TROMBOSE DA VEIA RENAL

Etiopatogénese e importância do problema

Esta situação clínica – o evento tromboembólico espontâneo mais frequente no RN, sobretudo em contexto de mãe diabética – unilateral ou bilateral (esta última, menos frequente) surge sobretudo no lactente, podendo ter a sua génese in utero.

Observa-se quando existem determinados factores predisponentes ou de risco tais como: choque, gastrenterite com desidratação hiperosmolar, septicémia, hipóxia perinatal, diabetes materna, anomalias congénitas renais, síndroma nefrótica, pielonefrite, cardiopatia congénita cianótica, etc..

Pode ser classificada em: primária (se a lesão vascular renal tem como ponto de partida o próprio rim); e em secundária (se o processo trombótico tem origem na veia cava inferior com extensão para o rim).

Os denominadores comuns patogénicos deste problema clínico são, essencialmente, hipovolémia, hemoconcentração, hiperviscosidade sanguínea e hiperosmolaridade.

Nos casos em que não são identificados os factores de risco mencionados, haverá que admitir a possibilidade de trombofilia (estado de hipercoagulabilidade) relacionável, com predisposição hereditária para trombose por: défice de proteínas anticoagulantes (proteínas C ou S, antitrombina III, ou plasminogénio); anomalia de proteína procoagulante tornando-a resistente à proteólise pelo respectivo inibidor (factor V de Leiden); mutação originando níveis elevados de proteína procoagulante; anticorpos antifosfolípidos; hiper-homocisteinémia originando lesão endotelial.

Estima-se uma frequência desta patologia na ordem de 0,07-0,49/10.000 crianças, realçando-se maior incidência em pacientes hospitalizados, submetidos a cateterismo venoso central e após intervenção cirúrgica major.

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

Os sinais clínicos clássicos são: aumento de um ou dois rins (de modo agudo) traduzindo-se por: massa renal palpável e/ou hematúria macro ou micoscópica, em mais de 50% dos casos; e outros sinais e sintomas associados ao aumento do volume renal e à hematúria, tais como distensão abdominal, choque, febre, taquipneia, oligo-anúria. A hipertensão arterial é pouco frequente.

O diagnóstico diferencial faz-se, essencialmente, com situações acompanhadas de aumento de volume do rim e de hematúria (por exemplo, síndroma hemolítica urémica, hematoma peri-renal, doença renal quística, hidronefrose, tumor renal, etc.).

Exames complementares

A história clínica e a situação de base determinarão a realização de determinados exames complementares na perspectiva do diagnóstico sindrómico e do diagnóstico etiológico. Esta situação pode ser diagnosticada no período pré-natal.

Uma vez que em mais de 50% dos casos de trombose da veia renal (TVR) surgem alterações hematológicas, e que, por outro lado, se deve admitir sempre a hipótese de trombofilia, sobretudo na ausência de factores de risco clássicos atrás mencionados, faz-se referência especial a determinados achados hematológicos habitualmente presentes: anemia hemolítica micro-angiopática com fragmentação de eritrócitos; baixos níveis de fibrinogénio, de factor V e de plasminogénio; aumento dos produtos de degradação da fibrina; trombocitopénia; alteração de outros factores da coagulação atrás mencionados.

A análise sumária de urina torna-se obrigatória por razões óbvias.

Determinadas análises bioquímicas (creatinina, azotémia) contribuem para a avaliação da disfunção renal, não esquecendo, em função do contexto clínico, a determinação do perfil lipídico (incluindo lipoproteína (a) – cujo valor aumentado está associado a maior risco de trombose e a hiper–homocisteinémia).

Relativamente a exames de imagem ressaltam-se: ecografia renal com Doppler e renograma isotópico, evidenciando ausência de fluxo na veia renal e nefromegália fluxo.

Tratamento

O tratamento da TVR (controverso, a realizar em centros especializados), tal como o de outras situações trombóticas, depende da situação de base.

Os fármacos habitualmente utilizados são:

  • Heparina por via endovenosa (dose inicial: 50 Unidades/kg seguidas por 100 Unidades/kg de 4-4 horas com o objectivo de obter tempo de coagulação de cerca de 20 minutos);
  • Agentes fibrinolíticos (rTPA ou activador recombinante do plasminogénio tecidual);
  • Terapêutica de substituição (que pode constituir terapêutica de emergência no recém-nascido em situações de défices hereditários comprovados (com plasma, concentrados de antitrombina – III, concentrados de proteína C, etc.).

Em casos especiais de comprovada predisposição hereditária para trombose é empregue a varfarina (anticoagulação de longa duração).

BIBLIOGRAFIA

Christiansen SC, Cannegieter SC, Koster T, et al. Thrombophilia, clinical factors and recurrent venous thrombotic events. JAMA 2005; 293: 2352-2361

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hoppe C, Matsunaga A. Pediatric thrombosis. Pediatr Clin North Am 2002; 49: 1257-1283

Kenet G, Nowak-Gottl U. Venous thromboembolism in neonates and children. Best Pract Res Haematol 2012; 25: 333-344

Kyrle PA, Eichinger S. Deep vein thrombosis. Lancet 2005; 365: 1163-1174

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Kyrle PA, Eichinger S. Deep vein thrombosis. Lancet 2005; 365: 1163-1174

Mahajerin A, Croteua SE. Epidemiology and risk assessment of pediatric venous thromboembolism. Front Pediatr 2017; 5: 68. doi: 10.3389/fped.2017.00068

Moaddab A, Shamshirsaz AA, Ruano R. Prenatal diagnosis of renal vein thrombosis. Fetal Diagn Ther 2016; 39: 228-233

Monagle P, Chan AK, Goldenberg NA, et al. Antithrombotic therapy in neonates and children. Chest 2012; 141(2 Suppl): e737S-801S

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Moudgil A. Renal venous thrombosis in neonates. Curr Pediatr Rev 2014; 10: 101-106

Muwakkit SA, Saab R, Sanjad SA, et al. Renal venous thrombosis with prothrombotic risk factors. Blood Coagul Fibrinolysis 2009; 20: 458-460

Niada F, Tabin R, Kayemba-Kay S. Spontaneous neonatal renal vein thromboses: Should we treat them all? A report of five cases and a literature review. Pediatrics & Neonatology 2018; 59: 281-287

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

SÍNDROMA HEMOLÍTICA URÉMICA

Definições e importância do problema

A síndroma hemolítica urémica (SHU) é uma microangiopatia trombótica (MAT) sistémica caracterizada pela tríade – anemia hemolítica não imune, trombocitopénia e lesão renal. Apresentando características em comum com a púrpura trombocitopénica trombótica, é uma causa frequente de lesão renal aguda (LRA) adquirida na idade pediátrica (esta última surgindo na proporção de 0,2-4,3 /100.000 a nível mundial).

A púrpura trombocitopénica trombótica (PTT) é definida como uma entidade rara constituída na forma clássica pela pêntade- febre, anemia hemolítica microangiopática, trombocitopénia, função renal anormal e alterações do sistema nervoso central (estes dois últimos componentes, inconstantes).

Existindo certo grau de redundância relativamente à definição das duas entidades, clinicamente semelhantes, salientam-se, contudo, certas particularidades da PTT: poder ser congénita e evidenciar- usualmente em adultos e, ocasionalmente, em adolescentes.

Na MAT verifica-se lesão histológica das arteríolas e capilares com formação de trombos, resultantes de um processo sequencial de lesão das células endoteliais, aumento da espessura e inflamação da parede vascular, acumulação de proteínas e material de lise celular no espaço subendotelial e, finalmente, formação de trombos plaquetários. Estes ocluem o lume microvascular, de forma parcial ou completa, com consequente fragmentação dos eritrócitos.

Existem leitos vasculares muito susceptíveis, como os localizados no rim, ainda que outros também possam estar implicados.

Na PTT, a trombose microvascular é consequência do défice grave de actividade da metaloproteinase de matriz – ADAMTS13 (A Disintegrin And Metalloproteinase with ThromboSpondin 13), responsável pela clivagem de multímeros do factor de von Willebrand (FvW). As causas podem ser primárias por mutação no gene codificador da ADAMTS13 ou secundárias à presença de anticorpos anti-ADAMTS13; em ambas as circunstâncias, a actividade do ADAMTS13 é inferior a 5% do normal. O FvW é uma glicoproteína multimérica produzida nos megacariócitos e nas células endoteliais, e segregada para o plasma com função essencial na adesão e agregação plaquetar. A deficiente actividade do ADAMTS13 determina maior presença de multímeros grandes na circulação, com maior número de sítios de exposição para adesão de plaquetas induzindo a formação de trombos microvasculares e a MAT.

Classificação

Tendo como base as definições de SHU e PTT, e numa perspectiva integrada, pode afirmar-se que as duas entidades são as principais formas de MAT, sendo lógico proceder ao estudo conjunto daquelas sob a designação de PTT/SHU tendo como base a MAT. O Quadro 1 integra a classificação geral deste tipo de alterações.

Sob o ponto de vista da etiopatogénese distinguem-se dois tipos de SHU:

  • SHU típica ou pós-diarreia integrando a entidade mais frequente em crianças (> 90% dos casos);
  • SHU atípica/SHUa incluindo formas primárias relacionadas com desregulação na via alternativa do complemento, ou secundárias (a doenças sistémicas, transplante, drogas, gravidez, sépsis, hipertensão maligna e tumores) (~5-10% dos casos). Sobre esta forma atípica sugere-se a consulta do Quadro 2.

QUADRO 1- Classificação geral das SHU, PTT e alterações relacionadas

Etiopatogénese conhecida

    • Infecções bacterianas produtoras de toxina Shiga ou serotoxina (E. coli entero-hemorrágica, Shigella dysenteriae do tipo I, Citrobacter, Streptococcus pneumoniae)
    • Desregulação do complemento (alterações genéticas ou adquiridas)
    • Deficiência de ADAMTS13 (genética ou adquirida)
    • Défice do metabolismo da cobalamina
    • Efeito de cininas

Etiopatogénese desconhecida

    • Infecção por VIH
    • Doenças malignas, quimioterapia ou radiações ionizantes
    • Inibidores da calcineurina ou transplantes
    • Gravidez (síndroma HELLP) ou contraceptivos
    • LED ou síndroma antifosfolípido
    • Glomerulopatias
    • Situações clínicas não classificadas (ver Quadro 2)

 

Síndroma hemolítica urémica típica ou associada a diarreia

Definição, etiopatogénese e aspectos epidemiológicos

Esta síndroma é caracterizada por anemia hemolítica microangiopática, trombocitopénia e elevação da creatinina sérica traduzindo lesão renal aguda (LRA).

A etiologia mais frequente (90%) de SHU é a infecção entérica por Escherichia coli O157:H7 produtora de toxina Shiga (STEC) a partir de alimentos contaminados. A Shiga-toxina (Stx) tem efeito lesivo directo sobre o endotélio vascular e manifestações 3 a 8 dias após inoculação com dor abdominal, diarreia aquosa (por vezes com sangue) e posterior anemia hemolítica, trombocitopénia e LRA em 10-15% dos doentes. Em cerca de 10-15% dos infectados com STEC desenvol­ve-se SHU.

Existem diferenças regionais quanto a incidência. Na Europa Central é divulgada a incidência de 1 caso/100.000 crianças, enquanto na América do Sul há publicações referindo 22/100.000.

As principais fontes de contaminação são bovinos infectados, carne mal cozinhada e consumo de leite não pasteurizado.

Uma vez ingerido o microrganismo, verifica-se a sua colonização da mucosa intestinal, produzindo-se diarreia e desidratação. A toxina Stx, entrando na circulação e atingindo o rim, une-se ao seu receptor Gb3 provocando lesão endotelial, principalmente ao nível do córtex, área onde existe maior número dos citados receptores.

Manifestações clínicas

Como manifestações clínicas iniciais citam-se diarreia sanguinolenta e desidratação, associando-se, ulteriormente manifestações hematológicas (palidez, púrpura e/ou equimoses), renais (edema, hematúria e hipertensão arterial) e, invariavelmente, neurológicas (alterações da consciência, convulsões e coma).

A evolução pode ser autolimitada e com bom prognóstico, salientando-se, no entanto, a elevada probabilidade de LRA com diminuição da massa nefrónica.

Diagnóstico

O diagnóstico laboratorial baseia-se na associação de LRA, Hb < 10 g/dL, eritrócitos fragmentados (> 1%) e plaquetas < 150.000/mm3 ou descida de > 25% do valor basal. Outros achados laboratoriais incluem: > LDH, < haptaglobina e prova de Coombs negativa.

Através da cultura das fezes pode comprovar-se o diagnóstico etiológico com a investigação de E. coli produtora de toxina Shiga.

Tratamento e prognóstico

Perante SHU típica ou associada a diarreia, não existe tratamento específico, excepto em contexto de LRA. A transfusão de sangue está indicada com valores de Hb entre 5 e 7 g/dL. Somente estará indicada transfusão de plaquetas se existir síndroma hemorrágica ou valor de plaquetas < 10.000/mm3.

Com o diagnóstico feito atempadamente e internamento em unidade de cuidados intensivos, a mortalidade dos casos de SHU associada a diarreia é < 5% na maior parte dos centros idóneos. Até cerca de 50% dos casos poderá haver necessidade de diálise. Nos sobreviventes, na proporção de 5% poderá haver dependência crónica da diálise, podendo estabelecer-se evolução para doença renal crónica em 30% dos casos.

Existe contraindicação de antibioticoterapia com antibióticos que destroem a parede bacteriana pela possibilidade de libertação de toxinas.

Síndroma hemolítica urémica atípica

Definição e aspectos epidemiológicos

A síndroma hemolítica urémica atípica (SHUa) define-se pela presença clássica da tríade anemia hemolítica, trombocitopénia e lesão renal aguda (LRA) não acompanhada classicamente de processo diarreico, embora a presença de diarreia não indique obrigatoriamente SHU típica.

Menos comum que a forma típica, corresponde a 5-10% das SHU e inclui um grupo heterogéneo de factores etiológicos, sendo que o conceito de atipia se utiliza em geral para denominar condições de activação incontrolada da via alternativa do complemento em circunstâncias diversas, a seguir analisadas. Pode evidenciar-se de modo esporádico e modo recorrente.

Etiopatogénese

A SHU atípica, surgindo de forma esporádica, relaciona-se com a acção de agentes desencadeantes tais como, infecções não entéricas (doença invasiva pneumocócica/Streptococcus pneumoniae- sobretudo serótipo 19A, infecção por VIH e vírus da gripe do subtipo H1N1), toxinas produzidas por diversos microrganismos, fármacos, doenças malignas, transplantes, imunossupressores e gestação.

A SHU recorrente ou familiar (relacionada com desregulação da via alternativa do complemento determinando impossibilidade de frenação da sua actividade) é devida a défice de factores reguladores (proteínas), entre os quais se encontram factores circulantes (factor I ou CFI, factor H ou CFH, factor B ou CFB) e de membrana (cofactor de proteína de membrana – MCP/CD46 e trombomodulina/TM) codificados por genes, sujeitos a mutações.

Em geral, a regulação do complemento mantém-se; contudo, a acção de certos desencadeantes como infecções, vacinas ou gravidez, originando inflamação e activação do complemento, determina a formação de certos complexos que provocam lesão endotelial. Tal lesão também pode ser originada por anticorpos anti-factor H.

Neste contexto, importa relevar que certo tipo de leitos vasculares, como os capilares glomerulares, são altamente predispostos a lesão por exposição constante da matriz subendotelial a grande variedade de proteínas circulantes. A este propósito, importa salientar que em cerca de 50% dos casos publicados de SHUa foi demonstrada lesão endotelial provocada pelo complemento.

O risco de recorrência e de progressão para doença renal crónica está dependente do tipo de mutação. Em 30% dos casos de SHUa não se encontra qualquer mutação e em 10-15% dos SHUa a causa é relacionável com a existência de anticorpos anti-factor H. De destacar que doseamentos normais destes factores não excluem SHUa.

O facto de existirem indivíduos com mutações nos genes dos referidos factores, e sem manifestação de doença, aponta para o possível papel de determinados agentes ambientais potencialmente desencadeantes.

Tratando-se da infecção invasiva por Streptococcus pneumoniae (sobretudo o serótipo 19A, anteriormente citado) produtor de neuraminidase, é exposto o antigénio T de superfície (das células endoteliais glomerulares, pla­quetas e eritrócitos), é facilitado o ataque por anticorpos do hospedeiro e o surgimento de MAT.

Diagnóstico

Para o diagnóstico de SHUa, a exemplo do que acontece com qualquer situação clínica, a realização da anamnese e do exame físico são fundamentais. Sem esquecer as causas esporádicas de SHU em geral (sobretudo infecção por Streptoccoccus pneumoniae, por VIH, pelo vírus da gripe A, subtipo H1N1), é fundamental proceder-se ao estudo da actividade de ADAMTS13 e estudo do metabolismo da vitamina B12.

Em segunda prioridade deve proceder-se ao estudo de possível alteração na regulação do complemento: C3 e C4, factores reguladores e, em função dos resultados, ao estudo genético das mutações relacionadas com CFH, CFI, proteína cofactor de membrana, C3 e CFB.

O diagnóstico genético das mutações de genes relacionados com o complemento permite definir o prognóstico e o risco de recaída.

O Quadro 2 pormenoriza um conjunto de exames complementares a seleccionar de modo criterioso.

QUADRO 2 – SHUa: orientação diagnóstica em função da história clínica

SHU ATÍPICA

Anormalidades no complemento

    • Alterações genéticas nas proteínas reguladoras da via do complemento (CFH, MCP, CFI, CFB, THBD, C3); defeitos adquiridos (anticorpos anti-CFH)
 

Deficiência de ADAMTS13

    • Alterações genéticas de ADAMTS13; anticorpos anti-ADAMTS13
 Outras
    • Doença sistémica: LES, SAF, Esclerodermia, Défice de cobalamina C, Acidúria metilmalónica, Neoplasias
    • Medicamentos: cisplatina, sirolimus, everolimus, inibidores calcineurina (tacrolimus, ciclosporina), rifampicina, interferon, anticonceptivos orais, mitomicina C, valaciclovir, antiagregantes plaquetários, clopidogrel
    • Infecções: parvovírus B19, citomegalovírus, VIH, Influenza H1N1, infecções congénitas
    • Transplantes: de órgão sólido ou de medula óssea, rejeição, doença enxerto versus hospedeiro, toxicidade por drogas e radiação
    • Gravidez: síndroma HELLP, pós-parto
    • Glomerulopatias: GNMP tipo II
    • Hipertensão arterial maligna

LES: Lúpus eritematoso sistémico; GNMP: Glomerulonefrite membranoproliferativa; SAF: síndroma de anticorpos antifosfolípidos; ADAMTS13: Metaloprotease responsável pela clivagem do factor de von Willebrand. A lista destes exames é logicamente aplicável no contexto de PTT, de acordo com o conceito etiopatogénico explanado anteriormente.

Tratamento

O tratamento de suporte e das alterações hematológicas faz-se em conformidade com os resultados dos exames complementares realizados. Sobre as actuações específicas, aconselha-se a consulta de capítulos próprios.

Enquanto os resultados não excluírem como factor etiológico, alterações da regulação do complemento e da actividade de ADAMTS13, recomenda-se proceder a plasmaferese dentro das 24 horas após início da sintomatologia, excepto se na presença de doença pneumocócica invasiva. Se não se dispuser de plasmaferese, poderá recorrer-se a transfusão de plasma não existindo quadro de hipervolémia nem de hipertensão arterial.

Nos restantes casos, a regra é a plasmaferese diária até remissão hematológica e melhoria da função renal.

Poderá ser utilizado o eculizumab que é um anticorpo monoclonal recombinante humanizado bloqueante específico de C5. Dado que o bloqueio de C5 comporta risco elevado de infecção por Neisseria meningitidis, a indicação daquele anticorpo dependerá da situação de paciente previamente vacinado.

A eventualidade de transplante renal depende da evolução da doença renal crónica consequente.

Prognóstico

A SHUa é uma condição crónica com recorrências, de prognóstico mais reservado (mortalidade de 10-15%) em comparação com a forma clássica, mais frequentemente associada a hipertensão, e tendência de evolução para doença renal crónica em cerca de 50% dos doentes.

Súmula

Perante a suspeita clínica de MAT, o diagnóstico deve orientar-se para SHUa se a pesquisa de Stx-STEC for negativa, a actividade plasmática de ADAMTS13 for superior a 5%, e forem excluídas formas secundárias de SHU. Nos últimos anos foram identificadas e caracterizadas múltiplas mutações e polimorfismos de genes que codificam factores do complemento e se relacionam com a desregulação da via alterna do complemento. A SHUa emerge como uma do­ença causada pela protecção ineficiente do endotélio contra a agressão pelo complemento. Para o diagnóstico de SHUa é recomendável o doseamento dos níveis plasmáticos destes factores e o estudo genético de todos os doentes com SHU.

O diagnóstico genético das mutações do complemento permite definir o prognóstico e o risco de recaída. O transplante renal poderá estar indicado nas formas de prognóstico mais reservado.

BIBLIOGRAFIA

Ariceta G, Besbas N, Johnson S, et al. Guideline for the investigation and initial therapy of diarrhea-negative hemolytic uremic syndrome. Pediatr Nephrol 2009; 24: 687-696

Campistol JM, Arias M, Ariceta G, et al. Actualización en síndrome hemolítico urémico atípico: diagnóstico y tratamiento. Documento de consenso. Nefrologia 2013; 33: 27-45

Cody EM, Dixon BP. Hemolytic uremic syndrome. Pediatr Clin North Am 2019; 66: 227-268

Dixon BP, Gruppo RA. Atypical hemolytic uremic syndrome. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 509-526

Kaplan BS, Ruebner RL, Spinale JM, Copelovitch L. Current treatment of atypical hemolytic uremic syndrome. Intractable Rare Dis Res 2014; 3: 34-45

Kavanagh D, Goodship TH, Richards A. Atypical hemolytic uremic syndrome. Semin Nephrol 2013; 33: 508–530

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Loirat C, Fakhouri F, Ariceta G, Besbas N, et al. An international consensus approach to the management of atypical hemolytic uremic syndrome in children. Pediatr Nephrol 2016; 31: 15-39

Loirat C, Frémeaux-Bacchi V. Atypical hemolytic uremic syndrome. Orphanet J Rare Dis 2011; 6: 60

Moritz MM. Syndrome of inappropriate antidiuresis. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 209-226

Norris M, Remuzzi G. Atypical haemolytic uremic syndrome. N Engl J Med 2009; 361: 1676-1687

Rodriguez de Cordoba S, Hidalgo MS, Pinto S, Tortajada A. Genetics of atypical hemolytic uremic syndrome (aHUS). Semin Thromb Hemost 2014; 40; 422-430

Scheiring J, Rosales A, Zimmerhackl LB. Clinical practice: today’s understanding of the haemolytic uraemic syndrome. Eur J Pediatr 2010; 169: 7-13

Spinale JM, Ruebner RL, Kaplan BS, Copelovitch L. Update on Streptococcus pneumoniae associated hemolytic uremic syndrome. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 203-208

Vaisbich MH. Síndroma hemolítica-urémica na infância. J Bras Nefrol 2014; 36: 208-222

SÍNDROMA NEFRÓTICA

Definição e importância do problema

A síndroma nefrótica (SN) define-se pela coexistência de proteinúria maciça (≥ 40 mg/m2/hora ou relação proteínas/creatinina na urina > 2,0 mg/mg), hipoproteinémia (< 5,5 g/dL) e hipoalbuminémia (< 2,5 g/dL), edema e hiperlipidémia.

A síndroma nefrótica idiopática (SNI), que corresponde a cerca de 90% dos casos das síndromas nefróticas, é a glomerulopatia mais frequente na idade pediátrica, com uma incidência de 2-7 novos casos/ano por 100.000 com idade inferior a 18 anos e uma prevalência de 16 casos por cada 100.000. O sexo masculino é duas vezes mais afectado do que o sexo feminino, embora na adolescência este predomínio deixe de existir.

Em 1978 o trabalho publicado pelo grupo do projecto Estudo Internacional das Doenças Renais na Criança (ISKDC, sigla de International Study for Kidney Diseases in Children) determinou as características histopatológicas, clínicas e laboratoriais da síndroma nefrótica (SN) na criança e demonstrou que a doença das lesões mínimas (LM) é responsável por cerca de 76% dos casos de síndroma nefrótica idiopática. Cerca de 95% dos doentes com LM responde à corticoterapia; no entanto, em cerca de 75% destes verifica-se recaída da doença, e em 50%, necessidade de corticoterapia mais prolongada, o que aumenta o risco de efeitos secundários relacionado com tal terapia.

Salienta-se, a propósito, que a resposta ao tratamento com corticóides constitui o factor mais importante para a determinação do prognóstico a longo prazo.

Os principais objectivos da abordagem inicial de uma criança com um primeiro episódio de SN são:

  • Confirmar a existência da SN;
  • Avaliar se se trata de SN primária ou secundária (Quadro 1), excluindo outras patologias renais que se apresentem com edema ou hipoalbuminémia (glomerulonefrite aguda ou crónica, síndroma hemolítica urémica, doença renal crónica);
  • Investigar eventuais complicações (infecção, trombose, insuficiência renal, hipovolémia);
  • Iniciar tratamento adequado o mais precocemente possível.

QUADRO 1 – Classificação da síndroma nefrótica na idade pediátrica

Adaptado de Pasini A, Benetti E, Conti G, et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe). Italian J Pediatr 2017; 43:41

– Síndroma nefrótica primária (95% <> idade 0-12 anos)

    • Síndroma nefrótica idiopática (80-90% <> idade 2-8 anos)
    • Síndroma nefrótica corticossensível
    • Síndroma nefrótica corticorresistente
    • Síndroma nefrótica genética (isolada ou sindromática)
    • 95-100% dos casos de SN congénita (<> idade < 3 meses)
    • 50-60% dos casos de SN infantil (<> idade 4-12 meses)

Síndroma nefrótica secundária (5% <> idade 0-12 anos)

    • Vasculites/doenças autoimunes (lúpus eritematoso sistémico, poliangeíte microscópica, síndroma de Goodpasture, púrpura de Henoch-Schönlein, nefropatia por IgA)
    • Infecção (por VHB, VHC, VIH, VEB, CMV, PVB19, Mycoplasma pneumoniae, Treponema pallidum, Toxoplasma, Plasmodium, parasitas)
    • Agentes químicos /fármacos (anti-inflamatórios não esteróides, tiopronina, penicilamina, sais de ouro, pamidronato, interferão, everolimus, antirretrovíricos, quimioterapêuticos, lítio, heroína)
    • Diabetes
    • Cancro (Linfomas, leucemia)

Fisiopatologia

Os rins utilizam um complexo sistema de filtração conhecido como barreira de filtração glomerular (BFG). Esta barreira é constituída pela membrana basal glomerular, pelo endotélio fenestrado e pela camada epitelial composta por podócitos. A BFG com uma área uma carga eléctrica específicos, permite permeabilidade para a água e solutos através dos seus poros em direcção ao espaço urinário.

Na SN a alteração das cargas negativas na membrana basal glomerular resulta na fusão dos podócitos, na perda dos diafragmas dos poros, no aumento da permeabilidade da BFG e na perda de albumina e outras proteínas na urina. Poderá também estar em causa um factor plasmático produzido pelos linfócitos conduzindo a aumento da referida permeabilidade.

Na maior parte dos estudos relacionados com os mecanismos patogénicos da síndroma nefrótica idiopática é explorado o papel do sistema imunológico e dos podócitos na génese da doença. Há várias teorias que incluem: – 1) disfunção das células T com libertação de citocinas que afectam os glomérulos, aumentando a sua permeabilidade; – 2) alteração do sistema imunológico que conduz à produção de factores circulantes que alteram a estrutura/função dos podócitos, originando perda de proteínas.

Admite-se que: – as células B também possam estar envolvidas na génese da SN, uma vez que há estudos que reportam remissões após administração de anticorpo anti CD20 (rituximab).

Na actualidade, não há ainda evidências definitivas acerca dos mecanismos patogénicos envolvidos.

Em relação ao edema na SN, há 2 mecanismos diferentes que explicam sua génese. No mecanismo da contracção vascular, a perda de albumina na urina leva à hipoalbuminémia e esta à diminuição da pressão oncótica intravascular, o que permite a passagem transcapilar de água e outros solutos para os tecidos. Em consequência das alterações hemodinâmicas que se registam, há contracção do volume intravascular e activação do sistema renina-angiotensina-aldosterona com retenção de sódio e água, e perpetuação do edema. Igualmente, a contracção do volume intravascular estimula a hormona antidiurética com consequente incremento da reabsorção de água nos tubos colectores. Por sua vez, a hipoalbuminémia estimula a síntese de colesterol-LDL e de triglicéridos, explicando a hiperlipidémia.

No mecanismo de expansão vascular considera-se que a proteinúria origina a retenção primária intrarrenal de sódio e água. Esta retenção, independente do sistema renina-angiotensina-aldosterona, é causada pela activação dos canais epiteliais de sódio nos túbulos distais, originando hipervolémia e perpetuação do edema.

De referir, no entanto, que os mecanismos descritos não se aplicam a todos os casos de SN, pois há situações que cursam com hipervolémia e diminuição do nível sérico de renina e de aldosterona.

Descreve-se igualmente um mecanismo genético que está subjacente na maioria das SN congénitas e familiares e também pode aparecer em SN esporádicas e de qualquer idade. Efectivamente, são conhecidas mutações nos genes (NPHS2, FSGS1, NPHS1) que, codificando proteínas que participam no desenvolvimento e estrutura das células epiteliais glomerulares (podócitos) a diversos níveis (podocina, alfa-actinina 4, nefrina), conduzem a alterações estruturais.

Outros genes (como WT1, MYH9 e LMX1B, e NEPH1) poderão explicar alterações estruturais de outros componentes do aparelho de filtração glomerular como a fenda interpodocitária.

No âmbito das SN genéticas, as mutações nos genes NPHS1, NPHS2 (gene no cromossoma 19q13.1- SN tipo finlandês), WT1 e LAMB2 explicam cerca de 90% das SN nos primeiros 3 meses de vida, e cerca de 2/3 dos casos de SN entre os 4 e 12 meses.

A SN congénita tipo finlandês, as mutações no gene NPHS2 (no cromossoma 19q13.1), que codifica a nefrina, são responsáveis pela maioria da SN congénitas.

Por outro lado, certos tipos HLA (-DR7, -B8, -B12) estão associados a incidência mais elevada de SN.

Manifestações clínicas e interpretação fisiopatológica

A apresentação clássica de um primeiro episódio de SN é a de uma criança com idade entre os 3 e os 9 anos com edema de início insidioso e com espectro que vai desde o edema palpebral (por vezes confundido com manifestação de quadro alérgico), a ascite, derrame pleural, até à anasarca, em associação com oligúria (urina habitualmente de aspecto espumoso.

A existência de hematúria macroscópica não é habitual na SNI, alertando para a eventualidade de trombose da veia renal ou de glomerulopatia crónica. A hematúria microscópica ocorre em 15% dos casos de lesões mínimas (LM).

Outras manifestações incluem hepatomegália e diarreia (por enteropatia exsudativa), dificuldade respiratória.

Nalguns doentes (cerca de 30%) há referência a infecções víricas ou bacterianas recentes, antecedendo o aparecimento daquele. O mesmo se verifica em 70% das recaídas.

A pressão arterial é, em regra, normal; somente cerca de 15% dos doentes registam uma hipertensão moderada. A existência de hipertensão (HTA) grave não é compatível com SN com lesões mínimas (LM).

A dor abdominal na criança com SNI é um sintoma de importância vital; as causas podem relacionar-se com: – peritonite primária por Streptococcus pneumoniae, ou E. coli; – com isquémia do território da mesentérica por hipovolémia grave; ou com trombose vascular.

O processo de trombose (designadamente tromboembolismo pulmonar podendo surgir em 15% dos casos) está relacionado com elevação do teor de factores/protrombóticos (fibrinogénio, plaquetas), hemoconcentração, acção de diuréticos, punções venosas, imobilização relativa, e diminuição de factores fibrinolíticos (perda urinária de antitrombina III, proteínas C e S).

Existe maior susceptibilidade para infecções (sobretudo por Streptococcus pneumoniae) explicável por disfunção imune dos linfócitos T e B, perda urinária de imunoglobulinas, complemento e properdina; daí o maior risco de peritonite primária (2-6%), celulite, pneumonia e sépsis.

A HTA e a hiperlipidémia comportam risco cardiovascular. A hipoproteinémia comporta risco de desnutrição e hipocrescimento.

Na SN genéticas (isoladas ou sindromáticas), a lesão estrutural justifica as suas características: início precoce (Quadro 1), falta de resposta ao tratamento e baixa recorrência ulterior ao transplante.

As manifestações são graves, comprometem a sobrevivência, necessitando na sua maioria de diálise durante o primeiro ano de evolução.

As SN genéticas sindromáticas caracterizam-se pela sua apresentação no contexto de patologia extrarrenal. São exemplo:

  • A síndroma de Denys-Drash, explicada por mutação no gene supressor de tumor de Wilms (WT1) do que resulta função anómala dos podócitos. Trata-se duma forma de SN de início precoce, com insuficiência renal progressiva, ambiguidade genital e tumor de Wilms;
  • A síndroma de Pierson, resultante de mutações no gene LAMB2 caracteriza-se por anomalias estruturais da beta 2-laminina, componente crítico das membranas basais ocular e glomerular. Apresenta-se como SN congénita e microcória (miose fixa por estreitamento da pupila).

A evolução para doença renal terminal é quase exclusiva da SN congénita e corticorresistente.

Exames complementares

No primeiro episódio de quadro sugestivo de SN, o doente deve ser hospitalizado para investigação, conduzindo aos diagnósticos sindrómico e etiológico, avaliar a resposta à terapêutica e esclarecer a família acerca da cronicidade da doença e das medidas de vigilância e controlo.

Ulteriormente poderá seguir-se o paciente em regime de ambulatório, de acordo com a clínica apresentada e com o meio familiar onde está inserida.

Nesta perspectiva, pressupondo anamnese e exame físico rigorosos, está indicada a realização de determinados exames complementares. (Quadros 2, 3 e 4)

QUADRO 2 – Anamnese

Doença actualAntecedentes pessoaisAntecedentes familiares
Adaptado de Pasini A, Benetti E, Conti G, et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe). Italian J Pediatr 2017; 43:41
Início dos sintomas. Início e características do edemaPeríodo pré/perinatalSN na família
Sinais e sintomas associados (hematúria, febre, oligúria, vómitos, dor abdominal, HTA, eritema cutâneo, artralgias…)Crescimento e desenvolvimentoOutras doenças renais na família
Viagens/infecções recentesDoenças sistémicas (autoimunes, neurológicas, metabólicas, congénitas, neoplasias)Outras doenças na família
Fármacos/toxinasInfecções 

QUADRO 3 – Exame físico

Parâmetros clínicosEdemaSinais e sintomas de hipovolémiaSinais e sintomas de infecção/doença sistémica

• Frequência cardíaca
• Frequência respiratória
• Pressão arterial
• Saturação em O2
• Peso corporal

• Peri-orbitário
• Pré-tibial
• Genital
• Ascite
• Edema da parede intestinal
• Derrame pleural
• Edema pulmonar
• Anasarca

• Dor abdominal
• Taquicardia
• Extremidades frias
• Oligúria
• TPC < 2 segundos

• Febre
• Eritema
• Púrpura
• Artrite

Adaptado de Pasini A, Benetti E, Conti G, et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe). Italian J Pediatr 2017; 43:41

QUADRO 4 – Exames analíticos

Adaptado de Pasini A, Benetti E, Conti G, et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe). Italian J Pediatr; 2017; 43:41
AnálisesSangueUrina
Obrigatórias
    • Hemograma
    • Ureia e creatinina
    • Ionograma (incluindo cálcio ionizado)
    • Proteínas totais, albumina
    • Colesterol e triglicerídeos
    • PCR
    • Coagulação (incluindo antitrombina/AT III)
    • Imunoglobulinas
    • Complemento (C3, C4, CH50)
    • Análise sumária de urina (segunda amostra da manhã)
    • Proteinúria de 24 horas ou ratio proteinúria/creatininúria
Adicionais
    • Marcadores autoimunes (ANA, DS-DNA, ENA, ANCA)
    • Função tiroideia
    • Infecção/estudo serológico (rastreio de VHB, VHC, VIH, Parvovírus B19, CMV, VEB, Pneumococcus, Salmonella, Treponema, Mycoplasma...)
    • Sódio urinário

A análise de urina pode revelar hematúria microscópica em cerca de 20% dos casos de LM; a hematúria macroscópica, rara, deve orientar para outra afecção.

A relação proteína/creatinina urinária – UPr/UCr > 2,0 mg/mg – numa primeira amostra matinal, só por si, excluindo a proteinúria ortostática, é sugestiva de estar relacionada com SN. Valores entre 0,2 e 2,0 traduzem proteinúria ligeira a moderada.

O resultado do ionograma sérico é geralmente normal nos doentes com SN. Os níveis de cálcio podem estar baixos devido à hipoalbuminémia, embora os de cálcio ionizado estejam dentro dos limites da normalidade.

Adicionalmente, pode haver hiponatrémia, fundamentalmente por secreção inapropriada de hormona antidiurética (retenção de água e consequente hiponatrémia de diluição). A hiponatrémia pode também ser devida a causas iatrogénicas (uso de diuréticos para controlo do edema).

Os factores da coagulação, antitrombina III e plasminogénio estão diminuídos; o fibrinogénio e os factores I, II, V, VII, VIII, X e XIII estão aumentados.

O doseamento sérico das imunoglobulinas está também diminuído.

A creatinina sérica está geralmente normal; pode estar aumentada em situações de hipoperfusão renal resultante de contração do volume intravascular.

Os valores séricos de colesterol e triglicéridos estão elevados e os de C3, C4 e CH50 normais.

A radiografia do tórax está indicada se houver sintomatologia respiratória.

O Interferon Gamma Release Assay (IGRA), prova que permite rastrear a tuberculose, deve ser realizado antes do início da corticoterapia.

Na maior parte dos casos não é requerida a biópsia renal (BR). As indicações para tal procedimento são descritas no Quadro 5.

QUADRO 5 – Indicações da biópsia renal

Adaptado de Pasini A, Benetti E, Conti G, et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe). Italian J Pediatr 2017; 43:41
Antes do tratamentoApós tratamento
    • Início com menos de 12 meses ou mais de 12 anos de idade
    • Hematúria macroscópica inicial
    • HTA persistente e/ou hematúria microscópica e/ou diminuição do C3
    • SN secundária (a Púrpura de Henoch-Schoenlein, LES, etc.)
    • SN associada a síndromas
    • Insuficiência renal não relacionada com hipovolémia
    • Resistência aos corticóides
    • Algumas situações de corticodependência

Os achados histopatológicos através de biópsia renal percutânea permitem discriminar diversos padrões, os quais são descritos no capítulo sobre Doença glomerular (respectivo Quadro 2). Reitera-se aqui que o padrão de nefropatia de lesões mínimas (LM) é identificado na maioria dos casos (80 a 90%), seguindo-se os restantes padrões, por ordem decrescente: glomerulosclerose segmentar e focal (~10%), nefropatia membranoproliferativa, nefropatia membranosa e glomerulonefrite mesangial proliferativa (~5%).

O padrão de LM, não identificado por microscopia óptica, evidencia sinais de fusão dos podócitos na microscopia electrónica. O padrão de glomerulosclerose segmentar e focal, tal como o nome indica, traduz-se por imagens de alguns glomérulos sem alterações a par de áreas segmentares de esclerose ou cicatriz.

Estudos recentes sugerem um decréscimo da prevalência das lesões mínimas e um aumento dos casos de glomerulosclerose segmentar e focal.

O significado clínico dos subtipos histológicos da SNI não é linear. Na prática, independentemente do tipo histológico, o factor determinante do prognóstico é a resposta à corticoterapia. Contudo, a informação sobre o padrão histopatológico poderá ser valiosa em função do contexto clínico de cada caso.

O estudo genético deverá ser efetuado às crianças com SN Corticorresistente (SNCR), e na SN genética, isolada ou associada a outras síndromas (por ex. a já citada síndroma de Denys-Drash). (Quadro 6)

   QUADRO 6 – Genes associados a síndroma nefrótica

Abreviaturas: AR = autossómica recessiva; AD = autossómica dominante
Adaptado de Pasini A, Benetti E, Conti G. et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe). Italian J Pediatr 2017; 43:41

Gene

Hereditariedade

Forma clínica

NPHS1
NPHS2
CD2AP
PLCe1
TRPC6
PTPRO
WT1
LMX18

AR
AR
?
AR
AD
AR
Esporádica, AD
AR

SN Congénita/SN
SN Congénita, SN de início na infância e idade adulta
SN de início precoce
SN de início precoce
SN de início na idade adulta
SN de início na infância
Síndromas de Denys-Drash e Frasier.  SN de início na idade adulta
Síndroma da Unha-Patela/SN

SMARCALI
E2F3
NXF5

PAX2

ACTN4

MYH9

INF2

SYNPO

AR

Deleção cromossómica

Recessiva ligada ao X

AD

AD

Alelo de risco

AD

?

Displasia imuno-óssea de Schimke

SN de início precoce e atraso mental

SN com bloqueio cardíaco

SN de início na idade adulta

SN de início na idade adulta

SN de início na idade adulta

SN familiar/esporádica

SN de início na idade adulta

APOLI

MYO1E

ARHGAP24

ARHGDIA

ANLN

EMP2

CUBN

GPC5

Complexa/ AR

AR

AD

AR

AD

AR

AR

Alelo de risco

SN de início na idade adulta

SN de início precoce ou na idade adulta

SN de início na idade adulta

SN congénita

SN de início na idade adulta

SN de início na infância

Nefrite com proteinúria intermitente e epilepsia

SN de início na idade adulta

PODXL

TTC21B

CLTA4

MTTL1

tRNAIIe

tRNAAsn

tRNATyr

COQ2

AD

AR

Alelo de risco

?

?

?

?

AR

SN de início precoce ou na idade adulta

SN com envolvimento túbulo-intersticial

SN esporádica

Síndrome MELAS; SN +/- surdez e diabetes

Surdez, SN, Epilepsia e Cardiomiopatia dilatada

Falência multiorgânica e SN

Citopatia mitocondrial e SN

Doença mitocondrial/Nefropatia isolada

COQ6

ZMPSTE24

ADCK4

CYP11B2

LAMB2

ITGB4

AR

AR

AR

Alelo de risco

AR

AR

SN com surdez neurossensorial

Displasia mandíbulo-sacral com SN

SN

SN, Nefropatia IgA

Síndroma de Pierson; SN Congénita com anormalidades oculares;

SN de início precoce isolado

Síndroma NEP-SN, epidermólise bulhosa e doença pulmonar

Relativamente ao estudo genético, importa salientar que tem sido encontrado um número crescente de mutações em 66% dos doentes com SNC) e SNInf, e apenas em cerca de 16% com SNCR. Como nota prática importa reter que na síndroma nefrótica em que é identificada uma mutação genética, raramente se verifica resposta à corticoterapia ou à terapêutica imunossupressora.

Diagnóstico diferencial

A verificação de proteinúria, pressupondo devido enquadramento nos dados da anamnese e exame objectivo, obrigará ao diagnóstico diferencial com quatro situações:

  • Proteinúria transitória que se pode observar após exercício físico, febre, desidratação, convulsões e terapêutica com agonistas adrenérgicos. Não indicativa de doença renal, é ligeira (UPr/Cr < 1) e de natureza glomerular;
  • Proteinúria postural (ortostática), situação benigna definida por excreção normal de proteínas quando em posição de decúbito, e elevada quando há mobilização corporal e posição bípede;
  • Proteinúria tubular, caracterizada por predomínio excretório de proteínas de baixo peso molecular, está associada tipicamente a situações como necrose tubular aguda, pielonefrite, nefropatias estruturais, doença renal poliquística, toxicidade por antibióticos e por agentes quimioterapêuticos. A combinação de proteinúria tubular com glicosúria e perda tubular de electrólitos integra a síndroma de Fanconi;
  • Proteinúria glomerular, muitas vezes traduzindo doença glomerular (hematúria, eritrocitúria, HTA, insuficiência renal), caracteriza-se por proteinúria de grau variável e de peso molecular variável; constituem exemplos a síndroma hemolítica urémica e a glomerulonefrite pós-estreptocócica.

Evolução

Depois do primeiro episódio, em cerca de 90% dos pacientes surgem recaídas.

O grau de recorrência, a resposta ao tratamento e os achados histopatológicos determinam diversas categorias de SN contribuindo para estabelecer o prognóstico.

O Quadro 7 discrimina as diversas modalidades de evolução possível.

No Quadro 8 é estabelecida a classificação das diversas formas de SN em função da resposta ao tratamento com corticóides.

QUADRO 7  – Conceitos de evolução clínica

Remissão: ausência de proteinúria (< 4 mg/m2/h ou relação urinária Proteína/Creatinina < 0,2) ou tira-teste urinária negativa/vestígios durante 3 dias consecutivos
Remissão parcial: normalização da albuminemia (>3g/L) com persistência de proteinúria não nefrótica (4-40mg/m2/h)
Remissão completa: ausência de proteinúria e normalização de albuminemia após 7-10 anos sem recaídas
Recaída: aparecimento de proteinúria em fita-teste urinária (≥ 3+) durante 3 de 5 dias consecutivos em qualquer altura da evolução
Resistência: persistência de proteinúria nefrótica apesar do tratamento
 

QUADRO 8 – Classificação de acordo com a resposta ao tratamento com corticoides

SN corticossensível: quando a resposta ao tratamento inicial com prednisolona é a remissão completa da síndroma 

    • Recaídas frequentes: doentes corticossensíveis com 2 ou mais recaídas nos 6 meses após manifestação inicial ou ≥ 4 recaídas em qualquer período de 12 meses
    • Recaídas pouco frequentes: doentes corticossensíveis com 1-3 recaídas por ano
    • Corticodependentes: doentes corticossensíveis que apresentam recaída durante o período em que está a decorrer a diminuição progressiva da dose de prednisolona, ou nas 2 semanas seguintes à supressão do tratamento

SN Corticorresistente: persistência da síndroma clínica e/ou bioquímica após 4 semanas de administração diária de prednisolona – 60 mg/m2/dia, per os, ou após bolus ev de metilprednisolona – 30 mg/kg, em dias alternados, até um máximo de 3 bolus.

