solar
Aquagénica
Exercício
Associada a outras doenças
Reumáticas
Conectivopatias
Neoplasias
Tiroideia
Outras
Idiopática

Manifestações e formas clínicas

Urticária aguda

A urticária aguda na criança é habitualmente autolimitada e benigna, com duração de apenas alguns dias. As formas agudas, particularmente nos primeiros anos de vida, são mais frequentes do que as formas crónicas, sendo factores etiológicos mais comuns as infecções, a ingestão de alimentos e a administração de medicamentos; de referir que a etiologia é identificada ou suspeitada em 40 a 90% dos casos.

1. Infecções

Os quadros de urticária aguda na criança são, na sua grande maioria, de causa infecciosa vírica. É de referir que, com estes agentes, as lesões podem persistir por mais de 24 horas; por vezes, acompanham-se de lesão residual, traduzindo a existência concomitante de um processo de vasculite associada a imunocomplexos com antigénios de origem vírica (ex. vírus de Epstein-Barr, adenovírus, vírus influenzae, vírus sincicial respiratório, citomegalovírus, vírus herpes-varicela-zoster, parvovírus, enterovírus, rotavírus).
Também infecções bacterianas (estreptocócicas) e parasitárias podem originar tais manifestações cutâneas.
As infecções parasitárias poderão ser causa de urticária em zonas endémicas, particularmente em crianças com eosinofilia e IgE elevada; a ocorrência de urticária aguda e crónica foi relacionada com infestações por Toxocara canis e Giardia lamblia.
Estes quadros, frequentes, não constituem factor preditivo de outra patologia imunoalérgica.

2. Alimentos

Os sintomas podem surgir na sequência de contacto directo do alimento com a pele (alergénios lipofílicos); o leite, os peixes e os mariscos podem conduzir a este quadro. A síndroma de alergia oral é uma forma particular de urticária de contacto provocada por alimentos; é caracterizada por prurido e edema da mucosa oral, língua, lábios e orofaringe. Surge principalmente nos doentes com alergia a pólens, após a ingestão de certos frutos ou vegetais, por um mecanismo de reactividade cruzada IgE mediada. Esta síndroma afecta predominantemente adolescentes. As lesões de urticária podem também surgir na sequência de ingestão de alimentos. O leite, o ovo, o peixe, o amendoim, a soja e o trigo são os alimentos mais frequentemente em causa e o mecanismo implicado é mediado por IgE. Trata-se, em regra, de quadros de fácil identificação, surgindo as lesões entre 30 a 60 minutos após a ingestão do alimento; a evicção deverá levar à sua resolução num período de 24 horas.

3. Fármacos

Qualquer fármaco pode desencadear um quadro de urticária ou angioedema, embora os antibióticos beta-lactâmicos e os anti-inflamatórios não esteroides tenham um papel primordial (estes últimos raramente envolvidos nos grupos etários pediátricos). A reacção surge habitualmente durante os primeiros dez dias da administração do medicamento.
A enzima de conversão da angiotensina metaboliza a bradicinina. Daí que a administração de fármacos IECA, elevando os níveis de bradicinina, possa estar associada a angioedema (ver atrás).
As reacções adversas a fármacos, imunologicamente mediadas, têm uma incidência baixa (menos de 10%). Apesar disso, a incidência de exantema após utilização de fármaco na criança, nomeadamente antibióticos, é uma situação comum; contudo, nestes casos o antibiótico administrado é muitas vezes incorrectamente responsabilizado, visto que na maioria das situações os sintomas são causados pela infecção concomitante.
Se o fármaco for essencial à terapêutica do doente, o diagnóstico definitivo poderá exigir a realização de um teste de provocação por especialista experiente, em ambiente hospitalar e com disponibilidade de meios de reanimação. A indução de tolerância é reservada para os casos em que a administração do fármaco é imprescindível e não existe alternativa (ex. penicilina).

4. Agentes biológicos:

Veneno de himenópteros (vespa e abelha) e outros insectos. A picada ou mordedura com inoculação de vários agentes biológicos pode induzir uma reacção de urticária aguda que, embora na maioria das vezes seja local, pode ser acompanhada de manifestações sistémicas (de urticária generalizada a anafilaxia) em cerca de 5% dos casos.

Urticária crónica

Por definição, a urticária crónica caracteriza-se pela ocorrência de lesões diárias ou quase diárias, com ou sem angioedema acompanhante, durante um período superior a 6 semanas. Na criança a urticária crónica ocorre raramente.

Em 30-50% dos casos de urticária crónica demonstrou-se a presença de autoanticorpos estimulando mastócitos, o que sugere mecanismo autoimune, para alguns casos considerados antes relacionados com urticária crónica idiopática.

As urticárias físicas, subgrupo das urticárias crónicas (10 a 20%), são desencadeadas em indivíduos susceptíveis pela exposição a alguns estímulos ambientais como sejam o calor, o frio, a exposição solar, a água, o exercício, a pressão e a vibração. Com raras excepções, as lesões de urticária e/ou angioedema desenvolvem-se nas áreas da pele expostas, poucos minutos após a aplicação do estímulo físico, ainda que possam ocorrer de forma generalizada a toda a área corporal ou com manifestações sistémicas associadas; verifica-se em regra remissão espontânea, em poucas horas, embora existam formas mais duradouras. As formas retardadas (adquiridas ou familiares) frequentemente constituem problemas de diagnóstico, uma vez que não existe uma associação causal imediata.

As urticárias desencadeadas pelo calor, essencialmente a urticária colinérgica*, representam 2 a 7% das urticárias físicas e, a urticária ao frio, 3 a 5%, sendo esta a forma que mais frequentemente se encontra na prática clínica. As formas mais raras, com uma incidência inferior a 1%, correspondem às urticárias de pressão, solar, vibratória e aquagénica.

Nota: A urticária acompanha-se em geral de alteração da reactividade cutânea-vascular frente a estímulos traumáticos superficiais denominada dermografismo (ocorrendo em 2 a 5% da população geral). Pesquisa-se executando um traço na superfície da pele com estilete de ponta romba, resultando linha eritematosa persistindo cerca de 10-15 minutos.

*A designação deriva do mecanismo patogénico provável de hipersensibilidade à acetilcolina endógena produzida no organismo durante o exercício físico, quer nas placas motoras dos músculos estriados, quer nas glãndulas sudoríparas écrinas.

Diagnóstico

Como foi referido antes, o diagnóstico de urticária ou angioedema é clínico, baseando-se fundamentalmente nas características das lesões, evolução e na observação; a realização de biópsias cutâneas está reservada a algumas formas crónicas da doença.

Nos casos de angioedema, suspeitando-se de défice de C1INH, pode proceder-se ao respectivo rastreio através da determinação da fracção C4 do complemento, a qual está diminuída em todas as formas.

Uma vez confirmado o diagnóstico de urticária ou angioedema, é fundamental uma correcta caracterização das lesões quanto à localização e distribuição, dimensões, frequência, intensidade e factores condicionantes. Uma análise meticulosa deverá avaliar não apenas as características das lesões, mas também os antecedentes pessoais da criança, o seu ambiente doméstico e os hábitos, nomeadamente alimentares e medicamentosos.

As formas agudas, mais frequentes na infância, são habitualmente autolimitadas, raramente necessitando de uma avaliação diagnóstica aprofundada e respondendo adequadamente à terapêutica sintomática.

As formas crónicas, embora menos frequentes, exigem habitualmente, pelo carácter recorrente das lesões, uma investigação adicional (detecção de sensibilização alergénica; patologia infecciosa e autoimune ou neoplásica). Esta abordagem orientará também a escolha de um esquema farmacológico mais adequado à etiologia da urticária ou angioedema em questão.

A análise dos dados colhidos na história clínica, orientarão a investigação diagnóstica ulterior que se pretende esclarecedora mas, também, economicamente viável. Assim, proceder-se-á a uma selecção criteriosa dos exames subsidiários mais indicados a cada situação particular.

Exames para avaliação do estado geral da criança poderão ser úteis numa primeira abordagem: hemograma, determinação de parâmetros bioquímicos, determinação de imunoglobulinas séricas e fracções do complemento, proteína C reactiva, velocidade de sedimentação, exame parasitológico de fezes, etc..

As síndromas de causa física são habitualmente identificadas pela história clínica que permite reconhecer o estímulo desencadeante. A realização de testes específicos conduzirá ao diagnóstico definitivo.

O estudo alergológico, quando indicado, inicia-se habitualmente pela realização de testes cutâneos de alergia por picada aos aeroalergénios e/ou alergénios alimentares a que o doente está exposto de acordo com metodologia padronizada.

De salientar que a urticária crónica pode surgir como primeira manifestação de uma doença sistémica (ex: lupus eritematoso sistémico, tiroidite autoimmune, doença do soro); outros estudos imunológicos poderão então estar indicados como a pesquisa de anticorpos antinucleares, imunocomplexos circulantes ou anticorpos antitiroideus.

Tratamento

a-Urticária

Para além de cuidados gerais, incluindo os de assegurar uma adequada hidratação cutânea, a conduta terapêutica perante um quadro de urticária aguda passa, em primeiro lugar, pela eventual identificação e evicção do agente causal.

Os anti-histamínicos por via oral são os fármacos de eleição no tratamento farmacológico desta situação (a via tópica está proscrita pelo risco de sensibilização fotoalérgica e efeitos extrapiramidais), estando vários anti-histamínicos disponíveis, desde a hidroxizina à cetirizina, loratadina, mizolastina, fexofenadina ou ebastina, aos mais recentes: levocetirizina e desloratadina.

O tratamento deve durar, em média, 5 a 10 dias; no plano terapêutico, a monoterapia com anti-histamínicos constitui o esquema farmacológico, particularmente nas formas agudas, em função da gravidade e da resposta clínica. A associação de duas moléculas distintas representa o escalão de actuação seguinte.

Justifica-se a utilização de corticosteróide sistémico nos casos mais graves, com lesões exuberantes e generalizadas, quando associados a angioedema ou em reacções anafilácticas, (nestas últimas após o tratamento inicial com adrenalina). Devem ser usados ciclos muito curtos (3 a 5 dias) de prednisolona ou equivalente na dose de 0,5 a 1mg/Kg/dia.

A evicção de alimentos ricos em histamina (marisco, bacalhau, morango, cacau, tomate, enlatados, charcutaria, queijos fermentados, entre outros) também têm o seu papel durante a fase aguda; de realçar o papel modesto dos alimentos na etiopatogénese da urticária na criança (aguda ou crónica) ao contrário do que é geralmente assinalado.

Nas urticárias crónicas estão indicados antihistamínicos tipo bloqueantes H2 nos casos sem resposta aos de tipo anti-H1 (por exemplo cimetidina).

De referir efeito sinérgico pela associação dos Anti-H1 + Anti-H2.

b-Angioedema hereditário

Esta forma de angioedema não responde aos anti-histamínicos

nem aos corticóides. Tratando-se da modalidade desencadeada pelos IECA, a medida prioritária é a interrupção do respectivo fármaco, verificando-se melhoria em 48-72 horas. A verificação de edema laríngeo/da glote (ou crise abdominal grave) implica administração de adrenalina, e entubação traqueal no caso de ineficácia da adrenalina.

Tratando-se de défice de inibidor da esterase de C1 (C1INH) está indicada idealmente a administração de concentrado de C1INH (ou plasma fresco congelado na impossibilidade de utilizar o primeiro).

