Definição e importância do problema

A síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA) – descrita neste capítulo como exemplo de imunodeficiência secundária – é uma doença provocada por um vírus que destrói os mecanismos de defesa imunitária do organismo (os linfócitos T) expondo-o a diversas infecções oportunistas graves (candidíase esofágica e broncopulmonar, criptococose disseminada do sistema nervoso central, pneumonia intersticial por Pneumocystis jiroveci ou por micobactérias atípicas, etc.). A estas acrescentam-se ainda, em todos os estádios de doença, certas neoplasias como sarcoma de Kaposi e linfomas, raros em idade pediátrica. Trata-se, pois, dum problema grave de saúde pública que comporta elevadas taxas de morbilidade e de mortalidade.

Pouco tempo depois de descritos os primeiros casos em 1981, e do primeiro caso pediátrico em 1982, foram identificados os agentes responsáveis por esta entidade clínica: primeiramente, o vírus da imunodeficiência humana do tipo 1 (VIH1), hoje disseminado em todas as regiões do Mundo; e, mais tarde, o vírus da imunodeficiência humana tipo 2 (VIH2), mais comum em determinadas regiões da África Ocidental, designadamente Guiné.

Os agentes microbianos em causa são retrovírus humanos ARN que se integram no genoma das células-alvo como um pró-vírus, sendo que o genoma vírico é copiado durante a replicação celular, persistindo na pessoa infectada durante toda a vida.

Aspectos epidemiológicos

Apesar de demonstrada a presença do VIH em estado latente em várias células e fluidos corporais, só o sangue, sémen, secreções cervicais uterinas e leite humano estão implicados na transmissão da infecção. São, pois, três as vias de transmissão do VIH: contacto sexual; via percutânea (agulhas e instrumentos cortantes) ou exposição das mucosas a sangue ou outros fluidos corporais com altos títulos de VIH; transmissão vertical mãe-filho, na gravidez, durante o trabalho de parto e pelo aleitamento materno.

Devido a medidas de exclusão de dadores de sangue potencialmente infectados, tratamentos de inactivação vírica de derivados do sangue e utilização desde há alguns anos de factores da coagulação recombinantes, a transfusão de sangue ou produtos derivados tornou-se uma via raríssima de transmissão VIH nos países desenvolvidos.

De acordo com dados da OMS, no final de 2013 havia em todo o mundo cerca de 3,2 milhões de indivíduos com menos de 15 anos infectados com VIH. Estima-se que nesse ano tenha morrido mais de meio milhão de crianças e jovens com tal problema.

Dados disponíveis do Departamento de Doenças Infecciosas /Unidade de Referência e Vigilância Epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) desde 1983 indicam até Dezembro de 2014 um total de 53.072 casos de infecção por VIH, sendo que o total acumulado em indivíduos menores de 15 anos é de 526 casos de infecção. Cerca de 15.334 correspondem a SIDA (0,8 % em crianças e 17,5% em mulheres, 3/4 das quais em idade reprodutiva).

Portugal tem uma das mais elevadas taxas da UE, com 920 novos casos em 2014. A via sexual foi o modo mais frequente de transmissão nos novos casos, com um decréscimo de casos de infecção associados a consumo de drogas. Nos países industrializados, incluindo Portugal, quase todas as novas infecções das crianças e jovens menores de 15 anos foram adquiridas por via vertical (cerca de 25-40% no decurso da gravidez e, entre 60-75%, durante o parto), sendo poucos os casos de infecção por via sexual. Em 2014 registaram-se 4 novos casos de infecção de transmissão vertical em indivíduos com menos de 15 anos, 2 filhos de mães portuguesas e 2 filhos de mães estrangeiras. A infecção adquirida através de sangue pode acontecer em crianças vindas dos PALOP. Na adolescência surgem os casos de infecção por via sexual, que podem ser diagnosticados só na idade adulta.