Tratamento e medidas preventivas

O tratamento engloba duas vertentes: farmacológica e medidas gerais.

Os corticóides, a base principal do tratamento farmacológico, são citados em primeiro lugar.

Tratamento farmacológico

1. Corticóides

Os corticóides são os fármacos de eleição para induzir a remissão nos casos de SN não complicada entre os 1-12 anos pela probabilidade de se tratar de forma clínica associada a padrão de LM.

A medicação “tipo” para o tratamento da SN é a prednisona ou o seu metabólito activo, a prednisolona. Apesar de, em termos de biodisponibilidade, tais fármacos não serem equivalentes, têm sido usados indiferentemente na mesma dosagem, quer na prática clínica, quer em ensaios controlados e aleatorizados. Sobre outros corticóides (deflazacort, dexametasona, betametasona, metilprednisolona), que também têm sido utilizados para tratamento inicial da SN, não há estudos que demonstrem a sua eficácia.

1.1 SN supostamente associada a LM

Após verificação da negatividade do IGRA, é iniciada administração de prednisolona 60 mg/m2/dia, em dose única matinal ou em duas doses diárias, durante 4-6 semanas (dose máxima diária, 60 mg).

Cerca de 80-90% dos doentes respondem à corticoterapia com remissão até ao fim de 3 semanas. É importante salientar que o aumento acentuado da diurese poderá originar hipovolémia e aumentar o risco de trombose.

Após este curso terapêutico de 4 a 6 semanas, a prednisolona é diminuída para 40 mg/m2 em dias alternados, dose única matinal, ou em duas doses diárias no dia do tratamento, durante pelo menos 4 semanas, procedendo-se ulteriormente, à diminuição gradual até à interrupção (redução de aproximadamente 15 mg/m2 cada 10-15 dias).

Diversos estudos demonstraram que doses mais elevadas e maior duração da terapêutica prolongada ou repetida com corticóides reduzem o risco de recaídas (de 60-80% para 30-40%). Há, no entanto, necessidade de uma monitorização dos efeitos secundários da corticoterapia (restrição do crescimento, obesidade, osteoporose, catarata, alterações psicológicas, etc.).

1.2 Recaídas de SN

Nas recaídas, a indução da remissão é alcançada com prednisolona na dose de 60 mg/m2/dia – tal como no episódio inaugural, passando-se à administração em dias alternados de prednisolona, que é diminuída para 40 mg/m2 (máximo 60 mg) logo que a proteinúria seja negativa durante 3 dias consecutivos. O tratamento em dias alternados mantém-se mais 4 semanas, após o que se inicia a redução gradual até à interrupção, tal como foi referido a propósito da terapêutica inicial.

2. Imunossupressores

Como regra geral pode estabelecer-se que os doentes portadores de SN com recaídas frequentes, SN corticodependente e SN corticorresistente são candidatos a outras terapêuticas alternativas, particularmente se existirem efeitos acessórios significativos relacionados com a corticoterapia.

Nesta perspectiva, têm sido utilizados imunossupressores com diversos mecanismos de acção, e resultados variáveis quanto a eficácia e toxicidade: ciclofosfamida, clorambucil, levamisol, azatioprina, anticalcineurínicos (ciclosporina A e tacrolimus), micofenolato mofetil, mizoribina e rituximab.

Os fármacos com melhor perfil de segurança são a ciclofosfamida, o micofenolato mofetil e os anticalcineurínicos.

2.1 SN corticodependente

O objectivo é diminuir o número de recaídas, prolongar o período de remissão e reduzir a toxicidade.

  • A ciclofosfamida é o fármaco de eleição para a SN corticodependente (2 mg/kg/dia, per os, durante 8 a 12 semanas), devendo administrar-se apenas em 1 ciclo. É gonadotóxica e pode originar cistite hemorrágica e leucopénia. Não é nefrotóxica.
  • O micofenolato mofetil (400-600 mg/m2 de 12-12 horas) é a segunda alternativa, durante 1 ano, com redução progressiva no período de 3-6 meses; tem as vantagens de não ser nefrotóxico nem gonadotóxico, embora possa originar mielossupressão. Obriga a doseamento sérico (2-5 ng/mL).

Os anticalcineurínicos (ciclosporina A ou tacrolimus), o levamisol e o rituximab reservam-se para terceira prioridade considerando os seus efeitos secundários, designadamente, nefrotóxicos:

  • Ciclosporina A (5-6 mg/kg/dia durante 6-12 meses, com ulterior redução gradual lenta); potencialmente nefrotóxica, obriga a doseamento sérico (75-150 ng/mL); menos eficaz se existir hipercolesterolémia grave;
  • Tacrolimus (0,15 mg/kg/dia durante 6-12 meses), com ulterior redução gradual. Como inconvenientes citam-se o risco de diabetes e a nefrotoxicidade; obriga a doseamento sérico (5-10 ng/mL);
  • Levamisol (2,5 mg/kg em dias alternados, três dias por semana durante um ano), também em conjunto com prednisolona em dose mínima;
  • Rituximab (375 mg/m2/semana – máximo 4 doses, por via ev) reservado para casos seleccionados, com elevado grau de dependência; risco de fibrose pulmonar e de toxicidade em subpopulações linfocitárias.

Durante o tratamento deve proceder-se a avaliação analítica (designadamente através do hemograma e das provas de função hepática), pelo menos de 3 em 3 meses. Uma parte significativa dos doentes recidiva depois da suspensão deste tratamento.

Nota: 1) Nalguns doentes a remissão mantém-se com as doses baixas de prednisolona em dias alternados referidas em 1.2 – (40 mg/m2 – máximo 60 mg) – durante 1-2 anos. 2) A resposta à ciclofosfamida é melhor se tiver havido boa resposta à corticoterapia. 3) Assim, é recomendável iniciar a ciclofosfamida depois de induzida a remissão com a prednisolona, mantida em dose mínima durante o tempo de ciclofosfamida, o que poupa o doente aos efeitos acessórios dos corticóides.

2.2 SN corticorresistente

Salientando-se que não existe consenso em relação aos esquemas terapêuticos utilizados nas situações de corticorresistência, o objectivo geral é conseguir remissão completa ou parcial para reverter ou minorar o risco de insuficiência renal.

Os inibidores da calcineurina (ciclosporina ou tacrolimus) utilizam-se em primeira linha. A ciclosporina A tem sido utilizada de modo mais amplo. Os estudos demonstraram que o tacrolimus é tão eficaz como a ciclosporina, evidenciando menores efeitos secundários. Os pacientes devem, de facto, ser vigiados quanto aos referidos efeitos, incluindo HTA, hirsutismo, nefrotoxicidade e hiperplasia gengival.

Na maioria dos casos verifica-se resposta após período de 3-6 meses de tratamento, recomendando-se biópsia renal para valorizar a nefrotoxicidade.

A opção seguinte será o micofenolato mofetil em monoterapia; ou associado: – a prednisona; – ou a inibidor da calcineurina.

Na actualidade, a experiência com rituximab está limitada a casos isolados, embora com resultados prometedores. Recentemente foi descrito o papel de outro anticorpo monoclonal anti CD20 chamado ofatumumab.

2.3 SN genética

A decisão de tratamento imunossupressor em tal circunstância deve ser individualizada e cautelosa, designadamente em função do modo de apresentação clínica, tipo e gravidade da mutação, a condição de homo ou heterozigotia.

Medidas gerais

1. Hipovolémia

Nos casos de hipovolémia (hemoconcentração, taquicardia, hipotensão, dor abdominal, hematócrito e ureia elevados), a correção é feita com soro fisiológico e albumina a 20% endovenosa (1 g/kg, durante 4 horas); é necessário proceder à monitorização das frequências respiratória e cardíaca, e da pressão arterial.

Nas situações mais graves, com choque hipovolémico, poderá estar indicada a perfusão de albumina a 4% (1 g/kg).

2. Diuréticos

Torna-se importante estimar qual a contribuição dos mecanismos de contracção vascular e de expansão vascular (ver atrás) em cada doente antes da utilização de diuréticos.

O tratamento com diuréticos é eficaz nas situações de expansão vascular, enquanto nos doentes com contração vascular esta terapêutica agrava a hipovolémia já existente.

Na prática, os diuréticos de ansa (furosemido) estão indicados em caso de edema grave, depois da correção da hipovolémia; devem ser usados com precaução pelos riscos de agravamento da depleção do volume intravascular, de tromboembolismo, de insuficiência renal aguda e de alterações graves do balanço hidroelectrolítico.

3. Regime alimentar

Durante o tratamento com corticóides deve ter-se em atenção, particularmente, o sal, os hidratos de carbono e os produtos lácteos. Na fase aguda, a restrição de sal está indicada na prevenção e tratamento do edema. A ingestão salina não deve exceder os 35 mg/kg/dia de NaCl.

A ingestão proteica diária deverá ser a adequada ao peso e idade, ~1-2 g/kg/dia.

Perante situação de dislipoproteinémia, o suprimento em gorduras deve ser limitado a < 30% do valor calórico total, e a < 300 mg/dia de colesterol. No contexto de SN, não há dados suficientes para a recomendação de estatinas nos casos de disliproteinémia acentuada.

4. Protecção gástrica

A incidência de úlcera gástrica em doentes sob corticoterapia é muito baixa, especialmente nas crianças, pelo que a profilaxia da úlcera gástrica com inibidores da bomba de protões, não está indicada. A profilaxia deverá ser reservada para os casos em que o tratamento é prolongado, ou associado à utilização de outros anti-inflamatórios (por ex. ácido acetilsalicílico).

5. Recomendação de imunizações

Regra geral, o calendário vacinal deve ser respeitado, embora nos casos de recaídas frequentes possa haver necessidade de o adiar.

Se possível, os doentes devem receber as vacinas recomendadas, pelo menos 2 semanas antes do início do tratamento com corticóides. As vacinas vivas não devem ser administradas durante o tratamento com corticóides em altas doses; somente, pelo menos quatro semanas após o seu término. Considera-se corticoterapia em altas doses, a dose de, pelo menos, 20 mg/dia de prednisona (ou de dose equivalente de outro corticóide) durante um período de, pelo menos, 2 semanas.

A varicela num doente imunodeprimido é uma doença grave. Em caso de exposição do doente com SN a caso da varicela, está indicada a prevenção com aciclovir. Na mesma circunstância, nos casos de recaídas, deve administrar-se imunoglobulina varicela-zóster dentro de 72 horas após exposição.

Nas crianças não imunes contra a varicela (títulos serológicos negativos) está indicada a vacina antivaricela na fase de remissão, ou na fase de corticoterapia com doses baixas em dias alternados.

Recomenda-se igualmente a vacina antipneumocócica polissacarídea para 23 estirpes a todas as crianças acima dos 2 anos. Esta vacina deve ser administrada pelo menos 8 semanas após a última administração da vacina antipneumocócica conjugada para 13 estirpes, e repetida a cada 5 anos, se a SN se mantiver.

Está igualmente indicada a vacinas antigripe anualmente.

Complicações

Os doentes com síndroma nefrótica comportam risco elevado de complicações, discriminadas a seguir.

Tromboembolismo

O tromboembolismo nestes doentes é multifactorial. Para além dos factores de risco hereditários que podem existir (tal como a mutação do fator V de Leiden), verifica-se deplecção intravascular, que pode ser agravada pelo uso de diuréticos para controlo do edema. Há também perda urinária de factores da coagulação (antitrombina III) e um aumento de produção hepática de factores procoagulantes (fibrinogénio, factor V e factor VIII), o que favorece a formação de trombos. A hiperlipidémia, a trombocitose e a agregação das plaquetas poderão ter também um papel relevante na génese da trombose.

A incidência destes fenómenos é desconhecida, embora haja descrições que apontam para uma incidência na ordem dos 1,8 a 4,4% nas crianças com SN Idiopática, sendo muito mais elevada nas crianças com SN secundária a nefropatia membranosa ou membranoproliferativa. As taxas mais elevadas ocorrem nas crianças com SN congénita.

A trombose cerebral é a forma clínica mais frequentemente observada (particularmente a trombose do seio sagital), seguindo-se, em proporção decrescente, o tromboembolismo pulmonar e a trombose venosa profunda dos membros inferiores.

A trombose da veia renal caracteriza-se clinicamente pelo aparecimento de dor súbita no flanco, acompanhada por episódio de macro-hematúria.

A anticoagulação profiláctica não é recomendada, excepto nos casos de evento tromboembólico prévio.

Infecção

Na SN há também perda urinária de imunoglobulinas. Esta perda de anticorpos circulantes coloca o paciente em risco de desenvolvimento de infecções bacterianas, particularmente secundárias a agentes bacterianos capsulados (por ex. Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae, e Streptococcus do grupo B).

A peritonite causada por S. pneumoniae é uma infecção “clássica”, bem conhecida, em crianças com SN. Outras patologias possíveis com a tal etiologia são incluem celulite, pneumonia ou sépsis.

Por outro lado, há que ter em consideração a influência do efeito do tratamento imunossupressor na etiopatogénese das infecções, em geral.

Dislipidémia

A hipoalbuminémia estimula a síntese de colesterol-LDL e de triglicerídeos, explicando a dislipoproteinémia.

A hipercolesterolémia resulta de uma variedade de factores, salientando-se o aumento da actividade da enzima β-hidroxi-β-metilglutaril-coenzima A (responsável pela síntese do colesterol), e o decréscimo da actividade da 7α-hidroxilase (enzima responsável pelo catabolismo do colesterol). Daí, a elevação do colesterol total e do colesterol-LDL.

A hipertrigliceridémia é o resultado da diminuição da conversão dos triglicerídeos em ácidos gordos livres, devido à presença de uma glicoproteína semelhante à angiopoietina. Esta glicoproteína, encontrando-se em vários tecidos, é produzida em resposta à proteinúria nefrótica.

Lesão renal aguda

A insuficiência renal aguda pode ocorrer durante o curso da SN, especialmente em doentes que se apresentem com hipovolémia. O uso agressivo de diuréticos, doença pré-existente, ou sépsis com hipotensão, podem diminuir o volume intravascular, causando uma diminuição na taxa de filtração glomerular. Esta lesão renal aguda é, na maioria dos casos, reversível com uma adequada replecção do volume intravascular, medida já citada anteriormente.

Lesão óssea e hipotiroidismo

Para além das perdas urinárias de albumina e imunoglobulinas, a SN também causa perda de outras importantes proteínas, incluindo a proteína de ligação à vitamina D e a proteína de ligação à hormona tiroideia. Estas perdas podem originar deficiência de vitamina D e aumentar a probabilidade de doença óssea.

O hipotiroidismo é um problema mais frequente nos doentes com proteinúria maciça de longa duração. Contudo, os doentes com recaídas frequentes devem também ser rastreados para este problema.

Prognóstico

O prognóstico da SN Idiopática é, de um modo geral, bom. As recaídas nos casos que respondem aos corticóides (SN corticossensíveis) têm tendência a diminuir com o decorrer do tempo. O prognóstico é mais favorável nos casos com resposta rápida aos corticóides e sem ocorrência de recaídas nos 6 meses após o diagnóstico.

Por outro lado, o prognóstico é reservado em cerca de 10% dos casos (padrão histológico de glomerulosclerose focal e segmentar).

BIBLIOGRAFIA

Andolino TP, Adam RJ. Nephrotic Syndrome. Pediatr Rev 2015; 36: 117-126

Anton M, Rodriguez LM (eds). Nefrologia Pediátrica. Manual Práctico. Madrid: Panamericana, 2011

Avner ED, Harman WE, Niaudet P (eds). Pediatric Nephrology. Philadelphia: Lippincot & Wilkins, 2004

Bagga A, et al. Indian Society of Pediatric Nephrology Guidelines. Management of steroid resistant nephrotic syndrome. Indian Pediatr 2009; 46: 35-37

Caridi G, Trivelli A, Sanna-Cherchi S, et al. Familial forms of nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol 2010; 25: 241-252

Carpenter SL, Goldman J, Sherman AK. Association of infections and venous thromboembolism in hospitalized children with nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol 2019; 34: 261-267

Dufek S, Ylinen E, Trautmann A, et al. Infants with congenital nephrotic syndrome have comparable outcomes to infants with other renal diseases. Pediatr Nephrol 2019; 36: 649-655

Eddy AA, Symons JM. Nephrotic syndrome in childhood. Lancet 2003; 362: 629-639

Fujinaga S, Nishino T, Umeda C, et al. Long-term outcomes after early treatment with rituximab for Japanese children with cyclosporine- and steroid-resistant nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol 2019; 34: 353-357

Gipson DS, Massengill SF, Yao L, et al. Management of childhood onset nephrotic syndrome. Pediatrics 2009; 124: 747-757

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier, 2016

Hinkes B, Wiggins RC, Gbadegesin R, et al. Positional cloning uncovers mutations in PLCEI responsible for a nephrotic syndrome variant that may be reversible. Nat Genet 2006; 38: 1397-1405

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Korsgaard T, Andersen RF, Joshi S. Childhood onset steroid-sensitive nephrotic syndrome continues into adulthood. Pediatr Nephrol 2019; 36: 641-648

Loeffler K, Gowrishankar M, Yiu V. Tacrolimus theraphy in pediatric patients with treatment-resistant nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol 2004; 19: 281-287

Mao J, Zhang y, Du L, et al. NPHS 1 and NPHS 2 gene mutations in chinese children with sporadic nephrotic syndrome. Pediatr Res 2007; 61: 117-122

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nattes E, Karaa D, Dehoux L, et al. Remission of proteinuria in multidrug-resistant idiopathic nephrotic syndrome following immunoglobulin immunoadsorption. Acta Paediatrica 2019; 108: 757-762

Pasini A, Benetti E, Conti G, et al. The Italian Society for Pediatric Nephrology (SINePe) consensus document on the management of nephrotic syndrome in children: Part I – Diagnosis and treatment of the first episode and the first relapse. Italian J Pediatr 2017; 43: 41-48

Preston R, Stuart HM, Lennon R. Genetic testing in steroid-resistant nephrotic syndrome: why, who, when and how? Pediatr Nephrol 2019; 34: 195-210

Protocole National de Diagnostic et de Soins (PNDS). Syndrome néphrotique idiopathique de l’enfant. J Pédiatr Puéricult 2017; 30: 32- 42

Roberti I, Vyas s. Long-term outcome of children with steroid- resistant nephrotic syndrome treated with tacrolimus. Pediatr Nephrol 2010; 25: 1117-1124

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Wang CS, Liverman RS, Garro R, et al. Ofatumubab for the treatment of childhood nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol 2017; 32: 835-841

Wang CS, Greenbaum LA. Nephrotic syndrome. Pediatr Clin North Am 2019; 66: 73-86

GLOMERULONEFRITE AGUDA PÓS-INFECCIOSA

Definição 

A glomerulonefrite aguda (GNA) é um processo patológico integrando um conjunto de afecções renais, caracterizado por inflamação e/ou proliferação celular do glomérulo, secundário a alterações imunológicas. A forma de apresentação típica é a síndroma nefrítica caracterizada pelo aparecimento súbito de hematúria, proteinúria não nefrótica, hipertensão arterial (HTA), edema e insuficiência renal aguda/oligoanúria. No entanto, muitas vezes manifesta-se por associações incompletas.

Etiologia

A GNA pode ser causada por uma doença renal primária ou ser secundária a uma doença sistémica. Na idade pediátrica a etiologia mais frequente é a GNA pós-infeciosa, sendo o agente Streptococcus beta-hemolítico do grupo A (SGA) o mais frequentemente implicado. Pode, contudo, ser provocada por outros microrganismos, conforme se descreve no Quadro 1.

QUADRO 1 – Agentes microbianos associados a GNA pós-infecciosa

BactériasVírusFungos/parasitas

Streptococcus beta-hemolítico do grupo A
Staphylococcus
Pneumococo
Haemophilus influenza
Meningococo
Mycoplasma
Salmonella typhi
Pseudomonas
Treponema pallidum

Citomegalovírus
Coxsackie
Epstein-Barr
Hepatite B e C
VIH
Sarampo
Varicela-zóster
Parvovírus B19
Rubéola

Candida albicans
Plasmodium falciparum
Toxoplasma gondii
Filaria
Shistosoma mansoni
Leishmania

Uma vez que a GNA pós-estreptocócica (GNAPE) é o protótipo e a causa mais frequente de GN pós-infecciosa na criança, será abordada com mais pormenor neste capítulo.

Aspectos epidemiológicos

A GNAPE atingindo sobretudo o grupo etário dos 4 aos 14 anos, é rara abaixo dos 2 anos (< 5% dos casos). Por razões desconhecidas, é mais frequente no sexo masculino (2:1). Pode ocorrer esporadicamente ou em epidemia, neste último caso sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

Habitualmente surge 3 a 5 semanas após uma infecção cutânea e 7 a 15 dias após uma infecção das vias respiratórias superiores (faringite, amigdalite) causadas por estirpes nefritogénicas: M 1, 2, 4, 12, 25 e M 2, 42, 49, 56, 57 e 60, respectivamente.

As formas não estreptocócicas são sempre esporádicas, sendo a nefropatia simultânea ao processo infeccioso.

Patogénese

A patogénese da GNAPE não está ainda completamente esclarecida. Admite-se que se trata de uma doença causada por imunocomplexos, estando envolvida quer a imunidade humoral, quer a celular.

São propostos vários mecanismos para explicar a origem das lesões glomerulares, nomeadamente:

  • Formação de imunocomplexos circulantes;
  • Deposição de antigénios do SGA no glomérulo com ulterior formação de imunocomplexos antigénio-anticorpo in situ;
  • Antigénios do SGA com mimetismo molecular para a membrana basal, levando a formação de autoanticorpos.

De acordo com provas científicas, o mecanismo patogénico mais importante é a formação de imunocomplexos in situ. A presença destes no glomérulo leva à activação da via alternativa do complemento com posterior recrutamento de neutrófilos, monócitos e macrófagos que, através da libertação de citocinas e factores de crescimento, originam as lesões inflamatórias e proliferativas ao nível dos capilares glomerulares. Estas lesões são responsáveis pela alteração da perfusão capilar observada, com consequente diminuição da taxa de filtração glomerular, retenção hidrossalina e expansão do líquido extracelular.

Histologicamente, a apresentação típica da GNAPE é de uma GNA proliferativa endocapilar, caracterizada por proliferação celular difusa com aumento de células endoteliais, polimorfonucleares, monócitos e eosinófilos. Por imunofluorescência são observados depósitos granulares de IgG e C3 no mesângio e capilares glomerulares e, pela microscopia electrónica verifica-se que a lesão mais característica, embora não patognomónica, é a presença de depósitos electrodensos (“humps”) na vertente externa da membrana basal (subepitelial).

Manifestações clínicas

A GNAPE manifesta-se clinicamente por uma síndroma nefrítica caracterizada pelo aparecimento súbito de hematúria, proteinúria, HTA, edema e insuficiência renal aguda/oligoanúria. A hematúria é um achado quase universal. Trata-se de uma hematúria de características glomerulares que, quando macroscópica, é de cor acastanhada (tipo coca-cola ou vinho do Porto), sem coágulos, indolor e uniforme durante toda a micção; a duração é variável e o desaparecimento progressivo. A proteinúria é habitualmente moderada (< 40 mg/m2/hora), podendo raramente atingir a faixa nefrótica. Em 60 a 80% das situações existe HTA secundária à retenção hidrossalina e expansão do líquido extracelular. O edema, observado em 65 a 90% das crianças, é geralmente palpebral e duro. A insuficiência renal ocorre em 25 a 30% dos casos. Na maioria da vezes é ligeira, com oligúria transitória. A presença de anúria e insuficiência renal significativa deve levantar a suspeita de uma GNA rapidamente progressiva. Sintomas inespecíficos podem também estar presentes, nomeadamente mal-estar geral, astenia, febre, vómitos e dor lombar.

Exames complementares

Perante a suspeita de GNAPE pode ser sistematizada a seguinte avaliação:

  • Sedimento urinário, proteinúria, creatininúria e sódio urinário, podendo utilizar-se a tira-teste urinária. Com estas avaliações é possível a caracterização da hematúria e da proteinúria. No sedimento urinário a presença de eritrócitos dismórficos e cilindros eritrocitários é sugestiva de hematúria de origem glomerular. A relação proteinúria/creatininúria é geralmente > 0,2 mg/mg, mas inferior a 2 mg/mg. O sódio urinário está baixo (< 25 mEq/L) e a fracção excretada de sódio (EFNa+) < 1%;
  • Hemograma, contagem de plaquetas e esfregaço do sangue periférico;
  • Habitualmente verifica-se anemia normocrómica ligeira;
  • Bioquímica sérica: ureia, creatinina, sódio, potássio, cálcio, fósforo, proteínas totais e albumina. Os valores destes parâmetros permitem a avaliação da função renal, da repercussão orgânica da proteinúria e o diagnóstico de distúrbios hidroelectrolíticos associados;
  • Estudo imunológico: C3 e C4, ANCA, ANA e anti-DNA. Trata-se dum estudo fundamental para o dignóstico diferencial. A determinação do C3 é essencial para a confirmação da GNAPE, já que nesta os seus níveis estão diminuídos em 70-90% dos casos (pela activação da via alternativa do complemento). Esta diminuição é obrigatoriamente transitória (com duração máxima de 6-8 semanas), não se correlacionando com a gravidade da doença. Os níveis de C4 revelam envolvimento da via clássica do complemento e estão geralmente normais. A sua redução significativa e persistente leva a admitir outras etiologias – GNA secundária a lúpus eritematoso sistémico (LES), endocardite bacteriana, etc.;
  • Outros estudos: exame bacteriológico do exsudado da orofaringe, título de antiestreptolisinas O (TASO) e anticorpos antidesoxirribonuclease B (anti-DNA-ase B).

Devido ao período de latência entre a infecção e as manifestações clínicas, o exame bacteriológico do exsudado da orofaringe só é positivo em 25% dos casos. O TASO está geralmente elevado após infecção faríngea, mas tal é pouco provável após infecção cutânea estreptocócica. A determinação do título de anti-DNA-ase B é mais sensível para identificar infecção cutânea.

  • Estudo serológico para VEB, CMV, VHB, VHC e VIH para excluir outras etiologias.
  • Ecografia renal, revelando habitualmente rins aumentados de tamanho e hiperecogénicos.

A realização de biópsia renal, importante para avaliar a actividade e potencial reversibilidade das lesões, está indicada nas seguintes situações:

  • Episódios recorrentes de hematúria macroscópica;
  • C3 persistentemente elevado (durante mais de 6-8 semanas);
  • Aumento progressivo da creatinina sérica.

O Quadro 2 resume as principais manifestações clínicas e laboratoriais da GNAPE e a respectiva alteração fisiopatológica associada.

QUADRO 2 – Clínica, fisiopatologia e alterações laboratoriais na GNAPE

ClínicaFisiopatologiaLaboratório
Faringite/amigdaliteInfecção por SGA 
 Formação de imunocomplexos
                           ↓
 
Hematúria
Proteinúria
Depósitos nos capilares glomerulares
Activação do complemento
C3 baixo
Oligúria/IRADiminuição da filtração glomerularUreia e creatinina aumentadas
 Diminuição da excreção urinária de Na+Excreção fraccionada de Na+ <1%
Edema HTAExpansão do líquido extracelularRenina e aldosterona baixas

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial de GNAPE faz-se principalmente com nefropatia por IgA, glomerulonefrite membranoproliferativa e glomerulonefrite secundária a doença sistémica.

A nefropatia por IgA é mais frequente em adolescentes e manifesta-se tipicamente por episódios recorrentes de hematúria macroscópica com hematúria microscópica persistente intercrises. O intervalo entre o início da infecção e as manifestações clínicas é 1 a 2 dias e o C3 é normal.

A glomerulonefrite membranoproliferativa não se distingue da GNAPE numa fase inicial. Contudo, a hipocomplementémia persiste após 6-8 semanas, havendo ainda a possibilidade de aumento progressivo da creatinina sérica.

As glomerulonefrites secundárias a doença sistémica (como o LES e a púrpura de Henoch-Schonlein) cursam habituamente com manifestações extrarrenais. As fracções do complemento (C3 e C4) estão diminuídas na nefrite lúpica e normais na púrpura de Henoch-Schonlein. Além disso, no LES o diagnóstico é sugerido também pela detecção de autoanticorpos circulantes (ANA e anti-DNA).

Tratamento

Não existe tratamento específico. O tratamento é de suporte e dirigido às complicações por sobrecarga de volume, nomeadamente o edema, HTA e, menos frequentemente, edema agudo do pulmão. Inclui as seguintes medidas:

  • Medidas gerais: peso diário, balanço hídrico e dieta com restrição hídrica (em função da diurese e perdas insensíveis) e salina (sódio: 1-2 mEq/kg/dia) e com restrição de proteínas, potássio e fósforo (estas últimas apenas em situação de insuficiência renal e dependendo do controlo analítico);
  • Terapêutica da sobrecarga hídrica: diurético de ansa (furosemida na dose inicial de 1 mg/kg, máximo 40 mg);
  • Terapêutica da HTA (ver capítulo de hipertensão).


O tratamento etiológico só está indicado se houver evidência de infecção activa. Tem apenas como objectivo reduzir a disseminação da infecção nos contactos, já que não interfere na evolução da doença devido ao seu mecanismo imunológico. Deverá ser realizado com amoxicilina na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1g/dia), administrada de 12 em 12 horas por via oral, durante 10 dias ou a penicilina G benzatínica, administrada por via intramuscular em dose única de 50.000 Unidades por kg de peso.

Evolução e prognóstico

A maioria das situações de GNAPE evolui de forma benigna e autolimitada, com excelente prognóstico a longo prazo. Em greal, atinge-se rapidamente a remissão clínica independentemente da gravidade inicial. São considerados factores de mau prognóstico:

  • Hematúria macroscópica, insuficiência renal e HTA persistentes, em associação ou isoladamente, para além de 3 semanas;
  • C3 persistentemente baixo às 6-8 semanas de evolução;
  • Hematúria microscópica e/ou proteinúria significativa (nefrótica ou não) para além dos 6 meses.

Regra geral, em todos os doentes com síndroma nefrítica está indicada a hospitalização. A recorrência é rara devido à intensa resposta imunológica induzida pelas estirpes de SGA.

BIBLIOGRAFIA

Barquero MCH, Crespo JMC. Hematuria. Protocolos diagnósticos y terapéuticos en pediatria. Madrid: Ergon/AEP, 2014; 1: 53-68

Eison TM, Ault BH, Jones DP, Chesney RW, Wyatt RJ. Post-streptocaccal acute glomerulonephritis in children: clinical features and pathogenesis. Pediatr Nephrol. 2011; 26: 165-80

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hunt EAK, Somers JG. Infection-related glomerulonephritis. Pediatr Clin North Am 2019; 66: 59-72

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Maseda MAF, Sala FJR. Glomerulonefritis aguda postinfecciosa. Protocolos diagnósticos y terapéuticos en pediatria. Madrid: Ergon/AEP, 2014; 1: 303-314

Massengill SF. Hematuria. Pediatr Rev 2008; 29: 342-348

Meyers K. Evaluation of hematuria in children. Urol Clin North Am 2004; 559-573

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Mur O, De la Mata G. Síndrome nefrítico. An Pediatr Contin 2004; 2: 216-22

Niaudet P. Overview of the pathogenesis and causes of glomerulonephritis in children. Waltham, MA/USA: UpToDate 2016. www.uptodate.com/2016 (Acesso em Maio, 2019)

Niaudet P. Poststreptococcal glomerulonephrits. Waltham, MA/USA: UpToDate 2019 www.uptodate.com/2016 (Acesso em Maio, 2019)

VanDeVoorde. Acute poststreptococcal glomerulonephritis: the most common acute glomerulonephritis. Pediatr Rev 2015; 36: 3-12

DOENÇAS GLOMERULARES

GENERALIDADES SOBRE DOENÇAS GLOMERULARES

Introdução

As doenças glomerulares constituem um grupo heterogéneo com apresentação anátomo-clínica diversa e com prognóstico variável. O termo glomerulonefrite (GN) é utilizado para descrever um largo espectro de nefropatias que se caracterizam por proliferação e inflamação das estruturas do glomérulo, maioritariamente originadas por mecanismos imunológicos.

As alterações histológicas decorrentes de tal processo traduzem-se clinicamente pela chamada síndroma nefrítica aguda definida pela existência de hematúria, proteinúria, e hipofunção renal, por vezes em associação a hipertensão arterial, retenção de líquidos e edema.

As glomerulonefrites podem surgir como nefropatia primária, ou como manifestação renal de doença sistémica.

Este capítulo aborda aspectos essenciais das glomerulonefrites primárias e de algumas nefropatias associadas a doenças sistémicas, excluindo a glomerulonefrite aguda pós-infecciosa, a síndroma hemolítica urémica e a síndroma nefrótica, descritas em capítulos próprios. (ver capítulo sobre Hematúria)

Aspectos epidemiológicos

A incidência das glomerulonefrites primárias é variável conforme a nefropatia e a localização geográfica. Estimam-se os seguintes valores na idade pediátrica: ~ 0,1/100.000 habitantes/ano, superiores na síndroma nefrótica de alterações mínimas – 2/100.000/ano. No adulto cifram-se entre 0,2 e 2,5/100.000/ano. De acordo com diversas estatísticas, as glomerulonefrites primárias correspondem a ¾ das glomerulonefrites submetidas a biópsia, estando entre as mais frequentes a nefropatia por IgA.

Com causa de lesão renal aguda terminal na idade pediátrica, as GN ocupam o terceiro lugar.

Etiopatogénese da lesão glomerular

Os factores etiológicos da maior parte das GN são desconhecidos. Contudo, nalguns casos são identificadas infecções bacterianas provocadas por estirpes nefritogénicas, exemplificando-se classicamente com o germe Streptococcus beta-hemolítico do grupo A e alguns vírus como os das hepatites B e C.

São descritos dois mecanismos de lesão glomerular, quer por acção de agentes microbianos, quer pela acção doutros estímulos incluindo estresse metabólico (diabetes, síndroma metabólica), hemodinâmico (hipertensão intraglomerular subsequente à diminuição da massa renal), ou não identificados:

  • Resposta imunitária traduzida pela formação e ulterior depósito de imunocomplexos (IC) circulantes no glomérulo renal; são exemplos deste mecanismo de lesão a GN aguda pós-esteptocócica, a nefropatia por IgA, as vasculites renais por anticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) e a GN membranoproliferativa;
  • Resposta autoimune mediada por células: autoanticorpos dirigidos contra antigénios específicos do glomérulo ou antigénios extraglomerulares; o local de deposição dos anticorpos (mesangial, subendotelial ou subepitelial) é o principal determinante do processo inflamatório glomerular, e consequentemente, da síndroma clínica que se desenvolverá. Como principais exemplos de lesão deste tipo citam-se a síndroma de Goodpasture (anticorpos anti-própria membrana basal glomerular) e a nefropatia membranosa idiopática.

São descritas duas fases no processo de lesão glomerular:

  • Fase aguda inicial em que, como resultado das reacções imunológicas ao nível do glomérulos, se verifica activação de mediadores de lesão tecidual, em especial do sistema do complemento, que gera a formação de factores quimiotácticos levando a agregação leucocitária. Neste processo são as fracções C5b-C9 que originam lesão directa das células glomerulares, sendo que os factores de coagulação favorecem o depósito de fibrina e a formação de “corpos semilunares”.
  • Fase ulterior, crónica e progressiva em que a libertação local e sistémica de factores de crescimento e de citocinas facilitam a lesão das células glomerulares. O resultado final é a perda da superfície de filtração e a alteração da pressão intraglomerular, culminando nas formas mais graves em esclerose e fibrose intersticial crónica.

Formas clínicas e diagnóstico

As formas de apresentação clínica são descritas no Quadro 1.

QUADRO 1 – Glomerulonefrite: formas clínicas

Formas clínicas assintomáticasProteinúria (4-40 mg/m2/hora) e/ou micro-hematúria, função renal normal, sem edema ou hipertensão arterial (HTA)
Síndroma nefríticaAparecimento brusco de hematúria, proteinúria, insuficiência renal (IR) e HTA relacionada com sobrecarga hidrossalina
Síndroma nefróticaProteinúria de tipo nefrótico (> 40 mg/m2/hora), hipoalbuminémia, hiperlipidémia e edema
Glomerulonefrite rapidamente progressivaEvolução para IR em dias ou semanas, em geral associada a síndroma nefrítica, com achados histopatológicos na biópsia renal de “meias luas ou crescentes”
Glomerulonefrite crónicaProteinúria persistente, com ou sem hematúria, de evolução lenta e progressiva para IR

Grande número de GN (exceptuando as situações de síndroma nefrótica com alterações mínimas) inicia-se com síndroma nefrítica aguda (hematúria de tipo glomerular, com elevada percentagem de eritrócitos dismórficos, proteinúria, HTA e grau variável de disfunção renal).

Como complemento do Quadro 1, o Quadro 2 permite uma orientação diagnóstica inicial, estabelecendo relação respectivamente entre o surgimento de síndromas nefrótica e nefrítica e diversas entidades de GN primárias.

QUADRO 2 – Apresentação clínica das glomerulonefrites primárias

 S. nefróticaS. nefrítica
Nefropatia de alterações mínimas ++++
Glomerulosclerose segmentar e focal+++++
Nefropatia membranosa +++++
Nefropatia por IgA+++++
GN membranoproliferativa (I e II)+++++
GN rapidamente progressiva +++++

Alguns autores consideram a entidade chamada “síndroma nefrítica-nefrótica” para descrever a situação clínica integrando características de ambas as síndromas.  Tal quadro sugere a existência de inflamação do glomérulo com um padrão histopatológico  de lesão membranoproliferativa.

Perante história clínica sugestiva de GN está indicado o estudo serológico avaliando os marcadores específicos discriminados no Quadro 3.

QUADRO 3 – Glomerulonefrites e estudo serológico

Abreviaturas: TASO: título de anti-esterptolisina O; ANA: anticorpos antinucleares; MBG: membrana basal glomerular; GN: glomerulonefrite; ANCA: autoanticorpos anticitoplasma dos neutrófilos; VHC: vírus da hepatite C; MP: membranoproliferativa; C: complemento; CH50: capacidade hemolítica do complemento
TASO – Corresponde a infecção estreptocócica prévia (~3 meses) sem se assegurar que está em causa estirpe nefritogénica
ANA – A positividade deste tipo de anticorpos obriga a excluir a hipótese de nefropatia lúpica
Anticorpos anti-MBG – Valores elevados sugerem GN anti-MBG ou síndroma de Goodpasture
ANCA – A positividade aponta para vasculite renal
Anticorpos anti-VHC – A positividade, se associada a C3 baixo, crioglobulinémia e factor reumatóide positivo, sugere GNMP associada a VHC
Complemento – Diminuição de CH50 e C3 sugerem GN pós-infecciosa, GNMP ou nefropatia lúpica. Tanto nesta como na GNMP tipo I, os valores de C1 e C4 estão diminuídos. Na GN pós-infecciosa e na GNMP tipo II os valores de C1 e C4 podem manter-se normais. Os valores do complemento estão em relação directa com a actividade da doença

Sobre as indicações da biópsia renal/estudo histopatológico (importante para avaliar a actividade e potencial reversibilidade das lesões), sugere-se a consulta do capítulo sobre GNA pós-infecciosa.

A avaliação histopatológica pode basear-se na microscopia óptica, na imunofluorescência e na microscopia electrónica.

Apesar da limitação diagnóstica da microscopia óptica, a informação obtida é importante porque permite relacionar as alterações histológicas com a clínica e o prognóstico. A presença de crescentes aponta para a existência de doença grave, geralmente associada a glomerulonefrite rapidamente progressiva. A microscopia óptica também pode esclarecer se a doença glomerular é focal (< 50% dos glomérulos envolvidos) ou generalizada.

A imunofluorescência determina a natureza do processo imune causador da glomerulonefrite. Detecta a deposição de anticorpos e componentes do complemento.

A microscopia electrónica fornece informação sobre a ultraestrutura glomerular, avalia a localização dos imunodepósitos electrodensos e o grau de lesão das células glomerulares.

Na prática clínica importa salientar as seguintes noções:

  • Para avaliar a gravidade importa investigar a função renal, quantificar a proteinúria e detectar o mais precocemente possível aspectos histológicos pejorativos como necrose, formação de “meias-luas ou crescentes” e sinais de compromisso intersticial;
  • São considerados factores preditivos de reversibilidade das lesões o tamanho dos rins segundo critérios ecográficos e a normalidade da função renal;
  • Rins pequenos e hiperecogénicos, associados a hipofunção renal orientam para a probabilidade de resposta deficiente a tratamento com corticóides ou imunossupressores;
  • Rins de tamanho normal associados a função renal normal ou minimamente reduzida são muito provavelmente preditivos de boa resposta ao tratamento, especialmente se a diurese estiver conservada.

A avaliação histopatológica pode basear-se na microscopia óptica, na imunofluorescência e na microscopia electrónica.

Apesar da limitação diagnóstica da microscopia óptica, a informação obtida é importante porque permite relacionar as alterações histológicas com a clínica e o prognóstico. A presença de crescentes aponta para a existência de doença grave, geralmente associada a glomerulonefrite rapidamente progressiva. A microscopia óptica também pode esclarecer se a doença glomerular é focal (< 50% dos glomérulos envolvidos) ou generalizada.

A imunofluorescência determina a natureza do processo imune causador da glomerulonefrite. Detecta a deposição de anticorpos e componentes do complemento.

A microscopia electrónica fornece informação sobre a ultraestrutura glomerular, avalia a localização dos imunodepósitos electrodensos e o grau de lesão das células glomerulares.

Aspectos gerais do tratamento

Importa salientar que em grande número de GN as medidas terapêuticas são inespecíficas reservando-se os imunossupressores para as formas mais agressivas.

Constituem factores de mau prognóstico o sexo masculino, a maior idade no início do quadro clínico, a proteinúria de tipo nefrótico e a presença de fibrose intersticial como achado histopatológico renal.

Os imunossupressores ocupam um lugar importante no tratamento de glomerulonefrites com mecanismo autoimune subjacente.

Os tratamentos biológicos mais recentes, seletivos e menos tóxicos, como a depleção dos linfócitos B e inibição do complemento começam a encontrar o seu uso clínico em várias formas de glomerulonefrite.

ENTIDADES ESPECÍFICAS

NEFROPATIA por IgA

Importância do problema

A nefropatia por IgA, também designada por nefropatia de Berger, é a glomerulonefrite primária mais frequente a nível mundial. Trata-se duma afecção responsável por insuficiência renal terminal em 20 a 50% dos adultos e em 2,5 a 9% das crianças. Surgindo em todas as idades, mas principalmente na segunda e terceira décadas, predomina no sexo masculino (M:F de 2:1 a 6:1), raramente ocorrendo na raça negra. A incidência geográfica varia muito (18-40% no Japão e 2-10% no Canadá, Estados Unidos e Grã-Bretanha).

Embora seja classicamente considerada uma doença esporádica, salienta-se que existem formas familiares.

Etiopatogénese

A nefropatia por IgA é caracterizada por proliferação mesangial com depósitos de IgA (subtipo IgA1) nesta área, na ausência de doença sistémica. Por vezes podem observar-se depósitos de IgG, IgM e C3 no mesmo local com menor intensidade.

A associação de episódios de hematúria macroscópica a infecções das vias respiratórias superiores sugere que esta resposta imune seja induzida por antigénios microbianos.

Embora se admita que os mecanismos de lesão glomerular sejam específicos, admite-se a intervenção de factores hemodinâmicos e vasculares como o sistema endotélio-monóxido de azoto, citocinas e os factores de crescimento como a interleucina 6 e o factor de crescimento das plaquetas, entre outros.

Manifestações clínicas

A nefropatia por IgA tem apresentação clínica, evolução e prognóstico muito variáveis. Em países que aplicam programas de rastreio nas escolas como o Japão, a nefropatia por IgA é mais frequentemente diagnosticada na sua fase inicial pela detecção de hematúria microscópica assintomática.

Classicamente descrevem-se as seguintes formas de apresentação: – surtos com duração em geral inferior a uma semana de hematúria macroscópica; surtos de micro-hematúria e/ou proteinúria assintomáticas; – síndroma nefrítica aguda; – síndroma nefrótica; e – síndroma nefrítica associada a síndroma nefrótica.

A forma de apresentação mais frequente é a hematúria macroscópica recorrente que habitualmente surge em simultâneo ou 2 a 3 dias após o início de infecção das vias respiratórias superiores. Os intervalos inter-surtos são variáveis, sendo que a segunda forma de apresentação mais frequente é a micro-hematúria assintomática com ou sem proteinúria.

Diagnóstico

Não existem marcadores serológicos ou urinários específicos para o diagnóstico de nefropatia por IgA. Os valores de IgA não têm valor diagnóstico porque estão elevados em apenas 15% dos doentes pediátricos. Os valores do complemento (C3 e C4) estão normais.

Para diagnóstico diferencial com a GNA pós-infecciosa deve atender-se ao facto de na nefropatia por IgA nunca se encontrar intervalo livre (ou o intervalo livre é muito menor, 2-3 dias) entre a infecção e o aparecimento da hematúria.

Para estabelecer o diagnóstico definitivo é necessário praticar a biópsia renal. As formas de síndroma nefrítica-nefrótica associadas correspondem a histopatologia com lesões glomerulares graves e prognóstico mais reservado com evolução altamente provável para insuficiência renal terminal (IRT).

Tratamento

Actualmente não existe tratamento curativo para a nefropatia por IgA. Como actuação prática está indicado o controlo da pressão arterial e a administração de inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou de antagonistas dos receptores da angiotensina II. Estes fármacos são efectivos na redução da proteinúria e atrasam a progressão da doença glomerular.

Prognóstico

Na idade pediátrica a progressão para doença renal crónica terminal (na proporção de 10% no prazo de 20 anos) é mais lenta que nos adultos. Nalguns casos foi descrita remissão espontânea. A verificação de proteinúria prolongada do tipo nefrótico, hipofunção renal e HTA são factores de mau prognóstico.

Seguidamente são abordadas determinadas entidades específicas englobadas no conceito de Doença Glomelurar.

NEFROPATIA na PÚRPURA de HENOCH-SCHONLEIN

Definição e importância do problema

A púrpura de Henoch-Schӧnlein (PHS), um exemplo de nefropatia associada a doença sistémica, é uma vasculite leucocitoclástica de pequenos vasos caracterizada por púrpura cutânea, artralgia, dor abdominal e nefrite. Aproximadamente em 20 a 80% dos doentes com PHS surgem manifestações renais que variam desde hematúria microscópica assintomática a glomerulonefrite progressiva e grave.

