Definição e importância do problema

A otite média aguda (OMA) pode ser definida como uma infecção aguda da mucosa do ouvido médio (incluindo trompa de Eustáquio, cavidade do ouvido médio e mastóide), de instalação súbita e curta duração, até 3 semanas, acompanhando-se de sinais e sintomas tais como otalgia e febre.

É uma doença com elevada prevalência em idade pediátrica, sobretudo entre os 6 e os 11 meses de idade, decrescendo à medida que a idade avança. Por volta dos três anos de idade cerca de 45% das crianças terão tido já 3 ou mais episódios de otite.

Fala-se em otite recorrente quando ocorrem pelo menos 3 episódios de OMA em seis meses ou 4 ou mais num ano.

Trata-se da segunda doença infecciosa mais frequente na criança e a principal causa de perda auditiva e de prescrição de antibióticos no nosso meio. Daí o enorme impacte social e económico que comporta.

Etiopatogénese

As principais bactérias causadoras de OMA, evidenciadas por culturas obtidas por timpanocentese, são o S. pneumoniae (35 a 50%), que é o mais prevalente em todas as idades, o H. Influenzae (20 a 30%) e a Moraxella catarrhalis (10 a 20%). Outros agentes isolados incluem S. pyogenes, S. aureus, Mycoplasma pneumoniae e bactérias Gram-negativas como E. coli, P. aeruginosa, e Klebsiella. No recém-nascido têm sido isolados S. aureus, Streptococcus B e Enterobactérias Gram-negativas.

Em diversos estudos demonstrou-se que a infecção por vírus facilita a colonização bacteriana da nasofaringe e que, entre 10 e 60% das crianças com infecções víricas das vias respiratórias superiores têm OMA.

Os vírus podem ser isolados em cerca de 20-30% dos exsudados do ouvido médio, destacando-se como de maior prevalência rinovírus, vírus sincicial respiratório, influenzae e parainfluenzae, adenovírus e coronavírus . A otite média aguda predomina nos meses frios, quando as infecções por vírus das vias aéreas superiores são mais frequentes.

A disfunção da trompa de Eustáquio desempenha um papel central na eclosão da otite. Poderá resultar de uma agressão vírica que conduz a obstrução da trompa por congestão da mucosa ou por existirem factores anatómicos ou fisiológicos desfavoráveis. Como consequência surge um défice de ventilação do ouvido médio. A reabsorção do ar contido nesse espaço gera uma pressão negativa que contribui para a aspiração, através da trompa, dos germes patogénicos que colonizam o cavum faríngeo, com localização especial nas adenóides. O facto de a trompa de Eustáquio nas crianças ser mais curta, mais horizontal e flácida do que no adulto, favorece também o refluxo das secreções infectadas para o ouvido médio. Em certos casos a infecção pode fazer-se por via hematogénica ou através de perfuração do tímpano. Os vírus constituem um factor predisponente para a infecção bacteriana.*

*Classificação anátomo-clínica (Terminologia)

As várias modalidades de inflamação no ouvido externo, médio e interno originaram uma grande variedade de termos. Com efeito, frequentemente assistimos à utilização de mais de uma terminologia para a mesma situação. Ou seja, adoptando diferentes critérios surgem diversas terminologias.

Critério anatómico– Otite: inflamação em qualquer território do ouvido; Otite externa: inflamação no ouvido externo (problema dermatológico); Otite média: inflamação no ouvido médio (problema respiratório); Labirintite: inflamação no ouvido interno (problema otoneurológico).

Critério patológico– Otite média serosa- inflamação em que a caixa do tímpano contém líquido (derrame ou efusão) seroso de baixa tensão superficial; Otite média mucóide ou “mucosa”: inflamação em que a caixa do tímpano contém líquido de viscosidade variável, por vezes semelhante a cola; Otite média purulenta: inflamação em que a caixa do tímpano contém líquido purulento. Nestes casos o tímpano pode estar fechado ou aberto (perfurado). NB- Por vezes o líquido[derrame ou efusão] é seromucóide (ou seromucoso)

Critério temporal– A otite média pode ser, quanto à duração do quadro clínico: aguda (< 3 semanas); subaguda (3 a 8 semans); crónica (> 8 semanas).

