Definição e importância do problema

A otite seromucosa (OSM) pode definir-se como uma inflamação subaguda ou crónica da mucosa do ouvido médio, com tímpano fechado, que cursa com derrame líquido não purulento, de duração superior a 8 semanas. Na actualidade é mais frequentemente designada por otite média com derrame (OMD) ou efusão.

O derrame pode ser seroso (fino, aquoso, dourado), mucoso/mucóide (espesso, viscoso, tipo cola) ou sero-mucoso. Se crónico, pode conter cristais de colesterina.

Trata-se de uma doença de elevada prevalência na idade pediátrica. A incidência máxima situa-se entre os 2 e 5 anos de idade. Em cerca de 80% dos casos é bilateral.

Etiopatogénese

A etiopatogénese é incerta. Aos agentes microbianos implicados sobrepõem-se aos da OMA. No entanto, é de salientar o isolamento de Helicobacter pylori em cerca de 15% dos derrames e de Alloiococcus otitidis em cerca de 48%, de acordo com diversos estudos.

Reportando-nos ao que é referido sobre classificação e terminologia no capítulo 75, pode concluir-se que existe estreita relação entre OMA e OSM no que respeita à história natural que, contudo, tem pontos controversos.

Tendo em consideração determinados estudos epidemiológicos, após um episódio de OMA tratado com antibióticos ocorre OSM/OMD em 70% dos casos (40% após 1 mês, 20% após 2 meses e 10% após 3 meses). Por outro lado, diversas metanálises concluiram que, embora haja tendência para resolução espontânea, a mesma poderá somente ter lugar 3-4 anos após início das manifestações tendo como critério o padrão timpanográfico avaliado de modo seriado (passando de tipo B para tipo não B.

Admite-se que o facto de terem sido detectadas bactérias intracelulares em 36% das biópsias da mucosa do ouvido médio em doentes com OSM poderá explicar a tendência para a cronicidade pela organização das bactérias em biofilmes (ver Glossário geral).

O processo começa muitas vezes por uma otite média aguda com derrame purulento que provoca alterações na mucosa do ouvido médio e da trompa; o derrameao ser esterilizado pela acção dos antibióticos, não é eliminado ou reabsorvido*. Noutros casos a disfunção resulta de alterações anatómicas ou funcionais. O mau funcionamento tubário compromete a ventilação e a drenagem do ouvido médio, dando origem a uma pressão negativa na caixa timpânica. Secreções infectadas existentes no cavum podem, assim, ser aspiradas para o ouvido médio e o processo reactivar-se.

*Abstraindo a designação de OSM/OMD, de facto, o derrame neste contexto pode ser seroso, mucóide, seropurulento ou mucopurulento.

A inflamação, a falta de arejamento, e a pressão negativa do ouvido médio devida à reabsorção do ar, levam a alterações estruturais da mucosa traduzidas por um infiltrado celular composto por macrófogos, fibroblastos e neutrófilos. Este complexo processo gera a formação de uma grande quantidade de glândulas produtoras de muco que segregam constantemente para o interior do ouvido médio. Com o tempo, por acção enzimática, a membrana timpânica sofre um processo de atrofia e de adelgaçamento. A mesma fica menos resistente às variações de pressão, pode deprimir-se e, inclusivamente, colar-se ao fundo da caixa.

Factores de risco

São considerados factores de risco de OSM os considerados para a OMA as infecções frequentes do tracto respiratório superior, a alergia, o barotraumatismo, a disfunção da trompa de Eustáquio, a idade do primeiro episódio de otite, a frequência de infantários superlotados, o fumo passivo, os estados de imunodeficiência e o baixo nível económico e social.

A OSM é frequente nas crianças com adenoidites de repetição, rinossinusites e otites recorrentes.

Também as anomalias crânio-faciais, a síndroma de Down e a fenda palatina (completa ou submucosa) constituem importantes factores de risco. Quase todas as crianças com fenda palatina têm OSM devido a disfunção da trompa de Eustáquio.

Manifestações clínicas

Ao contrário do que se passa com a otite média aguda, as crianças com OSM não apresentam sinais e sintomas de infecção aguda tais como otalgias intensas, febre ou mal-estar.

Pode ser assintomática ou revelar-se por perda de audição, perturbações do equilíbrio, alterações do comportamento, atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem e maus resultados escolares.