Etiopatogénese

Sob o ponto de vista da histopatologia renal, o quadro é sobreponível ao descrito para a nefropatia por IgA: deposição de IgA polimérica nos pequenos vasos do glomérulo e na parede dos pequenos vasos a nível sistémico.

Existe produção aumentada de IgA1 aberrante, deficiente em galactose (Gd-IgA1). As moléculas de Gd-IgA1, reconhecidas por anticorpos IgA e IgG, formam imunocomplexos (IC). Estes depositam-se no mesângio e podem desencadear lesão no glomérulo. As células mesangiais começando a proliferar com sobreprodução de matriz extracelular e citocinas, inicia-se um processo de inflamação glomerular e ulterior esclerose. Pode verificar-se a presença de crescentes.

A lesão renal característica consiste, pois, numa glomerulonefrite proliferativa mesangial com depósitos de IgA granular no mesângio, de distribuição focal ou segmentar. Pode também ser observada lesão tubulointersticial com fibrose, atrofia e infiltração celular linfocitária.

Manifestações clínicas

A PHS afectando todas as idades, em 90% dos casos ocorre antes dos 10 anos com uma mediana de idade de 6 anos. Há predomínio ligeiro do sexo masculino.

A apresentação clínica clássica é o aparecimento da púrpura cutânea palpável, com distribuição simétrica e de predomínio nos membros inferiores, na ausência de trombocitopénia ou de alteração da coagulação. Segue-se o atingimento articular em forma de artralgia e artrite de predomínio nas articulações dos joelhos e tornozelos, assim como o atingimento digestivo com dor abdominal que pode acompanhar-se de hemorragia digestiva.

As manifestações da nefrite associada a PHS estão presentes em 90% dos doentes oito semanas após o episódio inaugural de PHS. A forma de apresentação mais comum é a hematúria macroscópica; contudo, menos frequentemente podem surgir outros quadros: proteinúria nefrótica/não nefrótica, HTA, síndroma nefrótica, síndroma nefrítica e a combinação destas últimas.

Numa pequena proporção de casos pode surgir insuficiência renal.

Tratamento

O tratamento do episódio agudo da PHS é sintomático com repouso relativo, hidratação e analgesia.

Nos casos de nefropatia moderada ou grave, decorrendo dos resultados da biópsia renal poderão estar indicados corticóides, imunossupressores e inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou de antagonistas dos receptores da angiotensina II.

Prognóstico

A nefropatia associada a PHS na maioria dos doentes tem um excelente prognóstico. A resolução completa e espontânea da afecção ocorre habitualmente nos doentes com manifestações renais ligeiras. Há factores de risco conhecidos que podem indiciar evolução menos favorável da nefrite na PHS: HTA no início, alteração da função renal no momento do diagnóstico, proteinúria nefrótica persistente e achado histopatológico de crescentes.

No entanto, o desenvolvimento de lesão renal ao longo do tempo não é previsível, podendo inclusivamente acontecer em contexto de manifestações iniciais ligeiras.

NEFROPATIA LÚPICA

Definição e importância do problema

O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma doença autoimune, multissistémica, de etiologia desconhecida, com formação de imunocomplexos provocando lesão tecidual do rim. A maior parte dos depósitos contém IgG e C3; por vezes, também IgM ou IgA. Os respectivos autoanticorpos actuam predominantemente contra antigénios nucleares.

Atinge sobretudo as mulheres jovens e somente 10 a 17% dos casos são diagnosticados antes dos 16 anos. (ver capítulo sobre LES na Parte sobre Reumatologia)

A nefropatia (glomerulonefrite) é uma complicação frequente do LES, surgindo em 30 a 80% dos doentes pediátricos. Rara antes dos 5 anos, atinge em particular o grupo etário acima dos 10 anos, e em apenas 25% destes doentes a doença renal surge como primeira manifestação.

 A biópsia renal e a avaliação histopatológica, constituindo o critério padrão de ouro/gold standard para estabelecer o diagnóstico de nefropatia lúpica, são importantes para a orientação do regime terapêutico a instituir.

Histopatologia

De acordo com a classificação da nefropatia lúpica da Organização Mundial da Saúde (OMS), baseada na combinação dos achados histopatológicos na microscopia óptica (MO), imunofluorescência (IF) e microscopia electrónica (ME), foram descritas seis classes de alterações histológicas:

  • Classe I: glomerulonefrite (GN) lúpica mesangial mínima, não apresentando alterações histológicas na MO; através da IF e da ME detectam-se depósitos imunes mesangiais;
  • Classe II: GN proliferativa mesangial: a MO revela hipercelularidade mesangial e aumento da matriz com depósitos mesangiais contendo imunoglobulinas e complemento;
  • Classe III: GN com lesões mesangiais e endocapilares em < 50% dos glomérulos;
  • Classe IV: GN com lesões em ≥ 50% de glomérulos atingidos;
  • Numa subclassificação gradua-se a lesão proliferativa em: *segmentar se < 50% do tufo glomerular estiver envolvido, e *global se ≥ 50% do tufo glomerular estiver afectado;
  • Classe V: GN lúpica membranosa;
  • Classe VI: GN com glomérulos globalmente esclerosados (> 90% dos glomérulos com esclerose), fibrose intersticial e atrofia tubular sem sinais de actividade imunológica.

É possível a evolução de um padrão histológico para outro de maior gravidade, o que se poderá relacionar com tratamento inadequado.

Manifestações clínicas

A nefropatia lúpica manifesta-se de modo diverso, variando desde a ausência de sinais ou sintomas, até à presença de proteinúria (< 1 g/24 horas), hematúria, hipertensão arterial e insuficiência renal, isoladamente ou em associação. A verificação de um sedimento urinário rico em elementos celulares, com eritrócitos, leucócitos, cilindros eritrocitários, granulosos ou de leucócitos e cilindros grossos e granulosos é muito sugestiva de LES; de referir no entanto, que tais características também podem surgir noutras conectivites.

A proteinúria é o achado mais frequente, muitas vezes precedendo o aparecimento de síndroma nefrótica.

Não há relação directa entre as manifestações clínicas do LES e o grau de atingimento renal.

Exames laboratoriais

O diagnóstico é sugerido também pela detecção de autoanticorpos circulantes (antinucleares, anti-DNA, antinucleossomas e anti a-actinina, e avaliação sérica de C3 e C4.

A actividade da doença é monitorizada, não só pela clínica, mas também pela evolução destes parâmetros, e pela avaliação da função renal, da velocidade de sedimentação e das alterações urinárias. Na maior parte dos casos de doença activa os valores séricos de C3 e C4 estão diminuídos.

Tratamento

A precocidade do início da terapêutica é muito importante: permite reduzir o número de recorrências, a frequência de evolução para a insuficiência renal, assim como a mortalidade. O objectivo é induzir remissão clínica rápida, evitar a progressão da doença renal, evitar recaídas com o mínimo possível de efeitos colaterais, designadamente relacionados com a toxicidade farmacológica.

A escolha do esquema terapêutico é um desafio devido à heterogeneidade da doença, à apresentação clínica e à evolução, imprevisível.

Existe uma grande variedade de opções terapêuticas (gerando controvérsia), sendo que nenhum esquema é totalmente eficaz. A controvérsia diz respeito sobretudo à escolha do agente imunossupressor, (azatioprina ou ciclofosfamida), sendo o uso de corticóides (prednisona) universalmente aceite. Nos doentes com nefrite da classe IV tem sido utilizado o anticorpo monoclonal rituximab.

Prognóstico

O prognóstico da nefropatia lúpica depende do balanço entre a eficácia terapêutica e os possíveis efeitos colaterais do tratamento farmacológico (por ex. risco de HTA, osteoporose, obesidade e diabetes mellitus, associados a corticoterapia crónica).

A sobrevivência dos doentes com nefrite lúpica tem vindo a aumentar muito nos últimos 30 a 40 anos, salientando-se contudo uma mortalidade de cerca de 15 a 20%. A infecção, muitas vezes secundária à imunossupressão, constitui a maior causa de mortalidade. Do mesmo modo a doença cardiovascular associada tem sido progressivamente identificada como causa importante de morbilidade a longo prazo.

A insuficiência renal poderá surgir em cerca de 30% dos doentes.

GLOMERULOESCLEROSE SEGMENTAR e FOCAL (GESF)

Definição e importância do problema

A GESF, entidade clinicopatológica com várias etiologias e mecanismos patogénicos, define-se pela existência duma lesão histopatológica comum: esclerose do glomérulo de forma focal (percentagem variável de glomérulos) e segmentar (uma parte do glomérulo). Na idade pediátrica corresponde a 7 a 15% dos casos de síndroma nefrótica. A GESF pode ser classificada em primária e secundária.

Manifestações clínicas

Esta doença glomerular, na sua forma primária ou idiopática, manifesta-se habitualmente como síndroma nefrótica.

A forma secundária associa-se a proteinúria não nefrótica associada a certo grau de lesão renal. Inclui entidades clínicas com redução de massa renal funcionante (diminuição do número de glomérulos) em que há uma resposta adaptativa traduzida por hipertrofia glomerular e hiperfiltração. Citam-se como exemplos situações com antecedentes de prematuridade ou de restrição de crescimento intrauterino, de infecções ou de tratamentos com certos fármacos.

Estão descritas formas familiares de GESF resultando de mutações de genes codificadores de proteínas dos podócitos (proteinúria familiar).

Tratamento e prognóstico

O tratamento das formas secundárias é o da doença de base.

O tratamento da GESF primária engloba tratamento conservador e imunossupressão para controlar a proteinúria e preservar a função renal. Inclui as medidas gerais do tratamento das GN utilizando IECA ou ARA II com o objectivo de redução da proteinúria e de tratamento da HTA para retardar a progressão da doença renal.

Sendo a síndroma nefrótica a apresentação nas formas primárias, em tal contexto estão habitualmente indicados os corticóides. Com este tratamento verifica-se remissão em 20 a 25% dos doentes.

Nos doentes evidenciando corticorresistência e em que a biópsia estabelece o diagnóstico de GESF, existem varias modalidades terapêuticas com imunossupressores.

Em suma, a eficácia do tratamento varia em função da história natural da doença. As formas primárias e do foro genético tendem a evoluir para doença renal crónica terminal. Nos casos evoluindo com proteinúria não nefrótica a evolução é mais favorável.

NEFROPATIA MEMBRANOSA

Definição e etiopatogénese

A nefropatia membranosa é uma entidade clinicopatológica bem definida caracterizada por espessamento difuso e homogéneo da membrana basal glomerular (MBG) e depósitos granulares difusos de IgG e C3 (imunocomplexos) de localização subepitelial, que desenham o contorno das paredes capilares; trata-se de reacção de autoanticorpos contra antigénios dos podócitos.

São considerados vários estádios ou graus, de I a V, em função da topografia dos depósitos, da espessura da MBG e do grau de esclerose glomerular.

Os nefrologistas salientam que o termo de nefropatia é preferível ao de glomerulopatia porque não se verificam sinais inflamatórios ao nível do glomérulo.

Na maioria das vezes idiopática, pode contudo ser secundária a infecções (hepatites B e C), fármacos, LES, artrite reumatóide, tumores, etc..

Manifestações clínicas

A manifestação clínica mais habitual (~40-75% dos casos) da nefropatia membranosa é a síndroma nefrótica; menos frequentemente, proteinúria assintomática. É frequente, também, hematúria microscópica, e rara, a hematúria macroscópica. O fenómeno de trombose venosa, nomeadamente da veia renal, no contexto de síndroma nefrótica, é mais frequente na nefropatia. O diagnóstico é estabelecido por biópsia renal.

Tratamento e prognóstico

Nos doentes com proteinúria ligeira e função renal normal a terapêutica recomendada é conservadora. Com efeitos, em cerca de 60% dos doentes verifica-se remissão expontânea. Em função do contexto clínico de cada caso, poderão ser utilizados inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou antagonistas dos receptores da angiotensina II.

Nos doentes com síndroma nefrótica e/ou diminuição da função renal a recomendação terapêutica inclui os fármacos anteriores e imunossupressores.

GLOMERULONEFRITE (GN) MEDIADA por C3/GNC3 e GN MEDIADA por IMUNOCOMPLEXOS (IC)/GNIC

Definição e importância do problema

Também denominada glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP), ou mesangiocapilar, a GNC3 e GNIC é uma glomerulopatia de etiopatogénese não completamente esclarecida, caracterizada por proliferação de células mesangiais e incremento da matriz mesangial, espessamento difuso da parede capilar glomerular, do que resulta aspecto lobular do glomérulo.

Admite-se uma incidência, rara, de 1-2 casos por milhão, sendo excepcional o surgimento antes dos 5 anos de idade.

Etiopatogénese

A nova classificação baseia-se mais no mecanismo fisiopatológico do que nas características histopatológicas. Na GNC3 a desregulação da via alternativa do complemento leva a deposição predominante de C3, o que a diferencia da GNIC, em que se verifica predomínio de deposição de IgG (e por vezes de IgM e IgA) detectada por imunofluorescência.

A microscopia electrónica permite subdividir a GNC3 em duas formas: glomerulonefrite C3, e doença dos depósitos densos (DDD), de acordo com o padrão de distribuição dos depósitos imunológicos.

A GNC3 é considerada uma doença primária do complemento em que a deposição deste resulta de um defeito na via alternativa do complemento. Mutações ou autoanticorpos que afectam os activadores ou reguladores desta via do complemento, em particular a alteração da C3 convertase (factor nefrítico C3- C3NEF) foram detectados em > 80% dos doentes com GNC3. Na GN-IC também há activação do complemento, mas através da via clássica.

Os achados da histopatologia traduzem-se por deposição de imunoglobulinas/imunocomplexos e/ou proteínas do complemento no mesângio e/ou nas paredes dos capilares do glomérulo.

De acordo com a localização dos depósitos de IC, são descritos três tipos- I, II e III, não identificados por microscopia óptica.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Na idade pediátrica predomina a forma idiopática. As formas secundárias manifestam-se na sequência de infecções crónicas, doenças imunitárias, neoplasias, entre outras.

Os doentes podem apresentar: proteinúria, com ou sem síndroma nefrótica, hematúria e síndroma nefrítica com atingimento importante da função renal. A HTA está presente em 60 a 80% dos doentes.

Em 80 a 90% dos casos existe hipocomplementémia persistente (com diminuição de C3 e/ou C4 em função da via de ativação do complemento atingida).

Nível baixo de C3 é sugestivo de GNC3, especialmente na ausência de história sugestiva de glomerulonefrite pós-infecciosa.

O diagnóstico definitivo é feito pela biópsia renal com o estudo da microscopia óptica, imunofluorescência e microscopia electrónica.

É importante estabelecer o diagnóstico diferencial da GNMP (GNC3/GNIC) com GN pós-estreptocócica/GNPE).

Devem ser valorizados os seguintes dados clínicos: – Idade (GNPE*à 3-12 anos; GNMP**àadolescência); – Edema (*à por retenção de fluidos; **à secundário a síndroma nefrótica); – HTA (*à transitória; **à persistente); -Albumina sérica ( *à normal ou ligeira diminuição; **à moderadamente ou muito diminuída); – Proteinúria (*à mínima ou moderada transitória; **à moderada ou maciça persistente); – Função renal (*à normal ou reduzida transitória; **à normal ou reduzida persistente); – C3 (*à baixo, normalizando em 6-8 semanas; **à baixo persistente).

Tratamento

No tratamento da forma primária os imunossupressores são uma arma com eficácia ainda não totalmente comprovada. São utilizados nos casos de síndroma nefrótica com/sem diminuição da função renal. Nas formas ligeiras com proteinúria moderada e função renal normal e estável, os IECA e ARA II estão indicados. Importa igualmente o tratamento da HTA. A detecção do factor nefrítico C3 (C3NEF) pode estabelecer a indicação de tratamento com rituximab, um anticorpo monoclonal anti-CD20.

Prognóstico

A GNMP é uma das doenças glomerulares com prognóstico mais reservado uma vez que, após 10-15 anos de seguimento, em cerca de 50% dos pacientes surge falência renal terminal, proporção que atinge 80-90% após 20 anos de evolução. As remissões são raras.

 NEFROPATIA DIABÉTICA 

Definição e importância do problema

A doença renal na diabetes (DRD) constitui uma das complicações graves da doença. De acordo com a história natural da doença, podem ser identificados cinco estádios ao longo da idade: estádios I e II (nefropatia pré-clínica) caracterizados por hiperfiltração glomerular- inicial; estádio III (nefropatia incipiente) caracterizado por normoalbuminúria, embora com lesões estruturais demonstradas por biópsia- 5 anos; estádio IV (nefropatia clínica) em que existe microalbuminúria- 10 anos; estádio V (nefropatia terminal) caracterizado por proteinúria, HTA e deterioração da filtração glomerular- 20 anos.

A DRD, que também surge na diabetes do tipo 2, tem uma história natural diferente; as respectivas lesões estruturais renais são mais heterogéneas.

Etiopatogénese

Os mecanismos de início e progressão da doença não estão ainda completamente esclarecidos. Admite-se certa predisposição genética associada a factores metabólicos (desregulação glicémica) e hemodinâmicos (hiperfiltração glomerular). Outros factores descritos com importância na patogénese incluem citocinas e factores de crescimento endotelial.

A lesão característica da nefropatia diabética é a expansão mesangial contribuindo para reduzir o lume capilar e, portanto, a área de filtração glomerular. Verifica-se igualmente espessamento da membrana basal glomerular, permitindo a passagem de proteínas de carga negativa, como a albumina.

No estádio avançado de DRD verifica-se expansão mesangial marcada, espessamento da membrana basal, fibrose intersticial, atrofia tubular e glomeruloesclerose.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Nos estádios precoces (I a III) os sinais clínicos são subtis, tais como alteração do ritmo circadiano da pressão arterial, designadamente com elevação dos valores durante a noite e microalbuminúria.

A microalbuminúria (MA), definida como excreção de 30-299 mg/dia de albumina ou relação albumina/creatinina de 30-299 mg/g em, pelo menos, duas de três amostras, é um sinal precoce de DRD ocorrendo em 26% das crianças e adolescentes após 10 anos e em 51% após 19 anos de diabetes. Na apresentação clássica de DRD, quando surge MA, a excreção de albumina continua a elevar-se, particularmente na presença de outros factores de risco.

Nas fases mais avançadas (IV e V), verifica-se proteinúria, HTA e compromisso da filtração glomerular.

Nem todos os doentes com microalbuminúria evoluem inexoravelmente para estádios mais avançados de DRD. A MA pode representar lesão endotelial reversível e a regressão para normoalbuminúria é possível se houver um bom controlo glicémico e da pressão arterial mas é independente da inibição do sistema renina-angiotensina.

Diagnóstico e actuação prática

Desde o início da diabetes deve proceder-se à avaliação seriada da microalbuminúria. Se for negativa, deverá repetir-se a avaliação anualmente; se for positiva e persistente, estão indicadas medidas terapêuticas de renoprotecção com o objectivo de prevenir a progressão da lesão renal. Uma das medidas é proceder à monitorização ambulatória da pressão arterial durante 24 horas para detectar precocemente alterações do ritmo circadiano da mesma.

Tratamento

O tratamento engloba a actuação ao nível dos diversos factores de risco da DRD: hiperglicemia, HTA, microalbuminúria e dislipoproteinémia. Os IECA e ARA II são os fármacos de eleição como actuando contra a proteinúria e a HTA. Na idade pediátrica é recomendada a dieta normoproteica.

Prognóstico

Para além da duração da diabetes, constituem factores de risco de agravamento da nefropatia, antecedentes familiares de doença renal, HTA, dislipoproteinémia, índice de massa corporal elevado e tabagismo.

GLOMERULONEFRITE RAPIDAMENTE PROGRESSIVA

Definição e importância do problema

O termo glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP) refere-se à síndroma clínica resultante de agressão glomerular grave, caracterizada por deterioração aguda e rápida da função renal que, na ausência de tratamento, evolui em poucas semanas ou meses para doença renal terminal.

Pode ocorrer nas diversas formas de glomerulonefrite (GN) primária e secundária. A característica histológica comum é a presença de crescentes (C) na maioria dos glomérulos (GNC). A GNRP pode classificar-se: – de acordo com a alteração imunológica subjacente; ou em: – primária e secundária, como nas outras glomerulonefrites.

Etiopatogénese

O padrão verificado através da imunofluorescência e da microscopia electrónica orienta para o processo etiológico. Assim: – depósitos lineares de IgG indicam glomerulonefrite por anticorpos antimembrana basal; – depósitos granulares de várias imunoglobulinas e/ou fracções de complemento orientam para um processo mediado por imunocomplexos; – a escassez de depósitos imunológicos indica um padrão paucimune típico das glomerulonefrites rapidamente progressivas associadas a ANCA.

A GNRP pode ser dividida de acordo com o processo etiológico subjacente em I, II e III tipos. Doentes com vasculite sistémica apresentam particular tendência para desenvolvimento de GNRP. Doentes com púrpura Henoch-Schӧnlein, poliangeíte microscópica, granulomatose com poliangeíte e LES constituem o maior grupo de doentes com GNRP. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Glomerulonefrite rapidamente progressiva – classificação

Tipo I

Depósitos lineares de anticorpos anti-membrana basal glomerular (síndroma de Goodpasture)

Tipo II

Depósitos granulares de imunocomplexos (infecções, doenças sistémicas, outras glomerulonefrites primárias, idiopática)

Tipo III

Pauci-imune (poliangeíte microscópica e granulomatose com poliangeíte, com ANCA positivo, e idiopática, com ANCA negativo)

Manifestações clínicas 

A GNRP pode apresentar-se como síndroma nefrítica aguda com atingimento e deterioração rápida da função renal. A proteinúria também é frequente. Nalguns doentes a evolução, silenciosa e progressiva, pode culminar num quadro de falência renal oligúrica. A presença de manifestações extrarrenais, expressão da doença de base, orienta para o diagnóstico da doença sistémica que origina a GNRP.

Dada a gravidade do quadro, torna-se necessário obter o diagnóstico o mais rapidamente possível. A verificação de um curso clínico agressivo associado a manifestações extrarrenais deve levar a admitir o diagnóstico de GNRP e orientar para a biópsia renal, o exame que contribui para o diagnóstico definitivo.

Tratamento e prognóstico

O prognóstico reservado como regra justifica a urgência do tratamento precoce incluindo altas doses de corticóides e ciclofosfamida. Contudo, apesar deste tratamento agressivo surge falência renal terminal. Na síndroma de Goodpasture foram descritos benefícios com a combinação da plasmaferese com imunossupressores.

Como excepção à regra de prognóstico muito reservado cita-se a GN pós-infecciosa com crescentes, situação em que se pode assistir a recuperação espontânea.

BIBLIOGRAFIA

Afkarian M. Diabetic kidney disease in children and adolescents. Pediatr Nephrol 2015; 30: 65-74

Antón M, Rodríguez L (eds). Nefrología Pediátrica, Manual Práctico. Buenos Aires: Médica Panamericana, 2011

Coppo R et al. Risk factors for progression in children and young adults with IgA nephropathy: an analysis of 261 cases from the VALIGA European cohort. Pediatr Nephrol. 2017; 32:139-150

Couser W. Pathogenesis and treatment of glomerulonephritis-an update. J Bras Nefrol 2016; 38: 107-122

Delbet JD, Hogan J, Aoun B, et al. Clinical outcomes in children with Henoch-Schönlein purpura nephritis without crescents. Pediatr Nephrol 2017. doi:10.1007/s00467-017-3604-9

Floege J. Primary glomerulonephritis: A review of important recent discoveries. Kidney Research and Clinical Practice 2013; 32: 103-110

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman- Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier, 2016

Hogg RJ. Idiopathic immunoglobulin A nephropathy in children and adolescents. Pediatr Nephrol 2010; 25: 823-829

Hunt EAK, Somers JG. Infection-related glomerulonephritis. Pediatr Clin North Am 2019; 66: 59-72

Kawasaki Y, Kanno S, Ono A, et al. Differences in clinical findings, pathology, and outcomes between C3 glomerulonephritis and membranoproliferative glomerulonephritis. Pediatr Nephrol 2016; 31: 1091-1099

Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Glomerulonephritis Work Group. KDIGO Clinical Practice Guideline for Glomerulonephritis. Kidney Inter. Suppl. 2012; 2: 139-274

Kouri AM et al. Clinical Presentation and Outcome of Pediatric ANCA-associated Glomerulonephritis. Pediatr Nephrol 2017; 32: 449-455

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds.). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Niaudet P, Appel GB, Hunder GG. Renal manifestations of Henoch-Schönlein purpura. In: UpToDate, Post TW (Ed), UpToDate, Waltham, MA. (consultado em 10 de Abril de 2019)

Niaudet P. Overview of the pathogenesis and causes of glomerulonepritis in children. In: UpToDate, Post TW (Ed), UpToDate, Waltham, MA. (consultado em 10 de Abril de 2019)

Nicoara O, Twombley K. Immunoglobulin A nephropathy and immunoglobulin A vasculites. Pediatr Clin North Am 2019; 66: 101-110

Plumb LA, Oni L, Marks SD, Tullus K. Paediatric anti-neutrophil cytoplasmic antibody (ANCA)-associated vasculitis: an update on renal management. Pediatr Nephrol 2017. doi:10.1007/s00467-016-3559-2

Pohl M. Henoch-Schönlein purpura nephritis. Pediatr Nephrol 2015; 30: 245-252

Ramos Cebrián M, Zarauza Santoveña. Glomerulonefritis crónicas. Protoc Diagn Ter Pediatr 2014; 1: 315-342

Reid-Adam J. Henoch-Schönlein Purpura. Pediatr Rev 2014; 35: 447-449

Riedl M, Thorner P, Licht C. C3 Glomerulopathy. Pediatr Nephrol 2017; 32: 43-57

Shima Y, et al. IgA nephropathy with presentation of nephrotic syndrome at onset in children. Pediatr Nephrol 2017; 32: 457-465

Vila Cots J, Giménez Llort A. Nefropatia de Henoch-Schönlein. In: Antón M, Rodríguez L (coord.). Nefrología Pediátrica- Manual Práctico. Buenos Aires: Médica Panamericana, 2011, p. 131-136

Westra D. et al. Serological and genetic complement alterations in infection-induced and complement-mediated hemolytic uremic syndrome. Pediatr Nephrol 2017; 32: 297-309

HEMATÚRIA

Definição

Define-se hematúria como a verificação de eritrócitos na urina em valores > 5/campo em urina centrifugada (10 mL) , ou > 6/mL em urina fresca.

Pode ser macroscópica ou microscópica. No primeiro caso, é notória a alteração da cor da urina, de amarelo pálido a tons distintos (~chá, água de lavar carne ou coca-cola). A este propósito, importa salientar que a alteração da cor e eventual turvação pode ser devida a outras causas, tais como presença de uratos, fosfatos, pus, hemoglobina, mioglobina, ácidos biliares, porfírias, fármacos (por ex. cloroquina, rifampicina, etc.).

Havendo perda pouco significativa de eritrócitos, a cor da urina não se altera; trata-se de hematúria microscópica.

A hematúria pode ser acompanhada de proteinúria resultante da ruptura de número significativo de eritrócitos. Em termos quantitativos, e em função da magnitude de certas hematúrias macroscópicas, poderão surgir proteinúrias até ~ 500 mg/L.

Como noção geral, importa referir que valores superiores de proteinúria corresponderão, em princípio, a nefropatia causando ambas as alterações.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com vários estudos epidemiológicos, a hematúria pode surgir entre 5 e 30% de crianças assintomáticas. Entre os 6 e 15 anos de idade, existe probabilidade de detectar hematúria por tira reactiva em 3-4% dos casos submetidos a tal exame.

Etiopatogénese e sistematização

Para além das características “microscópica” e “macroscópica” em função do aspecto da urina, as hematúrias podem também ser classificadas sob o ponto de vista da fisiopatologia do sistema nefro-urológico, relacionando a morfologia dos eritrócitos com a sua origem. Assim, se a origem dos eritrócitos for glomerular renal, os mesmos apresentam-se deformados, o que traduz a sua passagem por estruturas que os deformam. Se a origem for a via urinária, a morfologia é normal.

Relacionando as hematúrias com os factores etiológicos, podem ser consideradas as seguintes formas: parenquimatosas (glomerular, tubulointersticial e vascular), urológicas (uropatias, traumatismos, e litíase), sistémicas com repercussão renal, genéticas e hereditárias, e tumorais.

Como causas mais frequentes de hematúria apontam-se a cistite hemorrágica, a síndroma nefrítica, a hematúria monossintomática e a nefropatia associada à púrpura de Schonlein-Henoch.

Tendo em conta a manifestação ao longo do tempo, podem considerar-se ainda, por exemplo, as hematúrias persistentes, recorrentes, monossintomáticas, isoladas ou familiares. Sob o ponto de vista semiológico, as várias terminologias poderão ser orientadoras quanto ao diagnóstico sindrómico e/ou etiológico.

Manifestações clínicas e orientação diagnóstica

Perante caso de hematúria sintomática, a dor lombar sugere a presença de litíase das vias urinárias ou antecedentes de traumatismo.

Sintomas urinários como disúria, polaquiúria e tenesmo orientam para origem infecciosa; e, surgindo concomitantemente febre e dor lombar, para o diagnóstico de pielonefrite aguda.

A existência de sinais como edema, HTA, cefaleia, oligúria e aumento de peso, orientam para doença glomerular; e, a associação destes a petéquias nas extremidades inferiores e nádegas, sintomas gerais, dor abdominal, artralgias orientam para vasculite.

No lactente, sendo a sintomatologia descrita menos evidente, há que valorizar sinais que poderão apontar para doença renal, como massas abdominais, palidez, e antecedentes pré-natais e perinatais.

Em suma, perante episódio de hematúria macroscópica, ou no contexto de detecção casual de hematúria microscópica, torna-se fundamental realizar uma história clínica rigorosa (anamnese, atendendo designadamente aos antecedentes familiares, e exame objectivo).

Os fluxogramas que se seguem tipificam os procedimentos a realizar em outros tantos contextos de hematúria: macroscópica ou microscópica sintomática, microscópica assintomática isolada e microscópica assintomática com proteinúria associada.

FIGURA 1. HEMATÚRIA MACROSCÓPICA OU MICROSCÓPICA SINTOMÁTICA

FIGURA 2. HEMATÚRIA MACROSCÓPICA OU MICROSCÓPICA SINTOMÁTICA

FIGURA 3. HEMATÚRIA MICROSCÓPICA ASSINTOMÁTICA ISOLADA

FIGURA 4. HEMATÚRIA MICROSCÓPICA ASSINTOMÁTICA COM PROTEINÚRIA

BIBLIOGRAFIA

Afonso AC, Maciel I, et al. Algoritmos de Decisão em Pediatria. Lisboa: Lidel, 2017

Alves JGB, Ferreira OS, Maggi RRS, Correia JB. Fernando Figueira Pediatria. Rio de Janeiro: Medbook, 2011

Brown DD, Reidy KJ. Approach to the child with hematuria. Pediatr Clin North Am 2019; 66: 15-30

Figueira F, Alves JGB, Bacelar CH. Manual de Diagnóstico Diferencial em Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005

Gill D, O’Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh: Churchill Livingstone, 2005

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman- Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier, 2016

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds.). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Larkins NG, Craig JC, Teixeira-Pinto A. A guide to missing data for the pediatric nephrologist. Pediatr Nephrol 2019; 34: 223-231

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Niaudet P. Overview of the pathogenesis and causes of glomerulonepritis in children. In: UpToDate, Post TW (Ed), UpToDate, Waltham, MA. (consultado em Abril de 2019)

Palminha JM, Carrilho E (eds). Orientação Diagnóstica em Pediatria. Lisboa: Lidel, 2003

Pérez Navero JL, Ibarra de la Rosa I, Camino León R (eds). Manual Práctico de Patología Pediátrica. Barcelona: Oceano Ergon, 2009

Quigley R. Evaluation of hematuria and proteinuria. Curr Opin Pediatr 2008; 20: 140-144

Viteri B, Reid-Adam J. Hematuria and proteinuria in children Pediatr Rev 2018; 39: 573-587; DOI: 10.1542/pir.2017-0300

Youn T, Trachtman H, Gauthier B. Clinical spectrum of gross hematuria in pediatric Patients. Clin Pediatr (Phila) 2006; 45: 135-141

INTRODUÇÃO À NEFRO-UROLOGIA

A Parte XIX aborda os tópicos fundamentais relacionados com o Rim e Vias Urinárias numa perspectiva prática de aplicação à clínica.

Em condições de normalidade, os rins, com uma variedade de funções para preservação da homeostasia, garantem o balanço hidroelectrolítico, excretam catabólitos através da filtração glomerular e da secreção tubular, geram energia (neoglucogénese) e produzem hormonas (eritropoietina, renina, metabólitos da vitamina D).

Em condições de anormalidade, sobretudo se se verificar evolução para a cronicidade, com as inerentes alterações da homeostasia, surgirão manifestações clínicas diversas com impacte no crescimento e desenvolvimento.

A propósito de manifestações clínicas, cumpre referir a noção de que o diagnóstico pré-natal das anomalias congénitas nefro-urológicas é uma das formas mais frequentes de apresentação da doença renal, e de que o seu diagnóstico em fase precoce poderá contribuir para a renoprotecção viabilizando um conjunto de medidas em tempo oportuno no sentido da prevenção da doença renal crónica, que pode ser fatal. Tal desiderato implica uma cooperação harmónica pluridisciplinar, com destaque para o médico de família, o pediatra (como perinatologista e nefrologista) e o especialista de medicina materno-fetal.

Nos capítulos que se seguem foram considerados três grandes grupos de doenças nefro-urológicas quanto à sua etiopatogénese: nefrouropatias primárias, secundárias (a vários processos tais como doenças infecciosas, autoimunitárias) e/ou geneticamente determinadas.

Nesta edição todos os conteúdos foram actualizados tendo sido introduzidos novos conceitos e novas terminologias, como os de Lesão Renal Aguda (mais abrangente que o de insuficiência renal aguda, e englobando os períodos neonatal e pós-neonatal), Urolitíase, Hematúria e de Doença Renal Crónica. Por outro lado, manteve-se em cada capítulo, para fins didácticos, o esquema de estruturação em diversas alíneas (da fisiologia à etiopatogénese, da semiologia às manifestações clínicas, da selecção de exames complementares à interpretação de seus valores de referência, e do tratamento à prevenção.

Como capítulo introdutório à Nefro-Urologia, é abordado tema Hematúria. Com a integração de fluxogramas, reforça-se a importância da semiologia clínica e laboratorial para a compreensão da etiopatogénese, diagnóstico, tratamento e prevenção das entidades clínicas com que o pediatra e o clínico geral mais frequentemente lidam.

Enfim, em obediência à filosofia editorial de cariz generalista, os autores e coordenadores esperam que as noções transmitidas sejam de utilidade para os leitores-alvo cujo perfil foi definido noutra parte da obra, em prol da saúde e do bem-estar da criança e adolescente.

BIBLIOGRAFIA

Childhood kidney disease is associated with increased risk of end-stage renal failure in adulthood. Newnham, Amanda Louise 1; Friend, Amanda Jane 2,3 Archives of Disease in Childhood Education & Practice.104(1):55-56, February 2019. [Structured abstracts of sentinel articles: Picket]

Gill D, O’Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh: Churchill Livingstone, 2005

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman- Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier, 2016

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds.). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Larkins NG, Craig JC, Teixeira-Pinto A. A guide to missing data for the pediatric nephrologist. Pediatr Nephrol 2019; 34: 223-231

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Newnham AL, Friend AJ. Childhood kidney disease is associated with increased risk of end-stage renal failure in adulthood. Arch Dis Child Education & Practice 2019; 104:55-56

TERAPÊUTICA TRANSFUSIONAL

Importância do problema

A terapêutica transfusional é determinante em clínica pediátrica, nomeadamente no tratamento de situações clínicas do foro hemato-oncológico e em vários procedimentos cirúrgicos.

Embora se trate de uma terapêutica indispensável na medicina moderna, a mesma não é isenta de riscos, relacionados designadamente com erros de identificação, colheita da amostra para testes pré-transfusionais, erros de administração do componente ou reacções transfusionais imprevisíveis.

Para minorar estes problemas, há que chamar a atenção para alguns pontos críticos do processo transfusional:

A. Prescrição

    • Implementar, sempre que possível, uma estratégia restritiva, ponderando criteriosamente a necessidade de prescrição de cada componente sanguíneo e do registo no processo clínico.
    • Considerar os riscos e benefícios desta terapêutica utilizando preferencialmente as terapêuticas alternativas mais seguras, se existirem.
    • Prescrever segundo as Normas de Orientação Clínica Nacionais sobre a temática a abordar, pressupondo que as mesmas são actualizadas e auditadas periodicamente.
    • Obter o consentimento esclarecido do doente e/ou da família.

B. Colheita da amostra para testes pré-transfusionais

    • Promover uma política restritiva em relação ao número e volume de amostras colhidas.
    • Só efectuar a colheita de amostra para testes pré-transfusionais após a decisão da prescrição.
    • Antes da colheita da amostra, proceder sempre à identificação do doente e da amostra (à cabeceira deste) e verificar a concordância da identificação com o pedido/requisição.

C. Testes pré-transfusionais e selecção do componente a transfundir

    • Executar os testes pré-transfusionais preconizados de acordo com a idade do doente.
    • Implementar uma estratégia restritiva do número de dadores por doente submetido a transfusão, subdividindo as unidades, utilizando a mesma unidade durante todo o seu período de validade, sempre que possível.

D. Administração do componente

    • Proceder à identificação do doente verificando a concordância com a identificação do componente, evitando erros de administração que podem ser fatais.
    • Monitorizar os parâmetros vitais durante a transfusão e efectuar os respectivos registos no processo clínico.

Nos últimos anos tem havido uma evolução muito significativa na prática transfusional graças a implementação de programas de Patient Blood Management, que contemplam a sempre actual redução do volume e número de amostras colhidas, a prática transfusional restritiva e a correcção atempada das alterações da hematopoiese e coagulação, a doentes que irão ser submetidos a procedimentos cirúrgicos potencialmente muito hemorrágicos.

Neste capítulo, para melhor compreensão da problemática da terapêutica transfusional, alguns aspectos dos procedimentos e das atitudes a tomar são acompanhados pela abordagem dos respectivos fundamentos na fisiopatologia e nas particularidades do grupo etário pediátrico. (ver adiante Glossário).

Particularidades fisiológicas influenciando a terapêutica transfusional

Anemia fisiológica da infância

Um recém-nascido (RN) de termo saudável apresenta valores médios de hemoglobina de 16,8 ± 1,6 g/dL. Se se tratar de RN pré-termo, os valores diminuem para 15,8 ± 2,4 g/dL.

Durante as primeiras semanas de vida verifica-se um declínio do teor da hemoglobina (Hb). Tal declínio fisiológico da hemoglobina (que pode atingir 9 g/dL e o nadir por volta das 10-12 semanas), é bem tolerado no RN de termo. Esta situação corresponde à chamada anemia fisiológica do lactente.

Na criança nascida prematuramente (antes das 37 semanas de gestação), este declínio ocorre mais cedo (4-6 semanas), é mais pronunciado e habitualmente é exacerbado pelas múltiplas flebotomias necessárias para a realização de estudos analíticos. Pode, assim verificar-se, anemia sintomática (por exemplo, episódios de apneia, taquicárdia, taquipneia, défice ou ausência de progressão ponderal), podendo implicar terapêutica transfusional.

Os factores que influenciam a anemia fisiológica da infância são:

  • Diminuição da síntese de eritropoietina, pois no RN saudável a PO2 do sangue arterial é elevada, permitindo uma melhor oxigenação dos tecidos;
  • Menor sobrevida dos eritrócitos fetais (60 a 90 dias no RN de termo e 35 a 50 dias no pré-termo vs 100 a 120 dias em crianças mais velhas e adultos);
  • Aumento rápido da volémia, acompanhando o crescimento do bebé.

Resposta fisiológica à hipovolémia

A volémia depende do peso corporal e da idade gestacional. Num RN de termo é cerca de 85 ml/kg e, no RN pré-termo, cerca de 100 ml/kg.

A hipovolémia é menos bem tolerada pelo RN comparativamente ao adulto, uma vez que após perdas > 10% da volémia, o débito cardíaco diminui sem que haja aumento compensatório da frequência cardíaca. Assim, a pressão arterial do RN é mantida a custo do aumento da resistência vascular periférica, com consequente diminuição da perfusão tecidual e acidose metabólica.

Imaturidade do sistema imunitário

Somente por volta dos 3 meses de idade as crianças começam a adquirir capacidade de sintetizar imunoglobulinas. Até aí, a imunidade humoral depende dos anticorpos que foram adquiridos a partir da mãe, por transferência placentária.

Por outro lado, se a mãe for portadora de anticorpos antieritrocitários ou antiplaquetários, estes estarão presentes em circulação durante este período, o que pode ter repercussão clinicamente significativa.

Assim, os testes pré-transfusionais realizados até aos 4 meses de idade são distintos dos praticados nos restantes grupos etários.

A imunidade celular também não se encontra devidamente desenvolvida, pelo que há maior susceptibilidade associada à transfusão, sobretudo após transfusões intra-uterinas ou em RN com quadros de imunodeficiência congénita.

Transfusão nos primeiros 4 meses de idade

Procedimentos pré-transfusionais

Os testes pré-transfusionais nos primeiros 4 meses de vida diferem dos realizados nos restantes grupos etários devido a:

  • Fraca expressão dos antigénios eritrocitários do sistema AB0, não se podendo garantir uma correcta determinação do grupo sanguíneo da criança;
  • Ausência de produção de anticorpos, nomeadamente as aglutininas anti-A ou anti-B, cuja determinação é necessária para uma correcta determinação do grupo AB0;
  • Presença de anticorpos de origem materna, com eventual significado clínico.

Assim, antes da primeira transfusão deve adoptar-se o seguinte procedimento:

  • Tipagem AB0 – apenas a prova globular (determinação dos antigénios do sistema AB0, expressos na superfície do eritrócito), não se efectuando a prova sérica (determinação das aglutininas);
  • Tipagem Rh e Kell. Nos recém-nascidos de mãe Rh (D) negativa, a determinação do antigénio D deve incluir a pesquisa de D variante e, se necessário, deve administrar-se imunoglobulina anti-D à mãe;
  • Teste de anti-globulina humana directo com soro poliespecífico – para identificar eventuais anticorpos de origem materna ligados aos eritrócitos do RN. Se positivo, deve efectuar-se eluição e testar o eluído contra um painel de células dos grupos 0, A e B. Se for identificado o anticorpo no soro materno, estes estudos não são necessários;
  • Pesquisa de anticorpos irregulares – utilizando preferencialmente o soro/plasma materno. Se a amostra da mãe não estiver disponível, deve efectuar-se com soro/plasma do RN;
  • Prova de compatibilidade – utilizando preferencialmente o soro/plasma materno e os eritrócitos do dador. Se a amostra da mãe não estiver disponível, deve efectuar-se com soro/plasma do RN.

Concentrado eritrocitário

O concentrado eritrocitário (CE) é o componente mais transfundido no período neonatal, sendo a indicação mais frequente a anemia sintomática.

A dose preconizada é de 10-15 mL/kg, sendo expectável um incremento de 2 a 3 g/dL no valor de Hb.

Os níveis de Hb abaixo dos quais se recomenda a transfusão de CE dependem não só da idade cronológica, como da idade gestacional e da situação cardiorrespiratória da criança.

Em geral, as transfusões são realizadas para manter um nível de hemoglobina e de hematócrito (Ht) que se pensa ser o mais benéfico para a situação clínica de cada doente, permitindo uma adequada oxigenação dos tecidos. É largamente reconhecido que a decisão de transfusão baseada nestes princípios é imprecisa; contudo, não existe ainda a possibilidade de fundamentar a decisão transfusional em critérios mais fisiológicos, como a determinação da massa eritrocitária circulante ou a capacidade de extracção de oxigénio pelos tecidos.

No Quadro 1 apresentam-se recomendações quanto à transfusão de CE em crianças com idade ≤ 4 meses.

QUADRO 1 – Critérios para transfusão de concentrado eritrocitário em crianças com idade ≤ 4 meses

1. Hb ≤ 7 g/dL ou Ht ≤ 20%, com reticulócitos < 4%, se assintomático.
2. Hb ≤ 9 g/dL ou Ht ≤ 30%, na presença de um dos seguintes:
    • Sob oxigenoterapia
    • Apneia/bradicárdia (> 10 episódios/24h ou 1 episódio necessitando de reanimação com máscara)
    • Taquicárdia (> 180 pulsações/por minuto ou taquipneia (> 80 ciclos respiratórios/minuto) mantidas durante 24 h
    • Cansaço excessivo ao mamar e diminuição marcada da actividade
    • Ausência de progressão ponderal durante 4 dias (≤ 10 g/dia, com suprimento energético adequado)
3. Hb ≤ 12 g/dL ou Ht ≤ 35%
    • Com assistência ventilatória de FiO2 ≥ 35% e/ou MAP ≥ 6-8 cm H2O
    • Sempre que haja sintomatologia atribuível à anemia
4. Hb ≤ 13 g/dL ou Ht ≤ 40%
    • Nas primeiras 24h de vida, especialmente na anemia por perdas perinatais
    • Na anemia por perda aguda ou iatrogénica (> 10% de volémia em < 72h)
    • Nas cardiopatias congénitas cianóticas
    • Com assistência ventilatória de FiO2 ≥ 50% e/ou MAP ≥ 8 cm H2O

Após ter sido tomada a decisão de transfundir, é importante dispor de um produto de boa qualidade e de baixo risco, pelo que os CE administrados devem ser desleucocitados (conteúdo de leucócitos < 1 milhão de elementos por unidade), e provenientes de dadores regulares.

No período neonatal devem ser desenvolvidas estratégias que minorem as perdas sanguíneas em flebotomias, com meticuloso controlo e ponderação de todas as colheitas efectuadas. As flebotomias contribuem para agravar a anemia e estão associadas a maiores necessidades transfusionais.

Para minorar os riscos tranfusionais, nas transfusões de pequeno volume, deverão ser utilizadas estratégias que reduzam a exposição a dadores por transfusão, subdividindo as unidades em múltiplas fracções, e utilizando o componente durante todo o seu período de viabilidade. Deste modo, quando se selecciona um CE para este grupo etário dever-se-á escolher um colhido recentemente de forma a poder ser utilizado durante os 42 dias de viabilidade.