Factores de risco

A idade constitui um factor de risco de OMA. Quanto mais precocemente em idade surgir a otite, maiores são as possibilidades de recorrência. Um primeiro episódio de otite antes dos seis meses constitui factor de mau prognóstico.

Outros factores de risco incluem alergia, défices imunitários, fenda palatina, anomalias crânio-faciais, factores genéticos e frequência de infantários, sobretudo os superlotados com dimensões exíguas e funcionando em condições precárias de higiene. Também o fumo passivo, ambientes poluídos, a climatização artificial alterando a temperatura e humidade dos espaços comuns, a não alimentação com leite materno, o baixo nível socioeconómico e uso de chupeta favorecem a infecção.

Manifestações clínicas

Os sintomas variam conforme a fase da doença e a idade do doente. O sintoma mais específico da OMA é a otalgia. Em geral há otalgia moderada, hipoacúsia e febre. Pode haver autofonia e acufenos. Como a otite coincide muitas vezes com infecções por vírus do tracto respiratório superior, tal como foi referido antes, poderá haver obstrução nasal, rinorreia anterior e posterior, e tosse.

FIGURA 1. Otite média aguda. Fase de hiperémia (Otoscopia)

Nos lactentes predomina a febre, a irritabilidade e os sintomas gastrintestinais. A dor expressa-se muitas vezes pelo choro ou pela recusa alimentar. Por vezes, a criança com fácies de sofrimento, adopta posição de pescoco em flexão lateral, elevação do ombro homolateral e palma da mão tapando o ouvido. Se a doença progredir, há aumento da pressão do pus no ouvido médio, o tímpano pode perfurar e iniciar-se um período de otorreia. Com a saída do pus a dor acalma e os sintomas gerais atenuam-se. A cura ocorre naturalmente, ou pela acção medicamentosa.

Diagnóstico

O diagnóstico de OMA baseia-se fundamentalmente em três critérios:1- início abrupto de sinais e sintomas de inflamação do ouvido médio; 2- presença de derrame/efusão no ouvido médio demonstrada por qualquer dos seguintes sinais: abaulamento, imobilidade ou hipomobilidade do tímpano, ou otorreia; 3- eritema/hiperémia do tímpano ou otalgia.

A otoscopia é, pois, essencial. Deve ser feita com a criança confortavelmente sentada ao colo da mãe, sobretudo se tiver menos de 3 anos, bem imobilizada e com otoscópio de luz de halogénio. O canal externo deve ser limpo de detritos e de cerúmen. O espéculo deve ter um diâmetro apropriado ao conduto e não deve ser introduzido profundamente para não lesar a fina pele do canal. Sobre o critério 3- podemos observar, de acordo com a evolução da doença, hiperémia difusa do tímpano e cabo do martelo (Figura 1), desaparecimento do reflexo luminoso, hiperémia radiária, edema e perda de caracteres, hiperémia e abaulamento da membrana, traduzindo exsudado sob pressão dentro da caixa, ou perfuração com saída de pus.

A valorização dos dados otoscópicos é difícil, sobretudo nos lactentes.**

**Por razões históricas, justifica-se mencionar dois sinais utilizados em décadas passadas, os quais são falíveis: –sinal de Vachez ou dor desencadeada por compressão do tragus; sinal de Savulesco ou dor despertada por ligeira compressão da ponta da mastóide. NB→A hiperémia isolada do tímpano na criança com febre não constitui critério diagnóstico fidedigno de OMA; poderá, sim, ter origem num processo inflamatório com origem na pele que forra o canal auditivo externo.

FIGURA 2.