Ao aleitamento materno também é atribuído papel de transmissão, que é cerca de 16%, salientando-se que os maiores índices se verificam durante a infecção aguda da mulher lactante, em relação directa com a duração da amamentação, e com a evidência de patologia mamária acompanhada de eliminação de sangue pelo mamilo (fissuras).

Antes do advento da profilaxia ou tratamento com fármacos antirretrovíricos a taxa de transmissão perinatal (vertical ou mãe-filho) do VIH1 era estimada entre 13% e 39%. Com a generalização das estratégias de profilaxia ao longo do tempo têm-se verificado progressos assinaláveis, sobretudo nos países mais desenvolvidos. Em Portugal também se verificou esta tendência, assinalando-se uma redução significativa da transmissão perinatal de VIH1 de 25% (em 1994) para 1,7% (em 2014).

Em relação a VIH2 a taxa de transmissão vertical é pouco provável, estimada em menos de 2%.

A determinante materna de maior risco de transmissão do VIH à criança é uma maior carga vírica (infecção recente). Outros factores associados com um risco aumentado de transmissão incluem: doença materna avançada com imunodeficiência severa, condições intraparto com aumento da exposição do feto ao sangue materno, inflamação da membrana placentária, parto prematuro, parto prolongado, ruptura prolongada de membranas e co-infecção com vírus da hepatite C e outras doenças sexualmente transmissíveis. O aleitamento materno em países onde não é possível a sua evicção constitui também um risco adicional importante.

É possível hoje, tendo em conta os factores de risco mencionadas, diminuir a transmissão vertical de VIH para menos de 2% com estratégias que incluem:

  • uma terapêutica antirretrovírica adequada à mãe de modo a manter cargas víricas indetectáveis na gravidez;
  • cesariana electiva e profilaxia antirretrovírica na gravidez, no parto e ao RN, dependendo do risco em causa; e,
  • evicção do aleitamento materno.

Manifestações clínicas

A infecção por VIH na criança e no adolescente origina um largo espectro de manifestações clínicas e uma evolução variada, representando a SIDA o espectro clínico terminal mais grave.

A história natural da infecção pelo VIH caracteriza-se por um período assintomático muito variável. A progressão da doença depende de factores como: as características do vírus, carga vírica, grau de imunossupressão, precocidade da terapêutica e da adesão à mesma.

A apresentação clínica varia com o grau de imunossupressão. Entre outros sinais e sintomas, crianças com imunodeficiência ligeira podem apresentar linfadenopatia, hepatomegália, esplenomegália, parotidite; com imunodeficiência moderada pode haver infecções bacterianas recorrentes, candidíase arrastada, diarreia crónica, pneumonia intersticial linfóide (LIP), anemia, neutropénia e trombocitopénia; manifestações de imunodeficiência grave a muito grave incluem infecções oportunistas (pneumonia por Pneumocystis jiroveci, infecções invasivas por Candida, infecção disseminada por Citomegalovírus, infecções crónicas ou disseminadas por Herpes simplex ou Varicela zoster, infecção por Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium avium complex disseminada, enterites crónicas por Cryptosporidium ou Isospora), atraso acentuado do desenvolvimento (wasting syndrome), encefalopatia, e tumores malignos (raros na criança).

De acordo com critérios propostos pelos CDC e AAP para idades <13 anos, são consideradas quatro formas clínicas agrupando um conjunto de determinados sinais, sintomas e de resultados de exames complementares, a saber:

Forma assintomática ou N

Nesta forma clínica verifica-se ausência de sintomatologia ou apenas um dos parâmetros da forma clínica seguinte-A.

Forma ligeira ou A

Esta forma caracteriza-se pela verificação de dois ou mais dos parâmetros seguintes desde que não se verifique qualquer dos que fazem parte das formas B ou C.

Os parâmetros que definem a forma A são: hepatomegália, esplenomegália, parotidite, linfadenopatia (de dimensões superiores a 0,5 cm em duas cadeias ganglionares diferentes).