Quando há necessidade de transfusão de grandes volumes, há risco de hipercaliémia e hipocalcémia; em tal cicunstância recomenda-se a transfusão de concentrados eritrocitários colhidos há menos de 5 dias, com monitorização do potássio e cálcio séricos. (Duração da transfusão: 60-120 minutos, com vigilância cardiovascular, nunca > 6 horas).

As particularidades da transfusão intra-uterina e exsanguinotransfusão neonatal são abordadas na alínea sobre “situações especiais”.

Concentrado plaquetário

O valor da contagem plaquetária do RN é semelhante ao do adulto, com valores de referência que oscilam entre 150 a 450 x 109/L.

A trombocitopénia é uma das alterações hematológicas mais comuns no período neonatal, afectando cerca de 20% dos RN internados em cuidados intensivos. Múltiplos mecanismos podem estar envolvidos na sua etiopatogénese, sendo alguns dos principais: acelerada destruição de plaquetas, a deficiente produção de trombopoietina, o efeito de diluição secundário à transfusão maciça, ou exsanguinotransfusão (ET). (ver Capítulo sobre Trombocitopénia e Trombocitose)

O Quadro 2 resume as principais situações em que a transfusão de plaquetas está indicada.

QUADRO 2 – Critérios para transfusão de plaquetas

1. Contagem plaquetária ≤ 30 x 109/L em RN assintomático
2. Contagem plaquetária ≤ 10 x 109/L após o período neonatal, se assintomático

3. Contagem plaquetária ≤ 50 x 109/L na presença de um dos seguintes factores:

    • Hemorragia activa
    • Antes de procedimentos invasivos
4. Contagem plaquetária ≤ 100 x 109/L, antes do início de ECMO

5. Independentemente do nº plaquetário, na presença de um dos seguintes factores:

    • Hemorragia activa e alterações qualitativas das plaquetas
    • Hemorragia activa inexplicável num doente sob bypass cardiopulmonar ou submetido a ECMO

O concentrado plaquetário deve ser administrado na dose de 5-10 mL/Kg (~1 U/5 kg de peso). Na ausência de destruição periférica aumentada ou perdas hemáticas mantidas, admite-se um aumento na contagem plaquetária até 50 x 109/L.

É também aconselhável que as plaquetas a transfundir sejam do mesmo grupo do do doente no sistema AB0, para evitar eventual hemólise provocada pela exposição a aglutininas anti-A e anti-B presentes no componente. Actualmente, contudo, na maioria dos casos os componentes produzidos não são suspensos em plasma do dador, mas sim numa solução aditiva própria, pelo que a quantidade de anticorpos presentes é reduzida.

Como referido anteriormente, é importantíssimo minorar a exposição a múltiplos dadores pelo que, preferencialmente, as crianças deverão ser transfundidas com concentrados unitários de plaquetas (CUP). Sempre que necessário os CUP, poderão igualmente ser subdivididos em pequenas porções e utilizados durante todo o seu período de conservação. (Duração da transfusão: 20-30 minutos, sem alteração cardiovascular, nunca > 4 horas).

Plasma fresco congelado

A proporção de factores da coagulação que atravessa a placenta durante a gravidez não é suficiente para manter a hemostase após o parto; tais factores serão progressivamente sintetizados pelo RN no período pós-natal.

Habitualmente, durante a primeira semana de vida, os níveis fisiológicos dos factores de coagulação vitamina-K dependentes (II, VII, IX e X) e da via de contacto (XI, XII, pré-calicreína e cininogénio de baixo peso molecular) são baixos, o que explica que o tempo de protrombina (TP) e tempo parcial de tromboplastina activada (TTPa) estejam prolongados comparativamente aos de crianças mais velhas e adultos.

Por outro lado, os inibidores naturais da coagulação (antitrombina III, proteínas C e S) também apresentam níveis baixos. Estes dois sistemas equilibram-se e, por isso, hemorragias espontâneas e tromboses são raras no recém-nascido saudável.

Nesta fase, qualquer perturbação neste sistema, pode levar à ocorrência de hemorragias significativas.

O Quadro 3 mostra as idades em que determinados testes de coagulação mais comuns evidenciam valores semelhantes aos do adulto.

QUADRO 3 – Idades em que os testes de coagulação evidenciam valores semelhantes aos do adulto

Teste laboratorialIdade em que se atingem valores semelhantes aos do adulto
TTPa16 anos
TP16 anos
INR16 anos
TT5 anos
PFA-1001 mês

Nos países desenvolvidos, a introdução da administração profiláctica de vitamina K intramuscular a todos os RN após o parto levou a que a incidência de doença hemorrágica do recém-nascido diminuísse drasticamente, passando a ser uma raridade.

O plasma fresco congelado (PFC) pode ser utilizado para substituir os factores da coagulação, particularmente quando estão envolvidas deficiências múltiplas.

O Quadro 4 refere as indicações para transfusão de PFC no período neonatal, que são semelhantes às preconizadas em crianças mais velhas e adultos.

QUADRO 4 – Indicações para transfusão de PFC

1. Reposição de deficiência congénita de um factor procoagulante ou anticoagulante, quando não existam disponíveis concentrados específicos
2. Reposição de deficiência isolada de factor V
3. Hemorragia activa devida a deficiência múltipla de factores, incluindo coagulação intravascular disseminada (CIVD), trauma, transfusão maciça ou cirurgia de bypass cardiovascular

Salienta-se, pois, que a transfusão de PFC não deve ser utilizada para correcção de alterações laboratoriais sem expressão clínica, reposição ou expansão de volume, reposição de proteínas ou suporte nutricional. Após administração da dose recomendada (10-20 mL/kg), obtém-se um aumento da actividade de cada factor na ordem de 15 a 20%, excepto se na presença de CIVD.

O plasma deve ser AB0 compatível e livre de anticorpos clinicamente significativos. Pela ausência de aglutininas anti-A ou anti-B, o plasma do grupo AB é muitas vezes o utilizado, neste grupo etário. (Duração da transfusão: 20-30 minutos, nunca > 2 horas).

Transfusão na idade superior a 4 meses, incluindo o adolescente

Os testes pré-transfusionais recomendados em crianças com mais de 4 meses de idade são idênticos aos recomendados para o doente adulto: grupagem AB0, Rh e Kell (prova globular e prova sérica), pesquisa de anticorpos irregulares e provas de compatibilidade. Com validade de 72 horas, os mesmos devem ser efectuados antes de qualquer transfusão.

Concentrado eritrocitário

As indicações transfusionais de CE na criança com mais de 4 meses são muito semelhantes às do adulto, devendo no entanto ter-se em consideração determinadas especificidades: idade, volémia, capacidade de tolerância e de recuperação da anemia e etiologia da mesma.

Tal como no recém-nascido e lactente, o CE é o componente mais transfundido. É utilizado para aumentar a capacidade de transporte de oxigénio e manter uma adequada oxigenação dos tecidos, prevenindo a hipóxia.

Como referido anteriormente, a partir dos 3 meses começam a ser sintetizadas imunoglobulinas, pelo que as crianças deste grupo etário já apresentam anticorpos naturais do sistema AB0 e têm capacidade imunológica para formar alo-anticorpos anticorpos anti-eritrocitários, ou outros, dependendo do componente transfundido. Os glóbulos vermelhos transfundidos devem ser AB0 e Rh idênticos ou compatíveis, evitando o risco de reacções transfusionais hemolíticas agudas.

Na maioria dos casos, não é necessário utilizar CE com menos de 7 dias.

Contudo, existem situações clínicas especiais em que tal medida é essencial: na cirurgia cardíaca e nos doentes em regime de transfusões crónicas, de forma a que as células transfundidas, com maior durabilidade, viabilizem maior intervalo transfusional.

Políticas transfusionais restritivas têm permitido diminuir a utilização de CE, sem aumento da mortalidade ou morbilidade. Em crianças que não estejam em hemorragia activa ou sob regime de transfusões crónicas, a administração de uma unidade de CE, em doentes com mais de 25-30 kg, ou 10 mL/Kg nos de peso inferior, é suficiente para aumentar a Hb em cerca de +2 g/dL e aliviar a sintomatologia.

Neste grupo etário, verifica-se uma maior capacidade fisiológica de compensação da anemia do que nos adultos, pelo que, de uma forma geral, existe tolerância do organismo para níveis de Hb mais baixos.

As indicações para transfusão de concentrado eritrocitário em crianças com idade > 4 meses encontram-se discriminadas no Quadro 5. Dever-se-á ter em conta, não apenas o valor da Hb, mas também a presença de:

  • Sinais e sintomas de anemia e a capacidade funcional do doente;
  • Presença ou ausência de doença cardiorrespiratória e do sistema nervoso central;
  • Etiologia da doença de base e ineficácia da terapêutica médica anterior;
  • Terapêuticas alternativas, por exemplo ferro e eritropoietina.

Tal como no lactente com idade < 4 meses, devem ser desenvolvidas estratégias que minorem as perdas sanguíneas em flebotomias.

QUADRO 5 – Critérios para transfusão de concentrado eritrocitário em crianças com idade > 4 meses e adolescente

1. Hb ≤ 7 g/Dl ou Ht ≤ 20%, se assintomático
2. Hb ≤ 9 g/dL ou Ht ≤ 30%, na presença de um dos factores seguintes:
    • Sempre que haja sintomatologia atribuível à anemia
    • Antes de procedimentos invasivos
    • Sob quimio ou radioterapia
3. Hb ≤ 13 g/dL ou Ht ≤ 40%, na presença de um dos factores seguintes:
    • Cardiopatias congénitas cianóticas
    • Doença pulmonar grave
    • Sob ECMO
4. Hemorragia aguda > 15% da volémia sanguínea total
5. Anemia de células falciformes, na presença de um dos factores seguintes:
    • Acidente vascular cerebral
    • Síndroma torácica aguda
    • Sequestro esplénico
    • Priapismo recorrente
    • Crise aplástica

Na anemia aguda, contrariamente ao definido nos anos 90, em que a utilização agressiva de cristalóides e CE era o tratamento de base, actualmente recomenda-se a utilização precoce de CE, plasma e plaquetas, diminuindo o recurso aos cristalóides e dando ênfase à correcção da tríade letal de acidose, hipotermia e coagulopatia.

Em cirurgia pediátrica, as necessidades de CE são determinadas com base no “consumo standard” e “consumo máximo de CE” por procedimento cirúrgico. Estes últimos critérios são indicadores muito informativos sobre a necessidade de utilização de CE num determinado procedimento cirúrgico, evitando gastos desnecessários em reservas de componentes sanguíneos, bem como em reagentes e recursos humanos.

As maiores perdas ocorrem na cirurgia craniofacial, escoliose e cirurgia cardíaca. Os sinais e sintomas relacionados com anemia podem ser mais difíceis de avaliar em cirurgia, realçando-se que perdas superiores a 15% da volémia são indicadoras da necessidade transfusional.

A previsão das necessidades transfusionais pode ainda fazer-se numa base individual, calculando a perda máxima de sangue (PMS) tolerada, através da seguinte fórmula:

PMS = V (Ht i – Ht min)
                     Ht m

V = volémia
Ht i = hematócrito inicial
Ht min = hematócrito mínimo que o doente pode tolerar
Ht m = hematócrito médio

Sendo a anemia pré-operatória associada a maior necessidade transfusional, a realização de transfusão constitui um factor preditivo do aumento do tempo de internamento hospitalar, da maior susceptibilidade a infeccões, e de mortalidade mais elevada.

Assim, os doentes candidatos a cirurgia programada devem ser englobados em programas de gestão da administração de sangue e derivados (Patient Blood Management), conceito que consiste em reduzir o recurso à terapêutica transfusional, através da rendibilização da hematopoiese e da hemostase, tentando, a par, minorar as perdas. Tal estratégia concretiza-se com: – o uso de suplementos de ferro, oral ou endovenoso (EV), com ou sem estimulantes da eritropoiese; – o recurso a técnicas cirúrgicas e anestésicas que comportem menos perdas; e – a utilização de fármacos antifibrinolíticos, como o ácido tranexâmico.

Na anemia crónica, os efeitos metabólicos repercutem-se na afinidade da hemoglobina para o oxigénio, com implicações na sua libertação aos tecidos periféricos. Em tais circunstâncias, as crianças podem tolerar níveis muito baixos de Hb. Em tais circunstâncias, a correcção da anemia deve ser lenta, reavaliando o doente após cada unidade administrada.

Antes de iniciar um regime de transfusões regulares, os pacientes devem ser vacinados contra a hepatite B, determinando igualmente fenótipo eritrocitário detalhado, no sentido de evitar eventual alo-imunização eritrocitária na sequência de transfusões subsequentes.

A abordagem do problema da transfusão crónica nos doentes com doença de células falciformes e β-talassémia major será feita adiante.

No doente cardíaco, o compromisso na libertação de oxigénio aos órgãos críticos pode ocorrer antes de haver compensação fisiológica. Assim, nestes doentes, com limitada reserva fisiológica, poderá ser necessário manter o nível de Hb mais elevado.

Em oncologia, a anemia é frequente e de etiologia multifactorial: eritropoiese ineficaz, infiltração medular, défice de eritropoietina e vitaminas, assim como libertação de citocinas, entre outros factores. Apesar de não estar provado cientificamente qual o nível óptimo de Hb para estes doentes, com a transfusão restritiva, mantendo valores de 7-8 g/dL, têm sido obtidos resultados equivalentes aos que se obtêm com a prática liberal. As terapêuticas alternativas, como o ferro endovenoso e estimulantes da eritropoiese, devem ser consideradas.

A anemia hemolítica autoimune, definida pela destruição precoce dos glóbulos vermelhos, associada à presença de autoanticorpos, é rara na criança e difere da do adulto. As diferenças quanto à especificidade dos autoanticorpos envolvidos constituem os factores responsáveis pela grande variabilidade clínica. De salientar, a propósito, que os doentes com anemia hemolítica por autoanticorpos “quentes” poderão não ter hemólise grave.

O risco transfusional neste contexto é elevado pelas dificuldades nos testes pré-transfusionais. Os autoanticorpos reagem com todas as células-reagentes, tornando as provas de compatibilidade sempre positivas e, por vezes, os padrões de aglutinação são semelhantes aos verificados nos casos caracterizados pela presença de aloanticorpos.

Assim, perante a eventualidade de se proceder a transfusão com CE, a destrinça das duas situações é fundamental antes de seleccionar um CE para transfundir. Como se depreende, havendo destruição aumentada de eritrócitos a transfundir, a sobrevida dos mesmos é muito inferior.

Em suma, a transfusão nestes doentes deve ser restritiva e cingir-se a situações extremas e absolutamente indispensáveis, após estudos imuno-hematológicos adequados, os quais são difíceis e morosos.

Concentrado plaquetário

A decisão de transfundir plaquetas, controversa, depende da causa da hemorragia, da situação clínica do doente, assim como do número e da função das plaquetas circulantes.

Havendo hemorragia, a verificação de alterações qualitativas das plaquetas (hereditárias ou adquiridas) justificam a transfusão independentemente do número.

Na sua maioria, as transfusões de plaquetas são administradas a doentes do foro hemato-oncológico, e submetidos a cirurgia cardíaca.

A administração profiláctica de concentrados plaquetários deve ser bem ponderada devido ao risco de aloimunização e eventual ausência de resposta a transfusões ulteriores.

As indicações para a transfusão de plaquetas, bem como a dose recomendada para a criança e adolescente, são idênticas às do adulto (Quadro 2).

Tal como referido anteriormente, as plaquetas devem ser AB0 compatíveis com o receptor, e preferencialmente provenientes de um único dador, por colheita de aférese.

Na presença de aloimunização, devem ser utilizadas plaquetas de dador único, compatíveis no sistema HLA.

A trombocitopénia de etiologia imune não deve ser tratada com transfusões, excepto em caso de hemorragia intracraniana ou outras situações de risco de vida.

Na púrpura trombocitopénica trombótica e na trombocitopénia induzida pela heparina, poderá ocorrer a formação de trombos plaquetários ou outras complicações trombóticas após as transfusões de plaquetas, pelo que estas não estão indicadas.

Plasma fresco congelado

O plasma fresco pode ser obtido através de uma dádiva de sangue total ou por aférese.

Em Portugal, estão disponíveis três tipos de plasma, cujas propriedades são equivalentes:

  • Plasma de quarentena – proveniente de um único dador com, pelo menos, duas dádivas, submetidas a controlos víricos. A primeira dádiva só é libertada após resultados negativos em ambas as colheitas;
  • Plasma fresco com redução patogénica – resultante da junção de 2-3 dádivas, submetidas a redução patogénica com amotosaleno e a luz ultra-violeta; tal redução promove a destruição de todas as cadeias de ADN existentes, independentemente de se tratar de leucócitos, vírus ou fungos;
  • Plasma solvente-detergente – produzido industrialmente, por junção de múltiplas dádivas (600 a 2000), filtradas e tratadas com tri(n-butyl) fosfato e octoxinol, de forma a eliminar bactérias, vírus e priões.

Uma vez que o plasma contém níveis fisiológicos dos factores lábeis e estáveis da coagulação, recomenda-se a sua utilização nas deficiências isoladas ou múltiplas da coagulação para as quais não exista ainda factor específico (Quadro 4).

As principais indicações para a transfusão de plasma são: plasmaféreses em doentes com PTT/SHU e na reversão de coagulopatias. Na transfusão maciça (transfusão superior a uma volémia em menos de 24 horas) é necessário administrar plasma fresco congelado, não só devido ao consumo de factores motivado pelas perdas hemorrágicas, mas também, pelo próprio efeito de diluição provocado pela transfusão.

As transfusões profilácticas de plasma, antes da realização de procedimentos invasivos, em doentes sem hemorragia activa, não está documentada.

Salienta-se, a propósito, que as provas científicas legitimando a realização de transfusões de plasma são muito limitadas.

Situações particulares

Transfusão intrauterina

As transfusões intrauterinas (TIU) são procedimentos invasivos cujo risco associado de morte fetal, em geral, cerca de 1 a 3%, pode atingir 20% em situações de hidropisia fetal.

Pelas dificuldades técnicas e riscos envolvidos, só devem ser realizadas entre as 16 e as 35 semanas de gestação, em centros especializados e com experiência na sua execução.

Após a colheita de sangue fetal, este deve ser imediatamente avaliado, com determinação do valor de hemoglobina e hematócrito fetal ou da contagem plaquetária, de acordo com a situação específica. Somente depois da obtenção destes resultados, a decisão de transfundir deverá ser tomada.

Aos pacientes que tenham sido submetidos a TIU devem ser administrados componentes sanguíneos irradiados até aos 6 meses de vida.

A TIU de concentrado eritrocitário é indicada em situações de anemia fetal, cuja causa mais frequente é a doença hemolítica perinatal. Os anticorpos mais frequentemente envolvidos são o anti-D, -c ou –Kell.

Com a TIU, o objectivo é atingir valores de hematócrito de 45%. Em situações graves, poderá ser necessário proceder a TIU recorrentes, a cada 2-3 semanas.

O volume a transfundir é calculado de acordo com a seguinte fórmula:

Ht desejado – Ht fetal x volémia da unidade feto-placentária (150 mL/kg)
Ht da Unidade de CE

A transfusão deverá ser administrada a um ritmo lento (cerca de 5 mL/minuto), ainda mais reduzido na presença de hidropisia fetal (2-3 mL/minuto).

Para garantir a disponibilidade de componentes adequados, o serviço de imuno-hemoterapia deve ser contactado, pelo menos 24 horas antes da realização da TIU. As unidades de CE para TIU devem cumprir os seguintes requisitos:

  • Colheita recente, menos de 5 dias;
  • Grupo 0 ou AB0 -idêntico ao do feto;
  • Fenótipo RhD e Kell negativo, e negativo para outros antigénios em causa;
  • Compatível com o soro materno;
  • Hemoglobina S negativo;
  • Desleucocitado;
  • Irradiado nas 24 horas anteriores à administração.

Antes do parto, é igualmente importante garantir a existência de concentrados eritrocitários antigénio-negativos, caso a transfusão neonatal seja necessária.

A anemia pode persistir nas primeiras semanas de vida, devido à permanência de anticorpos maternos em circulação conduzindo a hemólise.

Por outro lado, a própria TIU pode inibir transitoriamente a hematopoiese neonatal, sobretudo nos casos em que foram administradas várias transfusões. Nesta situação, a anemia hipoproliferativa poderá prolongar-se até às 8-12 semanas de vida.

A TIU de plaquetas está indicada em algumas situações de trombocitopénia aloimune fetal/neonatal em que o risco de hemorragia é elevado.

Tal como na aloimunização eritrocitária, na mãe desenvolvem-se anticorpos contra antigénios presentes nas plaquetas do feto. O antigénio mais frequentemente envolvido é o HPA-1A, responsável por cerca de 90% dos casos.

A decisão terapêutica depende da evolução das gravidezes anteriores e, nomeadamente, do valor da contagem plaquetária do feto ou RN, e da ocorrência de hemorragia fetal/neonatal.

Nalgumas situações, a terapêutica materna com corticoesteróides e/ou imunoglobulina endovenosa pode ser suficiente para evitar a necessidade de TIU.

As plaquetas para TIU devem ser:

  • HPA-compatíveis com o soro materno, logo, negativas para o antigénio em causa;
  • Irradiadas nas 24 horas anteriores à administração.

Mais uma vez, o serviço de imuno-hemoterapia deve ser contactado pelo menos 24 horas antes da realização da TIU para obtenção dos componentes necessários.

Perante um recém-nascido com diagnóstico suspeito ou comprovado de trombocitopénia aloimune fetal/neonatal/FNAIT, deve proceder-se a exames necessários para estabelecer o diagnóstico e iniciar a terapêutica logo que possível: imunoglobulina endovenosa e transfusão de concentrado plaquetário nas seguintes situações:

  • Hemorragia activa;
  • Contagem plaquetária < 30 x 109/L em RN de termo sem sinais de hemorragia ou outros factores de risco;
  • Contagem plaquetária < 50 x 109/L, em RN pré-termo ou com outros factores de risco.

O objectivo das transfusões é manter um número plaquetário estável nas primeiras 72-96 horas de vida, uma vez que é neste período que há maior risco de hemorragia intracraniana.

As plaquetas devem ser HPA-compatíveis com o RN; contudo, se não estiverem disponíveis em tempo útil, poderão ser utilizados os concentrados plaquetários existentes no banco de sangue.

Na maioria dos casos, o número plaquetário retorna a valores normais entre a primeira e a sexta semanas de vida.

Exsanguinotransfusão

A exsanguinotransfusão (ET) é um procedimento através do qual o volume sanguíneo circulante é removido e substituído por igual volume de sangue de um dador.

A sua principal indicação em neonatalogia é o tratamento de situações de hiperbilirrubinémia grave, não respondentes à fototerapia.

Tal procedimento permite diminuir os níveis excessivos de bilirrubina não conjugada susceptível de atravessar a barreira hemato-encefálica e provocar lesões no SNC. Remove também eventuais anticorpos maternos ainda em circulação e os eritrócitos aos quais esses anticorpos se podem ligar, travando assim o processo hemolítico.

Habitualmente, são processadas duas volémias sanguíneas (160 a 200 mL/kg, de acordo com a idade gestacional), o que permite remover até 90% dos eritrócitos neonatais e 50% da bilirrubina circulante.

Este procedimento deve ser realizado em unidades de cuidados intensivos dotadas de meios técnicos adequados e duma equipa multidisciplinar com experiência na sua execução.

O serviço de imuno-hemoterapia deve ser contactado o mais precocemente possível antes da realização da ET para garantir a disponibilidade de componentes adequados.

Os CE para ET devem obedecer aos seguintes critérios:

  • Colheita com menos de 5 dias;
  • Grupo 0 ou AB0-idêntico ao do RN;
  • Fenótipo negativo para os antigénios em causa;
  • Compatível com o soro materno;
  • Hemoglobina S negativo;
  • Desleucocitado;
  • Irradiado nas 24 horas anteriores à administração.

O CE deve ser espoliado da solução aditiva e reconstituído com plasma fresco congelado (de quarentena ou inactivado), do grupo AB, de forma a que o produto final atinja um hematócrito entre 45-60%. Deve ser administrado nas 24 horas após a reconstituição.

Terapêutica transfusional na doença de células falciformes (DCF)

A terapêutica transfusional poderá ser necessária numa situação de urgência/emergência, ou para prevenção de complicações a curto e a longo prazo, de forma intermitente ou crónica.

Podem ser utilizadas duas modalidades transfusionais:

  • Transfusão simples de CE;
  • Eritrocitaferese (ET)/transfusão-permuta manual (TPM).

A ET, efectuada por métodos automáticos, requer que grandes volumes de CE (1 ou 1,5 volémia do doente) sejam administrados; o objectivo do procedimento é remover os eritrócitos do doente, permitindo uma redução rápida da Hb S.

Em serviços que não disponham de separadores celulares, poderá ser efectuada a TPM. Este método envolve a flebotomia de 5-10 mL/Kg (dependendo da Hb de base do doente e da sua tolerância à anemia) imediatamente antes da transfusão de CE.

Antes de iniciar a terapêutica transfusional, deverá proceder-se aos seguintes estudos:

  • Fenotipagem eritrocitária detalhada;
  • Marcadores víricos: VHB, VHC, VIH 1 e 2;
  • Calendário de vacinação segundo o PNV;
  • Confirmar administração de vacina anti-hepatite B.

O CE a administrar deve cumprir os seguintes critérios:

  • Colheita há menos de 7 dias;
  • Compatíveis nos sistemas AB0, Rh (C c CW D E e), Kell e Fyª;
  • Na presença de aloanticorpos, administrar CE sem os respectivos antigénios;
  • Hemoglobina S negativo;

A terapêutica com CE, um dos pilares do tratamento desta patologia, tem contribuído largamente para aumentar a longevidade dos doentes. Contudo, as suas indicações devem ser criteriosas dado o risco considerável de iatrogenia (Quadro 6). A anemia basal não é geralmente indicação para transfusão, a não ser que se verifique Hb de 5 g/dL ou < 5 g/dL.

QUADRO 6 – Indicações para transfusão de CE em doentes com DCF

A. Indicações para transfusãoMétodo transfusional
Acidente vascular isquémico agudo
Prevenção primária de trombose
Prevenção secundária de trombose
Síndroma torácica aguda
Sequestração esplénica
Sequestração esplénica, recorrência
Pré-operatório (se necessário anestesia geral)
Crise aplásica transitória
Falência orgânica aguda multissistémica
Sequestração hepática aguda
Colestase intra-hepática aguda
Complicações drepanocíticas ou obstétricas na gravidez
ET, se possível
Transfusão crónica simples ou ETa
Transfusão crónica simples ou ETa
Transfusão simples ou ETa
Transfusão simples
Transfusão simples crónica (antes da esplenectomia)b
Transfusão simples
Transfusão simples
Transfusão simples ou ETc
Transfusão simples ou ETc
Transfusão simples ou ETc
Transfusão simples ou ETc
B. Indicações controversas para transfusão 
Síndroma torácica aguda, recorrente
Episódios vasoclusivos recorrentes
Hipertensão pulmonar
Transfusão crónica simples ou ETc
Transfusão crónica simples ou ETc
Transfusão crónica simples ou ETc
C. Transfusão habitualmente não indicada 
Episódio vasoclusivo não complicado
Priapismo
Gravidez não complicada
Úlceras dos membros inferiores
Necrose avascular sem necessidade de intervenção cirúrgica
Não aplicável (NA)
NA
NA
NA
NA
    1. A ET é preferível em doentes cujo estado clínico está em rápido declínio, implicando necessidade emergente de diminuição do teor da Hb S, ou quando há perigo de hiperviscosidade pós-transfusional devido a uma hemoglobina pré-transfusional elevada (ex. Hb >9 g/dL).
    2. A transfusão crónica pode ser usada até se poder realizar com mais segurança a esplenectomia. Crianças com < 2 anos têm maior risco de doença invasiva por pneumococo.
    3. A exsanguinotransfusão é preferível nos pacientes com hemossiderose.

Na síndroma vasoclusiva/SVO não complicada as transfusões não estão indicadas, excepto se se verificar anemia sintomática, baixo número de reticulócitos (<100 x 109/L) ou descida de Hb ultrapassando -2 g/dL em relação ao valor habitual.

Na síndroma torácica aguda/STA, a segunda causa mais frequente de hospitalização destes doentes, a terapêutica transfusional é sempre necessária. As transfusões simples devem ser consideradas em doentes com STA, hipoxemia e exacerbação da anemia. A ET poderá ficar reservada para doentes que não estejam gravemente anémicos, mas que apresentem declínio progressivo da função respiratória.

Na crise aplástica, cuja etiologia mais comum é a infecção por parvovírus B19, ocorre supressão temporária da actividade medular. A necessidade de transfusões depende da gravidade da anemia, reticulocitopénia e do estado clínico do doente. Deverão ser administradas transfusões simples de CE, em pequenos volumes, para prevenir a insuficiência cardíaca congestiva.

Na sequestração esplénica aguda, a transfusão de CE constitui uma emergência para corrigir a anemia grave. Deverão ser administrados pequenos volumes, com monitorização do tamanho do baço e do sistema cardiovascular, para prevenir a hiperviscosidade depois de a sequestração esplénica regredir.

A sequestração hepática aguda manifesta-se como um incremento das dimensões do fígado, anemia, hiperbilirrubinémia e elevação das transaminases. Trata-se dum quadro clínico muito grave em que as transfuões simples ou a ET são contributos indispensáveis na sua resolução.

A terapêutica transfusional no período perioperatório reduz a ocorrência de complicações. Estudos recentes têm demonstrado que a transfusão simples de CE, para obter uma Hb pré-operatória de 10 g/dL, é equivalente à realização de ET para obter uma HbS ≤ 30%.

As complicações neurológicas, nomeadamente AVC, continuam a ser a principal causa de morbilidade a longo prazo, sendo a terapêutica transfusional procedimento considerado obrigatório. A ET na apresentação aguda é o método transfusional de eleição.

Em 60-90% dos casos há eventos recorrentes, pelo que se deverá iniciar regime de transfusões crónicas, para manter a percentagem de HbS ≤ 30%. Esta terapêutica muitas vezes deve ser mantida indefinidamente porque a sua interrupção tem levado a recorrências do AVC. Assim, este regime parece ser a melhor opção terapêutica na prevenção do AVC recorrente. Os doentes politransfundidos devem ser submetidos a terapêutica quelante para reduzir a sobrecarga secundária de ferro.

O priapismo pode afectar jovens e adultos. O benefício da terapêutica transfusional, quer no priapismo agudo, quer na prevenção da recorrência, é controverso, não estando provada a sua eficácia.

As doentes com DCF apresentam maior risco de complicações obstétricas, nomeadamente morte fetal e materna. Após as 28 semanas de gestação, podem efectuar-se transfusões profilácticas, para obter níveis de Hb de 10-11 g/dL e Hb S ≤ 35%. A terapêutica transfusional está também indicada na grávida com complicações médicas agudas.

Terapêutica transfusional na β-talassémia major

As talassémias são um grupo heterogéneo de doenças caracterizadas pela ausência ou redução de síntese de uma ou mais cadeias de globina.

As talassémias que necessitam de suporte transfusional regular são as β-talassémias major, em que há ausência total ou síntese reduzida de cadeias β.

 Antes do início da terapêutica transfusional dever-se-á proceder, como foi descrito anteriormente a propósito da doença de células falciformes, sem que no entanto, a avaliação da compatibilidade no sistema Duffy (Fy) não seja exigida. O CE a administrar deve também obedecer aos critérios aí referidos.

Na situação em epígrafe preconiza-se que os doentes sejam transfundidos regularmente, mantendo uma Hb pré-transfusional média de 9-10 g/dL, não devendo a Hb pós-transfusional ser superior a 15 g/dL pelo risco de hiperviscosidade e acidentes vasculares cerebrais; quanto à Hb média, o valor recomendado situa-se em torno de 12 g/dL.

Este suporte transfusional permite um crescimento e desenvolvimento dentro da normalidade, mantendo uma adequada supressão da actividade medular e minorando a acumulação de ferro. Semestralmente, deve ser avaliada a eficácia transfusional.

Nos doentes sem patologia cardíaca, o volume a administrar deve ser de 10-15 mL/kg, em cerca de 2 horas (4-5 mL/kg/hora).

Em doentes cardíacos, dever-se-á transfundir 5 mL/Kg, não excedendo 2 ml/kg/hora; pode, se necessário, reduzir-se o intervalo transfusional.

Se houver necessidade de maiores volumes, até 20 mL/kg, a administração deve ser mais lenta, não utrapassando as 4 horas.

A hemossiderose é a complicação mais temível nesta patologia, sendo que o seu controlo é tão importante quanto o da anemia. Para cada doente, deve ser registado o número e volume das unidades transfundidas, bem como o Ht das mesmas, de forma a que seja possível calcular o volume total de CE e a quantidade de ferro administrado. Estes são parâmetros muito importantes no controlo da terapêutica quelante do ferro, a que todos estes doentes têm de ser submetidos de forma regular.

Irradiação de componentes sanguíneos

A irradiação dos componentes sanguíneos é a metodologia mais adequada para inactivar os linfócitos residuais, e para a prevenção da doença de enxerto contra hospedeiro associada à transfusão. Embora os primeiros casos tenham sido descritos em doentes imunossuprimidos, sabe-se actualmente que doentes imunocompetentes podem também desenvolver tal doença, particularmente se receberem sangue de dadores HLA haploidênticos não relacionados ou de familiares.

A irradiação gama é a metodologia mais comummente utilizada, embora a irradiação X também possa ser aceite. Actualmente, estão disponíveis novos métodos de inactivação patogénica que reduzem a viabilidade dos linfócitos T e têm sido usados na substituição da irradiação, particularmente, em concentrados plaquetários.

As indicações sucintas para a irradiação de componentes sanguíneos são:

  • Doentes submetidos a transplantes de células progenitoras hematopoiéticas, autólogos ou homólogos;
  • Anemia aplástica;
  • Doença de Hodgkin;
  • Doentes tratados com análogos das purinas (fludarabina, cladribina e deoxucoforuycina), globulina anti-timocítica ou alentuzumab (anti-CD 52);
  • Síndromas de imunodeficiência congénita nomeadamente nas síndromas de Di George, Wiskott-Aldrich e Ataxia- telangiectasia, e em todas as crianças com o diagnóstico ou suspeita de imunodeficiência celular ou combinada;
  • RN com menos de 30 semanas de gestação ou menos de 1200 g;
  • Transfusões intra-uterinas e RN submetidos a transfusões intrauterinas;
  • Transfusões provenientes de familiares de 1º e 2º grau, mesmo que o doente seja imunocompetente;
  • Transfusões HLA-idênticas;
  • Utilização de ECMO (técnica de oxigenação extracorporal por membrana).

Efeitos adversos da transfusão e procedimentos

  1. A transfusão de componentes e derivados sanguíneos não é um acto inócuo. Antes da prescrição deste tipo de terapêutica é sempre necessário ponderar os benefícios e os possíveis riscos imediatos e tardios.
    As reacções transfusionais podem ser classificadas em quatro categorias:
      • Imunológicas Agudas;
      • Não Imunológicas Agudas;
      • Imunológicas Tardias;
      • Não Imunológicas Tardias.

As reacções agudas são as que ocorrem desde os primeiros minutos após o iníco da administração até 24 horas após o final da transfusão. As tardias são as que ocorrem após este período.

As reacções imunológicas são devidas à resposta imune do organismo contra os antigénios das células sanguíneas.

Os Quadros 7, 8, 9 e 10 descrevem de modo sucinto exemplos concretos de cada tipo de reacção, incluindo manifestações clínicas mais frequentes e medidas terapêuticas indicadas.

QUADRO 7 – Reacções transfusionais agudas – (imunológicas)

Tipo

Etiologia

Manifestações

Medidas terapêuticas

Hemolítica Aguda

Incompatibilidade entre antigénios eritrocitários do dador e receptor

Dor no local de infusão, agitação, dispneia, dor lombar, febre, calafrios, hemoglobinúria, insuficiência renal, CID, etc.

Manter acessos venosos com soro fisiológico, manter débito urinário ~1-2 ml/Kg/h, analgésicos, vasopressores

Febril

não hemolítica

Anticorpos antileucocitários, citocinas

Febre, calafrios, cefaleias, vómitos

Antipiréticos, desleucocitação de componentes sanguíneos

Urticariforme

Anticorpos contra as proteínas plasmáticas do dador

Urticária, prurido

Anti-histamínicos

Anafiláctica

Anticorpos antiproteína de dador: anti-IGA, C4, haptoglobina

Hipotensão, taquicárdia broncospasmo, ansiedade, edema da glote

Posição de Trendlenburgo, anti-histamínicos, corticosteróides, epinefrina

Edema pulmonar agudo não cardiogénico

Anticorpos antileucocitários no dador

Hipoxémia, insuficiência respiratória, edema pulmonar agudo sem compromisso da função cardíaca

Oxigenoterapia, assistência respiratória de acordo com a gravidade do quadro clínico

QUADRO 8 – Reacções transfusionais agudas – (não imunológicas)

Tipo

Etiologia

Manifestações

Medidas terapêuticas

(*) Um método simples e prático que pode ser utilizado quando se trata de transfundir pequenos volumes de sangue é colocar a bolsa de sangue, antes da transfusão, durante alguns minutos numa incubadora com sistema de aquecimento servocontrolado (isto é, equipada com sensor que monitorize a temperatura, colocando o referido sensor sobre o referido saco) evitando temperaturas superiores a 37ºC.

Quadro de sépsis

Contaminação bacteriana

Febre, calafrios, hipotensão

Antibioticoterapia

Sobrecarga circulatória

Sobrecarga de volume

Dispneia, ortopneia, tosse, hipertensão, cefaleias

Oxigenoterapia, diuréticos

Hipocalcémia

Rápida infusão de citrato

Parestesias, tetania, arritmia

Infusão lenta de cálcio

Hipotermia

Transfusão rápida de componentes sanguíneos frios

Arritmia

Utilizar sistemas de aquecimento de componentes sanguíneos, particularmente quando são transfundidos grandes volumes (*)

QUADRO 9 – Reacções transfusionais tardias – (imunológicas)

(#) As principais indicações absolutas para irradiação de componentes celulares sanguíneos são:
– Transfusões de granulócitos
– Doença de Hodgkin
– Síndromas de imunodeficiência celular congénita

TipoEtiologiaManifestaçõesMedidas terapêuticas
Alo-imunização

Resposta imune aos antigénios estranhos do eritrócito, leucócito ou plaquetas

Aparente ineficácia transfusional; não resposta à transfusão de plaquetas, febre, icterícia

Identificar anticorpos e transfundir sangue  compatível; desleucocitar os componentes

Reacção de tipo enxerto contra hospedeiro

Os linfócitos do dador opõem-se aos do receptor imunodeprimido

Exantema máculo-papular, anorexia, náuseas, vómitos, diarreia, hepatite, pancitopénia (rara)

Corticosteróides, citotóxicos
Prevenção: irradiação dos componentes celulares (concentrados de eritrócitos e plaquetas) (#)

Púrpura Pós-transfusional

Anticorpos antiplaquetários no receptor

Púrpura trombocitopénica, 8-10 dias após a transfusão

Imunoglobulina intravenosa, plaquetas negativas para HPA1

QUADRO 10 – Reacções transfusionais tardias – (não imunológicas)

TipoEtiologiaManifestaçõesMedidas terapêuticas
HemossideroseExcesso de ferro devido a múltiplas transfusões de concentrado eritrocitário
(> 100 unidades)
Diabetes, cirrose, cardiomiopatiaQuelantes de ferro

Todos os profissionais envolvidos na terapêutica transfusional devem estar habilitados a reconhecer um incidente transfusional e a tomar prontamente as medidas adequadas e consideradas prioritárias no âmbito do seu tratamento inicial.

Os serviços clínicos devem dispor de fichas de registo de incidentes transfusionais (FIT), e perante a sua ocorrência, devem preenchê-las, enviá-las ao serviço de imuno-hemoterapia (SIH) acompanhadas de uma amostra pós-transfusional. Uma vez identificada a causa, esta deverá ser devidamente analisada, remetendo-se em seguida o registo e participação do incidente ao sistema de hemovigilância nacional, o qual, que por sua vez, o deverá comunicar ao sistema de hemovigilância internacional.

Os incidentes relacionados com a transmissão de doenças infecciosas, nomeadamente a transmissão de VIH e hepatite, têm vindo a reduzir-se significativamente nos últimos anos. Contudo, subsistem os não infecciosos, muitas vezes letais e difíceis de prevenir e de tratar.

  1. Perante uma reacção transfusional, as medidas imediatas a tomar são:
    1. Suspender imediatamente a transfusão; manter os acessos venosos, com soro fisiológico;
    2. Verificar a identificação do doente e da unidade transfundida;
    3. Contactar o médico de serviço do doente e o do SIH, para que a causa do incidente seja devidamente estudada e analisada;
    4. Devolver os componentes envolvidos na reacção ao SIH, a FIT devidamente preenchida, juntamente com uma amostra pós-transfusional do doente colhida em tubo de EDTA.

GLOSSÁRIO

Aférese > Separação dos elementos constituintes do sangue.
Concentrado eritrocitário > É o componente obtido por remoção parcial do plasma de uma unidade de sangue total. Consoante o tipo de processamento efectuado é possível obter concentrados eritrocitários com maior ou menor contaminação de glóbulos brancos, plaquetas e plasma.
Concentrado eritrocitário sem “buffy coat”, em solução aditiva, e desleucocitado > Este tipo de concentrado eritrocitário apresenta menor contaminação de glóbulos brancos, plaquetas e plasma do que o anteriormente referido, porque no método de produção, além de ser removido o plasma, é também retirada a camada leucoplaquetária, sendo subsequentemente adicionada às células uma solução nutritiva apropriada. Em seguida é desleucocitado, antes do armazenamento. Em média este componente tem um volume de 250 mL ± 10%. Tem um hematócrito que oscila entre 50-70% e um mínimo de 45 g de hemoglobina por unidade.
Concentrado plaquetário > É um componente obtido a partir de uma unidade de sangue total, devendo conter a maioria das plaquetas da unidade original. Dependendo do método de preparação, o número médio de plaquetas numa unidade deve ser 70 x 109 suspensa num volume de 40-70 mL de plasma. Só podem ser conservadas durante cinco dias.
Concentrado unitário de plaquetas > É obtido de um único dador utilizando um separador automático de células. Dependendo do tipo de processamento e do equipamento utilizado, pode obter-se um número de plaquetas que oscila entre 200-800 x 109/L.
Crioprecipitado > É um preparado que contém a fracção crioglobulínica do plasma, obtido através da descongelação do PFC a 4ºC e removendo o sobrenadante. É rico em fibrinogénio, factor VIII, vários multímeros de factor de Von Willebrand, fibronectina e factor XIII. Segundo recomendações internacionais deve ter um volume entre 30-40 mL.
Plasma fresco congelado > É a porção aquosa e acelular do sangue total, contendo proteínas, colóides, nutrientes, cristalóides, hormonas e vitaminas. A albumina é a proteína mais abundante, mas também contém outras como: fracções do complemento, enzimas, imunoglobulinas e factores da coagulação, nomeadamente, fibrinogénio, factor II, VII, IX, X, XIII, VIII. O plasma pode ser obtido a partir do sangue total ou por aférese. Deve ser congelado num período de tempo e a uma temperatura que permita manter adequadamente, em estado funcional, os factores da coagulação. Contém um volume aproximado de 180-300 mL.
Transfusão > Injecção endovascular de sangue compatível, fresco ou conservado; este conceito engloba também um constituinte do sangue separadamente (leucócitos ou eritrócitos ou plaquetas) ou de um seu sucedâneo.
Unidade de sangue total > É a quantidade de sangue colhida a um dador previamente seleccionado, utilizando material estéril e de uso único, contendo uma solução anticoagulante/preservador. O volume da unidade deve ser 450 mL ± 10%, excluindo o anticoagulante. Tem um período de conservação limitado. Com o armazenamento observa-se uma rápida deterioração do factor VIII, leucócitos e plaquetas, o que o torna um produto inviável para tratar alterações da coagulação após 24 horas de conservação. A sua maior aplicação diz respeito à preparação de outros componentes sanguíneos.

BIBLIOGRAFIA

Becheura M, Bouslamab B, Slamab H, et al. Anémie hémolytique auto-immune de l’enfant. Transfus Clin Biolog 2015; 22: 291-298

Carson JL, Grossman BJ, Kleinman S, et al. Red blood cell transfusion. A clinical practice guideline from the American Association of Blood Banks. Ann Intern Med 2012; 157: 49-58

Chou ST, Fasano RM. Management of patients with sickle cell disease using transfusion therapy. Guidelines and Complications. Hematol Oncol Clin N Am 2016; 30; 591-608

Davis BA, Allard S, Qureshi A, et al. Guidelines on red cell transfusion in sickle cell disease. Part I: principles and laboratory. Br J Haematol 2017; 176: 179-191

Deng X, Wang Y, Huang P, et al. Red blood cell transfusion threshold after pediatric cardiac surgery. Medicine 2019; 98- p e14884. doi: 10.1097/MD.0000000000014884

Favrais G, Wibaut B, Pladys P, Saliba E. Blood transfusion to pre-term neonates: What is new in the French guidelines since 2002? Arch Pédiatrie 2017; 24: 894-901

Forest SK, Hod EA. Management of the platelet refractory patient. Hematol Oncol Clin Am 2016; 30: 665-677

Gehrie EA, Dunbar NM. Modifications to blood components. When to use them and what is the evidence? Hematol Oncol Clin N Am 2016; 30: 653-663

Girelli G, Antoncecchi S, Casadei AM, et al. Recommendations for transfusion therapy in neonatology. Blood Transfus 2015;13: 484-497

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hoffman R, Benz EJ, Abutalib SA (eds). Hematology. Philadelphia: Elsevier, 2018

Ibonia KTBada HSWestgate PM, et al. Blood transfusions in preterm infants: changes on perfusion index and intermittent hypoxemia. Transfusion 2018;58: 2538-2544. doi: 10.1111/trf.14808

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L. Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nellis MEGoel RFeinstein S, et al. Association between transfusion of RBCs and subsequent development of delirium in critically ill children. Pediatr Crit Care Med 2018;19: 925-929. doi: 10.1097/PCC.0000000000001675

Roubinian N, Carson JL. Red blood cell transfusion strategies in dult and pediatric patients with malignancy. Hematol Oncol Clin N Am 2016; 30: 529-540

Shah N, Andrews J, Goodnough LT. Transfusions for anemia in adult and pediatric patients with malignancies. Blood Rev 2015; 29: 291-299

Shander A. Preoperative anemia and its management. Transfus Apheresis Sci 2014; 50: 13-15

Tinmouth A. Assessing the rationale and effectiveness of frozen plasma transfusions. An evidence – based review. Hematol Oncol Clin N Am 2016; 30: 561-572

COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DISSEMINADA

Definição e importância do problema

A coagulação intravascular disseminada (CIVD) é uma síndroma caracterizada pela activação difusa da coagulação com formação e depósito de fibrina nos pequenos vasos, levando a diátese hemorrágica, uma das principais manifestações clínicas. Este estado de hipercoagulabilidade pode levar à oclusão dos vasos com compromisso da irrigação sanguínea de diversos órgãos e consequente isquémia. A fibrinólise, que também está comprometida, exacerba este desequilíbrio entre coagulação e capacidade de lise dos trombos o que, somado ao estado crítico do doente, instabilidade hemodinâmica e défice de perfusão, contribui para a falência de vários órgãos e para a gravidade do quadro. Sintetizando, o consumo e a deplecção de factores de coagulação e plaquetas, neste processo contínuo de coagulação, acaba por levar a hemorragia.