FIGURA 1. Otite seromucosa. Tímpano opaco, com uma coloração rósea-amarelada clara

Em certos casos não é possível identificar pela história clínica o momento do início da doença. A evolução pode ser tão insidiosa que os pais das crianças ficam surpreendidos quando é feito o diagnóstico de OSM. Noutras situações há um episódio agudo ou recorrente, otite ou rinite, que desencadeia os sintomas. A criança começa a ficar desatenta, apresenta alterações de comportamento, sobretudo irritabilidade, aumenta o volume do som da televisão, e pede para repetirem as palavras. Se a situação se prolongar sem que seja identificada, poderão surgir problemas de aprendizagem da fala e da linguagem e perturbações do rendimento escolar.

Diagnóstico

É raro as crianças pequenas queixarem-se de perda da audição, pelo que o diagnóstico precoce está muito relacionado com a atitude dos pais, dos professores e do exame periódico feito pelo pediatra ou médico de família. Se houver suspeitas de perda da audição, perturbação do equilíbrio ou otalgia recorrente, a criança deve ser avaliada por um especialista de oto-rino-laringologia.

A otoscopia pode ser difícil de interpretar. Por vezes, mesmo para um especialista bem treinado, não é fácil diferenciar entre otite seromucosa crónica agudizada e OMA. A ausência de sinais e sintomas de infecção aguda favorecem o diagnóstico de OSM.

O tímpano está geralmente deprimido, com o cabo do martelo horizontal, aspecto opaco, róseo-amarelado claro (Figura 1), e hiperémia difusa e radiária. Nalguns casos pode observar-se níveis hidro-aéreos ou bolhas de ar no ouvido médio através da transparência do tímpano. Os sinais são geralmente bilaterais.

O timpanograma é um exame essencial para confirmar a presença de líquido no ouvido médio. Na otite seromucosa arrastada o traçado é aplanado.

O audiograma revela sinais de surdez de transmissão de grau variável, em média de 25 a 30 dB, mas a perda pode ser muito maior.

A endoscopia nasal poderá evidenciar um desvio do septo nasal, edema alérgico dos cornetos, pus nos meatos médios ou hipertrofia das adenóides.

Tratamento

Têm sido tentadas várias modalidades de tratamento da OSM, em geral sem qualquer eficácia. Os casos agudos podem resolver-se pela acção de antibióticos, descongestionantes nasais ou anti-inflamatórios.

Nas situações crónicas o problema é mais complicado. De notar que cerca de 10% das otites agudas tratadas com antibiótico apresentam ainda um derrame intratimpânico, passados 3 meses. É preciso, por isso, vigiar e saber esperar. É possível identificar uma bactéria patogénica (sobretudo H. influenzae ou Moraxella) em cerca de 30% dos derrames. Poderá tentar-se tratamento com amoxicilina / clavulânico. A tentação de prosseguir com outros antibióticos com maior espectro de acção deve ser desencorajada, por ser ineficaz.

Os anti-inflamatórios, os mucolíticos e os corticosteróides têm um efeito diminuto na evolução da OSM crónica. Os anti-histamínicos só devem ser usados quando existem sinais de alergia comprovada.

Se a situação não se resolver, o tratamento recomendado consiste na aplicação de tubos de ventilação transtimpânica (timpanostomia) nos casos em que o derrame tem duração superior a 3/4 meses, a perda de audição é superior a 25/30 dB, ou existe já atrofia do tímpano, bolsas de retracção ou ameaça de colesteatoma.

Os tubos têm a finalidade de promover a ventilação e facilitar a drenagem do ouvido médio. São expulsos espontaneamente em geral ao cabo de 6 meses a um ano. As crianças devem evitar a entrada de água nos ouvidos durante o banho para se prevenir a infecção. Devem usar tampões auriculares e bandas de protecção. O mergulho (mar, piscinas) deve ser proibido. A adenoidectomia é feita muitas vezes no mesmo tempo operatório que a aplicação dos tubos.

Complicações e prognóstico

A otite seromucosa não tratada pode dar origem a complicações graves. A atrofia do tímpano e a pressão negativa no ouvido médio geram os mecanismos que conduzem à depressão timpânica, bolsas de retracção, erosão da cadeia ossicular, otite adesiva e colesteatoma. A audição pode ficar gravemente comprometida. Por outro lado, a membrana timpânica atrófica está em grave risco de perfurar se surgir otite aguda.

A aplicação dos tubos não resolve todos os problemas. De facto, ulteriormente poderão surgir infecções e perfuração do tímpano. Certos doentes terão que ser submetidos a mais do que uma timpanostomia.

Prevenção

A prevenção deve incidir sobre a atenuação ou eliminação dos factores de risco diagnosticados, o correcto tratamento das infeccções das vias aéreas superiores e a otoscopia de controlo.

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