Tratando-se duma situação caracterizada por episódios repetidos de angioedema, fora da crise, deverá actuar-se com medidas preventivas como antifibrinolíticos (por ex.ácido aminocapróico e ácido transexâmico) e androgénios de baixa dosagem (por ex. danazol).

Como nota importante, há que referir que se trata de situações para tratamento em centros especializados.

c-Anafilaxia

Tratando-se duma emergência médica, constituem prioridades, para além da administração imediata de adrenalina, a manutenção da via aérea e da circulação, salientando-se que pode haver associação a angioedema e obstrução brônquica.

A mortalidade atribuída à anafilaxia na sequência de colapso cardiocirculatório deve-se fundamentalmente ao atraso na administração de adrenalina, para além de 30 minutos após início dos sintomas.

As medidas de reanimação incluem oxigenoterapia, fármacos vasoactivos, broncodilatadores inalados (como albuterol) e antagonistas de H1e H2. Os corticóides estão indicados como anti-inflamatórios nas 8-12 horas subsequentes às medidas descritas.

Os casos de anafilaxia em doentes tratados com antagonistas beta-adrenérgicos podem ser refractários à adrenalina. em tal contexto estão indicados glucagom ou atropina (situações para tratamento em centros especializados).

Após a alta o doente deve ser portador de estojo/Kit com adrenalina para ser aplicada por automedicação em casos de recorrência dos sintomas segundo as instruções do médico-assistente.

3. Prurigo estrófulo

Definição

A designação de prurigo é latina e dela deriva o termo prurido.

O prurigo estrófulo ou urticária papular é uma patologia inflamatória cutânea, definida pela existência de máculo-pápulas, do tamanho de cabeça de alfinete com ou sem vesículas, eritematosas e pruriginosas; é frequentemente observada na sequência de picada ou contacto cutâneo com insectos. Sobre o papel da ingestão de certos alimentos não existe consenso. Os grupos etários pediátricos são os mais afectados. Os insectos mais frequentemente incriminados na etiologia do prurigo estrófulo, são os artrópodes, de que é exemplo o Culex pipiens (melga comum) que se encontra em todo o mundo à excepção da Antártida. É conhecido como o mosquito doméstico, por muitas vezes se desenvolver em pequenos reservatórios de água, perto ou dentro das casas. As suas larvas desenvolvem-se em águas estagnadas, com abundância de matéria orgânica.

Esta patologia não constitui factor de risco de expressão de outras doenças alérgicas, exceptuando dermatite atópica.

Fisiopatologia

A pápula associada à picada de insecto foi inicialmente encarada como uma reacção mastocitária cutânea ao componente mecânico dessa mesma picada, decorrente da inoculação de algumas proteínas, nomeadamente enzimas (hialuronidase); existem estudos que objectivam a presença de depósitos de imunoglobulinas e factores de complemento nos vasos da derme sugerindo hipersensibilidade do tipo III (e talvez do tipo I), que justificaria a presença de lesões afastadas do local de contacto dos artrópodes.

A intensidade da reacção e sua consequente expressão clínica são influenciadas pela idade. As picadas sucessivas induzem habitualmente um estádio de tolerância.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Factores como a permanência prolongada no exterior dos edifícios (durante a prática desportiva, casual ou recreativa), o suor, os odores fortes, a pele quente e o movimento, parecem aumentar a susceptibilidade à picada.

A reacção clínica à picada pode incluir dois mecanismos: um imediato (minutos após) mais frequentemente traduzido por quadro de eritema e pápula, menos frequentemente por edema extenso ou anafilaxia; e, um retardado (horas).

Este último tem tradução preferencial nas crianças manifestando-se, por ordem decrescente de frequência, por pápulas muito pruriginosas, vesículas, lesões pustulares e exantema semelhante ao eritema multiforme.

O diagnóstico depende do reconhecimento das lesões e, em alguns casos, da identificação do agente causal (especialmente insectos). Não está habitualmente indicada a realização de exames auxiliares de diagnóstico.

Prevenção e tratamento

As medidas de prevenção assentam no uso de roupas que cubram áreas do corpo expostas e na utilização de repelentes de insecto aplicados na pele da criança, em pulseiras ou no próprio vestuário; pode ser recomendado o uso de mosquiteiros e insecticidas, e também a desinfestação do ambiente. A terapêutica tópica, para além da aplicação de emolientes, inclui a prescrição de corticóides que têm um efeito anti-inflamatório; não deverão ser prescritos anti-histamínicos tópicos, que podem desencadear sintomas extrapiramidais ou dermatite de contacto fotoalérgica. Os anti-histamínicos diminuem o eritema, o tamanho da pápula e, a intensidade do prurido; também exercem influência na menor expressão da reacção tardia, pelo que devem ser utilizados como profilácticos (anti-histamínicos não sedativos) durante períodos prolongados (semanas a meses) nos casos de agudizações sucessivas.

Na fase aguda o intenso prurido pode tornar preferíveis os anti-histamínicos de primeira geração, como a hidroxizina, pelo seu efeito sedativo adicional. Os corticóides sistémicos podem ser considerados apenas quando são atingidas grandes áreas corporais, se verifica a reactivação de zonas anteriormente picadas, e nos casos raros de anafilaxia; nestas últimas situações o uso de adrenalina coloca-se na primeira linha de actuação (ver atrás).

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RINITE ALÉRGICA

Definição e importância do problema

A rinite alérgica é uma doença inflamatória crónica da mucosa nasal, resultante de uma reacção de hipersensibilidade imunologicamente mediada, em que se verifica rinorreia serosa, obstrução e prurido nasais, e crises esternutatórias; por vezes é acompanhada de irritação conjuntival.

A prevalência da rinite alérgica tem vindo a aumentar progressivamente nos últimos anos, a par do aumento da prevalência das outras patologias alérgicas. Estima-se que actualmente a rinite alérgica tenha uma prevalência global de 20 a 40% na população mundial, iniciando-se frequentemente as queixas nas primeiras décadas de vida. A avaliação do estudo epidemiológico ISAAC (International Study of Asthma and Allergies in Childhood) demonstrou que 24% das crianças com 6-7 anos e 27% dos adolescentes (13/14 anos) referiam queixas compatíveis com o diagnóstico de rinite alérgica nos últimos doze meses. Os estudos ARPA (Avaliação de Prevalência e Caracterização da Rinite em Portugal Continental) avaliaram a prevalência de rinite em diversos grupos etários, incluindo crianças de idade pré-escolar, adultos e idosos. Nos estudos ARPA-Kids foram avaliadas, por questionário, 5018 crianças entre os 3 e os 5 anos, tendo-se encontrado uma prevalência de rinite de 22%. O diagnóstico médico de rinite tinha sido efectuado em 36% das crianças com clínica e nos últimos 12 meses apenas 37% tinham sido medicadas.

Trata-se de uma doença bastante prevalente, mas frequentemente não diagnosticada e não tratada, com importantes repercussões na qualidade de vida e no desempenho escolar das crianças.

Classificação

A classificação da rinite mais aceite actualmente baseia-se nas características temporais da doença e nas repercussões na qualidade de vida do doente. Assim, a rinite é classificada em intermitente ou persistente, quanto à duração da doença; e em ligeira ou moderada a grave, quanto à intensidade dos sintomas e repercussão sobre a qualidade de vida e actividades diárias (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação da rinite alérgica

1. Intermitente
Sintomas < 4 dias por semana ou < 4 semanas
2. Persistente
Sintomas > 4 dias por semana e > 4 semanas
3. Ligeira
Sono normal e:
– actividades diárias, desportivas e de tempos livres normais
– actividades laborais e escolares normais
– sem sintomas perturbadores
4. Moderada-grave
Uma ou mais situações:
– sono anormal
– repercussão nas actividades diárias, desportivas e tempos livres
– problemas na escola

Manifestações clínicas e diagnóstico

história clínica é essencial para o diagnóstico preciso de rinite alérgica e avaliação da sua gravidade. Os sintomas incluem obstrução nasal, rinorreia, prurido nasal e crises esternutatórias, podendo cada doente apresentar predomínio de um ou mais sintomas. Podem surgir sintomas associados, nomeadamente roncopatia e/ou distúrbios do sono, cansaço e mau rendimento escolar, corrimento nasal posterior, tosse crónica e perda de olfacto. O perfil temporal, a relevância dos sintomas e a resposta à terapêutica deverão ser avaliados. É também importante investigar eventuais factores desencadeantes e avaliar o contexto ambiental da criança, incluindo exposição alergénica e tabagismo passivo. A existência de outras manifestações da doença alérgica, nomeadamente asma, conjuntivite, eczema e antecedentes familiares de alergia apoiam o diagnóstico de rinite alérgica.

exame objectivo pode auxiliar no diagnóstico de rinite alérgica. Pode observar-se fácies característica, com obstrução nasal e respiração oral com a boca entreaberta, existência de prega atópica nasal e olheiras. Em situações de maior cronicidade poderá mesmo haver anomalias do desenvolvimento facial com má oclusão dentária.

A observação das fossas nasais com uma fonte de luz incidindo sobre o vestíbulo nasal permite observar rinorreia, habitualmente aquosa, hipertrofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores e desvios do septo nasal.

Os testes cutâneos por picada, úteis a partir dos primeiros anos de vida, são largamente utilizados para confirmar o diagnóstico de rinite alérgica-IgE mediada, permitindo identificar os alergénios implicados. Na impossibilidade da sua realização por problemas de pele (eczema ou urticária) ou quando a criança está medicada com anti-histamínicos que anulam o resultado dos testes, poderão efectuar-se análises sanguíneas, com doseamento de IgE específica.

A radiografia dos seios perinasais não está indicada no diagnóstico de rinite alérgica. A radiografia do cavum, de perfil, permite demonstrar a existência de hipertrofia das adenóides. A tomografia axial computadorizada (TAC) dos seios perinasais é um exame radiológico importante para avaliar complicações ou patologias associadas.

Doenças associadas e complicações

A rinite alérgica ocorre muito frequentemente associada à asma brônquica, embora a natureza desta ligação não esteja totalmente esclarecida. Discute-se actualmente as relações entre a patologia alérgica das vias aéreas superiores e inferiores, partilhando aspectos relacionados com a inflamação numa mucosa respiratória contígua. Por outro lado, quando o nariz está obstruído, a respiração faz-se pela boca, o que aumenta a entrada de poluentes e alergénios directamente para os brônquios, sem serem filtrados no nariz.

Num estudo prospectivo nacional, com a duração de oito anos, onde foram incluídas crianças com hiperreactividade brônquica em idade pré-escolar, a rinite foi identificada como o principal factor de risco independente da persistência dos sintomas, mesmo nas crianças que não eram atópicas na data da inclusão.

As queixas nasais devem ser sempre valorizadas. Salienta-se, a propósito, que quem tem rinite tem maior probabilidade de ter asma, e que a rinite não controlada contribui para um pior controlo da asma e para a persistência dos sintomas na idade adulta. O tratamento adequado da rinite reduz a ocorrência de crises de asma e pode também diminuir o número de internamentos motivados por esta doença.

Outras doenças alérgicas estão frequentemente presentes, devendo ser investigadas e tratadas, nomeadamente conjuntivite alérgica e eczema.