Forma moderada ou B

Esta forma integra os seguintes parâmetros: Hb < 8g/dL, neutrófilos < 1.000/mm3, meningite bacteriana, sépsis ou pneumonia, candidíase oral durando > 2 meses, miocardiopatia, febre > 1 mês, varicela disseminada ou complicada, toxoplasmose no RN, nefropatia, nocardiose, pneumonia intersticial linfocitária-PIL ou LIP, herpes zoster com 2 episódios em mais de um dermátomo, > 2 episódios anuais de estomatite por vírus Herpes simplex (HSV), pneumonite ou esofagite por HSV no RN, hepatite, diarreia recorrente ou crónica, infecção por CMV no RN.

Forma grave ou C

Para se incluir o caso nesta forma é condição necessária a verificação de qualquer dos parâmetros a seguir mencionados, exceptuando a LIP: infecções bacterianas graves e recorrentes, sistémicas ou localizadas, confirmadas por exame cultural com a frequência de, pelo menos, 2 episódios por ano; encefalopatia persistindo mais de 2 meses, comprovada por exames imagiológicos-TAC, RM; linfoma; sarcoma de Kaposi; desnutrição grave acompanhada de diarreia crónica, febre de duração superior a 30 dias; toxoplasmose cerebral iniciada após o período neonatal, histoplasmose disseminada, estomatite/esofagite/ pneumonite por HSV em crianças de idade superior a 1 mês e de duração superior a 1 mês; pneumonia por Pneumocystis; infecções disseminadas por micobactérias de diversas espécies; infecções por CMV após o período neonatal; candidíase esofágica ou pulmonar; coccidioidomicose disseminada; criptococose; diarreia crónica por criptosporidíase ou isosporíase.

Exames complementares

A suspeita de infecção é levantada pelo conhecimento de dados epidemiológicos indicadores de exposição provável ao vírus, ou pela existência de sinais e sintomas sugestivos de infecção. A precocidade do diagnóstico possibilita a adopção de medidas de profilaxia e terapêutica numa fase ainda com a imunidade preservada e, deste modo, o prolongamento do período assintomático e a consequente melhoria da qualidade de vida da criança e da família.

Como se disse, a infecção por VIH na criança nos países desenvolvidos incluindo é quase exclusivamente adquirida por via vertical. O primeiro passo é, pois, a identificação da infecção na mãe, pelo que se recomenda a realização de estudo serológico para VIH em todas as grávidas, sendo que a primeira avaliação deveria ser mesmo pré-concepcional.

O conhecimento da infecção em tempo útil na mãe tem múltiplas vantagens permitindo:

  • na mulher infectada:
    • receber terapêutica antirretrovírica apropriada e profilaxia contra infecções oportunistas;
    • efectuar quimioprofilaxia com antirretrovíricos; e
    • programar cesariana electiva para prevenção da transmissão à criança e impedir o aleitamento materno, dependendo da situação; e,
  • no recém-nascido:
    • iniciar quimioprofilaxia antirretrovírica e profilaxia para o Pneumocystis jiroveci nos casos de exposição até se saber se existe ou não infecção; e
    • facilitar o diagnóstico e terapêutica precoces da infecção.

O diagnóstico é sempre laboratorial (com excepção dos países mais pobres onde se aceita o diagnóstico de SIDA, com base na aplicação dos critérios clínicos e epidemiológicos definidos pela OMS), dispondo-se para tal de exames serológicos e virológicos.

O diagnóstico de infecção na criança com menos de 18 meses é feito por PCR-DNA.

Após um resultado positivo deve ser efectuada de imediato outra colheita para confirmação.

A PCR-DNA, por necessitar de menor quantidade de sangue e pelo facto de os respectivos resultados serem mais rápidos, deve ser o método escolhido.

O diagnóstico provável de infecção por VIH na criança é feito com um destes testes positivo procedendo a duas colheitas. O diagnóstico definitivo é efectuado com dois resultados positivos.