    1. Timpanograma [tipo A]:Traçado triangular “em bico”, normal
    2. Timpanograma [tipo B]:Traçado com linha horizontal ligeiramente curva, “em cúpula baixa”, indicando derrame/efusão
    3. Timpanograma [tipo C]:Traçado triangular baixo, “em bico”, indicando rigidez do sistema tímpano-ossículos

Outros exames complementares, habitualmente do domínio do especialista de ORL, poderão ser utilizados: timpanometria/timpanograma (exame seguro no diagnóstico de derrame na caixa do tímpano) (Figura 2 evidenciando três dos padrões gráficos mais representativos, entre outros), reflectometria acústica, otoscopia pneumática, etc..

A otoscopia pneumática com espéculo de Siegle permite avaliar a mobilidade/distensibilidade da membrana do tímpano; menor distensibilidade ou mobilidade se o ouvido médio contiver líquido.

No RN é obrigatório proceder a exame microbiológico do esxsudado do ouvido médio, muitas vezes hemoculturas e, eventualmente, punção lombar para exame do LCR. Com efeito, nas crianças com < de 3 meses, os respectivos agentes causais muitas vezes são diferentes dos anteriormente descritos. Em tais circunstãncias poderá estar indicado o internamento da criança.

Tratamento

Como primeira linha de actuação, há a referir o analgésico (só paracetamol:15 mg/kg cada 6 horas; ou, nas crianças com > de 6 meses, só ibuprofeno: 5 mg/kg cada 8 horas) e a necessidade de manter a permeabilidade nasal (aspiração cuidadosa de secreções e instilação de soro fisiológico).

Em cerca de 70 a 80% dos casos de otite média aguda verifica-se a cura sem tratamento, ao fim de 3 a 4 dias.

Com base nesta evidência e no que respeita à antibioticoterapia é aconselhável seguir o esquema que a AAP sugere em função da idade e do diagnóstico, de certeza ou duvidoso: a) < 6 meses: antibioticoterapia mesmo na eventualidade de haver dúvidas quanto ao diagnóstico; b) 6-24 meses: antibioticoterapia a ponderar em função do estado clínico ou decisão de antibioticoterapia se diagnóstico de certeza; c) antibioticoterapia em caso de diagnóstico de certeza, se situação for considerada grave.

Considera-se situação não grave: temperatura rectal < 39,5ºC nas 24 horas anteriores e otalgia moderada. Pressupõe-se que, em caso de decisão de não antibioticoterapia há condições de vigilância do estado clínico e possibilidade de ulterior antibioticoterapia face à evolução deste.

A escolha empírica do antibiótico deve ter em conta a idade da criança, as resistências locais conhecidas, a existência de recorrências e eventuais alergias conhecidas aos fármacos.**

** Tendo em conta a incidência e a eliminação espontânea de diversos agentes causais, assim como as diferentes morbilidade e taxa de complicações possíveis, a antibioticoterapia , em princípio, deve ser dirigida contra S pneumoniae. Para as estirpes de S pneumoniae sensíveis à penicilina, qualquer dos beta-lactâmicos por via oral pode ser eficaz. Para as estirpes de sensibilidade intermédia, o beta-lactâmico oral para o qual a concentração inibitória mínima é sempre inferior ao pico de concentração sérica é a amoxicilina.

A amoxicilina (80-90 mg/ kg/dia de 12-12h) continua a ser o antibiótico preferido no tratamento do primeiro episódio de otite aguda ou na otite ocasional. A duração da antibioticoterapia, motivo de controvérsia, deve ser individualizada. Habitualmente 7-10 dias são considerados correctos e aconselháveis em crianças com < 2 anos, embora a literatura refira estudos comprovando eficácia aplicando o esquema de 5 dias.

No caso das crianças que frequentam infantários, com otites recorrentes ou outros factores de risco significativos, é preferível usar logo de início a associação amoxicilina /ácido clavulânico, na relação ponderal de 7/1 dada a existência, muito provável, de estirpes resistentes produtoras de beta- lactamases.