A inflamação crónica subjacente à rinite alérgica estende-se à mucosa de revestimento dos seios perinasais predispondo à ocorrência de quadros de rinossinusite. O bloqueio funcional dos ostiae dos seios perinasais inicia as alterações fisiopatológicas que levam ao aparecimento de rinossinusite. Alguns factores mecânicos podem contribuir para quadros prolongados ou recorrentes de rinossinusite, dos quais o mais frequente, nas crianças pequenas, é a hipertrofia das adenóides, mas o desvio do septo nasal também pode ser uma causa. Importa, no entanto, referir que a maioria dos quadros agudos de rinossinusite na criança é causada por infecções víricas, com possibilidade de sobreinfecção bacteriana. A rinossinusite é também uma das causas mais frequentes de tosse crónica na criança.

A obstrução nasal pode provocar alterações no ritmo do sono, sonolência diurna e dificuldades de concentração e de aprendizagem. A ocorrência de otite seromucosa e défice auditivo contribui para os problemas de aprendizagem e mau rendimento escolar, com implicações a nível psíquico e social.

Tratamento

O tratamento da rinite inclui medidas gerais e de controlo ambiental, os medicamentos e as vacinas antialérgicas.

O primeiro passo consiste na evicção alergénica, devendo ser recomendada desde os primeiros sintomas da doença. As medidas de evicção deverão incidir sobre os ácaros do pó, animais domésticos, baratas, fungos e poluentes. É fundamental a evicção de tabagismo passivo, importante factor de risco do aparecimento e gravidade da doença alérgica.

Habitualmente o controlo ambiental não é suficiente e existe necessidade de instituir terapêutica médica. O tipo de fármacos a utilizar depende da gravidade da doença e também dos sintomas mais importantes em cada doente.

Os anti-histamínicos são considerados, por alguns autores, os fármacos de primeira linha no tratamento da rinite alérgica. Actuam como antagonistas dos receptores H1 reduzindo o prurido nasal, os espirros e a rinorreia, sendo, no entanto, pouco eficazes na redução da obstrução nasal. Os anti-histamínicos de 1ª geração não devem ser utilizados pelos seus efeitos secundários, podendo diminuir as capacidades intelectuais das crianças em idade escolar. Os anti-histamínicos de 2ª geração atravessam pouco a barreira hematoencefálica pelo que são bem tolerados, provocando menos sonolência e efeitos acessórios. São habitualmente administrados por via oral, apenas uma vez ao dia, aliviando os sintomas nasais, mas também oculares e cutâneos, caso existam outras doenças alérgicas. Os anti-histamínicos tópicos, aplicados no nariz e nos olhos, têm um rápido início de acção e são habitualmente bem tolerados. Necessitam, no entanto, de ser aplicados duas vezes ao dia para manter a eficácia.

Os corticosteróides têm um papel central no tratamento da rinite alérgica, actuando pelo seu potente efeito anti-inflamatório. São usados geralmente sob a forma tópica, mas nas situações graves podem ser usados por via sistémica, por períodos de 3 a 5 dias. As formas depot de administração sistémica não devem ser utilizadas. Os corticosteróides tópicos reduzem a obstrução nasal, a rinorreia, os espirros e o prurido nasal, sendo mais eficazes do que os anti-histamínicos no controle da obstrução nasal. As doses são variáveis de acordo com a idade, a gravidade da patologia e o corticosteróide seleccionado. Com a posologia correcta são habitualmente fármacos seguros, nomeadamente no que respeita ao crescimento da criança, mesmo em terapêuticas prolongadas. Um aspecto importante é o seu início de acção lento, podendo recorrer-se aos descongestionantes nasais, nos primeiros dias de tratamento, para se obter um efeito mais rápido sobre a obstrução nasal.

As cromonas são seguras, mas apresentam menor eficácia que os anti-histamínicos e os corticosteróides nasais. Pela frequência de administração diária (três a quatro vezes) colocam problemas de adesão à terapêutica.

Os antileucotrienos inibem a acção dos leucotrienos C4 e D4 que são importantes mediadores da inflamação. São usados particularmente em crianças que apresentam também asma brônquica ou sibilância relacionada com infecções virais.

As vacinas antialérgicas são um tratamento dirigido especificamente à causa das alergias de cada doente. Podem ser administradas por injecção ou em gotas que se colocam debaixo da língua. Estão recomendadas em crianças, geralmente acima dos 5 anos. É um tratamento que para além de melhorar os sintomas da doença, pode alterar o curso da doença alérgica a longo prazo, incluindo evitar o aparecimento de asma em crianças com rinite. Deve ser sempre indicada e monitorizada por imunoalergologistas.

De acordo com a actual classificação da rinite alérgica, a abordagem terapêutica desta doença baseia-se na sua periodicidade e gravidade.

Nas formas ligeiras de rinite intermitente podem usar-se os anti-histamínicos orais ou nasais ou os descongestionantes nasais, estes últimos durante um curto período de tempo. Nas formas moderadas/graves usam-se os anti-histamínicos associados a corticosteróides nasais e, eventualmente, um curto período de vasoconstritores. Nas fases agudas pode ser necessário recorrer a corticosteróides orais. O doente deverá ser reavaliado após 2 a 4 semanas, e a terapêutica reajustada.

Na rinite persistente existe habitualmente inflamação permanente da mucosa, pelo que a terapêutica medicamentosa deverá ser mantida por períodos prolongados. Nas formas ligeiras podem ser utilizados anti-histamínicos ou corticosteróides nasais. Uma possível abordagem é a utilização de anti-histamínicos por um período de 2 a 4 semanas; e, se não ocorrer melhoria, deverá proceder-se ao início de corticosteróides nasais. Nas formas moderadas/graves os corticosteróides nasais são a terapêutica de primeira linha. Quando necessário, deve efectuar-se terapêutica com corticosteróides orais ou descongestionantes por um curto período de tempo. Associam-se anti-histamínicos se estiverem presentes prurido nasal, crises esternutatórias e rinorreia importantes. Os antileucotrienos poderão ser alternativa em crianças com rinite e asma, particularmente asma de esforço ou em crianças com sibilância recorrente associada a infecções. Poderão também ser associados em situações de rinite de difícil controlo.

Os doentes deverão ser reavaliados regularmente, mantendo a mínima terapêutica necessária para controlar os sintomas.

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ASMA

Definição e importância do problema

A asma é uma doença heterogénea geralmente caracterizada pela existência de inflamação crónica das vias aéreas, sendo definida por uma história de sintomas respiratórios, como tosse, sibilância / pieira, dispneia e opressão torácica, que variam ao longo do tempo e em intensidade, em conjunto com uma limitação variável do fluxo aéreo expiratório. O cansaço, em repouso ou com o esforço, é igualmente um sintoma muito referido pelos asmáticos de todos os grupos etários.

Esta doença afecta cerca de 10% da população mundial, representando um importante problema de Saúde Pública, quer pela sua prevalência e gravidade, quer pelos custos sociais e económicos que acarreta. Associa-se ainda a outras doenças alérgicas, como a rinite alérgica e a dermatite atópica.

O impacte da doença na qualidade de vida das crianças é considerável, devido a todas as restrições físicas, emocionais e sociais que muitas vezes lhe estão associadas. Importa então conseguir um controlo mantido da doença a um custo sustentável, minimizando o seu efeito nas actividades quotidianas.

Os custos directos relacionados com o tratamento farmacológico, representam apenas uma pequena percentagem dos custos globais da doença, estes muito mais afectados pelos episódios de agudização, pelos internamentos, pelo absentismo escolar e laboral, bem como pela mortalidade associada. Os países desenvolvidos despendem com a asma até 2% das suas despesas em saúde. Mas os custos da doença não controlada são sempre superiores pelo que importa investir em medidas de prevenção.

No nosso país a abordagem da asma, particularmente nos seus aspectos relacionados com a monitorização e tratamento que permitem alcançar o controlo, é regulada pela Norma de Orientação Clínica: Monitorização e Tratamento Para o Controlo da Asma na Criança, no Adolescente e no Adulto (Direcção Geral da Saúde e Ordem dos Médicos).

Etiopatogénese

A asma é uma doença inflamatória crónica complexa, envolvendo múltiplas células (linfócitos, mastócitos, eosinófilos, entre outras) e mediadores celulares. As alterações inflamatórias presentes conduzem ao edema, à hipersecreção de muco, ao aumento da contractilidade das vias aéreas, à obstrução brônquica e à hiperreactividade ou hipersusceptibilidade das vias aéreas, quer a factores específicos (ex. alergénios), quer a inespecíficos (por ex. vírus, poluentes), levando ao aparecimento dos sinais e sintomas característicos. As consequências a longo prazo podem levar à obstrução fixa das vias aéreas e a outros fenómenos da remodelação, correspondente à cicatrização da inflamação crónica.

É esta uma doença multifactorial, dependente da interacção entre factores genéticos e ambientais, iniciando-se as manifestações clínicas na idade pediátrica na maioria dos casos. O aumento recente na prevalência e gravidade das doenças alérgicas em geral e particularmente da asma brônquica na criança, não poderá ser explicado apenas por factores genéticos. Reforça-se assim o papel do ambiente, nas suas componentes do interior e do exterior dos edifícios (Figura 1); por outro lado, diferentes prevalências em populações submetidas a condições ambientais semelhantes realçam a importância dos factores genéticos.

FIGURA 1. A transmissão genética da predisposição para asma, hiperreactividade brônquica e atopia ocorre de modo independente; chama-se a atenção para a influência ambiental marcada

História natural e factores de risco

A história natural da asma em idade pediátrica é uma preocupação significativa, quer para a família das crianças atingidas, quer para os próprios clínicos que as seguem: Passará a doença com a idade? Agravar-se-á? Melhorará? Qual será o efeito do tratamento? Poderão existir alterações irreversíveis da função respiratória em idade precoce?

Estas questões frequentemente formuladas, ficam habitualmente por responder, até porque continua a existir uma atitude pouco esclarecida na abordagem da doença asmática neste grupo etário, associando-a quase invariavelmente a um bom prognóstico clínico, o que frequentemente não se verifica, a curto e a longo prazo. A revisão de vários estudos prospectivos demonstra que os sintomas tendem a persistir durante a vida, particularmente quando está subjacente uma inflamação alérgica das vias aéreas, típica da asma pediátrica, apesar de serem previsíveis períodos assintomáticos de duração variável.

A taxa de internamento por esta doença nas últimas décadas tem-se mantido estável, continuando a atingir maioritariamente a idade pediátrica. Dados recentes mostram que no nosso país mais de metade dos internamentos por asma corresponde a casos pediátricos e que cerca de um terço das crianças asmáticas tem pelo menos um internamento devido à sua doença, situação que devemos considerar intolerável.

A assistência a crianças com doença grave em consultas diferenciadas, particularmente se já sujeitas a internamento ou a múltiplos recursos a serviços de urgência, justifica uma referenciação atempada. E existem experiências muito positivas que demonstram que é possível minimizar o número de internamentos quando se cumprem algumas condições, tal como aconteceu no Hospital de Dona Estefânia como demonstram os resultados alcançados: reduziu-se para 10% o número de internamentos no intervalo duma década: 1º) por existência de um protocolo para o tratamento das agudizações com recurso a broncodilatadores inalados e a corticóides sistémicos; 2º) por referência sistemática dos casos de mais difícil controlo observados nos serviços de urgência para consulta especializada e, finalmente; 3º) após a avaliação clínica em consulta, para além da programação de medidas de controlo ambiental, instituição precoce de terapêutica anti-inflamatória de controlo, nomeadamente com recurso a corticóides inalados e planeamento do tratamento da agudização asmática.