→ nos RN de mães seropositivas para o VIH, a PCR-DNA ou o exame cultural devem ser efectuado nas primeiras 48 horas de vida, entre o 1º e o 2º mês, e entre o 4º e o 6º mês. Se os resultados forem negativos, deve realizar-se estudo serológico para VIH por ELISA / WB de 3 em 3 meses e, depois, entre o 1 ano de idade e os 18 meses.

→ para o diagnóstico de infecção na criança com mais de 18 meses é suficiente o resultado de serologia positiva (ELISA / WB), que deve ser sempre confirmada. A determinação da carga vírica (PCR-RNA) é usada para avaliar a evolução e resposta ao tratamento.

diagnóstico de infecção por VIH pode ser excluído com elevada probabilidade se:

  • dois ou mais exames virológicos forem negativos, desde que efectuados com idade igual ou superior a 1 mês, e um deles, obrigatoriamente, com idade superior a 4 meses, em criança sem evidência clínica de infecção e não sendo alimentada com leite materno; ou :
  • dois ou mais resultados serológicos negativos para VIH, se a idade for igual ou superior a 6 meses, com, pelo menos, um mês de intervalo, em criança sem evidência clínica de infecção.

A infecção por VIH pode ser definitivamente excluída aos 18 meses se o resultado do estudo serológico for negativo, na ausência de hipogamaglobulinémia, em criança sem evidência clínica de infecção e com resultados de estudos virológicos negativos.
A contagem de linfócitos T CD4+ por citometria de fluxo constitui uma técnica fundamental para determinar o estádio imunológico da infecção, de modo a orientar:

  1. o início da terapêutica antirretrovírica (sabendo-se que a tendência é para se iniciar o mais precocemente possível, independentemente do valor dos linfócitos TCD4+); e
  2. a profilaxia das infecções oportunistas.

Cabe referir, a propósito, que os valores de referência na criança até aos seis anos de idade são mais elevados do que no adulto; por outro lado, é importante salientar que poderá haver discordância entre ausência ou presença de sintomatologia, e ausência ou presença de sinais de imunossupressão.

O Quadro 1 apresenta os valores de linfócitos T CD4+ em três grupos etários até aos 13 anos, em relação com o grau de compromisso imunológico.

QUADRO 1 – Valores de CD4 + de acordo com a idade

Alteração imunológica Contagem de CD4 e idade
< 12meses 1 a 6 anos 6 a 12 anos
Ausente 1 >1500 (>20%) >1000 (>25%) >500 (>25%)
Moderada 2 750-1499 (15-24%) 500-999 (15-24%) 200-499 (15-24%)
Severa 3 <750 (<15%) <500 (<15%) <200 (<15%)

Tratamento

O tratamento da infecção por VIH na criança tem-se tornado cada vez mais complexo e a prescrição de antirretrovíricos deverá ser dirigida por um especialista com experiência nesta área em centros especializados. A escolha dos regimes deve ter em conta que se trata de uma terapêutica para toda a vida e que a adesão é fundamental para obviar o aparecimento de resistências, que vão dificultar as opções terapêuticas no futuro.

O controlo eficaz das necessidades de uma criança infectada obriga necessariamente à disponibilidade de uma equipa multidisciplinar incluindo médico de família, pediatra, infecciologista, enfermeiro, imunologista, virologista, psicólogo, assistente social, farmacêutico e dietista.

Torna-se igualmente necessário proceder à monitorização regular da contagem de linfócitos T CD4+ e da carga vírica no pressuposto de se ter acesso ao perfil genotípico das resistências aos antirretrovíricos.

Há muitos factores a considerar no planeamento de um regime antirretrovírico como: disponibilidade; tolerância; eficácia; farmacocinética; formulações disponíveis; efeitos secundários dos medicamentos; interacção com outros medicamentos e alimentos. Há também que ter em conta o seu impacte na escola, família e vida social.