Estima-se uma incidência de cerca de 1% dos doentes hospitalizados, com uma taxa de mortalidade entre os 50-75%, dependendo em muito da doença subjacente.

QUADRO 1 – Principais factores etiológicos de CIVD

Abreviaturas: LPA – leucemia pró-mielocítica aguda; LLA – leucemia linfocítica aguda; HELLP – síndroma de hemólise, aumento das enzimas hepáticas e baixo número de plaquetas
CIVD aguda

Sépsis grave
– Gram negativos (endotoxinas)
– Gram positivos (mucopolissacáridos)
– VírusTraumatismo grave
– Lesão tecidual grave (por ex: queimados)
– Traumatismo craniano
– Embolia gorda

Patologia obstétrica
– HELLP
– HELLP com placenta prévia
– Embolia por líquido amniótico

Reacções imunitárias
– Reacção hemolítica transfusional
– Incompatibilidade ABO
– Reacções alérgicas graves

Neoplasias
– Leucémias (LLA, LPA)
– Neoplasias sólidas (pulmão, pâncreas, outras)

Toxinas/Fármacos

CIVD subaguda/crónica
– Doenças cardiovasculares
– Doenças vasculares renais
– Doenças hematológicas
– Doenças inflamatórias
– Doenças autoimunes (rejeição de transplante)
– Doenças neoplásicas

Etiopatogénese

A CIVD não é uma doença, mas uma síndroma resultando de diversos problemas clínicos subjacentes os quais constituem, assim, factores etiológicos.

O Quadro 1 enumera as situações clínicas que mais frequentemente desencadeiam CIVD.

A sépsis é a causa mais comum de CIVD, podendo ocorrer em 30-50% dos casos. Os componentes da membrana celular das bactérias (lipopolissacárido ou endotoxina) ou as exotoxinas bacterianas (por ex. toxina α dos estafilococos), induzindo a libertação de factores plaquetários e lesão endotelial, activam factores de coagulação.

Os vírus da varicela e hepatite, e o citomegalovírus são os mais habitualmente associados a CIVD. Os mecanismos desencadeantes estão menos esclarecidos do que nas infecções bacterianas, mas podem envolver a activação de factor XII por complexo antigénio-anticorpo, reacções de libertação de plaquetas, ou lesão endotelial com exposição do colagénio subendotelial.

A hepatite vírica fulminante e a insuficiência hepática aguda de qualquer causa podem levar a CIVD, salientando-se a dificuldade que por vezes existe em distinguir esta doutras alterações da coagulação resultantes de disfunção hepática grave.

A incidência de CIVD em doentes com traumatismo grave é da ordem de 50 a 70%.

A libertação de fragmentos de tecidos lesados (designadamente fosfolípidos a partir do tecido adiposo) na circulação sistémica, hemólise e lesão endotelial causam activação da coagulação mediada por factor tecidual. O aumento das citocinas circulantes (TNF-α e IL-1) levam a deposição generalizada de fibrina nos microvasos, do que resulta resposta inflamatória sistémica mantida e síndroma de disfunção multiorgânica (SDMO).

Verifica-se CIVD em 10 a 15% dos doentes com leucemia aguda e em cerca de 15% dos doentes com neoplasias sólidas. Com efeito, em tais circunstâncias verifica-se libertação de moléculas procoagulantes (factor tecidual e cisteína protéase que activam o factor X). A CIVD associada a neoplasia é habitualmente crónica e compensada.

A transfusão de eritrócitos AB0 incompatíveis pode causar CIVD aguda. Os anticorpos IgM naturais ligam-se a antigénio A ou B na superfície das células transfundidas e formam imunocomplexos que activam a cascata do complemento. Estes imunocomplexos, por sua vez, causam lesão endotelial desencadeando a activação da coagulação.

A CIVD aguda é uma complicação grave de várias entidades obstétricas, como embolia por líquido amniótico, placenta prévia e eclampsia. Tal é explicável pelo facto de o líquido amniótico conter uma substância com afinidades para a tromboplastina, altamente potente, e igualmente com propriedades antifibrinolíticas. Esta actividade procoagulante aumenta com o tempo de gestação. A entrada de líquido amniótico na circulação materna activa o sistema de procoagulação, levando de modo agudo a CIVD.

Assim, globalmente, a síndroma de CIVD é desencadeada pela activação sistémica da coagulação sanguínea, a qual é mediada por vários mecanismos em simultâneo. A deposição sistémica de fibrina resulta da produção de trombina mediada pelo factor tecidual, com supressão simultânea dos mecanismos fisiológicos de anticoagulação e alteração da fibrinólise (causada pelo inibidor do activador do plasminogénio, tipo I).

As alterações da coagulação e fibrinólise resultam de diversas citocinas pró-inflamatórias. A interleucina-6 (IL-6) é o principal mediador da activação da coagulação, sendo que o factor de necrose tumoral (TNF-alfa) inibe as vias fisiológicas de anticoagulação e da fibrinólise (Figura 1). São descritos a seguir os principais eventos fisiopatológigos.

Abreviaturas: IL – interleucina; AT III – antitrombina III; FNT – factor de necrose tumoral; VIIa – factor VII activado; IAP-1 – inibidor do activador do plasminogénio, tipo I libertado pelas células endoteliais e plaquetas activadas; IVFT – inibidor da via do factor tecidual

FIGURA 1 – Fisiopatologia da coagulação intravascular disseminada

Produção de trombina

A produção de trombina mediada por factor tecidual (FT) desempenha um papel central na fisiopatologia da CIVD. A produção de trombina na CIVD é exclusivamente iniciada pela activação do FT/complexo VII activado. Nem sempre é clara a fonte exacta do FT. Monócitos, células polimorfonucleares, e células endoteliais expressam FT em resposta a citocinas pró-inflamatórias. O FT e factor VII activado catalizam a conversão dos factores IX e X. Os factores IXa e Xa aumentam a activação de factor X e pró-trombina, levando à formação de trombina. A trombina converte fibrinogénio em fibrina e é um activador potente das plaquetas. As plaquetas formam “uma superfície de fosfolípidos” sobre a qual se depositam complexos de factores de coagulação activados, ampliando a activação da coagulação.

Disfunção das vias fisiológicas da anticoagulação

A produção de trombina é normalmente limitada pela antitrombina III (AT III), proteína C e inibidor da via do factor tecidual (IVFT). Na CIVD estes sistemas de regulação são defeituosos como resultado da disfunção endotelial. Ocorre produção generalizada de trombina, levando à deposição de fibrina. A AT-III é o inibidor mais importante da trombina e factor Xa. Na CIVD os níveis de ATIII são muito baixos como resultado do consumo, activados, diminuição da síntese hepática e extravasamento através de capilares permeáveis. Os baixos níveis de AT-III na CIVD estão associados a um aumento da mortalidade em doentes com sépsis.

Disfunção da fibrinólise

Na CIVD as células endoteliais e as plaquetas activadas libertam inibidor tipo I do activador do plasminogénio (IAP-1). Em estudos clínicos, os elevados níveis de IAP-1 e os níveis baixos do complexo alfa 2 antiplasmina-plasmina constituem marcadores de mau prognóstico.

Interacção entre coagulação e inflamação

A activação da coagulação produz proteases, as quais induzem mediadores pró-inflamatórios com efeitos pró-coagulantes e amplificam a cascata que leva a CIVD.

Manifestações clínicas

Dum modo geral, as manifestações clínicas traduzindo situação de aparência geral grave relacionável com as da entidade subjacente (por exemplo, infecção, neoplasia, traumatismo grave, diversas entidades obstétricas, transfusão de sangue incompatível, golpe de calor, afogamento em água doce, etc.), somam-se às devidas a trombose e hemorragia. De salientar que a CIVD duplica aproximadamente o risco de morte em doentes com sépsis ou lesão traumática grave.

A hemorragia é a manifestação clínica mais dramática da CIVD aguda, associada a uma formação excessiva de plasmina: equimoses em locais de venopunção e feridas, hematomas, hematúria, assim como petéquias no palato mole e pele (Figura 2).

Nas formas graves podem surgir hemorragias maciças com localizações diversas: génito-urinária, pulmonar, gastrintestinal, sistema nervoso central, etc..

Ocorre febre e hipotensão e choque em 50% dos casos, e anemia hemolítica microangiopática em cerca de 15%.

A CIVD subaguda ou crónica associada a neoplasias, doenças do tecido conjuntivo ou doença renal crónica, manifesta-se habitualmente como entidade pró-trombótica e não como doença hemorrágica. Menos óbvia clinicamente é a microtrombose vascular causada pela deposição de fibrina em diversos territórios, levando à falência de órgãos.

As manifestações trombóticas habitualmente observadas são: insuficiência renal aguda (necrose cortical bilateral, necrose tubular aguda), acidente vascular cerebral, isquémia do miocárdio (enfarte, arritmia), insuficiência suprarrenal aguda (necrose suprarrenal), púrpura fulminante e trombose venosa hepática.

FIGURA 2 – Quadro de CIVD aguda/diátese hemorrágica grave. (doente da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital Dona Estefânia, Lisboa)

Os achados na autópsia em doentes com CIVD crónica ou subaguda mostram sinais de hemorragia difusa em diversos locais, de necrose hemorrágica dos tecidos, e de trombose em pequenos e grandes vasos.

Exames complementares

A anamnese e o exame objectivo, conduzindo à suspeita de CIVD, obrigam à realização de exames complementares, sendo de referir que nenhum exame laboratorial isoladamente permite diagnosticar ou excluir CIVD.

Aspectos gerais

As anomalias observadas nos resultados de diversos exames biológicos podem variar em função da fase em que se encontra o doente, gravidade e tipo de doença subjacente, e eventual suporte hemoterapêutico já levado a cabo anteriormente.

Na prática, em caso de CIVD observa-se:

  • Diminuição rápida do número de plaquetas ou número < 100.000 por mmc;
  • Aumento dos tempos de coagulação, tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa);
  • Verificação e aumento de produtos de degradação da fibrina no plasma (PDF) e de dímeros D, estes últimos o indicador biológico mais sensível;
  • Baixos níveis de inibidores da coagulação (como antitrombina III).

De acordo com o que anteriormente foi referido, a síndroma de CIVD não pode ser excluída se os resultados dos exames referidos estiverem dentro do intervalo de normalidade; com efeito, a resposta de fase aguda leva à diminuição do tempo de tromboplastina parcial activada e ao aumento da concentração de fibrinogénio. Segundo as normas da Sociedade de Trombose e Hemostase, o Quadro 2 sintetiza os achados principais como critérios auxiliares de diagnóstico.

QUADRO 2 – Exames laboratoriais para confirmação de CIVD

 CIVD agudaCIVD crónica ou compensada
Tempo de protrombina (TP)N ou ⇓
Tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa)N ou ⇓
Número de plaquetasN ou ⇓
Concentração de fibrinogénioN, ⇓ ou ⇑
D-dímerosN ou ⇑
Produtos de degradação da fibrina (PDF)N ou ⇑
Monómeros de fibrinaN ou ⇑
Esfregaço de sangueEsquizócitos 
Complexo trombina antitrombina 
Fragmentos de activação da protrombina tipo 1 e 2 
Complexo plasmina antiplasmina (PAP) 
Abreviaturas: N – normal; ⇑ – aumentado; ⇓ – diminuído

 

Aspectos específicos

Tendo como base os conceitos da fisiopatologia antes descritos, são referidos mais em pormenor os seguintes exames:

  • Provas para detectar a formação intravascular de fibrina e produtos de degradação da fibrina/fibrinogénio.
    Uma vez que o principal factor desencadeante da fisiopatologia da CIVD é um aumento da formação de fibrina, a comprovação da existência de fibrina no plasma seria essencial no diagnóstico de CIVD. O aumento do nível de fibrina solúvel tem uma elevada sensibilidade (90-100%), como prova diagnóstica. Contudo, este exame não está disponível nos laboratórios de rotina. Os produtos de degradação da fibrina (PDF) formam-se quando há degradação de fibrina e/ou de fibrinogénio. Os níveis de PDF estão aumentados em 80-100% dos doentes com CIVD e podem ser detectados através de métodos ELISA ou de aglutinação de látex. Contudo, trata-se dum exame relativamente inespecífico, uma vez que várias outras entidades (por ex. lesão traumática, inflamação ou tromboembolismo venoso) podem aumentar os níveis de PDF. Provas mais específicas que detectam os produtos resultantes da degradação de fibrina pela plasmina (os dímeros-D) são mais úteis, uma vez que indicam que ocorreu coagulação e fibrinólise. Os dímeros-D estão aumentados em 95% dos doentes.
  • Marcadores de formação de trombina.
    Níveis plasmáticos elevados de trombina podem reflectir-se em aumento dos níveis de: fragmento F1 (F1+2) de activação da protrombina, complexo trombina-antitrombina (TAT) e fibrinopéptido A. A conversão de protrombina em trombina leva a libertação de fragmento inactivo F1+2 e de um elemento intermédio, pré-trombina 2, que mais tarde forma trombina. A trombina pode degradar o fibrinogénio por proteólise e libertar fibrinopéptido A. Em alternativa, pode formar-se um complexo estável, inactivo com antitrombina, o complexo TAT. Níveis aumentados de F 1+2, TAT e fibrinopéptido A são indicadores sensíveis de CIVD quando as manifestações são subclínicas. Contudo, a sua utilidade é limitada pela necessidade de manuseamento cuidadoso da amostra e pela falta de especificidade. Estes exames não estão disponíveis na maioria dos laboratórios comuns.
  • Contagem de plaquetas.
    A agregação de plaquetas induzida por trombina contribui significativamente para o consumo de plaquetas na CIVD. Contudo, podem ocorrer alterações na produção de plaquetas em doentes gravemente doentes. A repetição da contagem de plaquetas com intervalos de 1 a 4 horas reflecte a extensão da formação de trombina em curso.
  • Factores de coagulação e inibidores.
    O consumo de factores de coagulação resulta no aumento de parâmetros globais de coagulação como o tempo de protrombina (TP) e tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa) em apenas 50 a 70% dos doentes. Assim, valores normais destes parâmetros não excluem o diagnóstico de CIVD. As concentrações plasmáticas de factores de coagulação específicos, como os factores V e VII, são habitualmente baixas. Contudo, os níveis de factor VIII e de fibrinogénio podem manter-se normais, apesar do consumo, pois são reagentes de fase aguda. Nos casos graves observam-se baixos níveis de fibrinogénio; no entanto, esta prova evidencia uma baixa sensibilidade (28%). Os níveis plasmáticos de inibidores fisiológicos da coagulação, como antitrombina III e proteína C, são indicadores indirectos da activação da coagulação. Uma baixa concentração plasmática correlaciona-se com mau prognóstico.
  • Marcadores de fibrinólise aumentada.
    Várias provas comprovam o aumento de fibrinólise que se observa na CIVD. A medição directa dos níveis plasmáticos de plasmina é difícil porque esta forma rapidamente um complexo com a alfa-2 antiplasmina. O aumento dos níveis de complexos alfa-2 antiplasmina-plasmina (PAP) pode ser detectado pelo método ELISA, imunoelectroforese e radioimunoensaio. Os níveis plasmáticos de plasminogénio e alfa-2 antiplasmina são baixos em doentes com CIVD indicando o consumo destas proteínas. Identificam-se concentrações elevadas de inibidor tipo I do activador do plasminogénio (IAP-1), o que comporta mau prognóstico.

Escala de avaliação

A Sociedade Internacional de Trombose e Hemostase propôs recentemente um algoritmo de diagnóstico em 5 passos para o diagnóstico de CIVD orientando igualmente na actuação a seguir (Quadro 3). Com esta estratégia são utilizadas provas laboratoriais simples disponíveis na maior parte dos laboratórios hospitalares.

QUADRO 3 – Escala de avaliação diagnóstica de CIVD e actuação

1. Avaliação de risco
O doente tem alguma doença subjacente associada a manifestações de CIVD? Continuar o algoritmo unicamente se sim, caso contrário não usar este algoritmo
2. Proceder à realização de exames complementares
Contagem de plaquetas Esfregaço de sangue
TP, aPTT Outros exames dirigidos à doença subjacente
Fibrinogénio Outros exames dirigidos a função de órgão (rim, fígado, coração)
PDF, D-Dímeros
3. Atribuir um valor (pontuação) aos resultados das provas de coagulação
Plaquetas (/mm3) PDF, D-dímeros Prolongamento TP (limite superior) Fibrinogénio
> 100 000 = 0 pontos Normal = 0 pontos < 3´= 0 pontos > 1 g/dl = 0 pontos
< 100 000 = 1 ponto Aumentado = 1 ponto 3-6´= 1 ponto < 1 g/dl = 1 ponto
<50 000 = 2 pontos Muito aumentado = 3 pontos >6´= 2 pontos
4. Calcular pontuação
5. Avaliação de resultados
Resultado > ou = 5 Resultado < 5
CIVD com manifestações (fase III) CIVD sem manifestações, reavaliar posteriormente

Novas perspectivas

Actualmente está a ser desenvolvido um processo que consiste na análise de ondas de transmissão em provas de coagulação de rotina. A onda de “transmissão” é o perfil óptico gerado em testes de coagulação padrão como TP e TTPa, documentando alterações na transmissão da luz durante o processo de formação e manutenção do coágulo. A onda normal do TTPa é uma curva sigmóide. Em doentes com CIVD, observa-se uma onda bifásica. A sensibilidade e a especificidade da onda bifásica do TTPa é, respectivamente, 97,6 e 98%. A análise das ondas de transmissão pode também ser utilizada para detectar CIVD subclínica. A forma crónica ou compensada de CIVD precede frequentemente a forma de descompensação aguda. Do ponto de vista terapêutico, seria melhor interromper o processo antes de ocorrer a descompensação. Infelizmente, a CIVD compensada não é clinicamente evidente e as provas de diagnóstico habituais podem ser normais. Embora se trate duma nova técnica de grandes potencialidades diagnósticas, a mesma exige equipamento especializado que ainda não está disponível na generalidade dos centros.

Tratamento

O princípio fundamental do tratamento da CIVD diz respeito ao tratamento rápido e agressivo da doença subjacente. Contudo, nas situações de resposta inflamatória sistémica (como na sépsis, traumatismo grave, ou queimaduras extensas), a CIVD poderá não ter resolução espontânea apesar do tratamento adequado e dirigido à doença de base. Nestes casos poderá ser necessário tomar medidas de suporte e estratégias específicas incidindo sobre os vários processos envolvidos na fisiopatologia da CIVD.

Tratamento transfusional

Pretende corrigir os diferentes défices de coagulação com factores contidos no plasma e outros hemoderivados. De salientar que não se deve proceder a administração de transfusões “profilácticas” em doentes com CIVD; as indicações surgem apenas quando existem manifestações clínicas da doença e/ou necessidade de realizar procedimentos invasivos.

*Plasma fresco congelado

Dose: 10 a 20 ml/Kg/dia

Indicações:

  • doentes com hemorragia activa;
  • procedimento ou cirurgia invasivos.

Não está indicado nas alterações laboratoriais sem evidência de hemorragia.

*Concentrado de plaquetas

Dose: 1U para cada 10 Kg de peso

Indicações:

  • hemorragia e número de plaquetas inferior a 50 x 109/L;
  • hemorragia e suspeita de disfunção plaquetária (qualquer valor de plaquetas).
*Crioprecipitado

Dose: uma Unidade contém 250 mg de fibrinogénio e uma pequena quantidade de plasma. O número de unidades é calculado tendo em conta o peso do doente, o nível de fibrinogénio e o volume plasmático. A regra geral é: 1U para cada 10 Kg de peso.

Objectivo:

  • manter níveis de fibrinogénio superiores a 100-150 mg/dL.

Anticoagulantes

A utilização da heparina no tratamento da CIVD continua a ser controversa. Admite-se que a diminuição dos níveis plasmáticos de antitrombina associada a CIVD pode diminuir a eficácia da heparina uma vez que, para se garantir a acção anticoagulante da heparina, é necessária uma concentração plasmática adequada de antitrombina III. Contudo, a heparina em doses terapêuticas está indicada em doentes com tromboembolismo e manifestações clínicas ou evidência de deposição extensa de fibrina, como isquémia das extremidades.

Inibidores da coagulação

A antitrombina constitui, não só um importante inibidor fisiológico da coagulação, como possui propriedades anti-inflamatórias (através da libertação de prostaglandina I2 das células endoteliais). Embora se tenham demonstrado efeitos benéficos (sobre os parâmetros laboratoriais, o encurtamento da evolução da CIVD e a função dos órgãos) em doentes com sépsis ou choque séptico tratados com concentrados de antitrombina III, não se tem verificado redução significativa na mortalidade.

A proteína C, uma serina-protease dependente da vitamina K, inibe os factores activados V e VII prevenindo, assim, a produção de trombina. A proteína C humana recombinante activada (PCAhc) na dose de 24 mg/kg/h em infusão contínua ao longo de 96 horas reduz a mortalidade, melhora o perfil de coagulação, evidenciando também propriedades anti-inflamatórias mediadas pela modulação do factor kappa-B.

Contudo, devem ser tomadas precauções quando se administra PCArh em doentes com trombocitopénia (número plaquetário < 50 x 109/L) dada a maior probabilidade de hemorragia intracraniana, o que implica, em tal circunstância, proceder a transfusão de plaquetas previamente.

ABREVIATURAS
ADP > Adenosina difosfato.
TTPa > Tempo de tromboplastina parcial activada.
AT III > Antitrombina III.
CID > Coagulação intravascular disseminada.
ELISA > Imunoensaio enzimático.
F 1+2 > Fragmentos 1 e 2 de activação de protrombina.
HELLP > Síndroma de hemólise, aumento das enzimas hepáticas e diminuição das plaquetas.
IL > Interleucina.
IAP-1 > Inibidor do activador do plasminogénio tipo 1.
PAP > Complexo plasmina antiplasmina.
RAP > Receptor activado da protease.
TAT > Complexo trombina antitrombina.
IFVT > Inibidor do factor da via tecidual.
FNT/TNF > Factor de necrose tumoral.

BIBLIOGRAFIA

Bakhtiari K, Meijers JC, de Jonge E, Levi M. Prospective validation of the International Society of Thrombosis and Haemostasis scoring system for disseminated intravascular coagulation. Crit Care Med 2004; 32: 2416–2421

Bernard GR, Vincent JL, Laterre PF, et al. Efficacy and safety of recombinant human activated protein C for severe sepsis. N Engl J Med 2001; 344: 699–709

Bick RL. Disseminated intravascular coagulation. Current concepts of etiology, pathophysiology, diagnosis, and treatment. Hematol Oncol Clin North Am 2003; 17: 149–176

Choudhry A, DeLoughery TG. Bleeding and thrombosis in acute promyelocytic leukemia. Am J Hematol 2012; 87: 596–603

Gando S. Disseminated intravascular coagulation in trauma patients. Sem Thromb Hemost 2001; 27: 585–592

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hardaway RM, Williams CH, Vasquez Y. Disseminated intravascular coagulation in sepsis. Sem Thromb Hemost 2001; 27: 577–583

Helfaer MA, Nichols DG (eds). Roger’s Handbook of Pediatric Intensive Care. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2009

Hoffman R, Benz EJ, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kamal AH, Tefferi A, Pruthi RK. How to interpret and pursue an abnormal prothrombin time, activated partial thromboplastin time, and bleeding time in adults. Mayo Clin Proc 2007; 82: 864–873

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Levi M, Schultz M. Coagulopathy and platelet disorders in critically ill patients. Minerva Anestesiol 2010; 76:851-859

Levi M, Toh CH, Thachil J, Watson HG. Guidelines for the diagnosis and management of disseminated intravascular coagulation. British Committee for Standards in Haematology. Br J Haematol 2009; 145: 24–33

Morley SL. Management of acquired coagulopathy in acute paediatrics. Arch Dis Child Educ Pract Ed 2011; 96:49-60

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Thachil J, Falanga A, Levi M, Liebman H, Di Nisio M. Recommendations and guidelines: management of cancer associated disseminated intravascular coagulation: guidance from the SSC of the ISTH. International Society on Thrombosis and Haemostasis 2015; 13: 671-675

Wada H, Thachil J, Di Nisio M, et al. The Scientific Standardization Committee on DIC of the International Society on Thrombosis Haemostasis. Guidance for 2015 International Society on Thrombosis and Haemostasis. J Thromb Haemost 2013; 11: 761–767

Wada H, Matsumoto T, Yamashita Y, Hatada T, Disseminated intravascular coagulation: Testing and diagnosis. Clin Chimica Acta 2014; 436:130-134

HIPERCOAGULABILIDADE E DOENÇA TROMBÓTICA

Importância do problema

As anomalias da coagulação caracterizadas por hipercoagulabilidade predispõem a trombose ou a fenómenos tromboembólicos/TE (trombofilia), venosos ou arteriais. Tais anomalias, que podem ser congénitas /hereditárias ou adquiridas, comportam risco elevado de morbilidade e mortalidade.

As trombofilias hereditárias decorrem de factores de risco não adquiridos.

Neste capítulo é focado essencialmente o tromboembolismo venoso (TEV), que é raro em crianças saudáveis (0,07-1,4/100.000 crianças); ocorre sobretudo no período neonatal e adolescência, e na presença de factores de risco adquiridos.

 Etiopatogénese e manifestações clínicas

  1. Os três principais factores relacionados com a formação de coágulos e trombose vascular estão resumidos na tríade de Virchow – estase, lesão endotelial e hipercoagulabilidade. (Figura 1)
    A baixa incidência de TEV em idade pediátrica deve-se a vários fatores considerados “protectores”: a) reduzida concentração plasmática de alguns factores da coagulação; b) maior capacidade de inibição da trombina; c) menor frequência de patologias de risco (diabetes, dislipidémia, hipertensão arterial); d) menor exposição a factores de risco adquiridos (ex. anticonceptivos orais, gravidez, puerpério, tabagismo), excepto na adolescência.

FIGURA 1 – Tríade de Virchow: Quanto maior a sobreposição dos factores – lesão endotelial, hipercoagulabilidade e estase, maior é o risco de tromboembolismo

O factor de risco mais frequentemente relacionado com a ocorrência de TEV neste grupo etário (~2/3 dos casos) é a presença de cateter venoso central (CVC). Este actua como factor trombogénico ao desencadear reacção de corpo estranho (lesão da parede do vaso, reacção inflamatória e diminuição do fluxo sanguíneo). Os vasos mais afectados são a veia subclávia e a jugular; e, mais raramente, os femorais.

Outros factores de risco incluem: infecção; cardiopatia congénita; traumatismo; cirurgia recente; imobilização prolongada; síndroma nefrótica; doença inflamatória do intestino (DII); neoplasia (a própria neoplasia ou a respectiva terapêutica); fármacos (ex. anticonceptivos orais); e anomalias venosas estruturais.

Estes factores condicionam risco de TEV por diferentes mecanismos: libertação de proteínas de fase aguda associada a inflamação; perda urinária ou digestiva de proteínas anticoagulantes (défice adquirido de proteínas C e S); hipercoagulabilidade ou lesão endotelial.

QUADRO 1 – Estados protrombóticos

Congénitos
Lesão do endotélio
Homocistinémia
Lipoproteína (a)

Níveis elevados de procoagulantes
Gene mutante da protrombina G2010A
Níveis elevados de factor VIII

Resistência ao cofactor da proteólise
Gene mutante do factor V (factor V Leiden)

Défice de anticoagulantes
Antitrombina, proteína C, proteína S, plaminogénio

Adquiridos
Obstrução vascular ou diminuição do débito sanguíneo
Policitémia/hiperviscosidade
Cateterismo
Gravidez

Imobilização

Lesão vascular
Traumatismo
Intervenção cirúrgica

Inflamação
Doença inflamatória intestinal, vasculite, síndroma de Behçet

Estados diversos de hipercoagulabilidade
Tumores malignos
Síndroma nefrótica
Síndroma antifosfolípidos
L-asparaginase
Níveis elevados de factor VIII
Contraceptivos orais

Causas raras
Disfibrinogenémia, hemoglobinúria paroxística nocturna, trombocitémia, enxertos vasculares

QUADRO 2 – Doenças trombóticas hereditárias

Défice ou anomalias qualitativas dos inibidores dos factores de coagulação activados
Défices de: antitrombina, trombomodulina; proteína C; proteína S; resistência à proteína C activada

Anomalia na lise do coágulo
Disfibrinogenémia; défices de plasminogénio, TPA (activador do plasminogénio tecidual); excesso de actividade do PAI (inibidor -1 do activador do plasminogénio)

Defeito metabólico
Hiper-homocistinémia

Anomalias de factores ou cofactores de coagulação
Mutação do gene da protrombina, níveis elevados de factores VIII, IX, X, XI

O Quadro 2 discrimina as principais entidades clínicas classificadas como doenças protrombóticas hereditárias, na sua maioria, de transmissão autossómica dominante ou desconhecida.

  • Factor V de Leiden (principal determinante genético na resistência à proteína C activada) – o factor de risco genético mais comum para trombose venosa. Ocorre em 5% da população caucasiana, menos frequentemente noutras etnias. Em heterozigotia, a mutação condiciona um risco relativo 5-7 vezes maior de trombose; em homozigotia, 80-100 vezes maior. O risco é cumulativo com outros factores predisponentes.
  • Mutação do gene da protrombina (G20210A) – resulta em níveis mais elevados de protrombina. Está presente em cerca de 2% da população caucasiana e associada a um risco relativo 2-3 vezes maior de desenvolvimento de trombose venosa.
  • Deficiência das proteínas C, S e antitrombina (proteínas anticoagulantes) – o seu défice é mais raro, mas associa-se a um risco acrescido de fenómenos trombóticos. Os defeitos homozigóticos podem apresentar-se no período neonatal – quadro de púrpura neonatal fulminante.
  • Homocistinúria – constituiu um raro defeito hereditário do metabolismo provocado pela deficiência de cistationa β-sintetase. Associa-se a trombose venosa e arterial de múltiplos territórios vasculares e a níveis sanguíneos muito elevados de homocisteína.
  • Factor VIII em níveis elevados pode associar-se a um maior risco de trombose. Tais níveis, regulados por factores genéticos e ambientais, podem estar elevados em situações de inflamação.
  • Lipoproteína (a) em níveis elevados – constituindo factor de risco independente para a ocorrência de TEV em idade pediátrica, possivelmente associado a inibição da fibrinólise.

2. Abordando de modo global as manifestações clínicas de doença tromboembólica, cabe salientar determinados sinais gerais:

    1. As tromboses arteriais geralmente manifestam-se por disfunção de órgão devida a isquémia (por ex. pele e extremidade fria, ausência de pulso);
    2. As tromboses venosas dos membros superiores ou inferiores manifestam-se por edema, extremidade não fria ou quente, e/ou rubor; as veias torácicas proximais constituem outra possível localização;
    3. As tromboses venosas profundas são, na maioria das vezes, assintomáticas até que se desenvolva embolia pulmonar;
    4. A embolia pulmonar resulta em geral de lesão endotelial provocada por cateter venoso central, derivação ventrículo-auricular no contexto de hidrocefalia, ou de endocardite associada a cardiopatia congénita; pode manifestar-se por dor de tipo pleurítico, tosse, hemoptise, febre, e padrão radiográfico do tórax anómalo;
    5. Os eventos vasculares oclusivos na idade pediátrica têm, como regra, aparecimento súbito.

Algumas características específicas associam-se ao local atingido. Destaca-se:

  1. CVC – pode manifestar-se apenas por perda da permeabilidade e presença de circulação colateral superficial ou por sépsis, edema do membro homolateral e face, tromboembolismo pulmonar, síndroma da veia cava superior ou alargamento do mediastino;
  2. tromboembolismo pulmonar (TEP) – raro em crianças – pode manifestar-se por dor pleurítica súbita, taquipneia, tosse, taquicárdia, dispneia súbita ou colapso.
  3. trombose da veia renal (TVR) – mais frequente no período neonatal (fora deste período, surge na síndroma nefrótica, LES ou decorrendo de transplante renal); pode manifestar-se por hematúria, anúria, vómitos, hipovolémia, proteinúria e trombocitopénia, ou, exclusivamente, por uma complicação como TEP;
  4. trombose da veia porta (TP) – no período neonatal relaciona-se com cateterismo umbilical e sépsis; em crianças mais velhas surge associado a transplante hepático, infecções, esplenectomia, doença falciforme, quimioterapia, ou a anticorpos antifosfolípidos; por vezes assintomática, pode apresentar-se com trombocitopénia e/ou elevação das enzimas hepáticas ou sob a forma de abdómen agudo, mais frequentemente em adolescentes; quando assintomática, pode atrasar o diagnóstico só realizado quando surgem sinais de hipertensão portal crónica (esplenomegália ou hemorragia gastrintestinal secundária a varizes esofágicas).

A síndroma pós-trombótica (SPT), complicação crónica do TEV, caracteriza-se por insuficiência venosa crónica, com consequente edema, dor crónica e ulceração do membro afectado. Estão implicados diversos mecanismos fisiopatológicos que incluem um processo inflamatório no interior do vaso afectado, obstrução do fluxo venoso, obstrução das válvulas venosas e refluxo venoso.

Como sintomatologia, destacam-se: edema localizado, dor, alterações da temperatura cutânea, assimetria do diâmetro dos membros, presença de veias varicosas e alterações cutâneas tróficas (dermatite de estase) e ulceração. Estima-se que, em idade pediátrica, o risco de surgimento de SPT após TEV seja ~10-70%.

Diagnóstico

Para o diagnóstico e caracterização da extensão da doença trombótica (ou tromboembólica) podem ser utilizados diversos exames, a destacar:

  • Ecografia com estudo de doppler;
  • Angiografia com contraste ou a angiorressonância (Angio-RM). Para avaliação ao nível dos membros inferiores, a ecografia com doppler será o exame mais adequado. A angio-RM permite caracterizar melhor as veias torácicas e as abdominais profundas podendo estar indicada, em casos especiais, a angiografia com contraste.

O estudo analítico da coagulação (“de rotina”) não tem utilidade para o diagnóstico de evento tromboembólico agudo. Para investigação de um episódio de TEV, para além de uma história clínica completa com identificação de factores de risco adquiridos, poderá estar indicado o estudo analítico das proteínas C, S, antitrombina (AT-III), factor V de Leiden e protrombina (G20210A). Em fase aguda o doseamento das proteínas anticoagulantes e antitrombina pode estar alterado devendo ser confirmado posteriormente, em consulta.

Um dos argumentos contra a indicação da pesquisa de trombofilia hereditária após um episódio de TEV secundário é o de que a sua identificação quase nunca influencia, de forma relevante, a intervenção terapêutica de anticoagulação na situação aguda.

Como excepção a esta atitude, cita-se o caso de criança com défice grave de proteína C ou S ou antitrombina (em homozigotia ou heterozigotia composta) que se apresente com purpura fulminans, trombose extensa de grandes vasos ou coagulação intravascular disseminada em que, de facto, o diagnóstico influencia a terapêutica; no entanto, estas situações são extremamente raras (1/250.000-1/500.000 nados-vivos).

O diagnóstico diferencial da doença tromboembólica depende do órgão afectado e do tipo de vaso. No caso de sinais de trombose arterial fundamentalmente há a considerar a hipótese de arterite no contexto de doença de Kawasaki e de LES. Verificando-se quadro de trombose venosa das extremidades, há que salientar que as lesões traumáticas e infecciosas originam idêntica sintomatologia.

Tratamento

Os objectivos da terapêutica antitrombótica em crianças com TEV são: (1) reduzir o risco de morte provocada pela extensão ou embolização do trombo; (2) reduzir a incidência de trombose recorrente; (3) limitar a lesão vascular de forma a reduzir o risco de síndroma pós-trombótica; (4) manter a permeabilidade do vaso, especialmente em doentes que necessitam de acesso vascular.

Anticoagulação

Aspectos gerais

Na idade pediátrica estão aconselhados essencialmente:

  • Heparina de baixo peso molecular (HBPM) e não fraccionada (HNF) e;
  • Antagonistas da vitamina K, orais.

Numa fase inicial deve ser usada heparina, nomeadamente a HBPM por apresentar maior facilidade na administração, e maior estabilidade e biodisponibilidade.

A HNF poderá estar indicada nas situações de instabilidade clínica (pós-operatório, cuidados intensivos).

Na terapêutica de manutenção pode estar indicado um antagonista da vitamina K (ex. varfarina). Em situações complexas, na presença de outras comorbilidades, ou em crianças pequenas, em que o controlo da terapêutica com varfarina pode ser difícil, está indicado manter a HBPM.

Aspectos específicos
  • Início de HBPM em dose terapêutica – enoxaparina, na dose de 1-1,5 mg/kg de 12/12h (dependendo da idade), por via subcutânea (SC). A terapêutica poderá ser monitorizada através do doseamento da actividade anti-Xa – (alvo: 0,5-1 UI/mL).
  • Se a decisão for proceder a anticoagulação com varfarina (antagonista de vitamina K), a mesma deverá ser iniciada (0,1 mg/kg/dose) mantendo-se, em simultâneo, a HBPM durante 5-6 dias, até INR superior a 2-2,5. A varfarina nunca deverá ser iniciada em monoterapia por poder condicionar um estado protrombótico nos primeiros dias de terapêutica (antagonismo das proteínas anticoagulantes C e S). A actividade da varfarina será monitorizada através do valor do INR, o que dependerá da patologia e do território vascular afetado.
  • A terapêutica trombolítica – com a urocinase (UK) e o activador do plasminogénio tecidual (PAI), os agentes mais usados – apresenta ainda limitações em termos de eficácia, dose ou segurança em idade pediátrica. Actua através da conversão do plasminogénio em plasmina com consequente dissolução do trombo e aumento da permeabilidade vascular, aliviando a oclusão do vaso. Por apresentar um elevado risco hemorrágico, está reservada apenas para situações emergentes com compromisso de órgão ou membro, por exemplo, trombose extensa das veias da cavidade pélvica, veia cava superior ou inferior, locais intracardíacos ou tromboembolismo pulmonar (TEP).
  • Nos casos de insucesso de trombólise pode estar indicada, em casos seleccionados, a ressecção cirúrgica do coágulo.

O tratamento da trombose associada a CVC pode implicar a sua remoção. Nestes casos, antes da remoção, deve realizar-se um mínimo de 3-5 dias de anticoagulação sistémica.

Duração do tratamento

  • A duração da anticoagulação depende da etiologia da trombose; nos casos de trombose secundária cuja causa foi eliminada, deve ser realizado durante o tempo mínimo de 3 meses. Se a causa se mantiver (ex. CVC), a anticoagulação deverá ser mantida até à remoção do factor de risco conhecido.
  • No caso do TEV idiopático, a anticoagulação deve ser mantida, no mínimo, durante 6 meses.
  • Em casos de trombose recorrente idiopática ou associada a síndroma de anticorpos antifosfolípidos, pode haver necessidade de manter anticoagulação profiláctica durante toda a vida, dado o elevado risco de recorrência.

BIBLIOGRAFIA

Bhojwani D, Hart D. Thrombophilia in childhood. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care 2004; 34: 190-212

Christiansen SC, Cannegieter SC, Koster T, et al. Thrombophilia, clinical factors and recurrent venous thrombotic events. JAMA 2005; 293: 2352-2361

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hoppe C, Matsunaga A. Pediatric thrombosis. Pediatr Clin North Am 2002; 49: 1257-1283

Kenet G, Nowak-Gottl U. Venous thromboembolism in neonates and children. Best Pract Res Haematol 2012; 25:333-344

Klaassen ILM, Ommen CH Van, Middeldorp S. Manifestations and clinical impact of pediatric inherited thrombophilia. Blood 2015; 125:1073-1078

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Kyrle PA, Eichinger S. Deep vein thrombosis. Lancet 2005; 365: 1163-1174

Lijfering WM, Brouwer J-LP, Veeger NJGM, et al. Selective testing for thrombophilia in patients with first venous thrombosis: results from a retrospective family cohort study on absolute thrombotic risk for currently known thrombophilic defects in 2479 relatives. Blood 2009;113: 5314-5322

Mackay M, Monagle P. Perinatal and early childhood stroke and thrombophilia. Pathology 2008; 40:116-123

Manlhiot C, McCrindle BW, Williams S, et al. Caracterization of post-thrombotic syndrome in children with cardiac disease. J Pediatr 2109; 207: 42-48

Morley SL. Management of acquired coagulopathy in acute paediatrics. Arch Dis Child Educ Pract Ed 2011; 96:49-60

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Ramiz S, Rajpurkar M. Pulmonary embolism in children. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 495-508

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Tuckuviene R, Christensen A, Helgestad J, Johnsen S, Kristensen S. Pediatric venous and arterial noncerebral thromboembolism in Denmark: a nationwide population-based study. J Pediatr 2011;159: 663-669

DOENÇA DE VON WILLEBRAND

Definição e importância do problema

A doença de von Willebrand (dvW) consiste num defeito da hemostase primária caracterizado por alteração quantitativa ou qualitativa do factor de von Willebrand (fvW).

O fvW é uma glicoproteína sintetizada pelos megacariócitos e células endoteliais; a glicoproteína sintetizada pelos megacariócitos armazena-se nos grânulos alfa plaquetários, e a das células endoteliais liberta-se de forma directa para o plasma, ou armazena-se nos corpos de Weibel-Palade.

O referido factor desempenha um papel fundamental na hemostase: 1) mediação da adesão plaquetária ao endotélio vascular lesado; 2) transporte e estabilização do factor VIII (FVIII) em circulação, impedindo a sua inactivação pela proteína C activada.

O referido factor circula sob a forma de multímeros agregados. Quando activado, são libertados para a circulação os multímeros de maior peso molecular, que correspondem às suas formas mais activas. Sendo protrombóticas, estas formas são fisiologicamente clivadas por uma protease (ADAMTS13), tornando-se menores e hemostaticamente menos activas.

A dvW é a coagulopatia hereditária mais frequente, afectando cerca de 1-2% da população (sem predomínio de sexo). Contudo, apenas 1% dos indivíduos afectados é sintomático. Embora raras, existem também formas adquiridas de dvW, geralmente secundárias a patologia autoimune ou oncológica.

Etiopatogénese e classificação

Em 2006 a International Society on Thrombosis and Haemostasis classificou a doença de acordo com o fenótipo nos seguintes grupos:

  • O relacionado com alterações quantitativas, integrando os tipos 1 e 3; e
  • O relacionado com alterações qualitativas, integrando o tipo 2.

O gene do fvW localiza-se no cromossoma 12, salientando-se a existência de um pseudogene parcial no cromossoma 22. No que respeita à hereditariedade, é importante pormenorizar os seguintes aspectos:

  • Tipo 1 (autossómico dominante) corresponde a cerca de 80% dos casos e traduz-se por um défice ligeiro a moderado de fvW;
  • Tipo 3 (autossómico recessivo) em que existe um défice grave de fvW;
  • Tipo 2 (autossómico recessivo ou dominante) pode ser subdividido nos seguintes subtipos:
    • 2A, em que existe perda de multímeros de maior peso molecular, com consequente diminuição da capacidade de ligação plaquetária;
    • 2B, caracterizado por aumento da ligação às plaquetas, aumentando a sua destruição;
    • 2M, que cursa com multímeros de dimensão normal, mas disfuncionais e com menor capacidade de interacção plaquetária; e
    • 2N, em que se verifica diminuição da capacidade de ligação ao FVIII, provocando a sua rápida eliminação.

Foram identificadas mais de 250 mutações, na sua maioria nos tipos 2 e 3. No tipo 1 o risco de transmissão da doença é ~50%, embora só em cerca de 1/3 dos casos se verifiquem manifestações hemorrágicas; tal é explicável pela variabilidade da penetrância e da expressividade do gene.

Manifestações clínicas

Tratando-se duma alteração da hemostase primária, as manifestações clássicas relacionam-se com discrasia mucocutânea (predominantemente equimoses fáceis, epistaxe, gengivorragias e menorragias). Na dvW dos tipos 2N e 3, pela diminuição mais significativa de FVIII associada, as manifestações podem ser sobreponíveis às da hemofilia.

A sintomatologia pode surgir em qualquer idade e com um espectro de gravidade variável. Quanto mais ligeira a variante fenotípica, mais difícil o diagnóstico. Além disso, as manifestações hemorrágicas podem por vezes ser subtis, ao ponto de poderem ser confundidas com as manifestações hemorrágicas da população sem doença.

Nesta perspectiva, importa relevar o papel da história clínica elaborada com rigor tentando investigar a eventualidade de antecedentes hemorrágicos em familiares e, portanto, de dvW subdiagnosticada. A este respeito, salienta-se que existe a possibilidade de recorrer a questionários estruturados tentando avaliar o risco hemorrágico e a probabilidade de coagulopatia (por exemplo, através dos Bleeding Assessment Tools – BAT e do Pediatric Bleeding Questionnaire).

Diagnóstico

Na suspeita de dvW, está indicada a realização dos seguintes exames complementares:

  • Antigénio fvW (fvW:Ag), que avalia a quantidade de fvW no plasma;
  • fvW:RCo ou funcional que avalia a actividade do fvW;
  • O doseamento de FVIII;
  • O hemograma permite excluir a presença de trombocitopénia associada ao tipo 2B.