A existência de inflamação nas vias aéreas da criança asmática desde a idade pré-escolar leva a considerar a existência precoce de remodelação das vias aéreas, transversal a todo o espectro de gravidade, constituindo argumentos a favor do desenvolvimento de sequelas respiratórias e indicando uma terapêutica anti-inflamatória; efectivamente tem sido demonstrado que, mesmo em lactentes asmáticos não tratados, a função respiratória degrada-se, confirmando que a inflamação crónica é prejudicial desde os primeiros anos de vida.

Para além das influências genéticas, a epidemia de doença alérgica ocorrida nas últimas décadas, como é o caso da asma, da rinite alérgica, da dermatite atópica ou da alergia alimentar, o aumento recente da incidência das doenças auto-imunes, como é o caso da artrite reumatóide ou da diabetes, a eclosão de doenças inflamatórias intestinais, nomeadamente da doença de Crohn ou da colite ulcerosa, são algumas das doenças crónicas em que a modificação ou desequilíbrio do microbioma, directa ou indirectamente, está envolvido. Nas situações de obesidade, para citar outra patologia emergente, a composição da microbiota, nomeadamente intestinal, está significativamente alterada. E é bem sabida a relação entre obesidade e asma embora também se faça recentemente a reflexão sobre a ocorrência de uma taxa considerável de sobrediagnóstico de asma entre crianças com excesso de peso / obesas.

Como condicionantes do aumento de prevalência da asma brônquica, particularmente em idade pediátrica, estão bem documentados os efeitos de alguns alergénios (por ex. ácaros, pólenes), dos poluentes (por ex. tabagismo) e das infecções (por ex. redução de infestações parasitárias e de algumas infecções bacterianas), bem como dos factores socioeconómicos e genéticos. Estudos recentes têm identificado múltiplos genes associados à asma ou ao fenótipo atópico (por ex. IL4, IL13, CD14, ADRB2, HLA-DRB1, HLA-DQB1, TNF-LTA, FCERIB, IL4R, ADAM33, STAT6, GSDML) influenciando, quer a incidência da doença, quer as suas características clínicas.

Entre os factores de risco que têm sido identificados para a expressão da doença asmática na criança, alguns serão assim dificilmente susceptíveis de prevenção, nomeadamente os genéticos, contrastando com os ambientais (por ex. exposição alergénica, tabagismo e outros poluentes, infecções víricas, regime alimentar, obesidade, sedentarismo), de cuja modulação podem ser esperados ganhos significativos nomeadamente em termos de gravidade.

Mas é esta uma área em que o conhecimento evolui constantemente, e em que resultados controversos são encontrados. Como exemplo, podemos citar os resultados contraditórios que têm sido encontrados entre o aumento do risco de asma em filhos de gestantes com deficiência de vitamina D; de acordo com estudos aleatorizados e controlados recentes, não existe actualmente evidência científica que permita suportar a suplementação com vitamina D como forma de prevenir ou melhorar o controlo da asma pediátrica, nomeadamente reduzindo as agudizações.

Critérios de gravidade e classificação

Na classificação da gravidade devemos considerar diferentes níveis que se relacionam com os degraus terapêuticos que permitem obter o seu controlo. Ou seja, será esta uma classificação baseada nos sintomas e no resultado da avaliação funcional respiratória (espirometria), que habitualmente será efectuada retrospectivamente, embora possa ter a sua aplicação, quer em estudos clínicos, quer em rastreios epidemiológicos. Em centros diferenciados é possível determinar a fracção do óxido nítrico exalado (FENO), marcador da inflamação eosinófilica, que pode contribuir para aferir do efeito da medicação instituída; no entanto, a sobreposição e a variabilidade de resultados e a falta de limiares de positividade bem estabelecidos leva a que estas medições não estejam ainda suficientemente validadas e logo recomendadas em idade pediátrica.

A asma ligeira será a que corresponde ao indivíduo que apresenta sintomas ocasionais, não diários, ou sintomas nocturnos >2 vezes/mês mas <1 vez/semana e cuja função pulmonar (volume expiratório máximo no 1º segundo – FEV1) apresenta valores superiores a 80% do valor teórico previsto, correspondendo aos degrau 1 e 2 do tratamento; asma moderada, descreve-se quando os sintomas são diários, afectando a actividade diária, ou sintomas nocturnos >1 vez/semana, ou estando a função respiratória entre 60 e 80% do valor teórico previsto, e que corresponde ao degrau 3 do tratamento; asma grave, com sintomas contínuos e actividade física muito limitada, sendo os sintomas nocturnos também muito frequentes, encontrando-se a função respiratória com valores inferiores a 60% do previsto, sendo necessária a instituição de medicação dos degraus 4 e 5.

É de referir que a existência de, pelo menos, um critério de gravidade (sintomas diurnos, nocturnos ou função pulmonar) coloca o asmático nesse patamar de gravidade. No caso de existirem agudizações graves, mesmo que pouco frequentes, deverá ser a criança classificada como tendo o equivalente a uma asma persistente moderada, correspondendo à instituição de medicação de controlo do degrau 3.

FIGURA 2. Padrão radiográfico do tórax (PA) de asma com enfisema (NIHDE)

Quanto à classificação dos episódios agudos de asma, caracteriza a crise ligeira a existência de tosse e pieira audível, mas sem diminuição da actividade física, sem aumento da frequência respiratória, sem cianose, permitindo pronunciar frases extensas e não interferindo na actividade escolar; função respiratória dentro da normalidade; melhoria espontânea ou com doses habituais de β2-agonistas; na crise moderada evidencia-se o uso dos músculos acessórios, um aumento da frequência respiratória, uma restrição da marcha, apenas permitindo pronunciar até cerca de 5 palavras seguidas; interferindo na frequência escolar; necessitando de maiores doses de β2-agonistas e, com frequência, também de corticóides orais; na crise grave a cianose está presente, tal como dificuldade respiratória marcada, por vezes já sem sibilos audíveis, só permitindo pronunciar até 3 palavras; existe incapacidade na marcha, com resposta débil aos β2-agonistas; é necessária a monitorização da saturação em oxigénio e oxigenoterapia, implicando cuidados hospitalares urgentes / emergentes.

A Figura 2 mostra uma radiografia do tórax (póstero-anterior) de uma criança de 8 anos com uma crise de asma: sinais de hiperinsuflação pulmonar, horizontalização das costelas, abaixamento do diafragma e acentuação do retículo peribrônquico.

Controlo da asma

A asma quando não está controlada perturba muito a qualidade de vida, quer da criança, quer dos seus cuidadores. Falta de controlo significa passar mal durante o dia e/ou dormir mal, não ter uma actividade física normal, necessitar regularmente de medicação de alívio, ter crises de dispneia, necessitar de recorrer a serviços de urgência ou a consultas não planeadas ou ficar internado.

Actualmente, a abordagem a longo prazo da asma deslocou-se da estimava da gravidade da asma, para a avaliação do controlo dos sintomas (Quadro 1), apostando em assegurar que o asmático, de todos os grupos etários, pode ter uma vida normal que não é influenciada pela doença. Compete ao clínico, em parceria com a criança e os seus cuidadores, definir a abordagem que permita alcançar o controlo total da doença, bem como a avaliação e redução do risco futuro relacionado com o prognóstico, dependente do risco de agudizações, da obstrução das vias aéreas e dos efeitos secundários potenciais das medicações (Quadro 2).

De acordo com os sintomas antes do tratamento, que classifica a gravidade da doença tal como foi referido, assim será definido o degrau terapêutico a instituir (Quadros 3, 4 e 5).

QUADRO 1 – Níveis de controlo dos sintomas de asma (adaptado de GINA / NOC 065/2011, revisão 2016). Qualquer agudização exige reavaliação do tratamento de controlo; por definição, uma agudização, em qualquer semana, identifica asma não controlada

Crianças, adolescentes e adultos
Controlo dos sintomas
Nas últimas 4 semanas:
Sintomas diurnos em 2 ou mais dias/semana?Sim □ Não □
Algum despertar nocturno por asma ou tosse nocturna?Sim □ Não □
Medicação de alívio em 2 ou mais dias/semana?Sim □ Não □
Alguma limitação na actividade condicionada pela asma? (comparativamente a outros indivíduos do mesmo grupo etário)Sim □ Não □
Nível de controlo da asma
Bem controladaParcialmente controladaNão controlada
 Nenhum dos anteriores1 a 2 dos anteriores3 a 4 dos anteriores

QUADRO 2 – Avaliação do risco futuro em crianças e adolescentes com diagnóstico de asma (adaptado de GINA / NOC 065/2011, revisão 2016)

– Avaliação dos factores de risco à data do diagnóstico e periodicamente, particularmente asmáticos com agudizações recentes.
– Avaliação da função pulmonar, nomeadamente por espirometria, de acordo com as especificidades etárias no início do tratamento e periodicamente para monitorização e avaliação do risco futuro.
Factores de risco para agudizações
Sintomas de asma não controlada
Pelo menos uma agudização grave no último ano
Início habitual das agudizações de forma sazonal (outono/inverno/primavera)
Uso excessivo de beta-2 agonistas de acção curta (numa base quase diária)
Terapêutica inadequada com corticóide inalado: não prescrito, adesão deficiente, técnica inalatória incorrecta
Redução do FEV1 particularmente se < 60% do valor teórico previsto
Factores psicológicos ou socioeconómicos major (do asmático, da família / cuidadores)
Exposição: tabaco, aeroalergénios, outros poluentes ou irritantes inalatórios, particularmente quando coincidente com infecção viral
Comorbilidades: obesidade, doença do refluxo gastresofágico, rinite / rinossinusite, dermatite atópica, alergia alimentar, anafilaxia, síndroma de apneia obstrutiva do sono, insuficiência cardíaca, tromboembolismo pulmonar
Eosinofilia sanguínea ou na expectoração
Gravidez (em especial na adolescente)
Internamente anterior com ou sem ventilação mecânica
Factores de risco para desenvolvimento de obstrução brônquica fixa
Ausência de tratamento com corticóide inalado
Exposição: tabaco (activo/passivo), poluentes químicos
Redução do FEV1 inicial, grande variabilidade de FEV1
Broncorreia, eosinofilia sanguínea ou na expectoração
Internamentos por asma
História pregressa de bronquiolite grave, agudizações frequentes, parto pré-termo, baixo peso ao nascer
Factores de risco dependentes de efeitos adversos da terapêutica farmacológica
Sistémicos: ciclos frequentes de corticóides orais; duração prolongada de corticóides inalados em doses elevadas; terapêutica concomitante com inibidores do citocromo P450
Locais: corticóide inalado em altas doses; técnica inalatória deficiente; deficiente protecção da pele ou mucosa ocular quando utilizado corticóide inalado com câmara expansora com máscara facial.

QUADRO 3 – Recomendações para tratamento inicial de controlo em crianças e adolescentes (adaptado de GINA / NOC 065/2011, revisão 2016)

Sintomas e factores de risco na apresentaçãoDegraus terapêuticos iniciais indicados
Sintomas pouco frequentes (sintomas ou uso de terapêutica de alívio <2/mês e sem sintomas nocturnos nas últimas 4 semanas); ausência de factores de risco para agudizações e sem agudizações no último anoDegrau 1
Sintomas pouco frequentes, mas um ou mais factores de risco para agudizaçõesDegrau 2
Sintomas frequentes (sintomas ou uso de terapêutica de alívio 2 ou mais vezes/mês e/ou sintomas nocturnos nas últimas 4 semanas)Degrau 2 ou 3, consoante presença de sintomas nocturnos e/ou factores de risco para agudizações
Sintomas ou agudizações frequentesTratamento de agudização e terapêutica de controlo em Degrau 3 a 5

QUADRO 4 – Terapêutica por degraus para controlo da asma de crianças com 6 anos ou mais, adolescentes ou adultos

Degrau1ª linha tratamento controloOutras opções
(por ordem de custo/efectividade)

Legenda: Ø, nenhuma. CI, corticóide inalado. LABA, agonista-β2 inalado de acção longa. LAMA, anticolinérgico de acção longa.