Antes de se iniciar a terapêutica deve ser efectuado um teste genotípico de resistências, para verificar se há resistências primárias e determinar o genótipo HLA-B5701 para evitar reacções adversas ao abacavir. É também importante esclarecer e formar intensivamente a família, treinando-a na administração dos medicamentos, explicando a importância da adesão e esclarecendo dúvidas. É necessário ainda o seguimento intensivo durante os meses iniciais da terapêutica e a verificação da tolerância, efectuando a monitorização dos linfócitos T CD4+ e da carga vírica, adaptando as doses ao crescimento da criança.

Início da terapêutica antirretrovírica (TAR)

De acordo com as Recomendações Portuguesas para o tratamento da infecção por VIH1 e VIH2, (versão de 2015 da DGS) deve iniciar-se terapêutica antirretrovírica (TAR) nas seguintes situações:

  • Lactentes com o diagnóstico de infecção por VIH (crianças com < 12 meses de idade) independentemente da clínica, valores de CD4+ e carga vírica;
  • Crianças com clínica significativa (formas B ou C);
  • Crianças com idade de 1 ano ou >, assintomáticas ou com sintomas ligeiros (que não se enquadram, no entanto, na forma A) perante valores de CD4+ :
  • *< 25% ou < 1000/mmc entre 1 e 3 anos de idade;
  • *< 25% ou < 750/mmc entre 3 e 5 anos de idade;
  • *< 500/mmc acima dos 5 anos.
  • Crianças com > 12 meses e carga vírica > 100.000 cópias/mL.

Os objectivos da TAR são reduzir a carga vírica para níveis indetectáveis e preservar ou normalizar a função imune impedindo a progressão da doença e tentando reverter eventual doença de órgão já estabelecida.

Fármacos e esquemas terapêuticos

São vários os fármacos antirretrovíricos disponíveis (por vezes em associação) para tratamento da criança e adolescente. Seguidamente são assinalados alguns exemplos com siglas universais tendo em conta o respectivo mecanismo de acção:

  • Inibidores da Transcriptase Reversa Nucleósidos / ITRN: abacavir (ABC), didanosina (ddI), emtricitabina (FTC), lamivudina (3TC), tenofovir (TDF), zidovudina (ZDV, ou AZT).
  • Inibidores da Transcriptase Reversa Não Nucleósidos / ITRNN: efavirenz (EFV), etravirina (ETV), nevirapina (NVP), rilvipirina (RPV).
    Associações mais utilizadas: TDF+FTC, TDF+FTC+EFV.
  • Inibidores da Protease / IP: atazanavir (ATV), darunavir (DRV), fosamprenavir (FPV), lopinavir (LPV). Têm que ser potenciados com ritonavir (r).
  • Inibidores da Fusão: enfuvirtide (T-20).
  • Inibidores da Entrada: maraviroc (MVC).
  • Inibidores da Integrase: dolutegravir (DLV), raltegravir (RAL).

Actualmente o regime de 1ª linha preferido em crianças sem terapêutica prévia e sem evidência de resistência aos antirretrovíricos engloba: 2 ITRN + 1IP (em crianças com < 3 anos prevendo adesão irregular) ou 2ITRN + 1ITRNN. Relativamente a IP prefere-se a combinação LPV/r para crianças pequenas; e outras combinações para crianças mais velhas: FPV/r, ou ATV/r, ou DRV/r.

A utilização dos diversos fármacos tem em conta a idade e o peso do paciente.

A terapêutica pode ser alterada nos casos de toxicidade ou falência.

Em suma: a prescrição dos antirretrovíricos deve ser cuidadosamente ponderada e individualizada tendo em conta todos os factores apontados, pois, para além das repercussões que possa vir a ter na sobrevivência e na qualidade de vida das crianças infectadas, tem custos muito elevados.