Na prática utiliza-se a dose de amoxicilina de 80 mg/kg/dia na suspensão oral (400 mg de amoxicilina/57 mg de ácido clavulânico em 5 ml). A reavaliação é feita às duas semanas e ao fim de um mês.

Outras alternativas terapêuticas em função de resultados de exames microbiológicos incluem a cefuroxima axetil (30-40mg/kg/dia em 2-3 tomas), o cefaclor (30-50mg /kg/dia em 2-3 tomas) e a cefixima (8-12mg/kg/dia em 1-2 tomas).

Nos casos de alergia à penicilina recorre-se aos macrólidos (eritromicina 50 mg /kg/dia em 7-10 dias nas crianças com menos de 6 meses; azitromicina 10 mg /kg/dia, dose diária durante 3 dias nas crianças com mais de 6 meses).

A ceftriaxona tem sido recomendada ultimamente por vários autores como tratamento das otites resistentes ou recorrentes, na dose de 50-80 mg/kg/dia, em injecção única intramuscular diária durante 3 a 5 dias seguidos. A droga alcança altas concentrações no ouvido médio sendo, assim, bastante eficaz.

Em certas situações o tratamento médico é insuficiente e há que recorrer a tratamento cirúrgico. A paracentese do tímpano (miringotomia) com aspiração do exsudado do ouvido médio está indicada nos casos de otalgia intensa com sinais muito marcados de infecção, otites de repetição resistentes à terapêutica médica, ou presença de complicações como a paralisia facial ou meningite.

Complicações e prognóstico

Na infecção aguda do ouvido médio podem ocorrer complicações locais tendo em conta as relações anatómicas de vizinhança com estruturas delicadas, ou complicações gerais tal como em qualquer outra infecção. Embora estas últimas sejam hoje raras, poderão desenvolver-se designadamente em situações de imunodeficiência, ou de agentes microbianos particularmente virulentos.

A complicação mais frequente é a perfuração timpânica persistente, com ou sem destruição de parte da cadeia dos ossículos; a consequência será surdez de tipo transmissão. Qualquer perfuração que não respeite os limites da membrana do tímpano na porçãp mais alta – membrana de Shrapnell – incorrerá no risco de epidermização invasiva do ouvido médio a partir do canal auditivo externo, o que comporta a probabilidade de ulterior processo crónico e aparecimento de colesteatoma.

A mastoidite é hoje uma complicação rara. Contudo cabe referir que a destruição dos tabiques ósseos e a colecção de pus transformam o osso numa cavidade cujas paredes estão em íntimo contacto com a meninge, o seio cavernoso sigmoideu (seio lateral), a terceira porção do nervo facial no seu trajecto intrapetroso, e o labirinto posterior. Por outro lado, poderá verificar-se exteriorização da infecção intra-óssea para o espaço subcutâneo com consequente abcesso subcutâneo. Tais eventos patológicos poderão originar diversos quadros clínicos: meningite, paralisia do nervo facial, abcesso, labirintite, etc..

Na era actual o prognóstico em geral é bom pressupondo diagnóstico e tratamento correctos e precoces.

Prevenção

É importante reduzir ao mínimo os factores de risco já referidos, assim como tratar e corrigir correctamente todas as situações agudas para se evitar as recorrências e as complicações.

A prevenção prolongada (6 meses) com antibióticos tem sido preconizada, sobretudo para a otite recorrente. Esta questão é polémica.

As vacinas contra S. pneumoniae têm-se revelado úteis para prevenir as infecções provocadas por essa bactéria contribuindo para diminuir a prevalência atrás referida, embora de modo não muito significativo (< 6-8%). De salientar que ainda não existem vacinas verdadeiramente eficazes contra a maioria dos agentes patogénicos que causam OMA.

Os tubos transtimpânicos (timpanostomia) e a adenoidectomia são recomendados para prevenir os casos graves de otites recorrentes.

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