Degrau 1:ØØ
Degrau 2:CI dose baixaAntileucotrieno
Degrau 3:CI dose baixa + LABA

– CI dose média

– CI dose baixa + antileucotrieno

– CI dose baixa + metilxantina (≥12 anos)

Degrau 4:CI dose média/alta + LABA

– CI dose alta + antileucotrieno

– Adicionar LAMA (≥12 anos)

– CI dose alta + metilxantina (≥12 anos)

Degrau 5:

Considerar acrescentar:

– LAMA (≥12 anos)

– Omalizumab (anti-IgE) (asma alérgica grave, ≥6 anos)

– Mepalizumab (anti-IL5) (asma eosinofílica grave, ≥12 anos)

– Corticóide oral dose baixa

– CI dose alta + antileucotrieno

– Adicionar LAMA (≥12 anos)

– CI dose alta + metilxantina (≥12 anos)

Em todos os degraus:

· Medicação de alívio: 1º linha – β2-agonista– inalado de acção curta quando necessário, incluindo pré-exercício se broncoconstrição induzida pelo exercício.

· Uma vez atingido o controlo e mantido por pelo menos 3 meses, deve ser tentada uma redução gradual da terapêutica, procurando-se assim identificar a terapêutica mínima que é capaz de controlar o asmático.

QUADRO 5 – Terapêutica por degraus para controlo da asma de crianças menos de 6 anos

Degrau1ª linha tratamento controloOutras opções
(por ordem de custo/eficácia)

Legenda: Ø. nenhuma. CI, corticóide inalado. LABA, agonista-β2 inalado de acção longa.

Degrau 1:ØØ
Degrau 2:CI dose baixaAntileucotrieno
Degrau 3:CI dose média

– CI dose baixa + antileucotrieno

– CI dose baixa + LABA (atenção idade de aprovação)

Degraus 4/5:

Aumentar dose de CI para controlo

Doses adicionais CI durante agudizações

Acrescentar antileucotrieno

CI + LABA (atenção idade aprovação)

Corticóide oral dose baixa

 
Degrau 5:

Considerar acrescentar:

– LAMA (≥12 anos)

– Omalizumab (anti-IgE) (asma alérgica grave, ≥6 anos)

– Mepalizumab (anti-IL5) (asma eosinofílica grave, ≥12 anos)

– Corticóide oral dose baixa

 

Em todos os degraus:

· Medicação de alívio: 1ª linha – β2-agonista inalado de acção curta quando necessário.

Do diagnóstico ao tratamento de controlo

  1. Episódios de tosse, pieira e dificuldade respiratória são muito frequentes na criança desde os primeiros anos de vida. E se estas são manifestações que identificam doenças infecciosas agudas, como é o caso da bronquiolite vírica, são também características de patologias crónicas, como é o caso da asma. Um episódio de bronquiolite surgirá em proporções podendo atingir até 50% das crianças até aos 3 anos de idade, e episódios repetidos de sibilância irão ocorrer em cerca de 25% dos indivíduos do mesmo grupo etário. E se os episódios de dificuldade respiratória se repetem, sempre considerado o diagnóstico diferencial, será pertinente admitir que podemos estar perante fenótipos de asma, pois esta é uma doença heterogénea desde a primeira infância, com várias apresentações e evoluções (Quadro 6).
    Fenótipos clássicos da síndroma asmática precoce na criança são:
    • A sibilância transitória (que corresponde a cerca de metade destas crianças, em que os sintomas são transitórios e desaparecem antes da idade escolar, sendo sobretudo crianças prematuras, filhos de pais fumadores e sem atopia);
    • A sibilância persistente não atópica (em 20% dos casos, os sintomas persistem até à adolescência e estes casos não têm habitualmente atopia, associando-se a um bom prognóstico clínico e funcional); e, finalmente,
    • A sibilância persistente atópica (as crianças deste grupo têm atopia e irão na sua maioria manter os sintomas até à adolescência, continuando pela vida adulta, podendo ter um prognóstico desfavorável pelo risco de perda de função pulmonar).

QUADRO 6 – Probabilidade do diagnóstico de asma na criança em idade pré-escolar com sibilância recorrente

Probabilidade Elevada Probabilidade Baixa
Características
Sintomas associados
Sintomas recorrentes, com intervalos livres
Sibilância, tosse, dispneia

Tosse isolada
Sintomas contínuos

SimSintomas agravados à noite, com esforço físico, exposição a alergénios, irritantes, frio, infecções viraisNão ou variável
SimSintomas e sinais de eczema e/ou riniteNão
SimHistória de atopia nos familiares directosNão
SimNas agudizações auscultação de sibilos, dispersos, bilateraisNão
Sim pelo menos parcialResposta ao tratamento broncodilatadorNão ou variável
NãoSintomas e sinais de doença sistémicaSim
NãoSintomas e sinais sugestivos de outros diagnósticosSim

 

  1. Importa então diagnosticar correcta e precocemente, sendo este um passo essencial para obter o controlo, objectivo último da abordagem da asma. E o tratamento de agudização e, em especial, o de prevenção, pode e deve ser feito em todas as crianças com asma e não há idade mínima para o começar. É a qualidade de vida da criança que está a ser afectada. No início, um tratamento que frequentemente inclui inaladores (sempre com câmaras de expansão na idade pré-escolar) pode ser uma preocupação para os cuidadores. Mas logo nas primeiras semanas já se vê a diferença: as crianças já dormem bem, movimentam-se, brincam e sorriem sem sintomas ou limitações. A asma pode não ser uma doença para toda a vida mas, em cada momento, tem de estar controlada. E é essa a obrigação da equipa de saúde. Ter a competência para, em rede, ajudar o asmático e a sua família a alcançar o controlo desta doença, com uma mortalidade mínima na idade pediátrica, mas que mantém uma morbilidade inaceitável.
  2. No âmbito da actuação preventiva e terapêutica, importa realçar pontos fundamentais a inquirir e valorizar, nomeadamente na relação entre os sintomas e o diagnóstico:
    • Episódios recorrentes de pieira?
    • Tosse irritativa nocturna?
    • Tosse ou pieira após exercício?
    • Tosse, pieira, opressão torácica após exposição a aeroalergénios ou irritantes?
    • Doenças respiratórias consideradas pelo paciente “Constipações que descem aos brônquios”?
    • Resultado da resposta ao tratamento?

    Em relação aos factores de agudização é necessário posicioná-los pela sua frequência: alergénios e infecções respiratórias víricas são responsáveis pela maioria das agudizações asmáticas; exercício, alterações climáticas, poluentes, como é a exposição tabágica, alimentos, aditivos e fármacos são, por ordem decrescente de frequência, factores a ter em conta.
    Importa ainda salientar em relação ao início e persistência de sintomas, que a maioria da sibilância recorrente nos primeiros anos de vida é transitória, com bom prognóstico; no entanto, a maioria dos casos de asma grave começa nos primeiros anos de vida.
    No que respeita à exposição a alergénios, cabe uma referência especial aos ácaros domésticos: a sensibilização a estes artrópodes de distribuição ubiquitária relaciona-se com os níveis e com a duração da exposição.
    A redução da concentração de alergénios, podendo não impedir a sensibilização primária, influencia positivamente a evolução clínica. Para atingir tal objectivo utilizam-se métodos de barreira ou oclusivos – capas de colchão e das almofadas (permeáveis ou impermeáveis), idealmente aplicadas em colchões novos ou recentes, impedindo a colonização).

  3. Para o controlo da maioria das situações clínicas de asma, importa conhecer aspectos relacionados com evicção alergénica e farmacoterapia, englobados num programa educativo e de promoção de saúde que será complexo e condicionado à necessidade de controlo da doença.
    Avaliar, ajustar o tratamento (farmacológico e não farmacológico) e rever a resposta, deve ser o ciclo que se aplica e repete em cada consulta e que poderá permitir melhorar os resultados.
    Um plano de acção escrito, individualizado, deve ser fornecido na primeira consulta e revisto nas subsequentes, devendo conter informação sobre os medicamentos diários de controlo; os sintomas e sinais sugestivos de agravamento ou perda de controlo; ajuste da terapêutica incluindo medicamentos a utilizar na agudização, definindo claramente quando e como iniciar terapêutica de alívio, nomeadamente com recurso a broncodilatadores de início de acção rápido por via inalatória e corticóides sistémicos; tratamento de comorbilidades que tenham sido identificadas.

Tratamento não farmacológico

Controlo ambiental – evicção alergénica

Se o controlo ambiental para alergénios do exterior dos edifícios se revela difícil (ex. pólenes e fungos atmosféricos), já algumas medidas visando o interior das residências podem ser essenciais:

  • Lavagem da roupa da cama, incluindo almofada e edredão (que devem ser sintéticos), idealmente a mais de 55ºC; existem também capas para almofada e edredão, no caso de não ser possível a sua lavagem (essencial).
  • Remover peluches da cama / lavagem regular (semanal a mensal), a 60ºC, dos que permanecerem; em alternativa congelar os peluches e lavar a temperaturas inferiores (essencial).
  • Remover mobiliário acolchoado e alcatifas, particularmente se antigas, preferindo pavimentos em madeira, sintéticos ou aplicação de alcatifas laváveis; evitar livros no quarto (desejável).
  • Aspiração semanal com dispositivo apropriado (aspirador com filtro de alta eficiência – high-efficiency particulate air – HEPA) (desejável).
  • Limpar o pó com pano húmido (desejável).
  • Redução da humidade relativa – desumidificadores e aumento da ventilação (desejável).
  • Acaricidas – pouco relevantes em locais muito infestados, sendo considerado discutível o seu interesse clínico; indicados no pavimento se não é possível retirar alcatifas (desejável).

Animais domésticos ou de companhia – Em crianças com sensibilização clinicamente relevante, a exposição mantida associa-se a maior gravidade e, a exposição aguda, relaciona-se com agudizações.

  • Medidas: Não ter animais de companhia ou retirá-los da residência (eficácia comprovada); atenção que o contacto também pode ocorrer noutras habitações ou mesmo no ambiente escolar. O benefício pode não ser imediato (níveis de alergénio podem reduzir-se progressivamente até durante 6 meses), mas será tanto mais rápido se associado a outras medidas (aspiração). Nos casos clínicos de sensibilização ao gato, nenhuma outra medida, se o animal estiver presente, poderá influenciar significativamente a exposição alergénica.
    Se o animal permanece: Lavagem do(s) animal(is) permitindo reduzir transitoriamente (uma semana) os níveis de alergénios. Filtragem do ar (filtros HEPA ou ionizadores colocados no quarto de dormir). Aspiração regular (aspirador com filtro HEPA). Aplicação de capas no colchão e na almofada. Remoção de reservatórios de alergénios (alcatifas, carpetes, estofos).
    Limitar a circulação dos animais nos quartos de dormir; porta do quarto sempre fechada.