Prevenção

Para a prevenção da transmissão vertical da infecção pelo VIH na criança é importante a adopção das seguintes medidas:

  • rastreio da infecção na grávida;
  • realização de cesariana electiva, sempre que possível;
  • terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido; e
  • evicção do aleitamento materno.

No caso de a grávida ter um seguimento adequado, com carga vírica indetectável, pode questionar-se a necessidade de cesariana e profilaxia no RN.

Em relação à terapêutica antirretrovírica na grávida e recém-nascido, o esquema utilizado durante a gravidez deverá ser sempre discutido com a mulher, colocando à sua disposição os conhecimentos actuais sobre os riscos e benefícios da administração dos vários antirretrovíricos. Há que ter em conta os cenários possíveis:

  • Mulher submetida a terapêutica antirretrovírica combinada (TARc) durante a gravidez e com carga vírica indetectável, perto do parto, a profilaxia intraparto não é necessária (nos casos de gravidez de termo, sem corioamnionite e sem descolamento placentário), devendo ser administrado AZT “per os” ao RN tão precocemente quanto possível, nas primeiras 4-12 h de vida (é pouco provável que o início depois das 48h tenha algum benefício) e durante 4 semanas.
  • Mulher submetida a TARc e com carga vírica detectável ( < 1000 cópias/mL), perto do parto, AZT intraparto dispensável, se existir comprovada adesão à TARc e evolução favorável da carga vírica, assim como ausência de factores de risco intraparto para transmissão mãe-filho (descolamento placentar, hemorragia, corioamnionite). Caso contrário, deve administrar-se AZT em perfusão ev a iniciar existindo contracções regulares ou ocorrendo ruptura de bolsa de águas, no caso de parto vaginal; ou 3h antes no caso de cesariana electiva e sempre até à laqueação do cordão. Ao RN deve ser administrado AZT durante 4 semanas.
  • Mulher submetida a TARC há menos de 4 semanas ou com carga vírica desconhecida, AZT em perfusão ev + NVP 200 mg “per os” em toma única. Considerar profilaxia combinada no RN, AZT+3TC (4 semanas) + NVP (2 semanas).
  • Mulher submetida a TARc em falência virológica, com carga viríca > 1000 cópias /mL, AZT em perfusão ev; a associação de outros fármacos depende do teste de resistências. No RN: AZT “per os” durante 4 semanas; ponderar regime combinado com base no teste de resistência materno.
  • Mulher em trabalho de parto, sem ter sido medicada com TARc durante a gravidez, deve proceder-se a colheita de sangue para determinar carga vírica e estudo de subpopulações linfocitárias, AZTem perfusão ev+ NVP 200mg “per os” dose única + 3TC 150mg “per os”12/12h. Após o parto deverá manter-se terapêutica com AZT+3TC de 12/12h durante 7 dias ou AZT+3TC+ um inibidor da protease potenciado com ritonavir também durante 7 dias. No RN considerar profilaxia combinada, AZT + 3TC (4semanas) + NVP (2 semanas).
  • Mulher não submetida a TARc na gravidez, sem profilaxia intraparto, administrar profilaxia combinada no RN, AZT + 3TC (4 semanas) + NVP(2 semanas).

A grávida infectada por VIH deve ser seguida em Consulta de Alto Risco, sendo ainda necessário rastrear outras doenças transmissíveis (por citomegalovírus, Herpes simplex 2, toxoplasmose, hepatites B e C, tuberculose, sífilis, gonorreia e por Chlamydia).

A puérpera deve ser encaminhada para uma Consulta de Planeamento Familiar.

Para prevenção das infecções secundárias na criança com infecção por VIH devem ser instituídas medidas adequadas, as quais constituem um pilar essencial no tratamento das mesmas. A profilaxia das infecções secundárias deve ser efectuada pela administração de vacinas, imunoglobulinas e antimicrobiano.

Vacinas

Aos filhos de mulheres seropositivas, com infecção indeterminada ou infectadas, devem ser administradas todas as vacinas inactivadas de acordo com o actual Programa Nacional de Vacinação.