A combinação destes exames laboratoriais possibilita, na maioria dos casos, a classificação dos principais tipos de dvW.

A determinação da razão fvW: Rco/fvW:Ag fornece uma ajuda importante na orientação do diagnóstico: uma razão inferior a 0,6 favorece o diagnóstico de alteração qualitativa (tipo 2A, 2B ou 2M).

A análise de multímeros do fvW e a realização de testes de agregação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA), apenas indicadas após estabelecido o diagnóstico de dvW, contribuem para a distinção das subclasses 2A, 2B e 2M.

Dado que na dvW do tipo 2N o doseamento do fvW é normal (ou quase normal) e o FVIII está diminuído, o diagnóstico diferencial com a hemofilia A ligeira implica a determinação da capacidade de ligação do fvW ao FVIII/estudo genético. (Quadro 1)

Existem várias circunstâncias susceptíveis de influência nos níveis de fvW:

  • Nos casos de grupo sanguíneo 0 os respectivos níveis séricos são cerca de 25% mais baixos em comparação com outros grupos sanguíneos; daqui se infere que se deverá proceder sempre à avaliação do grupo sanguíneo no contexto da possibilidade desta coagulopatia;
  • O estresse, infecções, exercício físico, gravidez ou terapêutica com anticonceptivos orais associam-se a variações dos valores basais; assim, a influência de tais factores poderá ser minorada se se proceder a duas determinações.

NB: De facto, sendo o f vW (e, também, o F VII) proteínas da fase aguda, há que atender à possibilidade de variações ao longo do dia dependentes de diversas influências.

Estudos de genética molecular estão reservados para casos específicos.

QUADRO 1 – Padrão laboratorial dos diferentes tipos de dvW

 PlaquetasfvW:AgfvW:RCoFVIII:CAnálise de multímeros
Alteração quantitativa do fvW
Tipo 1NormalNormal a ↓Normal
Tipo 3Normal↓↓↓↓↓↓↓↓↓Ausentes
Alteração qualitativa do fvW
Tipo 2ANormal↓↓Normal a ↓Perda de MAPM
Tipo 2B↓↓Normal a ↓Perda de MAPM
Tipo 2MNormal↓↓Normal a ↓Normal
Tipo 2NNormalNormal a ↓Normal a ↓↓↓

Normal

MAPM = multímeros de alto peso molecular

Tratamento

O tratamento da dvW está indicado em casos de hemorragia activa ou preparação para procedimentos invasivos.

  1. O acetato de desmopressina (DDAVP) é um análogo sintético da vasopressina que promove a libertação de fvW do endotélio vascular, aumentando também a semi-vida do FVIII. A resposta é variável de doente para doente, sendo favorável na maioria dos doentes com dvW tipo 1 e em alguns do tipo 2. No tipo 2B pode haver agravamento da trombocitopénia e no tipo 3 não há resposta, pelo que a administração não está indicada. Antes da utilização em situação aguda, deve ser realizada uma prova prévia que confirme a eficácia do DDAVP. Nas hemorragias ligeiras, utiliza-se preferencialmente a via intranasal (150 μg/dose em doentes com menos de 50 kg, e 300 μg/dose em doentes com peso superior), estando a via endovenosa (0,3 μg/kg/dose até máximo de 20 μg/dose) reservada para os casos mais graves/preparação para procedimentos invasivos minor.
    Como normas importantes, refere-se:
      – Restrição hídrica;
      – Não administração de doses com intervalos inferiores a 24 horas ou mais de três doses, dada a redução do efeito (taquifilaxia) e o aumento dos efeitos adversos (destacando-se a hiponatrémia).
  2. O tratamento com concentrado de FVIII + fvW permite a reposição do factor em falta, estando indicado nos seguintes casos:
    1. resposta ao DDAVP insuficiente;
    2. DDAVP não indicado (dvW tipo 3 e 2B);
    3. DDAVP contraindicado (idade inferior a 2 anos ou doença cardíaca);
    4. todos os casos de lesão traumática/hemorragia grave ou cirurgia major.
  3. A terapêutica adjuvante com agentes antifibrinolíticos (ácido aminocapróico ou tranexâmico) que actuam na estabilização do coágulo, tem também um papel importante na hemorragia das mucosas; poderão até ser utilizados isoladamente nas hemorragias minor em associação a medidas locais de compressão).
  4. Devem ser evitados os anti-inflamatórios não esteróides, pela sua acção anti-agregante plaquetária.

BIBLIOGRAFIA

Branchford BR, Di Paola J. Making a diagnosis of VWD. American Society of Hematology. Education Program 2012, 161–167. doi:10.1182/asheducation-2012.1.161

Castaman G, Goodeve A, Eikenboom J. Principles of care for the diagnosis and treatment of von Willebrand disease. Haematologica 2013; 98: 667–674. doi:10.3324/haematol.2012.077263

Cooper S, Takemoto C. (2014). von Willebrand disease. Pediatr Rev 2014; 35: 136–137. doi:10.1542/pir.35-3-136

Federici AB. Clinical and laboratory diagnosis of von Willebrand disease. (American Society of Hematology). Education Program 2014; (1): 524–530 doi:10.1182/asheducation-2014.1.524

Hoffman R, Benz EJ, Abutalib SA (eds). Hematology. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Laffan MA, Lester W, O’Donnell JS, et al. (2014). The diagnosis and management of von Willebrand disease: a guideline approved by the British Committee for Standards in Haematology. Br J Haematol 2014;167: 453–465. doi:10.1111/bjh.13064

Lanzkowsky P. Manual of Pediatric Hematology and Oncology. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011

Lillicrap D. von Willebrand disease: advances in pathogenetic understanding, diagnosis, and therapy. Blood 2013;122: 3735–3740. doi:10.1182/blood-2013-06-498303

Moro M, Málaga S, Madero L. Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Neff AT, Sidonio R F. Management of von Willebrand disease. (American Society of Hematology). Education Program 2014; (1): 536–541. doi:10.1182/asheducation-2014.1.536

Ng CJ, Motto DG, Di Paola J. Diagnostic approach to von Willebrand disease. Blood 2015; 125: 2029–2037. doi:10.1182/blood-2014-08-528398

Ng CJ, Di Paola J. von Willebrand disease: diagnostic strategies and treatment options. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 527-542

HEMOFILIA

Introdução

As coagulopatias congénitas são afecções causadas por alteração dos genes que codificam um ou vários factores implicados na cascata da coagulação. A hemofilia A e a hemofilia B, juntamente com a doença de von Willebrand, integram na sua grande maioria (cerca de 95%) as deficiências congénitas dos factores de coagulação.

As restantes coagulopatias (deficiências de fibrinogénio, factores II, V, VII, X, XI, XIII, assim como as deficiências combinadas de factores V e VIII, pertencem ao grupo das chamadas doenças raras, com uma incidência de 1/500.000 a 2.000.000 nas formas homozigóticas.

O Quadro 1 sintetiza as anomalias básicas da hemostase (tempo de protrombina/TP e tempo de tromboplastina parcial activado/TTPa ou aPTT) relacionadas com os défices dos factores discriminados antes, exceptuando o factor XIII.

QUADRO 1 – Anomalias básicas da hemostase relacionadas com o factor deficiente

Factor deficiente TP TTPa
VIIAnormalNormal
VIII, IX e XINormalAnormal
Fibrinogénio, II, V, V+VIII e XAnormalAnormal

Definição e importância do problema

A hemofilia é uma coagulopatia congénita causada pelo défice quantitativo de factor VIII (F VIII) da coagulação – hemofilia A, ou de factor IX (F IX) – hemofilia B. Trata-se de doenças monogénicas, resultantes de uma mutação do gene F8 na hemofilia A, e F9 na hemofilia B, ambos localizados no braço longo do cromossoma X (Xq28); portanto, com um padrão de hereditariedade ligada ao sexo.

 

Nas restantes coagulopatias atrás citadas, a maioria dos genes responsáveis localiza-se nos cromossomas autossómicos, o que lhes confere a característica de hereditariedade mendeliana clássica.

A hemofilia classifica-se em ligeira, moderada ou grave com base no nível de factor, expresso em percentagem do normal ou unidades internacionais (UI). Habitualmente, os níveis de factor correlacionam-se com a gravidade dos sintomas (Quadro 2). O prognóstico depende fundamentalmente das complicações hemorrágicas e das sequelas resultantes de hemorragias recorrentes.

QUADRO 2 – Classificação das hemofilias A e B

GrauActividade do factorTipo de hemorragiaIdade do diagnóstico
Ligeiro≥ 5 e < 40% (6-39 U/dL)Frequentemente espontânea< 1 ano
Moderado≥ 1 e < 5% (1-5 U/dL)Relação com trauma mínimo1-5 anos
Grave< 1% (< 1U/dL)Prolongada após trauma grave ou cirurgiaMais tardia

Aspectos epidemiológicos

A seguir à doença de von Willebrand, a hemofilia é a coagulopatia hereditária mais frequente, com uma incidência estimada de cerca de 1/10.000 nascimentos. Tratando-se de uma doença recessiva ligada ao cromossoma X, a hemofilia grave afecta quase exclusivamente o género masculino, existindo geralmente antecedentes familiares na linhagem materna. Em cerca de 30% dos casos não existe história familiar (elevada frequência de mutações de novo).

As mulheres portadoras apresentam níveis de factor e manifestações clínicas variáveis. Em casos raros (heterozigotia composta, fenómenos de Lyon, ou perda do cromossoma X) as mesmas podem ter um fenótipo mais grave.

A hemofilia A, mais frequente que a hemofilia B (respectivamente 1/5.000 versus 1/30.000), representa 80-85% do total dos doentes. Está também associada, habitualmente, a maior gravidade

Manifestações clínicas

Embora a hemorragia das mucosas e as equimoses espontâneas/fáceis possam ser os sinais mais precoces da doença, a hemorragia muscular e a hemartrose constituem a manifestação clínica clássica.

Hemofilia grave

Apesar de ser possível o diagnóstico pré-natal (por amniocentese ou punção das vilosidades coriais), na maioria dos casos a hemofilia grave é diagnosticada ao nascer (manifestações hemorrágicas no pós-parto imediato) ou nas primeiras semanas de vida.

Embora a maioria dos doentes não tenha hemorragia significativa no período perinatal, alguns poderão apresentar hematomas extensos ou hemorragia prolongada ao nível da zona cruenta da pele abdominal ao destacar-se o cordão umbilical. A hemorragia intracraniana é rara (3-4% dos casos).

Durante os primeiros meses de vida as manifestações são raras; no entanto, poderá ocorrer hemorragia/hematoma excessivos em situações como erupção dentária, incisão do freio lingual, circuncisão ou aplicação de vacinas por injecção.

Após a aquisição da marcha, à medida que a actividade física aumenta, os hematomas e hemartroses (espontâneos ou após lesões traumáticas minor) tornam-se frequentes, constituindo a principal causa de morbilidade. Com efeito, na criança não tratada, a evolução natural da doença provoca artropatia crónica e incapacitante, resultante de hemartroses recorrentes.

Os hematomas musculares constituem a segunda forma de manifestação mais frequente, podendo estar associados a complicações graves como a síndroma compartimental; por outro lado, as hemorragias localizadas nos grandes músculos (músculos da coxa ou o psoas-ilíaco) podem implicar perdas sanguíneas significativas. Salienta-se que a hemorragia do músculo psoas pode simular sintomatologia compatível com “abdómen agudo”.

As hemorragias do sistema nervoso central, embora raras, constituem a principal causa de morte. Podem ser espontâneas ou pós-traumáticas e, em geral, manifestam-se por cefaleias, vómitos ou alterações do estado de consciência.

Também as hemorragias da via aérea, nomeadamente os hematomas da base da língua e retrofaríngeos, constituem uma emergência pelo risco de obstrução da via aérea. (Figuras 1 a 4)

Embora geralmente de menor gravidade, não é incomum o aparecimento de hematúria, epistaxe ou hemorragia gastrintestinal.

FIGURA 1 – A – Hematoma do couro cabeludo. (NIHDE)

FIGURA 2 – A – Hemartrose do joelho. (NIHDE)

FIGURA 3 – A – Hematoma inguinocrural. (NIHDE)

FIGURA 4 – A – Hematoma da base da língua. (NIHDE)

Hemofilia moderada

Nesta forma, as hemorragias espontâneas são raras. Contudo, podem existir hemorragias prolongadas e em desproporção com lesões traumáticas ligeiras.

Hemofilia ligeira

Os indivíduos com hemofilia ligeira apresentam-se, por norma, mais tardiamente (muitas vezes na idade adulta) após, por exemplo, intervenções cirúrgicas, fracturas, feridas contusas de origem traumática, extracções dentárias, ou aplicação de injecções).

Exames complementares

Reportando-nos ao Quadro 1, importa referir que a hemofilia se caracteriza por um prolongamento do tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa). O número de plaquetas e o tempo de protrombina (TP) são normais.

Na suspeita de hemofilia, deve proceder-se ao doseamento sérico dos factores de coagulação VIII e IX. Com efeito, o doseamento dos F VIII e F IX permite confirmar o diagnóstico e classificar a hemofilia de acordo com o tipo e gravidade.

Perante um nível baixo de F VIII, é fundamental a documentação de níveis normais do factor de von Willebrand (F vW) para excluir a possibilidade de doença de von Willebrand do tipo 3 (que corresponde a deficiência completa de F vW), sobretudo se existir história de consanguinidade ou ausência de antecedentes familiares de hemofilia.

A distinção entre a doença de von Willebrand do tipo 2N e hemofilia A ligeira implica o estudo da capacidade de ligação do F vW ao F VIII/estudo genético. (ver capítulo seguinte)

O estudo genético está indicado em todos os casos suspeitos de hemofilia. Permite confirmação diagnóstica, estudo familiar e aconselhamento genético, para além de ter valor preditivo quanto ao fenótipo e ao risco de desenvolvimento de inibidores. Após detecção de uma mutação no caso índex, está indicado o estudo genético da família.

Actuação prática

Aspectos gerais

O seguimento destes doentes, por ser complexo, deve ser feito em centros especializados por uma equipa multidisciplinar. A abordagem destes doentes implica cuidados preventivos, terapêutica de substituição com concentrado de factor e tratamento das complicações relacionadas com a doença e com o tratamento.

Administração de concentrados de factor

Nas últimas décadas, após a introdução da terapêutica de substituição com concentrados de factor VIII e IX, a esperança média de vida destes doentes aumentou substancialmente, com diminuição significativa da morbilidade.

Os concentrados de factor constituem a base do tratamento da hemofilia. São fundamentais na profilaxia dos doentes com hemofilia grave e no tratamento da hemorragia aguda. Actualmente estão disponíveis dois tipos de concentrados de factor: os derivados do plasma e os recombinantes (preferencialmente utilizados), estando o uso de plasma fresco ou crioprecipitado contraindicado.

Actuação na hemorragia aguda

Perante uma hemorragia aguda, o principal objectivo é a reposição do factor deficitário para se atingir um nível sérico hemostático. A abordagem terapêutica e dose de factor a administrar dependem do tipo e gravidade da hemorragia.

Na prática, o número de unidades de factor a administrar depende do peso do doente, volume de distribuição do factor e da dose alvo pretendida. O Quadro 3 resume algumas noções importantes a ter em conta na abordagem da hemorragia aguda.

QUADRO 3 – Cálculo para administração de factor em situações de hemorragia aguda

FACTOR VIII
Semi-vida: 8-12 horas
Concentrado de factor derivado do plasma ou recombinante: 1 U/kg eleva o nível de factor em 2%
Cálculo da dose de F VIII (UI) a administrar = peso do doente (kg) x % de incremento desejado x 0,5
FACTOR IX
Semi-vida: 18-24 horas
Concentrado de factor derivado do plasma: 1 U/kg eleva o nível de factor em 1%
Cálculo da dose de F IX (UI) a administrar = peso do doente (kg) x % de incremento desejado
Concentrado de factor recombinante: 1 U/kg eleva o nível de factor em 0,8% (>15 anos) e 0,7% (<15 anos)
Cálculo da dose de rF IX (UI) a administrar = peso do doente (kg) x % de incremento desejado x 1,2 (> 15 anos) ou x 1,5 (< 15 anos)

Na presença de hemorragia confirmada ou suspeita, é fundamental a rápida avaliação e administração de factor como primeira medida (Factor first), não devendo a realização de exames complementares de diagnóstico atrasar a sua administração.

O Quadro 4 descreve mais detalhadamente os níveis de factor desejados e a duração da terapêutica em função da hemorragia específica.

QUADRO 4 – Nível de factor alvo e duração da terapêutica de acordo com o tipo de hemorragia

 

HEMOFILIA A

HEMOFILIA B

 
Tipo de hemorragiaNível desejado (U/dL)Nível desejado (U/dL)Duração (dias)
Articular40-6040-601-2
Muscular40-6040-602-3
Ilio-psoas, muscular com compromisso neurovascular ou hemorragia significativa
· Inicial
· Manutenção
80-100
30-60
60-80
30-60
1-2
3-5
Laceração profunda50405-7
SNC/Traumatismo Cranioencefálico
· Inicial
· Manutenção
80-100
50
60-80
30
1-7
8-21
Orofaringe/pescoço
· Inicial
· Manutenção
80-100
50
60-80
30
1-7
8-14
Gastrintestinal   
· Inicial
· Manutenção
80-100
50
60-80
30
7-14

Renal50403-5
Cirurgia major
· Pré-operatório
· Pós-operatório
80-100
60-80
40-60
30-50
60-80
40-60
30-50
20-40

1-3
4-6
6-14
Cirurgia minor
· Pré-operatório
· Pós-operatório
50-80
30-80
50-80
30-80

1-5, consoante
procedimento

Outras medidas terapêuticas

Para além da reposição de factor, existem outras medidas terapêuticas que poderão estar indicadas:

 1. Acetato de desmopressina (DDAVP)

Este análogo da vasopressina promove a libertação das reservas endoteliais de FVIII, aumentando o nível deste factor em circulação. Os doentes com hemofilia A ligeira e manifestações ligeiras a moderadas podem, muitas vezes, ser tratados apenas com DDAVP, desde que se tenha previamente provado boa resposta.

O DDAVP pode ser administrado por via endovenosa (0,3 mcg/kg/dose, máximo 20 mcg) ou nasal (150 mcg/dose em doente com menos de 50 kg, 300 mcg/dose a partir dos 50 kg). A formulação intranasal indicada tem uma concentração de 1,5 mg/ml, não se encontrando disponível nas farmácias da comunidade (as formulações destinadas à terapêutica da enurese e diabetes insípida têm uma baixa concentração e não devem ser usadas na hemofilia).

Deve ser assegurada a restrição hídrica e não devem ser administradas doses com intervalos inferiores a 24 horas, ou mais de três doses, dada a redução do efeito (taquifilaxia) e o aumento dos efeitos adversos associados (hiponatrémia).

2. Antifibrinolíticos (ácido aminocapróico e ácido tranexâmico)

Estes fármacos inibem a activação do plasminogénio, permitindo a estabilização do coágulo. São úteis nas hemorragias ligeiras das mucosas (oral, gastrintestinal, nasal e ginecológica), podendo dispensar a administração de factor.

Estão contraindicados em hemorragias do tracto urinário pelo risco de formação de coágulos e obstrução vesicouretral. Ambos os fármacos podem ser administrados por via oral, endovenosa ou local (dose de ácido aminocapróico: 75-100 mg/kg/dose; ácido tranexâmico 25 mg/kg/dose, administrados de 6 em 6 horas).

3. Analgesia

Para além das medidas farmacológicas específicas, deve ser instituída precocemente analgesia associada a outras medidas conhecidas pelo acrónimo, do inglês – RICE- (Rest; Ice; Compression; Elevation).

Actuação nas hemorragias com localizações específicas

Hemartrose

Os primeiros sintomas podem ser apenas parestesias ou desconforto local – aura; a reposição precoce de factor previne a lesão tecidual e perpetuação do ciclo hemorragia” lesão” hemorragia.

Hematoma intramuscular profundo

Esta situação exige um elevado nível de suspeição. A hemorragia do psoas-ilíaco pode manifestar-se por dor abdominal, lombar ou referida à articulação coxo-femoral com limitação da extensão do membro (movimentos de rotação mantidos), parestesias da coxa ou outros sinais de compressão do nervo femoral. Os exames de imagem não estão indicados por rotina nas hemartroses e hematomas musculares, nem nas formas aparentemente menos graves; portanto, há que ponderar caso a caso.

Nas hemorragias graves do músculo psoas devem ser realizados exames de imagem após a primeira administração de factor (Factor first). (ver atrás – Actuação na hemorragia aguda)

Hemorragia do sistema nervoso central (SNC)

Constitui uma emergência médica. Os traumatismos cranianos e cefaleias intensas devem ser tratados como hemorragia do SNC.

Nas hemorragias graves do SNC devem ser realizados exames de imagem após a primeira administração de factor (Factor first).

Hematúria

Nesta situação os agentes antifibrinolíticos estão contraindicados. A hematúria microscópica e indolor deve ser tratada com repouso e hidratação vigorosa durante 48 horas. Uma hematúria macroscópica persistente ou hematúria associada a dor ou trauma implicam terapêutica de substituição com concentrados de factor.

Terapêutica em investigação

No início da década de 1990 surgiu a terapêutica génica como uma opção de cura para esta doença monogénica. Contudo, os resultados da investigação não tiveram o êxito esperado até à actualidade.

Por outro lado, os centros de investigação neste campo procuram novas moléculas que permitam prolongar a vida média dos factores que actualmente já são utilizados.

Profilaxia

A profilaxia, indicada na hemofilia grave consiste na administração programada e regular do factor em deficiência. O objectivo é manter um nível mínimo de factor VIII ou IX (entre 1 e 5% ou, genericamente, > 1%) no sentido de diminuir o risco de hemorragia espontânea e de consequente lesão osteoarticular. De facto, os indivíduos com hemofilia moderada raramente contraem artropatia crónica.

São considerados dois tipos de profilaxia em função do momento em que se inicia a respectiva administração:

Profilaxia primária

É iniciada entre o 1 ano e os 2 anos de idade (antes de a criança começar a sofrer de hemartrose ou após a primeira hemorragia articular). Tal medida possibilita uma redução drástica do número de episódios hemorrágicos, preservando as articulações; os inconvenientes são a necessidade de via central de acesso venoso permanente e o elevado custo do factor.

Profilaxia secundária

Considera-se esta modalidade se o tratamento regular contínuo tiver sido iniciado após os 2 anos de idade, ou após duas ou mais hemorragias numa articulação-alvo. De salientar, no entanto, que o esquema profiláctico deve ser individualizado tendo em conta a frequência dos episódios hemorrágicos, a adesão da família e a disponibilidade de acessos venosos.

Complicações

A artropatia hemofílica constituiu uma lesão articular crónica e incapacitante, resultante de hemartroses recorrentes, mais frequentemente numa articulação alvo. Actualmente, a profilaxia primária e o adequado tratamento da hemorragia aguda tornaram esta entidade menos frequente.

A formação de inibidores é uma das complicações mais preocupantes e frequentes no doente com hemofilia. Os inibidores são anticorpos (IgG) contra o factor da coagulação exógeno, tornando a sua reposição ineficaz. Ocorrem aproximadamente em 25% dos doentes com hemofilia A grave, e apenas em 3-5% dos que sofrem de hemofilia B grave, sendo muito menos frequentes na doença moderada ou ligeira. Na hemofilia B poderão também surgir reacções anafilactóides ao factor IX exógeno.

No tratamento dos doentes com baixos títulos de inibidores, as hemorragias podem ser tratadas aumentando as doses de factor VIII ou IX. No entanto, em doentes com elevados títulos, o tratamento das hemorragias implica a utilização dos chamados agentes de bypass (capazes de gerar trombina na ausência de F VIII ou F IX), como o factor VII recombinante activado ou o concentrado de complexo protrombínico activado. Estes doentes são geralmente submetidos a indução de imunotolerância.

As complicações infecciosas relacionadas com derivados do plasma têm fundamentalmente um significado histórico. É importante, no entanto, manter uma vigilância rigorosa dada a possibilidade de transmissão de agentes ainda desconhecidos.

Aconselhamento genético e educação para a saúde

O aconselhamento genético e psicossocial, assim como informação acerca da doença, são fundamentais. A prática de exercício físico deve ser incentivada, procurando evitar desportos de contacto (por exemplo, artes marciais). O doente deve ser alertado para a importância de uma higiene dentária cuidadosa com avaliação periódica pelo estomatologista.

Não existe contraindicação para realização de vacinas, devendo ser cumprido o Programa Nacional de Vacinação (PNV), e estando adicionalmente recomendada a vacina anti-hepatite A. Devem ser cumpridas as recomendações do PNV para indivíduos com alterações da coagulação.

BIBLIOGRAFIA

Croteau SE. Evolving complexity in hemophilia management. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 407- 426

Giangrande PLF. Management of haemophilia. Paediatr and Child Health 2015; 25: 350-353

Hoffman R, Benz EJ, Silberstein LE, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Lanzkowsky P. Manual of Pediatric Hematology and Oncology. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011

Moro M, Málaga S, Madero L. Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Oldenburg J. Optimal treatment strategies for hemophilia: achievements and limitations of current prophylactic regimens. Blood 2015; 125: 2038-2044 

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw – Hill Medical, 2011

Srivastava A, Brewer AK, Mauser-Bunschoten EP, et al. Guidelines for the management of hemophilia. Haemophilia 2013; 19: e1- e47

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

Zimmerman B, Valentino L A. Hemophilia: in review. Pediatr Rev 2013; 34: 289 – 294

SÍNDROMAS DE INSUFICIÊNCIA MEDULAR

Definição e importância do problema

A falência ou insuficiência medular caracteriza-se por disfunção dos precursores hematopoiéticos envolvendo uma ou mais linhagens celulares (eritróide, mielóide e/ou megacariocítica, poupando habitualmente a série linfocitária).

As síndromas de falência medular (SFM), na maioria adquiridas, podem também ser hereditárias; estas últimas, de expressão em idade variável e não necessariamente congénitas ou de manifestação no recém-nascido, correspondem a cerca de 20% dos casos.

A incidência desta patologia é estimada em cerca de 2-6 casos por milhão de habitantes, 2-3 vezes superior na Ásia, sem predomínio de género. Verifica-se uma distribuição bimodal com um pico entre os 10 e os 25 anos, e outro depois dos 60 anos.

Embora se trate de situações clínicas potencialmente fatais, com os avanços das técnicas e acessibilidade de transplante de células progenitoras hematopoiéticas (TCPH), o tratamento das comorbilidades e a disponibilidade de novos fármacos, actualmente o prognóstico é cada vez mais favorável.

Etiopatogénese

A aplasia medular adquirida (AA) deve ser distinguida das formas de falência medular hereditárias (síndromas de falência medular hereditárias – SFMH) e das formas hipoplásicas associadas a síndromas mielodisplásicas (SMD).

As SFMH compreendem cerca de 25-30% dos casos na infância. Distinguir entre AA e as formas hereditárias poderá ser difícil na ausência das manifestações clássicas destas síndromas e/ou história familiar sugestiva. Por outro lado, a distinção entre SMD hipoplásicas e AA pode também constituir um desafio diagnóstico.

Nas formas adquiridas, para explicar a falência (ausência ou défice de produção) da medula óssea não se encontram causas na maioria dos casos (70-80%); este grupo constitui, por isso, as chamadas formas idiopáticas. Nos restantes 20-30% os factores etiológicos encontrados são: exposição a certos fármacos, químicos e vírus infectando os precursores medulares (sobretudo, vírus da imunodeficiência humana/VIH, vírus de Epstein-Barr/VEB, citomegalovírus/CMV, parvovírus B19 e das hepatites).

Os fármacos mais frequentemente associados a insuficiência medular são: cloranfenicol (sistémico), citosina-arabinósido, vincristina, ciclofosfamida, carbamazepina, difenil-hidantoína, indometacina, fenilbutazona, cloroquina, quinidina, acetazolamida, penicilamina, alopurinol, sulfametoxazol-trimetoprim, lítio, metildopa, etc..

Relativamente aos agentes químicos citam-se alguns insecticidas, certos metais de ouro e bismuto, perclorato de potássio, etc..

Na base da anomalia verificada parece estar uma perturbação da imunomodulação por intermédio dos referidos agentes exógenos os quais, activando o sistema imune, conduzem a destruição das células progenitoras/estaminais da medula óssea, sendo esta última substituída por tecido adiposo. Durante anos postulou-se que a patogénese da AA seria imunomediada, dada a resposta à terapêutica imunossupressora, bem como à evidência in vitro de que os linfócitos da medula óssea dos doentes com AA suprimem os linfócitos de medulas saudáveis.

Foram demonstradas as seguintes alterações: aumento de citocinas, e diminuição dos linfócitos T CD4 reguladores e CD8 citotóxicos. Os doentes com AA adquirida têm um número reduzido de linfócitos T reguladores (CD4+/ CD25+). O número destes linfócitos correlaciona-se negativamente com a gravidade da doença, e positivamente com falência do tratamento.

As formas hereditárias (SFMH) fazem geralmente parte de quadros sindromáticos caracterizados pela presença de citopénias e alterações fenotípicas variáveis. As principais, descritas com mais pormenor adiante, são: anemia de Fanconi (AF), anemia de Diamond-Blackfan, síndroma de Schwachman-Diamond (SSD), disqueratose congénita e trombocitopénia amegacariocítica.

Em determinadas situações existe associação a anomalias congénitas (baixa estatura, defeitos no rádio e polegar); contudo, a presença de dismorfismos não é obrigatória.

Está descrito um risco aumentado de doenças malignas (especialmente SMD, leucemia mielóide aguda, tumores sólidos, carcinomas de células escamosas atingindo o pescoço, cabeça e tracto genital).

Manifestações clínicas e exames complementares

A maioria das crianças apresenta-se com sinais e sintomas relacionados com as citopénias (palidez/anemia, infecção/neutropénia, diátese/trombocitopénia), enquanto uma pequena parte é identificada no âmbito de avaliação analítica ocasional (salientando-se a presença de macrocitose como sinal importante de disfunção medular).

As manifestações são explicáveis pelas diferenças de vida média entre plaquetas e leucócitos (mais curta), em relação à dos eritrócitos (mais longa). Assim, surgem primeiramente manifestações de diátese por trombocitopénia (petéquias, equimoses, epistaxes e gengivorragias).

Os sinais de infecção não surgem, em geral, como manifestação inicial excepto nos casos de número de granulócitos < 200/μL; podem estar presentes febre, infecções bacterianas e gengivoestomatite.

A anemia, de instalação lenta (macrocítica normocrómica), traduz-se por palidez da pele e mucosas, astenia, dispneia, entre outros sinais e sintomas. As manifestações clínicas variam em função do grau de pancitopénia. Tipicamente não existem adenopatias nem hepatosplenomegália.

O grau de disfunção (e a gravidade), definido (a) pela celularidade medular e pelo resultado das contagens periféricas de reticulócitos, plaquetas e neutrófilos, pode classificar-se como: moderado/não grave, grave e muito grave. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Classificação da falência medular de acordo com a gravidade

Moderada

Celularidade medular < 50%, 2 ou 3 linhagens celulares reduzidas > 6 semanas:
• Neutrófilos (número absoluto) < 1500/μL
• Plaquetas < 100.000/μL
• Reticulócitos < 60.000/μL

Grave

Celularidade medular < 25% associada a pelo menos 2 dos seguintes critérios:
· Neutrófilos (número absoluto) < 500/μL
· Plaquetas < 20.000/μL
· Reticulócitos < 20.000 /μL

Muito grave

Critérios da AA grave + Neutrófilos < 200/μL

 

Os resultados laboratoriais evidenciam sinais sugestivos de insuficiência medular: diminuição do número de reticulócitos (anemia arregenerativa), formas anormais de leucócitos ou elementos mielóides muito imaturos (mais imaturos que bastonetes), plaquetas pequenas, e volume globular médio elevado em desproporção com o valor baixo de reticulócitos. A hemoglobina fetal (HbF) está muitas vezes aumentada.

Classicamente o mielograma evidencia medula óssea hipocelular, rica em gordura, células plasmáticas e reticulares. A biópsia óssea, fundamental para estabelecer o diagnóstico definitivo, permite avaliar o grau de celularidade.

Seguidamente são abordadas de modo sucinto algumas SFMH, bem como outras entidades clínicas a considerar no diagnóstico diferencial.

Anemia de Fanconi (AF)

Trata-se da SFMH mais frequente. De transmissão autossómica recessiva (raramente ligado ao X), decorre de um defeito do mecanismo de reparação do ADN com consequente predisposição a doença maligna (designadamente mielodisplasia, leucemia mieloide e tumores dos tecidos epiteliais). O diagnóstico é feito em geral, entre os 8-10 anos, variando do nascimento aos 30 anos.

Em cerca de 60% dos casos existem anomalias congénitas associadas. Os achados mais típicos e frequentes são: baixa estatura, defeitos dos polegares (por ex. agenésia, dedo supranumerário ou trifalângico – Figura 1), máculas hipopigmentadas ou tipo “café com leite”, anomalias urogenitais (por ex. rim em ferradura), dismorfismo facial (hipoplasia facial, micrognatismo e base nasal alargada).

A disfunção hematológica inicia-se frequentemente com macrocitose, trombocitopénia e evolução para pancitopénia. Estas células têm uma sensibilidade característica predispondo a quebras cromossómicas induzidas por agentes que fazem cross links no ADN, bem como a uma estagnação do ciclo celular na fase G2/M.

O diagnóstico baseia-se:

  • Na demonstração, por estudo citogenético, de quebras cromossómicas espontâneas e induzidas por agentes que provocam lesão do ADN (por ex. mitomicina ou dietil-epoxi-butano – DEB); e
  • No estudo genético (sequenciação do gene FANC – fundamental em termos de orientação e prognóstico).

Têm indicação para pesquisa de anemia de Fanconi todas as crianças com diagnóstico de aplasia medular idiopática, citopénias de causa desconhecida (sobretudo na presença de macrocitose), mielodisplasia, e em presença de alterações fenotípicas (associação VACTERL, alterações dos membros superiores e/ou genitourinárias e irmãos de crianças com este diagnóstico).

Perante quadro de insuficiência medular grave, as opções terapêuticas são o TCPH ou a utilização de androgénios. De salientar que estas terapêuticas apenas tratam a disfunção medular, razão pela qual a vigilância doutras neoplasias deve ser mantida indefinidamente.

FIGURA 1 – Anemia de Fanconi. Defeito do polegar (com 3 falanges). (NIHDE)

Disqueratose congénita (DC)

A DC é uma síndroma de insuficiência medular congénita, mais frequentemente com um padrão de hereditariedade ligado ao cromossoma X. Na forma clássica, apresenta-se com:

  • A tríade clássica de displasia ectodérmica (coloração anormal da pele do pescoço e tronco surgindo habitualmente entre os 6 e os 8 anos), displasia ungueal e leucoplasia da mucosa oral;
  • Medula óssea hipocelular afectando as três séries hematopoiéticas.

Trata-se, pois, de uma forma de displasia ectodérmica geneticamente heterogénea, relacionada com defeitos na manutenção dos telómeros (encurtamento progressivo).

As alterações hematológicas (na generalidade, aplasia medular e pancitopénia) surgem em cerca de 50% dos casos por volta dos 10 anos de idade.

Nas formas atípicas as manifestações mucocutâneas surgem após a insuficiência medular.

Por vezes, as manifestações hematológicas, precedendo a pancitopénia, consistem em trombocitopénia ou anemia macrocítica e níveis elevados de hemogobina F.

As alterações genéticas da DC podem ser mutações no gene DKC1, o qual codifica a disquerina, uma proteína implicada na via das telomerases. Outros genes implicados são o TERC e o TERT.

Existem duas variantes do fenótipo mais grave:

  • Síndroma de Hoyeraal-Hreidarsson (hipoplasia cerebelosa e atraso do desenvolvimento psicomotor); e
  • Síndroma Revesz (semelhante à Hoyeraal-Hreidarsson), mas associada a retinopatia exsudativa.

O diagnóstico de DC implica a presença de 2 dos sinais da tríade clássica associada a uma mutação conhecida ou telómeros curtos. A existência de telómeros curtos no sangue periférico é o achado mais característico, ao ponto de a verificação de telómeros de comprimento normal poder excluir DC.

O diagnóstico de DC pode ser difícil, dado que 50% dos doentes não têm mutação identificada; assim, a medição dos telómeros linfocitários constitui um elemento fundamental para o diagnóstico.

Existe susceptibilidade aumentada para o desenvolvimento de neoplasias como SMD/leucemia mielóide, e tumores sólidos (epiteliais da cabeça e pescoço e região anogenital).

O tratamento é essencialmente de suporte. Poderão ser ponderados o TCPH e, eventualmente, a utilização de androgénios.

Anemia de Diamond-Blackfan

Trata-se duma aplasia eritróide “pura”. A transmissão hereditária é variável; na maioria, trata-se de casos esporádicos.

Segundo os resultados laboratoriais, verifica-se anemia macrocítica tipicamente isolada (podendo, no entanto, coexistir neutropénia e/ou trombocitopénia ligeiras), acompanhada de elevação da hemoglobina fetal (Hb F) e aumento da adenosina deaminase eritrocitária (ADAe).

O aumento da ADAe, de causa não totalmente esclarecida, foi proposto como marcador diagnóstico, com uma sensibilidade de 84% e especificidade de 95%.

A mutação mais frequentemente encontrada é a da proteína ribossomal RPS19 (25%). Em 50% dos casos não existe nenhuma mutação conhecida.

As manifestações surgem no recém-nascido ou durante o primeiro ano de vida em 90% dos casos. Do fenótipo podem fazer parte: baixa estatura/comprimento, polegar trifalângico, pterigium colli, lábio leporino, etc..

A terapêutica passa essencialmente pelo suporte transfusional (sobretudo no primeiro ano de vida) e corticoterapia (60% dos doentes têm resposta, devendo utilizar-se a dose mínima eficaz). Nos casos em que exista elevada dependência transfusional, deverá ser discutida a possibilidade de TCPH.

Existe risco elevado de neoplasias, nomeadamente de mielodisplasia/leucemia mielóide aguda, neoplasia do cólon e de osteossarcoma.

Síndroma de Shwachman-Diamond (SSD)

A etiopatogénese prende-se com uma mutação no gene SBDS, que codifica uma proteína necessária ao metabolismo do ARN.

A SSD é caracterizada por neutropénia (pode estar também presente anemia e trombocitopénia de menor gravidade), insuficiência pancreática exócrina e disostose metafisária.

Em tais situações pode também verificar-se baixa estatura, má progressão ponderal, exantema, alterações dos dentes, bem como sindactilia. Além da história clínica, o doseamento da elastase fecal, do tripsinogénio e da isoamilase pode ser útil para o diagnóstico.

Trombocitopénia amegacariocítica

(ver capítulo sobre Trombocitopénia)

Esta afecção deve ser suspeitada em doentes com trombocitopénia isolada sem os estigmas clássicos da anemia de Fanconi ou da síndroma de trombocitopénia com ausência de rádio (síndroma TAR). Por vezes, são verificadas comorbilidades como microcefalia, baixo peso de nascimento, alterações do neurodesenvolvimento, cardiopatia, anomalias estruturais do sistema nervoso central e anomalias ósseas.

A apresentação clínica na maioria dos casos integra a presença de trombocitopénia isolada, ausência de megacariócitos na medula e evolução para pancitopénia. A hereditariedade pode ser autossómica recessiva ou ligada ao cromossoma X. Em geral, relaciona-se com mutações no gene do receptor da trombopoietina (MPL); contudo, outros genes foram implicados como RUNX1, ANKRD26, MYH9 e PTPN1.

Existe risco de evolução para SMD/LMA. A realização de TCPH, que é curativa, idealmente deve ser realizada previamente à falência medular.

Linfo-histiocitose hemofagocitária

Esta síndroma (hemofagocitária) consiste num quadro de hiperinflamação com desregulação da resposta imune e, consequentemente, inefectiva. Pode ser de causa genética ou secundária a infecções (designadamente por VEB, CMV), a doenças malignas, situações autoinflamatórias ou a doenças metabólicas.

Verifica-se hipercrescimento de histiócitos com consequente fagocitose histiocitária das células sanguíneas nos gânglios linfáticos, medula óssea, fígado e baço.

As manifestações mais típicas são: pancitopénia, hepatosplenomegália, hipertrigliceridémia e pleiocitose no líquido cefalorraquidiano.

Hemoglobinúria paroxística nocturna

(ver Capítulo próprio)

Esta doença, rara na infância, manifesta-se em geral depois dos 5 anos de idade. Caracterizando-se por hemólise intravascular moderada a grave, é mediada pelo complemento e pode estar associada a anemia aplástica, trombose e ferropénia.

Em cerca de 30% dos casos comprova-se hipoplasia medular. A AA pode apresentar-se por expansão de um clone que já perdeu o grupo glicosil fosfatidilinositol (GPI), característico da hemoglobinúria paroxística nocturna (HPN). A citometria de fluxo para pesquisa dos grupos GPI deve ser feita de forma a excluir clones HPN.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial em geral faz-se com situações que cursam com citopénias associadas a:

  1. Infiltração ou fibrose medular (leucemia, tumores sólidos como neuroblastoma, doenças de armazenamento, osteopetrose e mielofibrose) acompanhada de pancitopénia.
  2. Carência de vitamina B12 e ácido fólico em que se verifica destruição intramedular de elementos hematopoiéticos.
  3. Destruição periférica aumentada (ao nível do baço, fígado ou outros territórios do sistema reticuloendotelial) de células sanguíneas maduras – hiperesplenismo – associada a quadros clínicos diversos tais como hipertensão portal, talassémia, histiocitose, malária e doenças de armazenamento.
    São a favor de destruição periférica a presença de reticulocitose, elementos eritróides ou mielóides imaturos no esfregaço de sangue periférico, plaquetas de dimensões aumentadas, elevação do nível de bilirrubina não conjugada e da desidrogenase láctica, e diminuição da haptoglobina.
  1. Crises aplásticas no contexto de anemia hemolítica crónica (sobretudo relacionada com infecção por Parvovirus B19).
  2. Citopénia isolada da linhagem eritrocitária – eritroblastopénia transitória da infância na qual ocorre supressão imunológica transitória da eritropoiese, em geral entre os 6 meses e os 3 anos de idade, e de modo insidioso, na criança previamente saudável. A anemia pode ser grave, mas a remissão é espontânea em 1-2 meses. Ao contrário da anemia de Diamond-Blackfan, a percentagem de HbF é normal e a anemia é sempre normocítica.

Tratamento da AA grave e muito grave

As medidas gerais de suporte em situações de insuficiência medular, a ponderar em função do quadro clínico e hematológico, incluem:

  • Transfusões de plaquetas (se valor < 10.000/μL em doentes assintomáticos, < 20.000/μL se febre ou se hemorragia activa) e de concentrado eritrocitário (se Hb < 6-7 g/dL ou em doentes sintomáticos).
    Os produtos deverão ser irradiados e deverá ser minorado o número de transfusões (com o objectivo de se diminuir o risco de doença do enxerto contra hospedeiro associada à transfusão, e de hemossiderose secundária). Nas adolescentes há que ponderar a supressão da menstruação.
  • Antibioticoterapia de largo espectro (por exemplo piperacilina tazobactam em associação, ou não, a aminoglicosídeo, mediante gravidade do caso e de acordo com orientações institucionais) por via parentérica em situações acompanhadas de febre e após colheitas de sangue ou outros produtos para exames culturais.

Na AA o tratamento de primeira linha é o alotransplante medular precoce (com sobrevivência de 85-97%). Na ausência de dador familiar, ou não relacionado histocompatível, deve ser iniciada imunossupressão com globulina antitimócito de cavalo (melhor resposta que a de coelho), associada a ciclosporina A de acordo com as recomendações internacionais. A terapêutica imunossupressora está associada a taxas de resposta entre 60-75%, com uma sobrevivência de 80-90% e recidiva de 10-30%.

Como segunda linha poderão ser utilizados outros imunossupressores, ser considerada a utilização de agonistas rTPO ou outras modalidades de transplante (haploidêntico).

O tratamento da AA moderada é controverso dado que a evolução é variável; certa parcela de casos evolui para AA severa e outra parcela regride espontaneamente.

Nas SFMH, para além da terapêutica específica para a insuficiência medular deve providenciar-se:

  • Vigilância clínica rigorosa na perspectiva sobretudo de neoplasias; e
  • Aconselhamento genético.

BIBLIOGRAFIA

Alter BP, Giri N, Savage SA, et al. Cancer in dyskeratosis congenita. Blood 2009; 113: 6549–6551

Barone A, Lucarelli A, et al. Diagnosis and management of acquired aplastic anemia in childhood. Guidelines from the Marrow Failure Study Group of the Pediatric Haemato-Oncology Italian Association (AIEOP). Blood Cells, Molecules, and Diseases 2015; 55: 40–47

Chirnomas S, Kupfer G. The inherited bone marrow failure syndromes. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 1291–1310.

Freitas O, Braga L, et al. Anemias aplásticas. Revisão de 10 anos (2002-2011) na Unidade de Hematologia do Hospital Dona Estefânia, Lisboa. Reunião clínica de 10 de Abril de 2012

Green AM, Kupher GM. Fanconi anemia. Hematol Oncol Clin North Am 2009; 23: 193-214

Hoffman R, Benz EJ, Abutalib SA (eds). Hematology. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Korthof E, Bekassy A, Hussein A. Management of acquired aplastic anemia in children. Bone Marrow Transplantation 2013; 48: 191–195

Marsh JCW. Guidelines for the diagnosis and management of aplastic anaemia. Br J Haematol 2009; 147: 43-70

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nathan DG, Orkin SH, Look AT, Ginsburg D (eds). Nathan and Oski’s Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia: Saunders, 2009

Noronha SA. Aplastic and hypoplastic anemias. Pediatr Rev 2018; 39: 601-611. DOI: 10.1542/pir.2017-0250

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Samarasinghe S, Webb DK. How I manage aplastic anaemia in children. Br J Haematol 2012; 157: 26-40

Savasan S. Acquired aplastic anemia: what have we learned and what is in the horizon? Pediatr Clin North Am 2018; 65: 597-606

Scheinberg P. Aplastic anemia: therapeutic updates in immunosuppression and transplantation. Hematol/Educ Program Am Soc Hematol Am Soc Hematol Educ Program 2012: 292-300

Shimamura A, Alter BP. Pathophysiology and management of inherited bone marrow failure syndromes. Blood Reviews 2010; 240: 101-122

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

Townsley DM, Dumitriu B, Young NS. Bone marrow failure and the telomeropathies. Blood 2014;124: 2775-2783

Vlachos A, Muir E. How I treat Diamond-Blackfan anemia. Blood 2010;116: 3715-3723

ANOMALIAS FUNCIONAIS DAS PLAQUETAS

Importância do problema e sistematização

As manifestações clássicas de disfunção plaquetar, de gravidade variável, são as características da hemostase primária: diátese mucocutânea (nomeadamente petéquias, equimoses, epistaxe e menorragia). Com efeito, a verificação de petéquias e equimoses no mesmo doente aponta no sentido de alteração da função das plaquetas.