Baratas – Factor de risco para a gravidade clínica, incluindo agudizações. Muito difícil a erradicação, particularmente em ambientes urbanos.

  • Medidas: Inspecção e identificação dos insectos, permitindo prever locais principais de infestação.
    Localização e erradicação de fontes de alimentos e de água.
    Insecticidas, permitindo reduzir a população de baratas (exterminação) embora se mantenham os alergénios.
    Limpeza da casa, não deixando restos de comida acessíveis, aspiração profunda e lavagem após aplicação das medidas anteriores. Há que ter cuidado com as condutas de lixo.

Fungos – A contaminação é habitualmente efectuada do exterior através das janelas (ex. Alternaria), embora alguns fungos possam ser predominantemente encontrados dentro dos edifícios.

  • Medidas: Remover ou lavar materiais contaminados, como tapetes, mobiliário, papel de parede. Aplicação de fungicidas.
    Prevenção da contaminação do exterior – fechar janelas; recurso a ar condicionado (caro).
    Controle humidade relativa através da utilização de desumidificadores, aumento da ventilação (atenção às cozinhas e salas de banho).
    Uso de filtros de alta eficiência – filtração do ar e aspiração (HEPA).
    Secar bem as roupas antes de serem guardadas.
    Evitar plantas nos quartos de dormir.

Pólenes – Para permitir alguma protecção ou minorar os sintomas.

  • Medidas: Reduzir a actividade em ambiente exterior, particularmente em áreas de elevada polinização.
    Evitar praticar desportos ao ar livre ou campismo; evitar caminhar em grandes espaços relvados ou cortar relva.
    Manter as janelas fechadas quando as contagens de pólenes forem elevadas, particularmente em dias de vento forte, quentes e secos.
    Usar filtros de partículas de grande eficácia nos carros e viajar com as janelas fechadas; no caso dos motociclistas, deverão usar capacete integral.
    Usar óculos escuros nas actividades no exterior dos edifícios.

Tratamento farmacológico

No tratamento farmacológico, dispomos de vários recursos terapêuticos, que vão dos corticóides inalados e sistémicos, aos agonistas b2-miméticos de curta e longa duração de acção, aos anticolinérgicos, igualmente de curta e longa duração de acção, às metilxantinas e aos antagonistas dos leucotrienos, até vários agentes imunomoduladores.

Nesta secção procede-se à descrição dos principais fármacos utilizados no tratamento da asma e dos diversos esquemas de tratamento de acordo com os quadros clínicos (Quadros 4 e 5).

Fármacos

β2-agonistas:

Os β2-agonistas são os broncodilatadores mais potentes, actuando por estimulação dos receptores β-adrenérgicos. O Quadro 7 descreve os efeitos dos β2-agonistas em diferentes órgãos e sistemas.

QUADRO 7 – Efeitos principais dos β2-agonistas em diferentes órgãos/sistemas

TecidoResposta
Vias aéreasRelaxamento músculo liso – broncodilatação
Aumento dos movimentos ciliares
Aumento da secreção de muco
Inibição da desgranulação mastocitária
CoraçãoAumento da frequência cardíaca
VasosVasodilatação
Aumento da permeabilidade vascular
Efeitos metabólicosGluconeogénese
Hipocaliémia
Aumento da produção de lactato

Na prática clínica são utilizados fundamentalmente dois tipos destes agonistas:

  1. de acção curta, como o salbutamol (albuterol), a terbutalina e o procateral.
    Têm um início de acção rápida, em poucos minutos, atingindo o máximo de actividade cerca de 60-90 minutos após administração por via inalatória. Os seus efeitos duram até 4-6 horas, sendo o mais relevante o relaxamento do músculo liso; são o tratamento de primeira linha nas crises de asma/agudizações (Quadro 8).

QUADRO 8 – β2-agonistas

Puff<>insuflação sob pressão ou pressurização; Câmara expansora (ver adiante)

• Broncodilatadores mais potentes, de primeira escolha no serviço de urgência

• Via inalatória é a mais eficaz

• Início de acção quase imediato

• Efeitos secundários mínimos

MedicamentoDoseFrequênciaObservações

Salbutamol

(sol. respiratória)

1 ml = 0,5 mg

– 0,03ml/kg/dose (0,15 mg/kg)
+
SF (mínimo de 0,3 ml e máximo de 1 ml)

– 0,3 mg/kg/hora, até 30mg/hora

– 20/20 min

– Nebulização contínua

– Monitorização dos efeitos secundários

Salbutamol

(+câmara expansora)

pMDI: 100 μg /puff

50 μg/kg/dose (máx. 10 puffs = 1.000 μg). Intervalo de 30 a 60 segundos entre cada puff20/20 min– Limitação da dose pela monitorização dos efeitos secundários

Procaterol

(sol. respiratória)

1 ml = 100 μg

< 20 kg: 0,3 ml

> 20 kg: 0,5 ml

2/2 horas 

Procaterol

(+ câmara expansora)

pMDI = 10 μg / puffs

< 12 anos: 1 puffs

>12 anos: 2 puffs

2/2 horas– Na criança não existem estudos controlados dose/resposta
  1. de acção prolongada, como formoterol e o salmeterol com efeito broncodilatador que dura cerca de 12 horas, aprovados para crianças acima dos 4-5 anos. O formoterol tem um ínicio de acção mais rápido (1-3 minutos após inalação) do que o salmeterol (cerca de 10-20 minutos). Ao cabo de 30 minutos a sua acção é comparável à do salbutamol (de curta acção). Recentemente foi disponibilizado o vilanterol, cuja duração de acção é de 24 horas, estando indicado a partir dos 12 anos de idade.

Estes fármacos estão contra-indicados em monoterapia, devendo ser sempre indicados em associações a corticóides, nomeadamente quando a corticoterapia inalada em dose baixa ou média não é suficiente para controlar a doença.

Corticóides:

Os corticóides, inalados ou sistémicos, são complemento essencial para o controlo do processo inflamatório subjacente às agudizações e ao processo inflamatório persistente. O Quadro 9 discrimina os corticóides inalados mais empregues e respectivas doses.

QUADRO 9 – Doses equipotentes estimadas de corticóides inalados

FármacoDose baixa diária (mcg)Dose média diária (mcg)Dose alta diária (mcg)
Adolescentes e adultos (≥ 12 anos)
Beclometasona (pMDI)100-200>200-400>400
Budesonida (inalador pó seco/pMDI)200-400>400-800>800
Fluticasona (propionato) (inalador pó seco/pMDI)100-250>250-500>500
Fluticasona (furoato) (inalador pó seco)100 200
Mometasona (inalador pó seco)110-220>220-440>440
Crianças dos 6 aos 11 anos
Beclometasona (pMDI)50-100>100-200>200
Budesonida (inalador pó seco/pMDI)100-200>200-400>400
Fluticasona (propionato) (inalador pó seco/pMDI)100-200>200-500>500
Mometasona (inalador pó seco)110-220>220-440>440
Crianças até aos 5 anos
Beclometasona (pMDI)100200 
Budesonida (pMDI)200  
Fluticasona (propionato) (pMDI)100-125200-250 

No Quadro 10 são referidas as doses de metilprednisolona e prednisolona a usar por via sistémica (tratamento de curta duração, nomeadamente durante as agudizações).

QUADRO 10 – Corticosteróides

• Anti-inflamatórios com papel reconhecido no controlo dos processos fisiopatológicos da asma (↓ morbilidade e mortalidade)
• Melhoria da resposta aos agonistas β2 (actuação a nível dos receptores)
• Via de administração sistémica
• Início de acção em 2 a 8 horas
• Efeitos secundários (raros durante cursos terapêuticos curtos até 3 dias)
MedicamentoDoseFrequênciaObservações
Metilprednisolona1 a 1,5 mg/kg/doseAté 4/4 horasMáximo 48 mg/dose EV ou oral
Prednisolona2 a 2,5 mg/kg/doseAté 4/4 horasMáximo 60 mg/dose EV ou oral
Anticolinérgicos:

O brometo de ipratrópio, derivado sintético da atropina, é o anticolinérgico de curta acção actualmente mais empregue como broncodilatador. Comparativamente ao salbutamol, o brometo de ipratrópio tem um início de acção mais lento, com efeito máximo cerca de 60 minutos após inalação, durando a sua acção 4-8 horas. O Quadro 11 descreve a posologia (nebulização e pMDI).

Os anticolinérgicos têm a sua indicação em associação aos β2-agonistas nas agudizações moderadas a graves (podendo reduzir a taxa de internamento), ou em alternativa aos últimos se existir intolerância a estes fármacos.

Recentemente passou a estar disponível no tratamento de controlo da asma um anticolinérgio de acção prolongada, o tiotrópio (com dispositivo inalatório que disponibiliza pequenas partículas), com indicação a partir dos 12 anos, em casos de asma com agudizações apesar do tratamento com corticóides inalados e broncodilatadores β2-agonistas de longa acção. A dose é de 5µg/dia, numa toma única diária, estando o seu efeito benéfico relacionado com o facto de ser um antagonista preferencial dos receptores muscarínicos do tipo 3 e por ter uma dissociação lenta desses mesmos receptores.

QUADRO 11 – Brometo de ipratrópio: posologia

Via 

Idade

 

Frequência

NB: Deve adicionar-se na mesma nebulização com salbutamol; não deve ser utilizado como terapia de 1ª linha isoladamente.

 Neonatal

1 mês–2 anos

>2 – 12 anos>12-18 anos

(nº tomas/dia)

Aerossol
(pMDI: 20 ug/puff)
 Até 120 microgramas  
Nebulização
(solução:250 ug/2mL)
Igual a < 1 ano< 1 ano: 125μg
≥ 1 ano: 250μg
< 5 anos: 250μg
≥ 5 anos: 500μg
500μgDose/nebulização
(pode ser repetida
entre cada 2/2
ou 6/6 horas)
Xantinas:

As teofilinas são cada vez menos utilizadas, pois a um efeito broncodilatador menos potente, associa-se a probabilidade de ocorrência de efeitos secundários numa percentagem considerável de casos; a sua indicação fica reservada para quando existe insucesso no tratamento com agonistas β2.

Trata-se de fármacos rapidamente absorvidos por via oral, rectal ou parentérica, atingindo níveis séricos máximos cerca de 2 horas após a administração.

A dose recomendada para crianças com mais de 6 meses é 10mg/kg/dia até dose máxima inicial de 300 mg/dia; a dose pode ser aumentada de 3-3 dias até 16 mg/kg/dia (600mg/dia).

A “janela” terapêutica é estreita (5-15mg/ml); obtém-se broncodilatação a partir de concentração sérica de 5mg/ml.

Antagonistas dos receptores dos leucotrienos:

Para além de algum efeito broncodilatador, aditivo ao dos β2-agonistas, estes fármacos têm acção anti-inflamatória.

Em Portugal estão comercializados: montelucaste para crianças com idade superior a 6 meses (4mg/dia entre os 6 meses e os 5 anos e 5mg/dia para >5 anos) em dose única diária, oral, podendo ser administrado às refeições; zafirlucaste para > 12 anos em 2 doses diárias de 20mg por via oral.

Terapias biológicas com recurso a anticorpos monoclonais:

Estes tratamentos biológicos estão indicados no tratamento da asma alérgica grave, a partir dos 6 anos de idade (omalizumab) e na asma eosinofílica grave, a partir dos 12 anos de idade, estando a sua utilização reservada a centros hospitalares especializados, esgotados outros recursos terapêuticos de controlo.