A vacinação com BCG não deverá ser administrada às crianças infectadas (mesmo assintomáticas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres seropositivas deverá ser adiada até que a infecção por VIH seja excluída.

A vacina anti-sarampo, parotidite e rubéola (VASPR) deve ser dada a crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas, com contagem de linfócitos CD4+ ≥15% (contraindicada, no entanto, se houver sinais de imunossupressão grave, declínio rápido do número ou percentagem de CD4+ e em crianças com a forma grave de doença). Deve ser administrada, de preferência, aos 12 meses ou até antes (entre os 6 e os 9 meses) se o risco de agravamento da doença e/ou o risco de exposição ao sarampo for elevado.

Em relação à vacina antipneumocócica, deve efectuar-se um reforço com a vacina com polissacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.

A vacina antivaricela deve ser considerada em crianças assintomáticas ou ligeiramente sintomáticas com contagem de linfócitos CD4+ ≥25%.

A vacina antigripe deve ser administrada no princípio do Outono às crianças com mais de 6 meses de idade e a todos os seus contactos, incluindo o(s) progenitor(es) seropositivo(s).

Em relação à vacina antipneumocócica deve efectuar-se um reforço com a vacina com polissacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.

A vacinação com BCG não deverá ser administrada às crianças infectadas (mesmo assintomáticas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres seropositivas deverá ser adiada até que a infecção por VIH seja excluída.

Imunoglobulinas

A administração regular (mensal) de imunoglobulina inespecífica intravenosa (IGIV na dose de 400 mg/kg cada 2 a 4 semanas) está indicada em situações de hipogamaglobulinémia (IgG < 250 mg/dL), ausência de resposta humoral a antigénios comuns (vacinas, por exemplo), infecções bacterianas, graves e recorrentes, e crianças vivendo em área endémica de sarampo e sem resposta a 2 doses de vacina.

Tal administração de imunoglobulinas, cuja duração varia em função do contexto clínico, deve também ser considerada em situações pós-exposição a hepatite B, tétano, varicela e sarampo.

Antimicrobianos

Para a prevenção da pneumocistose nas crianças infectadas de acordo com os valores de linfócitos T CD4+ (< 12 meses todos; 1 a 5 anos CD4 < 500 ou <15%; 6 a 12 anos CD4 <200 ou <15%) e nas crianças com menos de 12 meses de idade e até se excluir a infecção, desde que não amamentadas; utiliza-se o trimetoprim-sulfametoxazol (cotrimoxazol), a iniciar pelas 4 semanas de idade na dose de sulfametoxazol de 40 mg/kg/dia , habitualmente em dose única diária, trissemanalmente, em dias seguidos ou alternados.

A azitromicina na dose de 20 mg/kg semanal é utilizada para a profilaxia da infecção por Mycobacterium avium complex (MAC) nas crianças infectadas de acordo com os valores de linfócitos TCD4+: < 12 meses, se CD4 <750; 1 a 2 anos, se CD4 <500; 2 a 6 anos, se CD4 <75; > 6 anos, se CD4 <50).

Seguimento

Dados os problemas habitualmente associados a crianças e famílias com tal patologia (dificuldade de que se reveste o seguimento destas crianças – e de suas mães – decorrentes da complexidade da patologia, da necessidade de aplicação de esquemas terapêuticos rigorosos e de contextos económicos e sociais habitualmente complicados), o acompanhamento deve ficar a cargo de equipas multidisciplinares experientes e proactivas, possível em consulta própria, de modo a propiciar apoio eficaz, eficiente e efectivo. Chama-se, entretanto, a atenção para a necessidade de promover uma boa articulação com as equipas médicas e de enfermagem no âmbito dos Cuidados de Saúde Primários, igualmente implicadas nos cuidados a prestar os quais deverão primar pela qualidade e em espírito de humanização.

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