Previamente consideradas raras em idade pediátrica, as anomalias funcionais das plaquetas são cada vez mais reconhecidas. Estudos recentes sugerem que estes distúrbios poderão ser tão frequentes como a doença de von Willebrand nalguns grupos de doentes (tais como adolescentes com menorragia). Contudo, uma vez que as alterações nestes dois grupos de doenças ocorrem ao mesmo nível (hemostase primária) não é possível distinguir os referidos grupos apenas com base nas manifestações clínicas.

As anomalias funcionais das plaquetas podem ser congénitas ou adquiridas. A base etiopatogénica de tais anomalias assenta fundamentalmente em defeitos de proteínas de membrana, de receptores ou de grânulos plaquetários.

Anomalias funcionais congénitas

Dum modo geral, as anomalias funcionais plaquetárias congénitas relacionam-se com defeitos do receptor do FvW (complexo de glicoproteína GPIb) ou do receptor do fibrinogénio (GP-IIb-IIIa).

Formas graves como as que se descrevem adiante (trombastenia de Glanzmann e síndroma de Bernard Soulier) são raras, mas de diagnóstico mais fácil. As formas que cursam com disfunção ligeira, de diagnóstico mais difícil, poderão não ser identificadas com as provas de rastreio habituais.

É dada ênfase às seguintes formas clínicas que se seguem.

Trombastenia de Glanzmann

É uma doença autossómica recessiva provocada pela ausência ou disfunção do complexo GP IIb-IIa na superfície da plaqueta. Este receptor é responsável pela ligação da plaqueta a proteínas de adesão (fibrinogénio, factor de von Willebrand e fibronectina). Estão descritas duas formas clínicas: tipo I (em que há ausência total da GP), e tipo II (em que há défice parcial variável – 5% a 25%).

Como consequência do defeito, e em resposta aos agonistas habituais (trombina, ácido araquidónico, colagénio, ADP), não se verifica agregação plaquetária, ou esta é anómala.

Como nota característica aponta-se que o valor da contagem de plaquetas é adequado e o volume (VPM) é normal.

As manifestações são variáveis, desde equimoses fáceis até hemorragias fatais (mais graves na trombastenia tipo I).

Síndroma de Bernard-Soulier

Trata-se duma macrotrombocitopénia (outras doenças deste grupo incluem a anomalia de May-Hegglin e a síndroma da plaqueta cinzenta). A transmissão é autossómica recessiva e a disfunção é causada pela ausência ou diminuição do complexo GPIb/IX/V na superfície plaquetar. Este complexo actua como receptor do factor de von Willebrand.

As manifestações clínicas traduzem-se fundamentalmente por hemorragias gengivais espontâneas; concomitantemente, existe risco aumentado de hemorragia relacionada com traumatismos e pós-operatória.

Como achados laboratoriais salientam-se: trombocitopénia discreta e VPM aumentado.

Anomalias dos grânulos plaquetários

Estas incluem um grupo heterogéneo de defeitos associados à diminuição do número, conteúdo ou libertação dos grânulos. Muitas destas anomalias associam-se a defeitos dos grânulos densos (delta) ou alfa. Na maioria dos casos os defeitos de libertação ocorrem em contexto sindromático.

São exemplos as síndromas de Hermansky-Pudlak e de Chediak-Higashi, e a deficiência de grânulos densos (delta) idiopática. As manifestações hemorrágicas são geralmente benignas.

Anomalias funcionais adquiridas

Na prática clínica poderão surgir situações diversas originando secundariamente anomalias funcionais das plaquetas tais como: insuficiência renal, hepatopatias diversas, coagulação intravascular disseminada (CIVD), etc..

A administração de fármacos como antibióticos em doses elevadas (penicilina, cefalosporinas, carbenicilina), certos anestésicos, anti-histamínicos, psicotrópicos, ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não esteroides, poderá conduzir igualmente às referidas anomalias. Salienta-se a importância de questionar o doente previamente à realização de provas de função plaquetar para uma adequada interpretação dos resultados.

Exames complementares

  1. O diagnóstico de disfunção plaquetar constitui um desafio. Na presença de diátese mucocutânea e/ou história familiar, a avaliação inicial deve incluir hemograma (com VPM), morfologia do sangue periférico, TP e aPTT. Adicionalmente deve excluir-se doença de von Willebrand (pela frequência e relativa facilidade de acesso aos exames laboratoriais para diagnóstico).
  2. Historicamente utilizava-se o tempo de hemorragia para avaliar a função plaquetária. Contudo, tal análise é difícil de realizar na criança pequena, é pouco reprodutível, e pouco sensível para distúrbios ligeiros-moderados.
  3. Por isso, foi substituída por outro exame analítico como o PFS (Platelet Function Screen), o qual se encontra facilmente disponível, é reprodutível, e pode ser realizado na criança pequena. É igualmente pouco sensível nos distúrbios ligeiros.
    Uma vez que é influenciado: – pelo factor de von Willebrand, – pelo valor da contagem de plaquetas (nº de plaquetas < 100.000/mcL não permitindo uma correta interpretação dos resultados), – pelo hematócrito (especialmente se inferior a 30%), e – por fármacos, etc., se o resultado evidenciar alteração, deve ser confirmado.
  4. O exame de eleição para esta patologia é a Avaliação formal da agregação plaquetar com diversos agonistas, evidenciando maior sensibilidade que o PFS; contudo, não está tão amplamente disponível, é difícil de interpretar e reproduzir, e tem custos mais elevados.
  5. Outros exames que podem ser utilizados de acordo com a suspeita clínica incluem avaliação de glipoproteínas de membrana por citometria de fluxo, microscopia electrónica (anomalias dos grânulos) e estudos moleculares.

Tratamento

Medidas de suporte

Para além da terapêutica para as situações de maior gravidade é fundamental que o doente e família saibam como proceder perante algumas hemorragias (nomeadamente epistaxe). É necessário validar estas práticas na consulta (tempo e local de compressão, utilização de agentes lubrificantes e humidificadores).

Salientando que a patologia em análise comporta risco elevado de anemia ferropénica, importa proceder a vigilância e a eventual suplementação com ferro de acordo com a clínica e avaliação laboratorial. Nas adolescentes com menorragias, há que ponderar a administração de anticonceptivos orais.

É igualmente importante reforçar os cuidados de higiene dentária para evitar inflamação da mucosa (agravamento de gengivorragia) perante a necessidade de procedimentos invasivos e de extrações dentárias.

Os anti-inflamatórios não esteroides (AINE) devem ser evitados.

Tratamento não farmacológico

As transfusões de plaquetas devem ser reservadas para situações de hemorragia grave. Para além das reações alérgicas, e outras, associadas às transfusões, existe o risco de aloimunização que poderá determinar a condição de “paciente refractário a transfusões de sangue”. A utilização de agentes hemostáticos em geral deve ser ponderada sempre que possível.

Tratamento farmacológico

A utilização de antifibrinolíticos (ácido aminocapróico e tranexâmico) está estabelecida na hemorragia de mucosas e nos casos de extracções dentárias. Devem ser mantidos até cicatrização, geralmente durante 5 a 10 dias. Podem ser utilizados em conjunto com outros fármacos facilitando a hemostase e estabilizando o coágulo. Podem também ser utilizados na epistaxe recorrente e em casos de menorragias.

A desmopressina, actuando por um mecanismo não esclarecido, melhora a função plaquetar em cerca de 2/3 dos doentes com disfunção ligeira; por isso, pode ser uma alternativa neste grupo de doentes, devendo entretanto ser formalmente avaliada de forma electiva. Não deve ser utilizada antes dos 2-3 anos de idade.

Hemorragias mais importantes, não controladas com as medidas anteriores, devem ser tratadas com factor VII recombinante activado (rFVIIa) e transfusões de plaquetas.

O rFVIIa tem sido utilizado em doentes com disfunção plaquetar grave, nomeadamente trombastenia de Glanzmann como meio de evitar transfusões de concentrados de plaquetas; igualmente em doentes refractários. A sua eficácia é variável.

Nas formas de disfunção plaquetar adquirida o tratamento, logicamente, consiste em eliminar a causa.

BIBLIOGRAFIA

Andrews RK, Berndt MC. Platelet physiology and thrombosis. Thromb Res 2004; 114: 447-453

Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hoffman R, Benz EJ, Silberstein LE, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Israels S J, et al. Platelet disorders in children: a diagnostic approach. Pediatr Blood & Cancer 2011; 56: 975–983

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Matthews, DC. Inherited disorders of platelet function. Pediatr Clin N Am 2013; 60: 1475–1488

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg O, Look AT (eds). Nathan and Oski’s Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia: Saunders, 2014

O’Brien SH. An update on pediatric bleeding disorders: bleeding scores, benign joint hypermobility, and platelet function testing in the evaluation of the child with bleeding symptoms. Am J Hematol 2012; 87 (Suppl 1): S40-44

Posan E, McBane RD, Grill DE, et al. Comparison of PFA-100 testing and bleeding time for detecting platelet hypofunction and von Willebrand disease in clinical practice. Thromb Haemost 2003; 90: 483-490

Ramasamy I. Inherited bleeding disorders of platelet adhesion and aggregation. Crit Rev Oncol hematol 2004; 49: 1-35

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Shapiro AD. Platelet function disorders. Haemophilia 2000; 6: 120-127

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

TROMBOCITOPÉNIA E TROMBOCITOSE

1. TROMBOCITOPÉNIA

Definição, patogénese e importância do problema

A trombocitopénia, independentemente da idade, define-se como uma redução da concentração plaquetária – mais de dois desvios-padrão (2DP) abaixo da média populacional, ou seja, < 150.000/μL (ou < 150 x 109/L).

Podendo ser congénita ou adquirida, ocorre por um ou mais dos seguintes mecanismos:

  1. Diminuição da produção (ex. infiltração neoplásica, infecção, fármacos, causas genéticas);
  2. Aumento da destruição periférica (ex. fenómenos imunológicos ou mecânicos angiopáticos);
  3. Retenção esplénica (ex. esplenomegália congestiva ou infiltrativa). Na sua grande maioria (mais de 95% dos casos) a trombocitopénia faz parte da entidade clínica designada por púrpura trombocitopénica idiopática (PTI) com uma incidência mundial de aproximadamente 4 a 6 em cada 100.000 crianças. (ver adiante)

As plaquetas, fragmentos celulares libertados pelos megacariócitos na medula óssea, são essenciais para a hemostase primária. A sua produção é regulada pela trombopoietina (TPO), e após circularem durante 8 a 10 dias, são fagocitadas pelos macrófagos do sistema reticuloendotelial (SRE).

O seu papel na hemostase primária baseia-se na adesão aos locais de lesão vascular; na secreção de mediadores de hemostase (ex: histamina e serotonina) com vasoconstrição local e na agregação entre si, através do fibrinogénio. Assim, a deficiência qualitativa e/ou quantitativa de plaquetas condiciona um potencial risco hemorrágico.

Habitualmente, o baço contém cerca de um terço do volume total de plaquetas, atuando como um reservatório. Na presença de um factor de estresse (ex. hemorragia aguda), ocorre libertação de adrenalina com consequente contracção esplénica e aumento temporário do número de plaquetas circulantes.

Factores etiológicos

No Quadro 1 encontram-se enumerados os principais factores etiológicos em idade pediátrica, após o período neonatal (neste último caso, a trombocitopénia é abordada em capítulo próprio, na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia).

QUADRO 1 – Factores etiológicos da trombocitopénia

Diminuição de produção
Anemia aplásica
Infiltração medular
Lesão induzida por fármacos/radiação
Carências nutricionais (ferro, folato, vitamina B12)
Causas genéticas
Sequestro
Hiperesplenismo
Hipotermia
Diluição pós-transfusional
Diminuição da sobrevida
Trombocitopénia imune
Doença utoimune/linfoproliferativa
Pós-transfusional/pós-transplante
Alergia/anafilaxia
Infecção
Fármacos
Mecânica
Patologia cardiopulmonar
Cateteres/próteses vasculares
Vasculites
Coagulação intravascular disseminada
Síndroma hemolítica urémica
Púrpura trombocitopénica trombótica
Infecção
Síndroma de Kasabach-Merritt

Semiologia clínica e laboratorial

A trombocitopénia pode manifestar-se por diátese, mais frequentemente mucocutânea – petéquias, equimoses, epistaxe e gengivorragias (mais evidentes quando o valor da contagem é inferior a 20.000/μL). Os défices mais graves podem apresentar-se com bolhas hemorrágicas na mucosa oral, hemorragia gastrintestinal, hematúria, menorragias, o que comporta risco acrescido de hemorragia intracraniana. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Relação entre o valor numérico de plaquetas e tipo hemorrágico

Plaquetas (x103/µL)Tipo de hemorragia
> 100Assintomática
50-100Mínima (após intervenção cirúrgica ou traumatismo major)
20-50Leve (cutânea)
2-20Moderada (mucocutânea)
< 5Grave (sistema nervoso central)

Ao contrário do que ocorre nas patologias da hemostase secundária (por ex. hemofilia), as hemorragias dos tecidos moles, músculos ou intrarticulares são muito mais raras.

Nas situações em que a trombocitopénia é um achado laboratorial (sem manifestações clínicas associadas), os valores devem ser confirmados numa segunda amostra.

Na presença de aglutininas frias ou de anticorpos (Ac.) em circulação, dependentes do anticoagulante (ácido etilenodiaminotetracético – EDTA), as plaquetas agregam-se e não são contabilizadas pelos sistemas automáticos; este fenómeno determina, pois, um quadro de pseudotrombocitopénia. Assim, em tal circunstância, a segunda amostra deverá ser colhida em tubo de citrato.

Existem alguns dados que nos poderão indicar a possível etiologia da trombocitopénia. Nas situações de disfunção medular (síndromas de falência medular – ver capítulo próprio) existe, frequentemente, um atingimento concomitante das outras linhagens sanguíneas bem como macrocitose.

Nas situações em que a trombocitopénia é isolada (sem outras citopénias) importa considerar as causas imunes (trombocitopénia imune) e as congénitas (trombocitopénias hereditárias – TH).

Os exames complementares devem ser ponderados após anamnese e exame objectivo tendo em conta, para além da idade de apresentação e do estado geral, a presença de defeitos congénitos, assim como o padrão do crescimento e do neurodesenvolvimento.

Formas clínicas

Discriminam-se a seguir as principais entidades clínicas em que se verifica trombocitopénia.

1. Trombocitopénia imune aguda

Esta forma clínica é causada pela produção de autoanticorpos inespecíficos, habitualmente IgG que se ligam à superfície das plaquetas, amplificando a sua fagocitose pelos macrófagos (SRE) através de um receptor Fc e interferindo na trombopoiese.

Apresenta dois picos de incidência, entre os 2-5 anos de idade, mais frequente no sexo masculino (1,7:1) e outro na adolescência, predominantemente no sexo feminino. A taxa de incidência anual situa-se entre 1 e 6 casos/100.000 crianças.

Em cerca de 50% dos casos surge entre 1-4 semanas após uma infecção vírica inespecífica ou após infecção por vírus Epstein Barr (VEB), varicela-zóster (VZV) ou VIH. Na varicela, para além da trombocitopénia imune, pode verificar-se formação de anticorpos contra as proteínas S e/ou C, levando a alterações mais complexas da hemostase. Estima-se também que as imunizações (por ex. com vacina anti-sarampo-parotidite-rubéola – VASPR) possam estar relacionadas com a produção de imunoglobulinas antiplaquetárias em cerca de 2,6/100.000 crianças, nas 6 semanas seguintes à inoculação. Nestas situações deve proceder-se ao estudo serológico e, no caso de ausência de imunidade, recomenda-se uma segunda dose da vacina.

As manifestações clínicas clássicas traduzem-se pelo aparecimento súbito de exantema petequial generalizado sem outras alterações. O baço é palpável em cerca de 10% dos casos. Ocasionalmente, podem ser observadas linfadenopatia e/ou hepatomegália ligeiras, habitualmente secundárias à infecção vírica desencadeante. No entanto, a sua presença deverá alertar para outras situações mais graves. Na trombocitopénia imune, apesar dos baixos níveis de plaquetas, o risco hemorrágico é inferior ao descrito na trombocitopénia decorrente doutra etiopatogénese.

Através de exames laboratoriais verifica-se trombocitopénia isolada, mais frequentemente com valores entre < 30.000/μL e < 20.000/μL (80% dos casos), e < 10.000/μL (em 10%). O aumento da actividade medular traduz-se num aumento do volume plaquetar médio (VPM). Habitualmente, os valores da hemoglobina (Hb) e do volume globular médio (VGM) são normais, excepto em situações de hemorragia moderada a grave, em que podem estar diminuídos.

Mesmo na ausência de anemia deve realizar-se a prova da antiglobulina directa (Coombs directa) para excluir existência de anticorpos antieritrócito e, designadamente, síndroma de Evans (anemia hemolítica e trombocitopénia imunes).

Os valores das contagens total e diferencial de leucócitos, o estudo da coagulação e as provas de função plaquetária também se encontram dentro de parâmetros normais. Através da observação do esfregaço sanguíneo comprova-se apenas escassez de trombócitos e ausência de agregados plaquetares.

A presença do anticorpo antinuclear (ANA) é mais frequente no adolescente, podendo indicar uma maior predisposição para a evolução para a cronicidade.

Em situações que cumprem os critérios supracitados, em crianças estáveis, não está indicada a realização de mielograma desde que a morfologia de sangue periférico tenha sido avaliada por patologista clínico experiente (salientando-se a necessidade de excluir a presença de blastos). Pelo contrário, é obrigatória a sua realização na presença de situações atípicas, antes da instituição de corticoterapia e na ausência de resposta à terapêutica.

A PTI é um diagnóstico de exclusão, devendo ser afastadas todas as situações de trombocitopénia em que é preservado o estado geral, concretamente as decorrentes de exposição farmacológica, patologia autoimune, hiperesplenismo e anemia de Fanconi.

Em cerca de 75% das situações ocorre um aumento plaquetário progressivo nas 2 a 3 semanas seguintes, com paralela diminuição da tendência hemorrágica e resolução espontânea completa dentro de 6 meses.

De referir que não está completamente esclarecido o mecanismo que regula a produção de anticorpos anti-plaquetas quando se verifica remissão espontânea da PTI.

No que respeita ao tratamento, importa atender aos seguintes procedimentos:

  • Os cuidados gerais (em geral aplicáveis a todas as formas clínicas de trombocitopénia) podem ser realizados em ambulatório, com repouso relativo adequado à criança. Devem ser dadas orientações aos pais/familiares e prestadores de cuidados (esclarecimento quanto à benignidade da situação e alerta para os sinais de alarme – ver Quadro 2), evitadas actividades de risco (ex. desportos de contacto), estimulado o uso adequado de protecções, evitadas injecções intramusculares e fármacos que interfiram na função das plaquetas – por ex. ácido acetilsalicílico, determinados anti-histamínicos e anti-inflamatórios não esteróides (ibuprofeno) – durante o período agudo da doença;
  • A frequência escolar pode ser mantida, com os cuidados referidos anteriormente. Nas adolescentes que já tiveram menarca pode ser considerada supressão hormonal;
  • Vigilância clínica e laboratorial frequentes;
  • Dado que a terapêutica farmacológica não parece influenciar o curso da doença, a mesma deverá ser ponderada caso a caso, e baseada fundamentalmente: nos sinais de alarme e na gravidade das manifestações de diátese (por ex. presença de hemorragia de mucosas ou doutra hemorragia activa); e no valor da contagem de plaquetas (mais frequentemente indicada se inferior a 10.0000 /μL.

Relativamente aos fármacos mais frequentemente utilizados, citam-se:

  • Imunoglobulina endovenosa (IGIV) – actuando por bloqueio dos receptores Fc, reduz a destruição das plaquetas no SRE. Indicada quando se pretende um aumento rápido dos níveis de plaquetas, na dose única de 0,8-1 g/Kg. Com uma eficácia que ronda 80%, permite um incremento plaquetário muito mais acelerado (> 20.000/μL ao 3ºdia; > 50.000/μL entre o 5º e o 7º dias). Por vezes a sua administração associa-se a cefaleia intensa, náuseas, vómitos e, mais raramente, a reações alérgicas e meningite asséptica;
  • Prednisolona oral – existem diversos esquemas possíveis: a) 1-2 mg/kg/dia durante 2 semanas, seguindo-se diminuição lenta; b) 4 mg/kg/dia durante 4 dias (esquema curto de alta dose). À medida que é feito o desmame da corticoterapia poderá ocorrer recaída;
  • Imunoglobulina anti-D – podendo ser utilizada em indivíduos Rh+ (50-75 mg/kg), não esplenectomizados, produz um incremento do número plaquetário sobreponível ao conseguido com IGIV. A principal desvantagem consiste na possibilidade de se desencadear anemia hemolítica transitória. Apresenta em relação à IGIV, a vantagem de poder ser administrada em minutos e com menos efeitos adversos relacionados com a perfusão;
  • Transfusão plaquetária – só deve ser utilizada em contexto de hemorragia muito grave (com risco de vida ou na necessidade iminente de procedimento invasivo). Concomitantemente deve ser realizada corticoterapia (bolus de metilprednisolona) e IGIV.

2. Trombocitopénia imune crónica

Por definição, considera-se trombocitopenia imune (TI) crónica a condição clínica com diminuição do valor do valor das plaquetas persistindo mais de 6-12 meses, na ausência de outras causas de trombocitopénia. Cerca de 20-25% dos casos de início agudo evoluem para cronicidade. Não é possível prever esta evolução embora existam alguns factores aparentemente relacionados – sexo feminino, idade mais avançada na data do diagnóstico, início de sintomas mais insidioso e ausência de infecção ou de antecedentes de vacinação.

No caso de não terem sido pesquisadas na fase inicial, devem ser excluídas outras citopenias imunes (designadamente LES, e síndroma de Evans), imunodeficiência primária, infecção por VIH ou VHC. A infecção por Helicobacter pilory poderá ter um papel na patogênese da TI crónica, pelo que aquela deve ser pesquisada e, se presente, erradicada.

Na maioria dos casos não existe necessidade de tratamento específico, excepto episodicamente (traumatismo grave, cirurgia ou extracção dentária). Nestas situações a prednisolona ou a IGIV, poderão ser utilizadas.

A maioria dos doentes melhora progressivamente, verificando-se um aumento gradual do valor da contagem plaquetária. Desta forma, a esplenectomia está cada vez menos indicada reservando-se para as emergências hemorrágicas e nos doentes com doença imune grave, persistente (> 12 a 24 meses), com diminuição muito significativa da qualidade de vida. Pelo risco de infecção por microrganismos capsulados associado à esplenectomia, esta deve ser evitada antes dos 6 anos de idade, precedida de imunização antipneumocócica e antimeningocócica, e seguida de quimioprofilaxia com amoxicilina durante, pelo menos, 2 anos após a referida intervenção cirúrgica. De destacar que em cerca de 25% das situações a esplenectomia é ineficaz, não sendo conhecidos factores preditivos desta ausência de resposta.

Actualmente existem disponíveis factores estimulantes da trombopoiese (agonistas rTPO – eltrombopag e romiplostin) com resultados encorajadores nos doentes refractários. Como terapêutica de recurso poderão ser utilizados imunossupressores (ciclofosfamida, azatioprina, ciclosporina e/ou o anticorpo monoclonal rituximab).

3. Trombocitopénias hereditárias

Deve suspeitar-se de trombocitopénia hereditária (TH) quando a trombocitopénia não é claramente adquirida ou não responde à terapêutica instituída (as anomalias funcionais das plaquetas são abordadas noutro capítulo).

Muitos casos são diagnosticados apenas em idade adulta, de forma acidental, em análises de rotina (as formas ligeiras a moderadas na maioria dos casos não comportam tendência hemorrágica acrescida).

O diagnóstico requer um elevado grau de suspeição sendo que, na maioria dos doentes na ausência de sinais dismórficos major o primeiro diagnóstico é, erradamente, trombocitopénia imune.

A história clínica é essencial devendo pesquisar-se, para além de alterações esqueléticas (nomeadamente nos membros) e outros defeitos congénitos, a presença de surdez neurossensorial, nefropatia, cataratas, imunodeficiência e alterações do neurodesenvolvimento.

Existem várias classificações de trombocitopénias hereditárias.
Sob o ponto de vista da prática clínica e da orientação diagnóstica afigura-se de maior utilidade a seguinte:

  • Formas sindrómicas: salientando-se a trombocitopénia relacionada com o MYH9 (MYH9-RD), a trombocitopénia ligada ao X (XLT), a síndroma de Wiskott-Aldrich (WAS), a sinostose radiocubital, a síndroma associada a aplasia do rádio (TAR)/de Paris-Trousseau e Jacobsen, e a trombocitopénia associada a sitosterolémia e ao GATA1;
  • Formas não sindrómicas: a síndroma de Bernard Soulier, a trombocitopénia amegacariocítica congénita, a trombocitopénia relacionada com o ANKRD26 e ACTN1, e a trombocitopénia familiar com predisposição para leucemia mielóide aguda, entre outras.

A presença de determinados achados laboratoriais de primeira linha poderá contribuir para o diagnóstico: plaquetas gigantes e corpos de Dohle na MYH9-RD, plaquetas pequenas na XLT/WAS, hemólise/diseritropoiese na trombocitopénia associada ao GATA1, e estomatocitose na sitosterolémia.

4. Outras situações

  1. A presença de febre, palidez, equimoses, adenopatia e/ou hepatosplenomegália sugerem compromisso medular primário, orientando o clínico para a necessidade de realização de aspirado/biópsia medular. A diminuição dos megacariócitos deve-se essencialmente à falência da medula óssea ou leucemia aguda.
  2. Na criança gravemente doente com petéquias, febre, letargia e/ou instabilidade hemodinâmica, a coagulação intravascular disseminada associada a sépsis é o diagnóstico mais provável. Os respectivos achados laboratoriais incluem a leucocitose ou leucopénia, sinais de hemólise, prolongamento dos tempos de protrombina (TP) e de tromboplastina parcial (aPTT) e diminuição dos níveis de fibrinogénio.
  3. Duas entidades relacionadas resultam da lesão vascular endotelial, com consequente anemia microangiopática e consumo plaquetário.

Trata-se da síndroma hemolítica urémica (SHU) e da púrpura trombocitopénica trombótica (PTT). (ver capítulos próprios)

Na SHU, na sua forma típica, muito mais frequente na infância, a lesão é provocada por toxinas produzidas por determinadas estirpes de bactérias, nomeadamente Escherichia coli O157:H7. Esta situação envolve primariamente o rim (oligúria, edema e hipertensão arterial) e a mucosa do cólon (diarreia hemática). Inicialmente a trombocitopénia é ligeira, podendo diminuir rapidamente para valores < 20-30.000/µL, com alguma activação da cascata da coagulação. Todavia, a hemorragia é pouco frequente.

A PTT engloba cinco componentes: anemia hemolítica microangiopática, febre, disfunção renal, trombocitopénia, e anomalias neurológicas (cefaleias, convulsões, hemiparésia e/ou coma). Surge quando multímeros de grandes dimensões do factor de von Willebrand são libertados a partir das células endoteliais vasculares para a circulação, estando ausente a protease ADAMTS13 cuja função é cindir as referidas moléculas em moléculas de menor peso molecular. As grandes moléculas provocam microangiopatia em diversos órgãos, especialmente rim e cérebro.

A PTT pode ser congénita e recorrente (explicada por mutações no gene da ADAMTS13), ou adquirida (em geral no contexto de lúpus eritematoso disseminado, em que surge um autoanticorpo inibidor, neutralizando a protease ADAMTS13. A forma adquirida poderá implicar tratamento com plasmaférese (para remoção do inibidor) e corticoterapia, para além da terapêutica com imunomoduladores.

Na SHU a transfusão plaquetária raramente é necessária. Na maioria dos casos associados a verotoxina, a resolução é espontânea, constando o respectivo tratamento, essencialmente, do suporte das complicações. Nos casos de SHU atípica o tratamento inicial é a plasmaferese; poderá estar indicada a administração de anticorpo monoclonal anti C5 (eculizumab).

Na PTT, o tratamento de eleição é a plasmaférese; a transfusão plaquetária pode exacerbar a situação, devendo ser realizada apenas na presença de hemorragia grave. (ver capítulos das Partes sobre Oncologia, Nefro-Urologia e Hematologia)

2. TROMBOCITOSE

A trombocitose define-se como um valor absoluto de plaquetas superior a 2DP da média populacional, considerando-se um limiar de 500 x103/µL.

A classificação considera duas formas clínicas: primária e secundária (ou reactiva). Na idade pediátrica, a maioria dos casos integra a forma reactiva, transitória, a qual pode ocorrer em até 15% das crianças hospitalizadas. É mais comum no recém-nascido (particularmente no pré-termo) e na criança até aos 2 anos.

Os factores etiológicos são variados, salientando-se a infecção e a ferropénia.

Em geral, trata-se de situações com elevação moderada do número de plaquetas, por vezes assintomáticas, e respondendo ao tratamento da doença de base.

A trombocitose primária é uma entidade muito rara em idade pediátrica (~1/10 milhões). Resulta de uma desregulação dos mecanismos de controlo da produção plaquetária. Pode ocorrer em situação de trombocitémia essencial (TE), policitémia vera (PV) ou outras doenças mieloproliferativas. (Quadro 3)

A TE é uma causa de trombocitose primária, devendo ser considerada quando esta é persistente e não explicada por causas secundárias. O diagnóstico é feito pela pesquisa de mutações patogénicas nos genes JAK2 ou MPL e exclusão de outras doenças mieloproliferativas. As manifestações clínicas quando presentes são habitualmente neurológicas (tonturas, cefaleia, síncope e acidente isquémico transitório), microcirculatórias (eritromelalgia, acroparestesias, isquemia digital e alterações visuais) e gastrintestinais (dor abdominal, náuseas/vómitos). Salienta-se, contudo, a grande maioria de casos assintomáticos.

As complicações podem ser trombóticas ou hemorrágicas.

As opções terapêuticas, reservadas para os casos sintomáticos ou com valores muito elevados de plaquetas, incluem a utilização de ácido acetilsalicílico, anagrelide e, mais raramente neste grupo etário, citorredutores (hidroxicarbamida).

QUADRO 3 – Factores etiológicos de trombocitose

Nota: A presença de microesferócitos, assim como de fragmentos eritrocitários, leucocitários ou de bactérias, podem originar uma situação designada por pseudotrombocitose ou trombocitose espúria.

Primária

Trombocitémia essencial e outras síndromas mieloproliferativas

Secundária ou reactiva

Infecção (aguda ou crónica); Doença inflamatória (intestinal, reumatológica); Doença de Kawasaki; Doença hematológica (ferropénia; anemia hemolítica crónica); hemorragia aguda; neoplasia (linfoma, neuroblastoma, outros tumores sólidos); após exercício e trauma/cirurgia; induzida por drogas (corticoesteróides, alcalóides vinca)

Diminuição da capacidade de reserva esplénica

Asplenia (pós-esplenectomia, congénita, funcional); Induzida por drogas (epinefrina)

BIBLIOGRAFIA

Bansal D, Bhamare TA, Trehan A, et al. Outcome of chronic idiopathic thrombocytopenic purpura in children. Pediatr Blood Cancer 2010; 54:403–407

Bengston KL, Skinner MA, Ware RE. Successful use of anti-CD20 (rituximab) in severe, life threatening childhood immune thrombocytopenic purpura. J Pediatr 2003; 143: 67-73

British Committee for Standards in Haematology. General Haematology Task Force. Guidelines for the investigation and management of idiopathic thrombocytopenia purpura in adults, children and in pregnancy. Br J Hematol 2003; 120: 574-596

Buchanan GR. Thrombocytopenia during childhood: what the pediatrician needs to know. Pediatr Rev 2005; 26: 401–408

Bussel JB, Kuter DJ, George JN, et al. AMG 531, a thrombopoiesis – stimulating protein for chronic ITP. NEJM 2006; 355: 1672-1681

Dame C, Sutor AH. Primary and secondary thrombocytosis in childhood. Br J Haematol 2005; 129:165–177

Fu R, Zhang L, Yang R. Paediatric essential thrombocythaemia: clinical and molecular features, diagnosis and treatment. Br J Haematol 2013;163: 295-302

Harrison CN, Bareford D, Butt N, et al. Guideline for investigation and management of adults and children presenting with a thrombocytosis. Br J Haematol 2010; 149: 352–375

Hoffman R, Benz EJ, Abutalib SA (eds). Hematology. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg O, Look AT (eds). Nathan and Oski’s Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia: Saunders, 2014

Pecci A. Diagnosis and treatment of inherited thrombocytopenias. Clin Genet 2016; 89: 141-153

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Russo G, Miraglia V, Branciforte F, et al. AIEOP-ITP Study Group Effect of eradication of Helicobacter pylori in children with chronic immune thrombocytopenia: a prospective, controlled, multicenter study. Pediatr Blood Cancer 2011; 56: 273–278

Sharma R, Botero JP, Jobe SM. Congenital disorders of platelet function and number. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 561-578

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

NEUTROPÉNIA

Definições

Na idade pediátrica, neutropénia define-se como o número absoluto de neutrófilos no sangue periférico inferior a dois desvios padrão da média para a idade (ver capítulo sobre síndromas hematológicas e Quadro 1).

Na ausência da utilização de tabelas de percentis, podem ser estabelecidas as seguintes noções práticas:

Leucopénia: número absoluto de leucócitos circulantes < 4000/μL ou /mmc., tendo como referência os limites de normalidade: 4500-13.500/μL (7-12 anos).

Neutropénia: designação que corresponde ao número absoluto de neutrófilos no sangue periférico < 1500/μL (entre 1 mês e 10 anos, considerando limites de normalidade os valores 1500 e 8000 células/μL); < 1800/uL em adultos de ambos os sexos; e < 1200/μL em adultos de raça negra.

Em função do número de neutrófilos, a neutropénia pode ser ligeira, com valores entre 1000 e 1500/μL; moderada, com valores entre 500 e 1000/μL; grave, com valores entre 200 e 500/μL; e muito grave, com valores < 200/μL.

Etiopatogénese

Os neutrófilos, fazendo parte do sistema fagocítico, são produzidos a partir de células precursoras da medula óssea. Este processo, denominado mielopoiese, é dinâmico e requer um ambiente medular próprio auxiliado por factores de crescimento hematopioéticos específicos, tais como o factor de crescimento de granulócitos (G-CSF), factor de crescimento de granulócitos-monócitos (GM-CSF), factor de células precursoras (SCF), interleucina 3 (IL-3) e interleucina 6 (IL-6).

Os estádios de maturação dos neutrófilos são: mieloblasto, promielócito, mielócito, metamielócito, bastonete e neutrófilo segmentado. O tempo médio de maturação medular de um neutrófilo é de 10 dias; este é depois libertado para a circulação, onde permanece em média 6 a 10 horas, podendo então migrar para diversos tecidos, onde o seu tempo de semi-vida é curto.

Os neutrófilos circulantes correspondem apenas a 3 a 5% de todos os neutrófilos do corpo humano. Assim se compreende que na etiopatogénese da neutropénia possam estar envolvidos vários mecanismos, tais como: 1) diminuição da produção, 2) mielopoiese ineficaz, 3) aumento da marginalização ou 4) aumento da destruição periférica.

O número total de neutrófilos no sangue periférico depende também da idade e da etnia. O número de leucócitos na data de nascimento é elevado, seguindo-se um declínio rápido a partir das 12 horas, até ao final da primeira semana. Após este declínio, os valores estabilizam até ao ano de idade. Assim, durante a infância, os neutrófilos constituem 20 a 30% da população leucocitária circulante; por volta dos 5 anos de idade, o número de neutrófilos e linfócitos é semelhante e, na adolescência, a percentagem de neutrófilos em relação aos leucócitos totais aumenta, constituindo 70%. (Quadro 1)

De referir que os valores de neutropénia definidos para a raça caucasiana não podem ser utilizados na raça negra; com efeito, estima-se que, em pelo menos 3 a 5% das crianças apresentem valores normais de neutrófilos entre 1000 a 1500/μL.

QUADRO 1 – Valor normal da contagem de leucócitos

IdadeLeucócitosNeutrófilosLinfócitosMonócitosEosinófilos
Média(-2DP+2DP)Média(-2DP+2DP)%Média(-2DP+2DP)%Média%Média%
Nascimento
12 horas
24 horas
1 semana
2 semanas
1 mês
6 meses
1 ano
2 anos
4 anos
6 anos
8 anos
10 anos
16 anos
21 anos
18,1
22,8
18,9
12,2
11,4
10,8
11,9
11,4
10,6
9,1
8,5
8,3
8,1
7,8
7,4
9,0 – 30,0
13,0 – 38,0
9,4 – 34,0
5,0 – 21,0
5,0 – 20,0
5,0 – 19,5
6,0 – 17,5
6,0 – 17,5
6,0 – 17,0
5,5 – 15,5
5,0 – 14,5
4,5 – 13,5
4,5 – 13,5
4,5 – 13,0
4,5 – 11,0
11,0
15,5
11,5
5,5
4,5
3,8
3,8
3,5
3,5
3,8
4,3
4,4
4,4
4,4
4,4
6,0 – 26,0
6,0 – 28,0
5,0 – 21,0
1,5 – 10,0
1,0 – 9,5
1,0 – 8,5
1,0 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,0
1,5 – 8,0
1,5 – 8,5
1,8 – 8,0
1,8 – 7,7
61
68
61
45
40
35
32
31
33
42
51
53
54
57
59
5,5
5,5
5,8
5,0
5,5
6,0
7,3
7,0
6,3
4,5
3,5
3,3
3,1
2,8
2,5
2,0 – 11,0
2,0 – 11,0
2,0 – 11,5
2,0 – 17,0
2,0 – 17,0
2,5 – 16,5
4,0 – 13,5
4,0 – 10,5
3,0 – 9,5
2,0 – 8,0
1,5 – 7,0
1,5 – 6,8
1,5 – 6,5
1,2 – 5,2
1,0 – 4,8
31
24
31
41
48
56
61
61
59
50
42
39
38
35
34
1,1
1,2
1,1
1,1
1,0
0,7
0,6
0,6
0,5
0,5
0,4
0,4
0,4
0,4
0,3
6
5
6
9
9
7
5
5
5
5
5
4
4
5
4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,4
0,3
0,3
0,3
0,3
0,3
0,2
0,2
0,2
0,2
0,2
2
2
2
4
3
3
3
3
3
3
3
2
2
3
3
Valores apresentados em 103/μL, intervalos de confiança de 95% ou percentagem.
Adaptado de Segel GB, et al. Neutropenia in Pediatric Pratice. Pediatr Rev 2008; 29 (1)

Classificação

Relativamente ao tempo de evolução, a neutropénia classifica-se como aguda (inferior a 3 meses) ou crónica (≥ 4 meses).

A neutropénia pode ainda ser classificada como: – central quando existe depleção celular da medula óssea (deficiência na fase inicial de maturação); ou – periférica se a maturação dos neutrófilos na medula óssea é normal.

Para uma abordagem clínica mais prática, neste capítulo optou-se por usar uma classificação baseada no carácter congénito ou adquirido da neutropénia.

Neutropénias adquiridas

As neutropénias adquiridas constituem a forma mais frequente de neutropénia na idade pediátrica. Na sua origem, podem estar várias causas, sendo a infecciosa a mais frequente e benigna. No Quadro 2 estão descritas as causas mais comuns.

QUADRO 2 – Neutropénias adquiridas

CausasFactores Etiológicos/AgentesComentários
Neutropénia pós-infecciosaVírus, bactérias, protozoários e fungosRedistribuição dos neutrófilos, sequestro das células por lesão tecidual e diminuição da produção de neutrófilos.
Neutropénia induzida por fármacosAnalgésicos e anti-inflamatórios não esteróides; anticonvulsantes, anti-infecciosos; antipsicóticos e antidepressivos, antitiroideusReacção de hipersensibilidade (febre, adenopatias, exantema, hepatite, nefrite, pneumonite, anemia aplásica).
Neutropénia imune
AloimuneSensibilização pré-natal a antigénios específicos dos neutrófilos herdados do pai. Presença de anticorpos antineutrófilo circulantes ou fagocitose esplénica.
Autoimune agudaRelacionada com fármacos ou infecções.
Autoimune crónicaPrimária: presença de anticorpos antineutrófilo. Medula óssea normo ou hipercelular. Secundária: doenças autoimunes, neoplasias hematológicas, tumores sólidos ou imunodeficiências primárias.
Sequestro reticulo-endotelialHiperesplenismoAnemia e trombocitopénia podem coexistir.
Alterações da medula ósseaNeoplasias (linfomas, tumores sólidos metastáticos)Presença de formas mielóides imaturas e percursores eritróides no sangue periférico.
Quimioterapia ou radioterapia com atingimento da medula ósseaSupressão da produção de células mielóidesHipoplasia da medula óssea, anemia, trombocitopénia.
Leucemia aguda, leucemia mielóide crónicaSubstituição da medula óssea por céluas malignasPancitopénia, leucocitose.
MielodisplasiaMaturação displásica das “Stem cells”Hipoplasia da medula óssea. Trombocitopénia.
Neutropénia idiopática crónicaAlteração na maturação/ proliferação mielóideTambém conhecida por neutropénia crónica benigna. Ocorre em idades mais tardias (adolescência). Sem morbilidade significativa. Diagnóstico de exclusão.
Neutropénia por deficiência nutricionalDéfice de vitamina B12 ou ácido fólicoCoexistem anemia megaloblástica e neutrófilos hipersegmentados devido a hematopoiese ineficaz.
Adaptado de Walkovich K et al. How to Approach Neutropenia in Childhood. Abril 2013. Vol 34 (4) 

Neutropénias congénitas

A classificação das neutropénias congénitas não é consensual, sendo que o estudo genético assume um papel fundamental na sua distinção. No quadro 3 estão descritas neutropénias congénitas de acordo com a presença ou ausência de manifestações extra-hematopoiéticas e defeitos associados.

QUADRO 3 – Neutropénias congénitas – defeitos no número e/ou função dos neutrófilos*

NomeOMIMAlteraçõesDefeitos associadosHereditariedadeGene
Neutropénia congénita sem manifestações extra-hematopoiéticas
Neutropénia congénita grave202700Diferenciação mielocítica ADELANE (19q13.3)
Neutropénia congénita grave com mutação somática de CSF3R202700Diferenciação mielocítica, sem resposta a G-CSF  CSFR3 (1p35p34)
Neutropénia congénita sem manifestações extra-hematopoiéticas Com defeito da imunidade inata/adaptativa
Neutropénia congénita grave202700Diferenciação mielocíticaLinfopéniaADGFI1 (1p22)
Neutropénia/Mielodisplasia associada ao X301000Diferenciação mielocíticaMonocitopéniaXWAS (Xp11.4-p11.21)
Síndroma WHIM193670Diferenciação mielocíticaLinfopénia, trombocitopéniaADCXCR4 (2q21)
Neutropénia congénita com manifestações extra-hematopoiéticas
Síndroma de Kostmann202700Diferenciação mielocíticaDéfices cognitivos e neurológicosARHAX1 (1q21.3)
Neutropénia cíclica162800Diferenciação mielocíticaTrombocitopénia e monocitopénia que ocorrem durante os períodos de neutrofiliaADELANE (19p13.3)
Síndroma de Shwachman-Diamond260400QuimiotaxiaPancitopénia, condrodisplasia, insuficiência pancreática exócrina, cardiomiopatia, défice cognitivoARSDBS (7q11.22)
Neutropénia com malformação cardíaca e urogenital202700Diferenciação mielocíticaDefeitos estruturais cardíacos, urogenitais, telangiectasias venosas do tronco e dos membrosARG6PC3 (17q21)
Síndroma de Barth302060Diferenciação mielocíticaCardiomiopatia hipertróficaXTAZ (G4.5) (Xq28)
Síndroma de Hermansky-Pudlak tipo 2608233Diferenciação mielocíticaAlbinismoARAP3B1 (5q14.1)
Neutropénia com mutação de AP14610789Diferenciação mielocíticaAlbinismoARAP14 (1q21)
Poiquilodermia tipo clericuzio604173Diferenciação mielocíticaPoiquilodermia, alterações cutâneasAR16ORF57 (16q13)
Doença por acumulação de glicogénio tipo 1b232220Quimiotaxia, Produção de O2, MicrobiocidaHipoglicémia, acidose, hiperlipidémia, neutropénia, hepatomegáliaARG6PT1 (11q23.3)
Síndroma de Cohen216550Diferenciação mielocíticaAtraso do desenvolvimento psicomotor, microcefalia, distrofia retinocoroidal progressiva, miopatia, hiperlaxidão articularARVPS138 (8q22-q23)
*OMIM – Online Mendelian Inheritance in Man; AD – autossómica dominante; AR – autossómica recessiva; X – ligada ao X
Adaptado de Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian Journal of Allergy and Immunology. 2013;1(1):23-38.

Formas clínicas

Descrevem-se a seguir algumas formas clínicas mais frequentes de neutropénia.

Neutropénia pós-infecciosa

A causa mais frequente de neutropénia na infância (transitória) é a infecção vírica (vírus respiratório sincicial, influenza A e B, varicela, rubéola e sarampo). A neutropénia surge nos primeiros 2 dias da doença e pode persistir 3 a 8 dias, o que corresponde a um período de virémia aguda.

Outras infecções:

  • Víricas – por herpes vírus 6, vírus influenza, vírus de Epstein-Barr (VEB), citomegalovírus (CMV), vírus da imunodeficiência humana (VIH), etc.;
  • Bacterianas, incluindo riquétsias (septicémia, tosse convulsa, febre tifóide e paratifóide, tuberculose disseminada, brucelose, febre das Montanhas Rochosas, erliquiose, etc.);
  • Protozoários (malária, leishmaniose);
  • Fúngicas (histoplasmose disseminada).