Esquemas de tratamento

Para melhor compreensão do enquadramento dos fármacos (associados a outros procedimentos) no tratamento da asma, são consideradas duas situações:

  1. A agudização de asma como situação urgente ou emergente recorrendo-se ao serviço de urgência hospitalar.
  2. Actuação em regime ambulatório ou no domicílio (controlo a longo prazo).

A) Agudização de asma

Os Quadros 12, 13 e 14 esquematizam a actuação inicial perante respectivamente, agudização ligeira a moderada, grave e emergente.

QUADRO 12 – Agudização de asma ligeira a moderada

• Salbutamol nebulizado ou em pMDI até 3 doses na 1ª hora
• Oxigenoterapia para manter saturação em O2 > 95%
• Corticóide sistémico oral se tiver havido administração recente de corticóide oral

QUADRO 13 – Agudização de asma grave

• Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizados ou em pMDI cada 20 minutos ou continuamente durante a 1ª hora
• Oxigenoterapia para manter saturação em O2 > 95%
• Corticóide sistémico oral

QUADRO 14 – Agudização emergente

• Entubação traqueal e ventilação mecânica com FiO2 a 100%
• Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizados
• Corticóide sistémico por via IV
• Eventuais terapêuticas adjuvantes
• Internamento em UCI

Excluindo os casos que requerem terapia intensiva e reportando-nos apenas às formas de agudização moderada ou grave, os Quadros 15 e 16 sintetizam os passos seguintes, o que pressupõe reavaliação clínica, verificação da saturação em O2, e eventualmente outros exames, cerca de 1 hora após a terapêutica descrita anteriormente.  

Mantendo-se os sintomas e sinais de agudização moderada, seguir-se-á o protocolo que integra o Quadro 15.

Ao cabo de 1-3 horas (Quadros 15 e 16) e ponderando cada caso de modo individualizado tendo em conta a verificação, ou não, de factores de risco (Quadro 17), o clínico poderá deparar essencialmente com três situações: 

  1. Boa resposta mantida (durante pelo menos 1 hora) após o último tratamento, traduzindo-se por ausência de dificuldade respiratória e bom estado geral. Em tal caso o doente poderá ter alta para o domicílio continuando tratamento com salbutamol nebulizado ou em pMDI e ciclo de corticóide oral, sob vigilância médica, com reavaliação ulterior mais pormenorizada dentro de 1-4 semanas.
  2. Resposta incompleta, não resposta e/ou agravamento com hipercápnia, obnubilação ou estado confusional, implicando internamento hospitalar e eventual terapia em UCI, com execução de medidas terapêuticas descritas nos Quadros 7, 8 ou 10.

QUADRO 15 – Agudização moderada mantida

• Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizados ou em pMDI cada 60 minutos
• Oxigenoterapia
• Corticóide sistémico por via oral
• Continuação do tratamento durante 1 a 3 horas e eventual decisão de internamento caso não se verifique melhoria após 3-4 horas

QUADRO 16 – Agudização grave associada a factores de risco (Quadro 17) e ausência de resposta ao tratamento inicial

• Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizado cada 60 minutos ou continuamente
• Oxigenoterapia
• Corticóide sistémico por via oral
• Eventuais terapêuticas adjuvantes
• Continuação do tratamento durante 1 a 3 horas e eventual decisão de internamento caso não se verifique melhoria após 3-4 horas

QUADRO 17 – Factores de risco/gravidade em contexto de episódio de asma

• Antecedentes de agudizações graves e súbitas e de internamento em UCI com ventilação mecânica
• Dois ou mais internamentos/ano, ou recurso ao SU, ou internamento no mês anterior
• Consumo de >2 embalagens/mês de beta-2 agonistas inalados
• Utilização, na data da exacerbação, de corticoides sistémicos ou sua interrupção recente
• Comorbilidade (por ex. doença cardiovascular, DPOC, etc)
• Doença psiquiátrica
• Estado de precariedade socioeconómica
• Residência em meio urbano
• Toxicodependência

B) Actuação em regime ambulatório ou no domicílio (controlo a longo prazo)

A alta para o domicílio após agudização asmática é uma decisão que deverá ser analisada caso a caso tendo em conta, designadamente, as características do quadro clínico durante o internamento e a existência de eventuais factores de risco. Uma das abordagens habituais de terapêutica a instituir inclui:

  • salbutamol associado ao brometo de ipratrópio (idealmente com câmara expansora/pMDI) (Quadros 8 e 11) durante 5-7 dias, e corticóide oral durante 3-5 dias (Quadro 10).
  • corticóides inalados (a longo prazo) a iniciar antes da saída do hospital, ou a sua retoma no caso de já constituir rotina no pré-internamento, ponderando-se a correcção de dose e a eventual inclusão de outros fármacos de controlo (Quadros 3 e 4).

NB – Se após 3 meses se obtiver controlo da situação, deverá proceder-se a redução gradual das doses, tentando as doses mínimas eficazes.

Relativamente às xantinas, cabe salientar que a sua utilização diminuiu significativamente, pois o seu efeito broncodilatador é pouco efectivo, não cumpre o objectivo de se obter efeito anti-inflamatório e a ocorrência de efeitos secundários pode ser significativa. 

Na abordagem inicial da asma ligeira, pouco sintomática, está largamente demonstrado que o grupo farmacológico que é mais benéfico no controlo clínico e funcional da doença corresponde aos corticóides inalados, sendo recomendados como tratamento de primeira linha em todos os grupos etários (equivalência de doses encontra-se representada no Quadro 9). A utilização de antileucotrienos orais pode também se considerada como opção inicial em monoterapia embora seja de esperar uma percentagem inferior de sucesso terapêutico.

Quando os sintomas não se controlam com doses baixas ou médias de corticóides inalados, tende-se actualmente para uma utilização combinada de fármacos, permitindo um melhor controlo da doença, com a utilização de doses inferiores de corticóides inalados, obtendo-se uma elevada eficácia sem ocorrência de efeitos adversos significativos (Quadros 4 e 5).

Em todos os degraus e grupos etários é fundamental considerar a aplicação de medidas educacionais e a existência de um plano de acção escrito, para além da minimização do efeito de factores de risco susceptíveis de prevenção e controlo de comorbilidades, como é o caso da aplicação de medidas de controlo ambiental (ex. alergénios, tabagismo), bem como aconselhamento sobre dieta e actividade física.

Conhecendo-se actualmente muito da fisiopatologia, será ideal que o tratamento anti-asmático actue sobre todos, ou pelo menos num grande número, dos componentes que estão envolvidos. É esta a base científica para o uso da terapêutica combinada nas formas de asma de mais difícil controlo; os diferentes agentes vão actuar a diferentes níveis, complementando a sua acção.

Se pensarmos em algumas das combinações possíveis na abordagem da criança asmática, devemos tentar posicioná-las de acordo com a gravidade do quadro clínico.

Em conclusão, no tratamento da asma brônquica persistente, quando não se obtém o controlo com monoterapia, nomeadamente com o recurso a corticóides inalados, é preferível usar a combinação de doses baixas de corticosteróide inalado e b2-agonistas de acção prolongada ou antileucotrienos do que aumentar para doses mais elevadas de corticosteróide inalado.

Entre as combinações corticosteróide inalado e b2-agonista de longa acção versus antagonista dos leucotrienos e corticosteróide inalado, a primeira revela-se mais eficaz e de menor custo. A combinação dos broncodilatadores mais efectivos com os anti-inflamatórios de primeira escolha na maioria dos asmáticos (corticóides inalados), resulta claramente numa formulação eficaz em todo o espectro da asma persistente moderada a grave, e ainda nas formas ligeiras quando o componente de esforço se revele significativo. Aspectos como adesão e deposição pulmonar serão determinantes para o efeito sinérgico.

Uma palavra de atenção deve ser dada quanto ao uso da terapêutica combinada no tratamento da asma persistente: falamos do controlo da função respiratória, dos sintomas crónicos e do eventual alívio de alguns sintomas agudos; como foi referido, o tratamento das agudizações asmáticas moderadas a graves, pressupõe o uso de outras abordagens terapêuticas, quer em ambulatório, quer a nível dos serviços de urgência.

Terapêutica inalatória

Constitui actualmente o pilar fundamental no tratamento de várias doenças respiratórias, sendo consensual a escolha da via inalatória como preferencial para administração de fármacos no tratamento da asma. Comparada com a via sistémica, tem uma acção mais rápida utilizando doses menores. Consegue-se efeitos terapêuticos muito significativos com escassos efeitos secundários. No entanto, em idade pediátrica o reduzido calibre da via aérea, os fluxos inspiratórios baixos, a respiração nasal, os volumes correntes pequenos, as frequências respiratórias elevadas e a colaboração, por vezes deficiente, entre muitos outros factores, condicionam frequentemente o sucesso da inaloterapia.

Durante uma agudização de sintomas, para além da idade, pode também estar comprometida a utilização de inaladores que fazem depender a disponibilidade das partículas do débito inspiratório.

Assim, para rendibilizar a extrema rapidez de actuação e a eficácia desta via de administração, particularmente durante a crise, é importante que se respeitem algumas condicionantes relacionadas, quer com a idade da criança, quer com os dispositivos disponíveis.

Idade da criança – nos primeiros dois ou três anos de vida, a terapêutica, broncodilatadora ou anti-inflamatória indicada por via inalatória na agudização, terá de ser efectuada através de nebulizador (pneumático ou ultrassónico) ou, preferencialmente, com aerossol de dose calibrada (pressurized Metered Dose Inhalers – pMDI) associado a câmara de expansão, sempre com o uso de máscara.

A partir do terceiro ano de vida, logo que a colaboração o permita, deverá a inalação ser efectuada com o uso de peça bucal, pois a inalação do fármaco através das cavidades nasais (ou apenas o facto de haver respiração nasal com a utilização de máscara), pode reduzir a dose que chega ao pulmão para menos de metade. Se for possível a colaboração com a peça bucal, há que preferir o uso de câmaras de expansão (nomeadamente a nível dos serviços de urgência e enfermaria).

A partir dos 6 anos, por vezes antes, é já possível a utilização dos inaladores de pó seco, uni ou multidose (Dry Power Inhaler – DPI), para o tratamento dos sintomas. No entanto, em crianças que estão familiarizadas com câmaras de expansão, pode manter-se esta metodologia de administração durante toda a idade escolar, particularmente no domicílio. Nos serviços de urgência hospitalares devem estas crianças efectuar terapêutica com inaladores do tipo pMDI associados a câmaras de expansão com peça bucal.

Tipos de dispositivos para aerossolização – Como foi referido, os aerossóis utilizados na terapêutica da asma são produzidos por três tipos básicos de instrumentos de inalação, nomeadamente os nebulizadores, os pMDI e os DPI.

Os nebulizadores são aparelhos geradores de aerossóis a partir de soluções ou suspensões aquosas.

Embora difíceis de transportar, são muitas vezes úteis quando os outros dispositivos estão indisponíveis e podem transformar em aerossol, virtualmente, qualquer substância líquida. Como foi referido, os nebulizadores podem ser alimentados por ar comprimido, ou ser ultrassónicos; neles deve considerar-se que a dose colocada no dispositivo, aparentemente elevada (carga do nebulizador) sofre perdas a vários níveis, nomeadamente a dose que permanece no nebulizador (“volume morto”- geralmente cerca de 0,5 ml), perdas através do terminal do tubo, impacte de partículas a nível interno e as perdas durante a expiração; nestes aparelhos a geração de partículas não depende dos fluxos inspiratórios. Para os pMDI a energia é dada pelo próprio dispositivo, enquanto para os DPI esta energia tem de ser fornecida pelo doente através de um fluxo inspiratório que retira o pó do dispositivo, tornando problemática a sua utilização em episódios sintomáticos, mesmo em crianças que com eles é realizada a sua terapêutica de controlo.

Na terapêutica da crise de asma nos serviços de urgência devem ser usados sobretudo os pneumáticos, mais baratos e permitindo o uso de um adaptador bucal ou máscara. O nebulizador pneumático pode ser, ou não, reutilizado. Os dispositivos ultrassónicos podem produzir partículas menores, são silenciosos e actualmente bastante portáteis, mas não trazem benefício clínico adicional; têm mesmo um risco acrescido de infecções nosocomiais.

Para nebulização de broncodilatadores podem ser utilizados indistintamente aparelhos pneumáticos ou ultrassónicos (soluções); para a nebulização de corticóides (fluticasona ou budesonido) os únicos aparelhos a utilizar são os pneumáticos (suspensões). Este factor poderá ser muito importante no caso de se recomendar a compra de um aparelho gerador de aerossóis.

O tempo ideal para uma nebulização será de 8 a 10 minutos (factor que condiciona o volume a nebulizar que deve ser colocado no dispositivo, pelo que não podem existir “receitas” universais, por exemplo, do volume de soro fisiológico a adicionar). A frequência das nebulizações poderá ser de 20/20 ou de 30/30 minutos.

A associação do inalador pressurizado com uma câmara de expansão, revela-se como um meio de eleição para a administração de terapêutica, quer na crise, quer como terapêutica de controlo, em idade pré-escolar. Aumenta a deposição no pulmão, diminui a deposição na boca e vias aéreas superiores à custa de uma maior deposição na câmara, sendo uma alternativa portátil à utilização dos nebulizadores, tal como na agudização da criança asmática observada no serviço de urgência. A respiração pode ser feita em volume corrente, durante cerca de 20 a 30 segundos, após cada pressurização (puff).

Nas crises e em ambulatório os DPI são habitualmente indicados nas crianças que já os utilizam quotidianamente (geralmente em crianças com 6 ou mais anos), não devendo ser utilizados a nível dos serviços de saúde no tratamento de crise, levantando óbvios problemas na reutilização (perigo de contaminação).

A principal vantagem em relação aos pMDI consiste no facto de não ser necessária a coordenação mão-pulmão, tornando a técnica mais fácil (embora o uso de pMDI isolados não seja habitualmente recomendada em idade pediátrica; a existência de dispositivos accionados pela manobra inspiratória, do tipo autohaler, ou MDI geradores de nuvens muito suaves, com partículas de pequena dimensão, poderá modificar esta conduta. Exigem uma inspiração forçada para uma boa deposição pulmonar, com um fluxo inspiratório relativamente alto (débito inspiratório superior a 30L/minuto) o que não é possível em crianças muito pequenas. São igualmente portáteis e discretos, não contendo propelentes (podem conter lactose). Permitem também um melhor controlo da quantidade do medicamento gasto e do restante.

Os dispositivos multidose são os mais utilizados por serem mais práticos. Menos usados, os sistemas unidose apresentam o medicamento em forma de pó, contido numa cápsula, que é perfurada ou partida antes da inalação. As principais vantagens em relação aos sistemas multidose serão um melhor controlo da dose, a verificação de que esta foi de facto retirada da cápsula e a possibilidade de repetir a inalação até desaparecimento total do pó. No entanto são menos práticos, e preferidos por uma minoria de doentes.

adesão à terapêutica é também um problema central, sendo necessário proceder à correcta administração do fármaco prescrito. Esta tarefa é dificultada quando estamos perante crianças difíceis, que choram durante a administração da terapêutica. É fundamental que os profissionais de saúde, os pais e as crianças compreendam a necessidade de utilizarem o fármaco prescrito e que aceitem o uso do dispositivo seleccionado para o efeito. As acções de formação devem ser iniciadas nos profissionais, terminando na própria criança, sempre que o grupo etário o permita.

Em ambulatório ou no serviço de urgência deverá ser efectuado o ensino da utilização dos diversos tipos de inaladores e reavaliada a técnica regularmente.

A escolha do método de inalação constitui uma etapa fundamental do tratamento das doenças respiratórias da criança; o ensino e avaliação da adequação só são possíveis com a colaboração de técnicos treinados e experientes.

Em síntese,

  1. para o tratamento das crises de asma no serviço de urgência é prática tradicional o recurso aos nebulizadores, de preferência devendo estes ser pneumáticos. O seu uso estendeu-se ao tratamento domiciliário, inclusive comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde;
  2. numerosos estudos têm vindo a demonstrar que as combinações pMDI / câmara expansora são preferíveis, sendo mais eficazes, mais portáteis e menos dispendiosos.
  3. deve ser incrementado o uso de câmara expansora nos serviços de urgência, na maioria das crianças com crise de asma, pelo menos como opção aos nebulizadores.
  4. nalguns lactentes e crianças em idade pré-escolar, a nebulização com máscara pode ser mais bem aceite, particularmente em situações mais graves, em que criança se encontra exausta, por vezes febril, não sendo de esperar então grande colaboração com a técnica requerida para uma câmara expansora (Quadro 18).

QUADRO 18 – Dispositivo inalatório para crianças até 5 anos

Idade

Dispositivo preferível

Dispositivo em alternativa

0-3 anosInaladores pressurizados associados a câmaras expansoras com máscaraNebulizador com máscara (excepcional)
4-5 anosInaladores pressurizados associados a câmaras expansoras com peça bucal-Inaladores pressurizados associados a câmaras expansoras com máscara
-Nebulizador com máscara ou peça bucal (excecional)

 

Asma induzida pelo exercício

A asma induzida pelo exercício (AIE), ou que também pode ser referida de um modo mais abrangente como broncoconstrição induzida pelo exercício, define-se como o aumento transitório da resistência das vias aéreas resultante da broncoconstrição que ocorre após esforço físico, inerente a prática desportiva, mas também facilmente desencadeável após situações tão comuns como rir ou chorar.

Os sintomas de AIE, semelhantes aos de outras formas da doença, podem incluir tosse, pieira, dispneia, opressão torácica ou cansaço que surgem durante e principalmente após cessar o exercício; estes sintomas são de curta duração e acompanham-se de hiperinsuflação e hipoxémia arterial. A broncoconstrição máxima ocorre geralmente 3-10 minutos após o esforço físico, sendo habitual uma recuperação espontânea num intervalo de 30-60 minutos.

FIGURA 3. Mecanismos etiopatogénicos na AIE

A prevalência de AIE é variável, podendo ocorrer em até 80% dos doentes asmáticos, em especial na idade pediátrica; é frequentemente causa de queixas e de frustração pelas dificuldades na integração das actividades de grupo, nomeadamente no meio escolar e desportivo.

A gravidade da resposta broncoconstritora ao exercício depende de vários factores, tais como da intensidade do exercício, das condições climáticas e da reactividade basal das vias aéreas. A magnitude da resposta dependerá do grau de controlo da doença, do uso prévio de medicação anti-asmática e do intervalo de tempo que decorreu desde um episódio anterior de broncoconstrição induzida pelo exercício, conceito conhecido como período refractário; em cerca de 50% dos asmáticos a resposta broncoconstritora ao exercício é atenuada se este for repetido em período até 30 minutos. A gravidade da AIE pode também ser indirecta e negativamente influenciada pela exposição a alguns factores, tais como alergénios, poluentes e infecções víricas.

As actividades desportivas consideradas como mais asmogénicas englobam os desportos que exigem altos níveis de ventilação, como a corrida de fundo, o ciclismo, o futebol, o basquetebol e o raguebi, e modalidades praticadas em ambiente frio e seco como vários desportos de Inverno, particularmente o esqui, o hóquei e a patinagem no gelo.

Relativamente à etiopatogénese, os mecanismos pelos quais a AIE ocorre não estão completamente esclarecidos. A desidratação da mucosa brônquica, consequência da hiperventilação que ocorre durante o exercício, constitui a explicação mais aceite. O mecanismo pelo qual esta perda de água pela mucosa desencadeia a broncoconstrição resulta provavelmente de uma conjugação de dois mecanismos anteriormente propostos como distintos: o estímulo térmico; e o estímulo osmótico (Figura 3). Os leucotrienos, potentes mediadores de broncoconstrição libertados por várias células inflamatórias incluindo mastócitos e eosinófilos, têm os seus níveis elevados após broncoconstrição induzida pelo exercício.

O objectivo primordial do tratamento é prevenir ou pelo menos atenuar a resposta broncoconstritora ao exercício de modo a que não constitua restrição à escolha de uma actividade física ou limitação ao nível de desempenho. Para tal, importa em primeiro lugar conseguir o melhor controlo possível da asma.

Medidas não farmacológicas como mudar as condições do ar inalado, quando a actividade ocorre em espaços fechados, evitar fazer exercício em ambientes frios e secos, limitar a exposição a poluentes, têm-se revelado benéficas. É igualmente importante fazer um adequado período de aquecimento antes da realização de esforço físico mais intenso.

Vários fármacos têm sido propostos no controlo da AIE. Na maioria dos casos que têm uma função respiratória basal normal a AIE pode ser prevenida pela administração prévia ao exercício de um agonista b2-adrenérgico por via inalatória (exs. salbutamol ou terbutalina), eficaz em reduzir a AIE em até 90% dos doentes, independentemente da gravidade, podendo também ser usados como medicação em SOS para tratar a broncoconstrição desencadeada pelo esforço. Esta abordagem exige uma atempada previsão das horas de maior esforço, sabendo-se que em idade pediátrica o exercício constitui um acontecimento imprevisível, pelo que se torna mais difícil de controlar a AIE na criança. Os broncodilatadores b2-adrenérgicos de acção prolongada (ex. formoterol, salmeterol e vilanterol) têm então indicação óbvia uma vez que exercem o seu efeito protector de forma mais duradoura, entre de 12 a 24 horas. A associação destes fármacos com corticosteróides inalados é sempre obrigatória. As terapêuticas combinadas num só dispositivo (fluticasona com formoterol, salmeterol ou vilanterol e budesonido com formoterol) simplificam a terapêutica permitindo uma maior adesão.

Os antagonistas dos receptores dos leucotrienos (ex. montelucaste) oferecem em formas ligeiras de asma de esforço, para além da comodidade posológica, protecção efectiva de sintomas ao longo das 24 horas, não parecendo este efeito reduzir-se com a sua toma regular.

Dada a elevada incidência de AIE em atletas de competição, incluindo a nível olímpico, e consequente necessidade de uso de medicação anti-asmática, o Comité Olímpico Internacional (COI) aceita o uso de agonistas b2-adrenérgicos, de curta e longa acção, corticóides por via inalatória e antagonistas dos receptores dos leucotrienos. Para que a medicação anti-asmática prescrita não seja considerada dopante, nomeadamente em competições internacionais, é necessária a comprovação com uma notificação escrita, em impresso próprio fornecido pelo Conselho Nacional Antidopagem (CNAD), acompanhada de relatório médico incluindo resultados de provas funcionais respiratórias, comprovando o diagnóstico de asma e a consequente indicação terapêutica.

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