Neutropénia induzida por fármacos

Os fármacos, tais como analgésicos/anti-inflamatórios (acetaminofeno, ibuprofeno), antibióticos (cloranfenicol, penicilinas), sulfonamidas, anticonvulsantes (carbamazepina) e citostáticos são a segunda causa mais comum de neutropénia ligeira/moderada adquirida. (Quadro 4)

Nestas circunstâncias, a neutropénia inicia-se de forma súbita 7 a 14 dias após a primeira exposição, ou imediatamente a seguir à reexposição. A neutropénia induzida por fármacos, resultante de mecanismos tóxicos, imunológicos ou de hipersensibilidade, é grave, comportando taxas de mortalidade elevadas. A intervenção terapêutica mais eficaz consiste em retirar os fármacos não essenciais.

QUADRO 4 – Fármacos associados a agranulocitose

Analgésicos e anti-inflamatórios não esteróides: ácido acetilsalicílico, aminofenazona, benoxaprofeno, diclofenac, diflonisal, dipirona, fenoprofeno, indometacina, ibuprofeno, fenilbutazona, piroxicam, sulindac, tenoxicam, tolmetina

Antipsicóticos, hipnossedativos e antidepressivos:
amoxapina, clorodiazepóxido, clozapina, diazepam, haloperidol, imipramina, indalpina, meprobamato, mianserina, fenotiazidas, respiridona, tiaprida

Anti-epilépticos: carbamazepina, etossuximida, fenitoína, trimetadiona, valproato, propiltiouracilo

Antitiroideus: carbimazol, metimazol, perclorato de potássio, tiocianato de potássio, propiltiouracilo

Anti-infecciosos: aciclovir, cefalosporinas, cloranfenicol, cloroquina, ciprofloxacina, clindamicina, cotrimoxazol, dapsona, etambutol, flucitosina, gentamicina, hidroxicloroquina, isoniazida, levamizol, lincomicina, mebendazol, mepacrina, metronidazol, nitrofurantoína, novobiocina, penicilinas, pirimetamina, quinina, rifampicina, sulfametoxazol, estreptomicina, terbinafina, tetraciclina, tiacetazona, tinidazol, vancomicina, zidovudina

Cardiovasculares: ácido acetilsalicílico, aprindina, captopril, furosemida, hidralazina, lisinopril, metildopa, nifedipina, fenindiona, procainamida, propafenona, propranolol, quinidina, espironolactona, diuréticos tiazídicos, ticlopidina

Outros: acetazolamida, alopurinol, aminoglutetimida, compostos de arsénico, bezafibrato, bronfeniramina, clorofeniramina, cimetidina, colchicina, diferiprona, famotidina, flutamida, sais de ouro, metapirileno, metazolamida, metoclopramida, levodopa, glibenclamida, diuréticos mercuriais, penicilamina, ranitidina, sulfonamidas (maioria), tamoxifeno, tenalidina, ácido retinóico, tripelenamina

 

Neutropénia imune

A neutropénia imune é uma entidade rara causada por anticorpos contra antigénios específicos dos neutrófilos. Dividem-se em aloimune (ou isoimune), e autoimune (primária ou secundária).

A neutropénia neonatal aloimune ocorre em 0,2% das gravidezes e está associada à presença de anticorpos antineutrófilo circulantes que provocam a destruição de neutrófilos, mediada pelo complemento, ou a fagocitose esplénica dos neutrófilos opsonizados. Ocorre por sensibilização pré-natal a antigénios específicos dos neutrófilos herdados do pai (não presentes nos neutrófilos maternos) com posterior passagem transplacentar de anticorpos IgG maternos contra antigénios dos neutrófilos do feto (processo semelhante ao que se passa na anemia e trombocitopénia isoimunes). A neutropénia verifica-se durante o tempo em que circulam os anticorpos maternos transferidos via placenta, o que geralmente acontece entre as 7 semanas e os 6 meses após o parto.

A neutropénia autoimune primária surge habitualmente entre os 5 e os 15 meses de idade e tem remissão espontânea em praticamente todos os doentes no período de tempo de 7 a 30 meses. Distingue-se das outras formas de neutropénia apenas pela demonstração de anticorpos antineutrófilo (embora, por vezes, existam resultados negativos-falsos), sendo a medula óssea normo ou hipercelular. As infecções graves são pouco frequentes apesar da neutropénia grave.

A neutropénia autoimune secundária surge mais frequentemente em adolescentes ou adultos com: 1) doenças autoimunes (artrite reumatóide, síndroma de Felty, lúpus eritematoso sistémico, síndroma de Sjögren); 2) neoplasias hematológicas (leucemias, linfoma de Hodking, macroglobulinémia de Waldenstrom); 3) tumores sólidos (timoma) ou imunodeficiências primárias (síndroma linfoproliferativa autoimune ligada ao X, imunodeficiência comum variável).

Neutropénia congénita grave

A neutropénia congénita grave caracteriza-se por uma paragem na maturação mielóide na medula óssea na fase de promielócito. Tem uma prevalência de 3-4/1×106 indivíduos. Faz parte de um grupo genético heterogéneo. A forma autossómica dominante resulta de mutações nos seguintes genes: ELANE (19q13.3) (Neutropénia cíclica), CSF3R (1p35p34), GFI1 (1p22); e, quanto à forma recessiva, nos genes: HAX1 (1q21.3) (síndroma de Kostman), G6PC3 (17q21). Outra forma de hereditariedade é a causada por mutação no gene WAS localizado no cromossoma Xp11. A neutropénia congénita grave por mutação de GF1 e WAS associa-se também a defeitos da imunidade inata e adaptativa.

Os doentes com neutropénia congénita grave têm frequentemente valores de neutrófilos inferiores a 500 neutrófilos/μL, febre, infecções recorrentes da pele, do tracto respiratório e digestivo no primeiro ano de vida. Em valor percentual que pode atingir 20% dos doentes, surge leucemia ou síndroma mielodisplásica durante a adolescência.

A síndroma de Kostman é uma forma de neutropénia congénita grave autossómica recessiva com mutação no gene HAX1, localizada no cromossoma 1q21.3. O referido gene tem um papel significativo na apoptose dos neutrófilos, impedindo a sua diferenciação nos estádios de promielócito e mielócito. Deste facto resulta um número absoluto de neutrófilos frequentemente inferior a 200 células/μL, o que se pode verificar logo desde o nascimento ou na primeira infância. Como manifestações clínicas mais frequentes há a citar as infecções bacterianas graves nos seios perinasais, pulmão, fígado, pele e mucosa oral. Em cerca de 40% dos casos verifica-se diminuição da densidade óssea e osteoporose e, numa pequena percentagem, défice associado, cognitivo e neurológico.

Com efeito, antes da era do tratamento com G-CSF, a maioria dos doentes morria de infecções fatais antes da adolescência. De salientar que a mutação no receptor do G-CSF (CSF3R), condiciona má resposta à terapêutica e surge mais frequentemente em doentes que evoluem para mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda (cerca de 10% dos casos).

Apenas os doentes que não respondem ao G-CSF são candidatos a transplante de células hematopoiéticas.

A neutropénia cíclica é uma doença rara autossómica dominante, causada por uma mutação do gene ELANE, localizado no cromossoma 19p13.3. Tem uma prevalência de 3-1/1×106 indivíduos. Caractereriza-se por períodos regulares de neutropénia (valores <1000/μL) durante 3 a 10 dias, que se repetem em intervalos de 21 dias (± 4 dias). A neutropénia é acompanhada por monocitose, linfocitose, trombocitopénia e, por vezes, eosinofilia.

As manifestações clínicas coincidem com os períodos de neutropénia; os sintomas e sinais mais comuns são: mal-estar geral, febre, úlceras da mucosa oral, estomatite, gengivite, periodontite, faringite e infecções cutâneas com adenomegálias. Nos períodos de normalização dos valores dos neutrófilos, os doentes são assintomáticos.

A gravidade das infecções relaciona-se com a gravidade da neutropénia, embora nem todos os doentes sejam afectados por infecções. Apesar de ser considerada benigna, uma proporção de cerca de 10% dos doentes morre com infecções complicadas (pneumonia e peritonite com sépsis por Clostridium perfringens). Não existe risco aumentado de desenvolvimento de leucemia mielóide.

O diagnóstico obriga à realização de hemograma, duas vezes por semana e durante 6 semanas. O diagnóstico é confirmado com estudos genéticos moleculares, que demonstram mutação no gene ELANE.

Manifestações clínicas

As infecções bacterianas e/ou fúngicas recorrentes e graves constituem a principal manifestação de neutropénia e associam-se a grande morbilidade. Porém, a frequência e a gravidade das infecções depende, não só da contagem e velocidade com que se instala a neutropénia, mas também de anormalidades da função fagocitária, de defeitos da imunidade adquirida, e de condições do hospedeiro e especificidades dos microrganismos envolvidos. A neutropénia, acompanhada de monocitopénia, linfopénia ou hipogamaglobulinémia, aumenta o risco de infecção. Este risco também aumenta quando a causa da neutropénia é central, versus neutropénia periférica com medula óssea normal.

As manifestações clínicas mais frequentes relacionadas com a neutropénia crónica são: “queda” tardia do cordão umbilical, infecções bacterianas e fúngicas recorrentes e graves, abcessos cutâneos, furunculose, pneumonias de repetição, septicémia, otite média recorrente, infecções perianais e da cavidade oral (estomatite aftosa hemorrágica e gengivites recorrentes). Os locais mais afectados são a pele e mucosas do tracto gastrintestinal, respiratório e genito-urinário.

Entre os agentes infecciosos isolados mais frequentemente nos doentes neutropénicos contam-se: Staphylococcus aureus, S. epidermitis, Streptococcus spp., Enterococcus spp., Burkholderia cepacia, Nocardia asteroides, Pneumococcus spp., Pseudomonas aeruginosa, Candida albicans, Aspergillus spp e bacilos gram-negativos.

Avaliação do doente com neutropénia

A abordagem da criança com neutropénia implica:

  1. Anamnese pormenorizada. É importante investigar a frequência, tipo, gravidade e recorrência de infecções bacterianas, exposição a fármacos, antecedentes familiares de neutropénia ou infecções, internamentos prévios, doenças hematológicas, doenças auto-imunes e consanguinidade. A presença de ulceração da mucosa oral e gengivite são indicadores de mobilização inadequada dos neutrófilos;
  2. Exame físico rigoroso. Devem ser pesquisadas dismorfias congénitas que sugiram síndromas hereditárias. Outros achados que podem orientar no diagnóstico diferencial são: baixa estatura, má nutrição, alterações musculoesqueléticas, pigmentação anómala da pele, distrofia ungueal, leucoplasia, albinismo, eczema, infecções cutâneas, adenomegálias ou organomegálias.
  3. Exames complementares. Será a duração e a gravidade da neutropénia, assim como a existência de sinais de alarme (má progressão ponderal, anemia, trombocitopénia, esplenomegália, adenopatias, dor óssea ou tumefacção articular, dismorfias, sintomas sugestivos de neutropénia crónica, padrão infeccioso cíclico) que determinam a extensão da avaliação laboratorial.

No Quadro 5 está descrita de forma sistemática a abordagem diagnóstica no contexto de neutropénia.

QUADRO 5 – Abordagem diagnóstica da neutropénia

Abordagem diagnóstica da neutropénia
ANA: anticorpo anti-nuclear; ANCA: anticorpo anti-citoplasma do neutrófilo; anti-CCP (anticorpos antipeptídeo citrulinado) FR: factor reumatóide; CMV: citomegalovírus; EBV: vírus Epstein-Barr; VHB: vírus da hepatite B; VHC: vírus da hepatite C; HIV: vírus da imunodeficiência humana.
Adaptado de Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian Journal of Allergy and Immunology. 2013;1(1):23-38.
Informação clínica
    • História clínica (fármacos, histórico de infecções, doenças autoimunes, hematológicas, neoplásicas)
Avaliação laboratorial
    • Hemograma com reticulócitos; se neutropénia isolada ou neutropénia pós-infecciosa (na ausência de sinais de alarme): reavaliação analítica 3 a 4 semanas depois
    • Morfologia leucocitária com contagem do número de neutrófilos hiposegmentados
    • De acordo com a clínica:
    • Testes imunológicos: ANA (anti-SSa, anti-SSB, anti-DNA), ANCA, FR, anti-CCP
    • Hemograma 2 vezes/semana durante 2 meses
    • Serologias víricas: VEB, CMV, VHB, Parvovírus B19, VHB, VHB, VIH (e outros de acordo com a clínica)
    • Doseamento de imunoglobulinas (Ig A, IgG e IgM)
    • Doseamento vitamina B12 e ácido fólico
    • Função pancreática exócrina
Exame da medula óssea
    • Neutropénia grave ou neutropénia e presença de sinais de alarme: medulograma + biópsia osteomedular. Avaliação para morfologia, citometria de fluxo, citogenética
Testes genéticos
    • Supeita de neutropénia congénita (estão disponíveis painéis de genes associados a neutropénias)

Medidas preventivas

Os doentes neutropénicos devem ter uma alimentação adequada, boa higiene corporal (oral e perineal), assim como beneficiar do programa de imunizações actualizado [incluindo a vacina contra influenza e pneumococos; o uso de BCG (bacilo de Calmette e Guérin) está contraindicado]. Os doentes com neutropénia congénita grave beneficiam da utilização de antibióticos profilácticos de amplo espectro (exemplo: sulfametoxazol/trimetroprim).

Tratamento

Os critérios de eficácia do tratamento da neutropénia congénita incluem: redução das complicações infecciosas, número de infecções e melhoria da qualidade de vida.

O tratamento depende da causa e da gravidade da neutropénia.

Antimicrobianos

Os doentes com neutropénia ligeira ou moderada associada a infecção ligeira devem ser tratados com antibióticos por via oral, enquanto os doentes com neutropénia grave devem ser internados e tratados rápida e agressivamente com antibióticos de largo espectro após realização de hemoculturas e outras culturas consideradas necessárias. Se a febre persistir mais de 48 horas, deve considerar-se a instituição de um antifúngico (por exemplo: anfotericina B lipossómica). Em casos graves está indicado o uso de G-CSF na dose inicial de 5 microgramas/kg/dia.

Factor de crescimento hematopoiético recombinante humano

O tratamento com G-CSF subcutâneo diminui o número de infecções e lesões da mucosa oral. O esquema de tratamento é variável e depende da etiologia da neutropénia. Nos doentes com neutropénia crónica ou auto-imune grave, pode ser administrado diariamente ou três vezes por semana. Na neutropénia secundária à quimioterapia, deve ser utilizada a menor dose efectiva. Os efeitos adversos são pouco comuns, sendo os mais frequentes as dores ósseas e as cefaleias.

Existe risco elevado nas situações de leucemia e mielodisplasia em doentes submetidos a tratamento do G-CSF (doses > 15 microgramas/kg/dia) com mutação dos genes ELANE, HAX1, WASP, SBDS, G6PC3 ou SLC37A4. Contudo, tal não acontece nos doentes com neutropénia clíclica.

Transplante de células hematopoiéticas

O transplante de células hematopoiéticas está indicado:

  • Nos casos refractários ao tratamento com G-CSF;
  • Que apresentem infecções recorrentes graves;
  • Resistência ao tratamento (dose > 50 mcg/kg/dia); ou nos
  • Doentes com pancitopénia ou mielodisplasia/leucemia.

Conclusão

Em suma, a neutropénia na idade pediátrica é uma situação relativamente frequente cuja morbilidade é muito variável e depende da etiologia da doença. O espectro clínico é muito vasto, desde uma situação benigna e autolimitada, até uma situação grave e potencialmente fatal. O diagnóstico atempado de neutropénia congénita grave é essencial para, através de um tratamento profiláctico adequado, se poder diminuir a morbilidade e mortalidade inerentes a este diagnóstico.

BIBLIOGRAFIA

Coates T D, et al. Overview of neutropenia in children and adolescents. www.uptodate.com. Waltham, MA: Wolters Kluwer, 2015

Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian J Allergy Immunol 2013;1: 23-38

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hauck F, Klein C. Pathogenic mechanisms and clinical implications of congenital neutropenia syndromes. Curr Opin Allergy Clin Immunol 2013; 13: 596-606

Hoffman R, Benz EJ, Silberstein LE, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Klein C. Genetic defects in severe congenital neutropenia. Annu Rev Immunol 2011; 29: 399-413

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Lanzkowsky P. Manual of Pediatric Hematology and Oncology. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011

Lehrnbecher T. Treatment of fever in neutropenia in pediatric oncology patients. Curr Opin Pediatr 2019; 31: 35-40

Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg O, Look AT (eds). Nathan and Oski’s Hematology of Infant and Childhood. Philadelphia: Saunders, 2003

Newburger P, et al. Evaluation and management of patients with isolated neutropenia. Semin Hematol 2013; 50: 198-206

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Spranger, 2014

Walkovich, K. Boxer LA. How to approach neutropenia in childhood. Pediatr Rev 2013; 34: 173-176

ERITROCITOSE

Definição

A eritrocitose (também designada policitemia ou poliglobulia), definindo-se como aumento da massa total de glóbulos vermelhos no sangue periférico, é quantificada pela verificação de valores de hemoglobina superiores aos do percentil 99 segundo as distribuições de referência em função da idade e género em, pelo menos, duas determinações temporalmente distintas (Figura 1). A eritrocitose neonatal é discutida separadamente, na Parte referente à Neonatologia.

A eritrocitose (absoluta ou verdadeira) deve ser distinguida da eritrocitose relativa (esta última, mais correctamente designada por hemoconcentração), em que a elevação do valor de hemoglobina e do hematócrito se deve a uma redução do volume plasmático, e não a um aumento da massa total de glóbulos vermelhos.

ETIOPATOGÉNESE E CLASSIFICAÇÃO

A eritrocitose é habitualmente classificada em primária ou secundária, podendo em ambos os casos, ser congénita ou adquirida.

A eritrocitose primária deve-se a mutações que condicionam proliferação independente ou excessiva dos progenitores eritróides. Devido a mecanismo retroactivo fisiológico negativo, a expansão da massa eritrocitária cursa com diminuição dos níveis de eritropoietina (eritropoietina normal ou baixa).

A única eritrocitose primária congénita caracterizada molecularmente até à data, a eritrocitose familiar tipo 1, resulta de mutações na linhagem germinativa com transmissão autossómica dominante que condicionam aumento da sensibilidade do receptor da eritropoietina (EPOR).

FIGURA 1 – Curvas de percentis para os valores de hemoglobina e volume globular médio (VGM), de acordo com o género e a idade. (Em Dallman PR, Silmes MA. Percentile curves for hemoglobin and red cell volume in infancy and childhood. J Pediatr 1979; 94:28)

Conhecem-se, pelo menos, 14 mutações que resultam em ganho de função do EPOR. A única eritrocitose primária adquirida conhecida é a policitemia vera, um distúrbio clonal das células estaminais pluripotenciais hematopoiéticas, o qual resulta de mutações somáticas da JAK2 (sendo a V617F e as mutações da exão 12 as mais frequentes).

A eritrocitose secundária é causada pelo excesso de citocinas circulantes que estimulam a expansão de precursores eritróides cuja sensibilidade à eritropoietina é normal. Embora se deva habitualmente à elevação dos níveis de eritropoietina, outros factores que estimulam a eritropoiese podem estar implicados na patogénese (angiotensina II, androgénios e IGF-1). O aumento da eritropoietina pode representar uma resposta adequada à hipoxemia tecidual, um aumento de secreção, autónomo e anómalo, ou uma desregulação da modulação dependente do oxigénio (grupos III.A, III.B e III.C do Quadro 1, respectivamente).

QUADRO 1 – Classificação das policitemias

I. Policitemia relativa

Hemoconcentração (diarreia grave, uso crónico de diuréticos, queimaduras)

II. Policitemia primária (eritropoietina normal/baixa)

A. Congénita: eritrocitose familiar tipo 1 ou policitemia congénita familiar primária (mutações na linhagem germinativa com ganho de função do receptor da eritropoietina, EPOR) – transmissão autossómica dominante

B. Adquirida: policitemia vera (mutação somática)

III. Policitemia secundária (eritropoietina ou outros estimuladores da eritropoiese elevados)

A. Hipoxemia tecidual (também designada policitemia apropriada, uma vez que resulta de uma resposta fisiológica da eritropoieitina à hipóxia)

1. Fisiológica

1.1 Vida fetal
1.2 Ambiente rarefeito em oxigénio (altitude elevada)

2. Patológica

2.1 Defeitos da ventilação: doença cardiopulmonar, obesidade
2.2 Fístula arteriovenosa pulmonar
2.3 Cardiopatia congénita com shunt esquerdo-direito (exemplo: tetralogia de Fallot, síndroma de Eisenmenger)
2.4 Variantes anómalas da hemoglobina

2.4.1 Meta-hemoglobina
2.4.2 Carboxi-hemoglobina
2.4.3 Sulfa-hemoglobina
2.4.4 Hemoglobinopatias com elevada afinidade para o oxigénio (hemoglobina de Chesapeake, Ranier, Yakima, Osler, Tsurumai, Kempsey e Ypsilanti)
2.4.5 Défice de 2,3-bifosfoglicerato (enzima 2,3-bifosfoglicerato mutase)

B. Aumento da eritropoietina ou de outros estimuladores da eritropoiese (também designada policitemia inapropriada, uma vez que resulta da produção aberrante de eritropoietina ou outros factores de crescimento)

1. Endógena

1.1 Renal: tumor de Wilms, isquémia renal, doenças vasculares renais, doença renal poliquística, lesões renais benignas (hidronefrose), carcinoma de células renais e eritrocitose pós-transplante renal (ocorre em 10-12% dos casos)
1.2 Endocrinológica: feocromocitoma, síndroma de Cushing, hiperplasia congénita da suprarrenal, adenoma da suprarrenal com hiperaldosteronismo primário
1.3 Hepática: hepatoblastoma, carcinoma hepatocelular, hemangioma hepático, síndroma de Budd-Chiari (alguns destes doentes podem ter doença mieloproliferativa)
1.4 Cerebelosa: hemangioblastoma, hemangioma, meningioma
1.5 Uterina: leiomioma, leiomiossarcoma
1.6 Ovárica: quistos dermóides

2. Exógena

2.1 Administração de testosterona e esteróides relacionados
2.2 Administração de hormona de crescimento

C. Policitemias que reunem características das primárias e secundárias (resultam de alterações na sensibilidade ao oxigénio)

1. Policitemia de Chuvash ou eritrocitose familiar tipo 2 (mutação do gene von Hippel-Lindau, VHL) – transmissão autossómica recessiva
2. Policitemias não Chuvash: eritrocitose familiar tipo 3 (mutação do gene EGLN1 que codifica a prolil-hidroxilase 2 dos factores induzidos pela hipóxia, PHD2); eritrocitose familiar tipo 4 (mutação do gene EPAS1 que codifica o factor induzido pela hipóxia 2α, HIF2α) – transmissão autossómica dominante

IV. Policitemia neonatal (na Parte dedicada à Neonatologia)

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da eritrocitose estão directamente relacionadas com a hiperviscosidade resultante da expansão da massa de eritrócitos, podendo incluir: cefaleias, tonturas, acufenos, vertigens, alterações visuais, prurido (sobretudo após exposição a água quente), dispneia, desconforto epigástrico, saciedade precoce e obstipação. Embora mais raros, podem estar presentes sintomas contitucionais como perda ponderal, astenia e diaforese. O exame objectivo pode evidenciar hipertensão arterial sitólica e eritromelalgia (extremidades quentes, ruborizadas e dolorosas). Na policitemia vera é também frequente a presença de esplenomegália e hepatomegália.

Na eritrocitose secundária, para além das manifestações clínicas acima descritas, podem coexistir achados sugestivos de patologia cardíaca, respiratória (incluindo apneia obstrutiva do sono), endocrinológica, hepática ou renal subjacente.

Diagnóstico etiológico

Os algoritmos referentes ao diagnóstico etiológico da eritrocitose em adultos não são directamente aplicáveis na idade pediátrica, sobretudo no que concerne à sequência dos exames complementares de diagnóstico. Tal prende-se com diferenças significativas na epidemiologia da eritrocitose, de acordo com a faixa etária e com a possibilidade de se inverter a sequência da investigação (sobretudo a antecipação dos testes genéticos), quando existe diagnóstico etiológico firmado num familiar próximo com eritrocitose. Actualmente, o diagnóstico etiológico só é possível em cerca de 30% dos casos. Na Figura 2, apresenta-se uma proposta de abordagem da eritrocitose em crianças e adolescentes.

Segundo as recomendações actuais, a abordagem inicial deve incluir: anamnese e exame físico completos, hemograma dos familiares, oximetria de pulso, ecografia abdominal e renal com doppler, provas de função respiratória e/ou polissonografia; doseamento da eritropoietina sérica, gasometria, provas de função renal, provas hepáticas, ferritina e saturação da transferrina (a ordem dos exames a pedir deverá ter em conta a história clínica).

A hipoxemia é a causa mais comum de elevação persistente da hemoglobina. Saturações arteriais da Hb em oxigénio (SpO2) inferiores a 92%, objectivadas na oximetria de pulso, devem motivar a investigação de patologia cardiorrespiratória. Salienta-se que reduções intermitentes da SpO2, como na apneia obstrutiva do sono, podem conduzir a um aumento fisiológico da eritropoietina com consequente eritrocitose.

Na criança e adolescente com eritrocitose primária (eritropoietina < 5 UI/L) em que se excluiu a hipoxemia como factor causal (SpO2 > 92%), as etiologias congénitas devem ser consideradas em primeira linha (mutações do EPOR). Tal prende-se com a raridade da policitemia vera (PV) em idade pediátrica (na população com idade inferior a vinte anos, a incidência de PV é de 0,00-0,02 por 105 pessoas-ano).

No entanto, na presença de esplenomegália, leucocitose ou trombocitose, sugere-se investigar esta hipótese em primeiro lugar (actualmente preconiza-se o rastreio inicial de mutações da JAK2 – V617F e mutações na exão 12).

A distinção das causas de eritrocitose secundária (eritropoietina > 5 UI/L ou normal mas desproporcionalmente elevada para o valor de hemoglobina) baseia-se na determinação da P50 da hemoglobina (pressão parcial de oxigénio no sangue para a qual 50% da hemoglobina se encontra saturada com oxigénio). Não dispondo de um analisador automático, a P50 pode ser calculada a partir dos dados da gasometria venosa aplicando a fórmula: log PO2 (7.4) = log PO2observado – [0.5(7.4 – pHobservado)].

Se a P50 for baixa (< 20 mmHg), deve suspeitar-se da presença de variantes da hemoglobina com afinidade aumentada para o oxigénio ou de défice de 2,3-bifosfoglicerato (que também resulta num aumento da afinidade da hemoglobina, embora seja mais raro). Note-se que nas meta-hemoglobinémias, o doente pode apresentar-se cianótico com SpO2 baixa, mas com PaO2 normal objectivada por gasometria; assim, o doseamento da meta-hemoglobina, frequentemente disponível quando se procede a gasometria, pode ser muito útil.

Na presença de P50 normal, há que considerar: – causas endógenas e exógenas de aumento da eritropoietina; e – policitemias que se devem a alteração da sensibilidade à hipóxia.

Neste último subgrupo inclui-se a policitemia de Chuvash (mutação do gene von Hippel-Lindau, VHL) e policitemias não Chuvah. A perda de função do VHL atrasa a degradação dos factores de transcrição induzidos pela hipóxia 1 e 2 (HIF1 e 2), resultando num aumento da transcrição do gene da eritropoietina. Mutações no HIF2α, ou no domínio prolil-hidroxilase 2 (PHD2) de enzimas que hidroxilam o HIF2α, têm tradução clínica semelhante. Salienta-se que este subgrupo de patologias cursa simultaneamente: – com elevação da eritropoietina, uma característica da eritrocitose secundária; e – com hipersensibilidade do receptor da eritropoietina, o que é característico da eritrocitose primária.

FIGURA 2 – Proposta de algoritmo para o diagnóstico de eritrocitose absoluta em crianças e adolescentes (adoptado dos consensos do “Congenital erythrocitosis working group”).

SpO2 = saturação periférica em oxigénio medida por oximetria de pulso; Epo = eritropoietina; P50 = pressão parcial de oxigénio no sangue para a qual 50% da hemoglobina se encontra saturada com oxigénio; Hb = hemoglobina; 2,3-BPG = 2,3-bisfosfoglicerato; VHL = von Hippel-Lindau; HIF2α = hypoxia-induced factor 2α; PHD2 = prolyl hydroxylase domain 2; JAK2 = Janus kinase 2

Tratamento

Os principais objectivos do tratamento são o aumento da sobrevivência e a redução das complicações associadas à hiperviscosidade. O tratamento das policitemias primárias exige apoio diferenciado, podendo incluir flebotomias e quimioterapia. Na eritrocitose secundária, sempre que possível, o tratamento deve ser dirigido ao factor etiológico subjacente, estando as flebotomias reservadas para o controlo da hiperviscosidade sintomática.

BIBLIOGRAFIA

Bento C, et al. Genetic basis of congenital erythrocytosis: mutation update and online databases. Human Mutation 2014; 35: 15-26

Cario H, et al. Erythrocytosis in children and adolescents-classification, characterization, and consensus recommendations for the diagnostic approach. Pediatr Blood Cancer 2013; 60: 1734-1738

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Hoffman R, Benz EJ, Silberstein LE, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Lanzkowsky P. Manual of Pediatric Hematology and Oncology. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011

McMullin MF, et al. Guidelines for the diagnosis, investigation and management of polycythaemia/erythrocytosis. Br J Haematol 2005; 130:174-195

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nathan DG, Oskin SH, Ginsburg D, Look AT (eds): Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia: Saunders, 2003

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

HEMOGLOBINÚRIA PAROXÍSTICA NOCTURNA

Definições

De acordo com a definição histórica, a chamada hemoglobinúria paroxística nocturna (HPN), ou síndroma de Marchiafava-Micheli, é um tipo pouco comum de anemia hemolítica crónica na idade pediátrica (~5% dos casos de HPN), com início insidioso, caracterizada por episódios de eliminação de “urina escura” ou hemoglobinúria ocorrendo principalmente durante o sono, período em que diminui o pH sérico, independentemente de ser dia ou noite.

As primeiras descrições desta entidade clínica referiam, a par duma população de eritrócitos ditos “simile normais”, outra população de eritrócitos, “doentes”, com vida média muito encurtada, sofrendo hemólise precoce, logo na fase de saída da medula óssea, ou do órgão hematopoiético.

Admitiu-se então que se tratava de doença adquirida e que os eritrócitos pertencendo à população doente, com teor diminuído em acetilcolinesterase, eram portadores de anomalia da membrana eritrocitária tornando-os mais frágeis em meio ácido, e mais susceptíveis a factores hemolíticos presentes, quer no soro e plasma de indivíduos normais, quer de pacientes com a referida doença.

Tais factores incluem o complemento, a trombina e a properdina. Admitiu-se também que o mecanismo de acção dos factores descritos é complexo e que o sistema de coagulação parece estar envolvido na precipitação das crises hemolíticas.

Tendo também sido descrito nos primórdios que se verificava nos pacientes um quadro de falência da medula óssea, e que em cerca de 25% dos pacientes fora diagnosticada inicialmente anemia aplástica, concluiu-se que havia relação entre HPN e hipoplasia da medula óssea, e que a entidade HPN, mais do que uma anemia hemolítica peculiar, é uma doença global da medula óssea.

Relatados estes factos históricos, estamos em melhores condições para compreender a definição de HPN no século XXI, baseada nos francos progressos da Hematologia: distúrbio clonal adquirido das células estaminais hematopoiéticas, traduzido pela tríade anemia hemolítica intravascular, fenómenos trombóticos e falência medular.

Etiopatogénese       

Existem classicamente duas classes de proteínas de membrana: proteínas transmembranares e proteínas ancoradas por cadeias de glicosilfosfatidilinositol (GPI).

Na HPN ocorre uma mutação somática no gene PIGA ao nível das células estaminais hematopoiéticas, do que resulta diminuição da síntese de GPI, com consequente deficiência parcial ou completa das proteínas de membrana ancoradas por GPI.

Os factores CD55 e CD59, encontrando-se ancorados à membrana dos glóbulos vermelhos por cadeias de GPI, regulam a activação do complemento na sua superfície. A deficiência dos referidos factores conduz a hemólise intravascular, mediada pelo complemento; é uma característica da HPN.

Há uma grande variabilidade inter e intra-indidividual na HPN quanto:

  • À proporção de eritrócitos em circulação com as alterações descritas;
  • À gravidade da deficiência dos factores CD55 e CD59 ao longo do tempo. Destas circunstâncias resulta grande variabilidade no grau de hemólise intravascular.

Está bem documentada a íntima relação entre a HPN e a aplasia medular e a síndroma mielodisplásica. De acordo com a hipótese predominante, pequenos clones de HPN estão presentes em indivíduos normais e, perante certas situações de destruição imunológica da medula óssea (como ocorre na aplasia medular idiopática), esses clones beneficiam de uma vantagem selectiva de crescimento, proliferam e tornam-se a fonte predominante de células estaminais hematopoiéticas. Esta vantagem de crescimento resulta provavelmente da deficiência de certas proteínas imunomoduladoras de membrana ancoradas por GPI.

O mecanismo responsável pelo estado de hipercoagulabilidade continua desconhecido. Vários mecanismos foram propostos, nomeadamente a activação plaquetária por componentes do complemento, a deficiência de proteínas membranares com actividade anticoagulante ou fibrinolítica, a actividade pró-coagulante de micropartículas libertadas dos glóbulos vermelhos HPN, e a vasoconstrição induzida por produtos de hemólise.

Manifestações clínicas

De acordo com a apresentação clínica, a HPN é classicamente dividida em 3 subgrupos:

  1. HPN clássica, associada a fenómenos hemolíticos e trombóticos;
  2. HPN secundária a síndroma de falência medular;
  3. HPN subclínica, caracterizada pela presença de pequenos clones de células HPN, sem evidência clínica ou laboratorial de hemólise ou trombose.

A classificação é difícil nalguns doentes porque todos os subgrupos podem apresentar algum grau de insuficiência medular.

A falência medular é a apresentação mais comum em crianças e adolescentes, podendo estar presente em mais de 80% dos doentes ao diagnóstico. Cerca de 20% dos casos de aplasia medular ou mielodisplasia são diagnosticados com HPN, pelo que se recomenda que todos os doentes com insuficiência medular sejam rastreados.

Os fenómenos trombóticos, menos frequentes do que nos adultos, atingem territórios pouco comuns como o abdominal e o cerebral.

Contrariamente ao que o nome indica, a hemoglobinúria isolada é excepcionalmente rara.

A dor, em particular a dor abdominal, é também um sintoma comum em idades pediátricas.

A hemólise crónica leva a uma diminuição do óxido nítrico, o qual se liga à hemoglobina livre em circulação; de tal resulta a ocorrência de fadiga, hipertensão pulmonar, doença renal crónica e disfagia ou espasmo esofágico. Estas complicações debilitantes podem reduzir de forma marcada a qualidade de vida dos doentes.

Diagnóstico

Dado que o atraso no diagnóstico é comum, torna-se essencial uma atitude de elevado nível de suspeição. Contudo, dada a raridade da doença, a pesquisa de clones de células surgindo no contexto de HPN em todos os doentes com anemia ou trombose não está indicada. No entanto, algumas situações clínicas associando-se a um risco elevado de HPN, merecem um estudo dirigido.

A inexistência de história de hemólise precipitada pelo frio, exclui o quadro de hemoglobinúria paroxística a frigore.

Assim, deve suspeitar-se de HPN nas seguintes circunstâncias: (Quadro 1)

QUADRO 1 – Indicações clínicas para o estudo de HPN

Hemólise associada a deficiência de ferro ou dor abdominal/espasmo esofágico
Anemia hemolítica com prova de Coombs negativa sem alterações celulares características (esferócitos, esquizócitos, drepanócitos)
Trombose em locais atípicos (veias hepáticas, veia porta, veias mesentéricas, veia esplénica, seios venosos cerebrais, veias dérmicas)
Anemia aplásica, anemia hipocelular ou síndroma mielodisplásica (suspeita ou confirmação)
Combinação de ≥ 2 das seguintes situações: anemia hemolítica; trombocitopénia e/ou leucopénia; trombose

A detecção de populações celulares deficientes em proteínas ancoradas por GPI através de técnicas de citometria de fluxo constitui o método diagnóstico de eleição.

As recomendações internacionais preconizam o estudo de granulócitos e glóbulos vermelhos no sangue periférico e, no mínimo, de duas proteínas de membrana (CD55 e CD59 são as habitualmente pesquisadas, embora possam ser utilizadas outras proteínas).

Recentemente, surgiram técnicas de citometria de fluxo mais sensíveis (limite de sensibilidade < 0,01%), as quais podem ser úteis na detecção de pequenos clones em doentes com insuficiência medular; contudo, sendo tecnicamente mais complexas, ainda não se encontram padronizadas. Além do limite de sensibilidade utilizado, é importante documentar a proporção da população clonal em cada linhagem celular para ulterior avaliação. O estudo da população de leucócitos fornece a melhor estimativa do tamanho do clone por ser menos sensível à hemólise e/ou a transfusões prévias.

Tratamento

Os doentes assintomáticos ou com sintomas ligeiros não necessitam de qualquer tratamento, sendo a vigilância regular apropriada. A suplementação com ácido fólico (à semelhança de outras anemias hemolíticas crónicas) e com ferro, em caso de carência em ferro, está indicada.

O tratamento de suporte está indicado na HPN clássica, podendo a corticoterapia contribuir para controlar o grau de hemólise.

O eculizumab é um anticorpo monoclonal anti-C5 que bloqueia a porção terminal do complemento. Reduzindo significativamente o grau de hemólise, está indicado no tratamento de crianças com manifestações graves, secundárias a hemólise, tais como fadiga incapacitante, dependência transfusional e crises dolorosas frequentes. Tem também sido utilizado em doentes com fenómenos trombóticos recorrentes e falência medular, com bons resultados em termos de eficácia e segurança. A principal complicação do bloqueio do sistema do complemento é a susceptibilidade a infecções por Neisseria, pelo que todos os candidatos a eculizumab devem ser previamente vacinados.

Os doentes com fenómenos trombóticos devem ser submetidos permanentemente a anticoagulantes, salvo contraindicação; de referir, no entanto, que a anticoagulação profiláctica é questionável em idade pediátrica.

A contracepção oral deve ser evitada pelo risco particularmente aumentado de trombose. A imunossupressão é útil nos doentes com aplasia medular/síndroma mielodisplásica, embora não elimine o clone HPN.

O transplante alogénico de células estaminais, o único tratamento disponível, deve ser ponderado em doentes jovens com:

  • Anemia hemolítica dependente de transfusão e refractária a eculizumab;
  • Complicações trombóticas graves e recorrentes; e
  • Anemia aplásica/síndroma mielodisplásica.

Prognóstico

A sobrevivência dos doentes aos 10 anos é de cerca de 80%. Neutropénia (neutrófilos < 500/mm3) e infecções de repetição são factores de mau prognóstico. Complicações infecciosas e fenómenos trombóticos são as principais causas de morte.

BIBLIOGRAFIA

Bernard J, Lévy JP, Clauvel JP, Rain JD, Varet B. Abrégé d’Hématologie. Paris: Masson, 1976 Brodsky RA. Paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. Blood 2014;124: 2804-2811

Curran KJ, Kernan NA, Prockop SE et al. Paroxysmal nocturnal hemoglobinuria in pediatric patients. Pediatr Blood Cancer 2012; 59: 525-529

Ge M, Shi J, Li X, et al. Clinical features and survival of Asian pediatric patients with paroxysmal nocturnal hemoglobinuria: Results from a single center in China. Acta Haematol 2015; 134:1-6

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2106

Hill A, Kelly R, Hillmen P. Thrombosis in paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. Blood 2013; doi:10.1182/blood-2012-09-311381

Hillmen P, Young NS, Shubert J, et al. The complement inhibitor eculizumab in paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. NEJM 2006; 355: 1233-1243

Hoffman R, Benz EJ, Silberstein LE, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Marotta S, Pagliuca S, Ristano AM. Hematopoietic stem cell transplantation for aplastic anemia and paroxysmal nocturnal hemoglobinuria: current evidence and recommendations. Expert Rev Hematol 2014; 7: 775-789

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Reiss UM, Schwartz J, Sakamoto KM et al. Efficacy and safety of eculizumab in children and adolescents with paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. Pediatr Blood Cancer 2014; 61:1544-1550

Risitano AM, Notaro R, Luzzatto L, et al. Paroxysmal nocturnal hemoglobinuria -hemolysis before and after eculizumab. NEJM 2010; 363: 2270-2272

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

ANEMIAS HEMOLÍTICAS DE CAUSA EXTRÍNSECA

Introdução

As anemias hemolíticas devidas a factores extracelulares (termo sinónimo de “de causa extrínseca”, de “causa imunitária”, ou “imunes”) devem-se à união de anticorpos IgG e/ou IgM à membrana do eritrócito, do que resulta hemólise, ocasionalmente através da activação do complemento e com a participação do sistema reticuloendotelial (SRE).

Genericamente classificam-se em iso ou aloimunes, autoimunes e provocadas por fármacos. De referir, contudo, que os fármacos também poderão actuar por mecanismo não imunitário.

1. ANEMIA HEMOLÍTICA ISOIMUNE

Etiopatogénese

A hemólise de causa isoimune (admitindo como paradigma a incompatibilidade sanguínea materno-fetal) é provocada por imunização materna activa contra antigénios fetais não existentes nos eritrócitos maternos. São exemplos os anticorpos contra os antigénios A, B, D e outros dos sistemas Rh Kell, Duffy, etc..

A hemólise anti-A e anti-B é provocada pela passagem transplacentar mãe ” feto de aglutininas (anticorpos naturais) da mãe do grupo 0 (com aglutininas alfa e beta) as quais poderão provocar hemólise em RN dos grupos A ou B respectivamente.

Tendo escolhido a anemia hemolítica isoimune do recém-nascido como paradigma, cabe referir que nas reacções hemolíticas transfusionais decorrentes de transfusão de sangue incompatível a etiopatogénese é sobreponível à de incompatibilidade de grupo sanguíneo, não mãe-filho, mas dador-receptor.

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações resultantes da hemólise (que no sistema Rh pode ocorrer já no feto) são anemia no feto/recém-nascido, possível hydrops fetalis, hiperbilirrubinémia, hepatosplenomegália, etc..

As provas de Coombs positivas (directa – realizada no recém-nascido, permitindo detectar anticorpos fixados sobre os eritrócitos, e indirecta, realizada na mãe, permitindo evidenciar anticorpos no respectivo soro), e a presença de precursores eritróides imaturos (eritroblastos) e de esferócitos no sangue periférico, permitem confirmar o diagnóstico.

Este tópico (anemia hemolítica isoimune/doença hemolítica perinatal) é retomado, com mais pormenor, na Parte XXXI.

2. ANEMIA HEMOLÍTICA AUTOIMUNE

Etiopatogénese e importância do problema

Na anemia hemolítica autoimune os anticorpos do doente são dirigidos de modo aberrante contra os antigénios eritrocitários normais do mesmo hóspede. Os anticorpos são, na maioria, quer do tipo IgG (anticorpos “quentes” ou “incompletos”, com máxima actividade em torno de 37ºC), quer do tipo IgM (anticorpos “frios”, com máxima actividade em torno de 0-4ºC). Nesta última situação (anticorpos de tipo IgM), e ao contrário do que ocorre com os de tipo IgG, verifica-se activação da via do complemento e citólise. Por este motivo, a hemólise relacionada com este tipo de anticorpos é de tipo intravascular e não através do SRE.

Trata-se duma patologia pouco frequente, com uma incidência estimada em 1/80.000 na população geral.

Na base do processo está provavelmente uma modificação de antigenicidade dos eritrócitos associada a lesão da membrana eritrocitária por infecção ou por agente químico (fármaco, por ex.); poderá também estar em causa o aparecimento de um novo antigénio (neoantigénio) formado pela combinação de agente infeccioso com o eritrócito.

As anemias hemolíticas autoimunes por IgG correspondem a cerca de 50-70% dos casos de anemias hemolíticas autoimunes.

Na prática, as situações frequentemente associadas a tal anomalia são:

  • Infecções por Mycoplasma, vírus de Epstein-Barr, outros vírus (nestas situações o paradigma é o aparecimento de aglutininas chamadas “anticorpos frios ou crioaglutininas”, isto é, actuando a temperaturas inferiores a 37ºC);
  • Doenças crónicas autoimunes (lúpus eritematoso sistémico, doenças linfoproliferativas, doença de Hodgkin, tiroidite de Hashimoto, leucemia linfóide crónica, síndromas de imunodeficiência, etc.); em geral, estas afecções estão associadas ao aparecimento de anticorpos IgG (“anticorpos quentes”) por terem a máxima actividade, sem necessidade do complemento, entre 37-40°C;
  • Hemoglobinúria paroxística desencadeada pela exposição ao frio (ou a frigore) resultante de episódios de hemólise intravascular mediada pela hemolisina de Donath-Landsteiner ou autoanticorpo IgM reactivo ao frio, fixando complemento a temperatura abaixo de 37ºC, provocando aglutinação e hemólise quando a temperatura se eleva); em geral, o processo está associado a infecções víricas e a sífilis congénita ou adquirida. Esta situação explica cerca de 30% das anemias hemolíticas imunes na idade pediátrica;
  • Fármacos formando um hapteno ao nível da membrana (por ex. penicilina) ou complexos imunes (por ex. quinidina); consequentemente a activação do complemento induz hemólise. Outros fármacos administrados durante longo tempo como a alfa-metildopa provocam alteração da membrana do eritrócito, do que resulta a formação de neoantigénios a que atrás se aludiu, com consequente formação de anticorpos.

Manifestações clínicas

O quadro clínico mais frequente (cerca de 80% dos casos) surge em crianças entre os 2 e 12 anos na sequência de infecção, na maioria respiratória. Os sinais e sintomas, de início agudo, duram cerca de 3 a 6 meses: prostração, palidez progressiva, icterícia, febre, hemoglobinúria e esplenomegália.

Outra forma clínica, mais insidiosa e de maior duração (meses a anos), manifesta-se sobretudo em adolescentes e jovens adultos.

No caso de a anemia autoimune constituir um epifenómeno de doença subjacente, manifestar-se–ão também os respectivos sintomas e sinais.

O quadro de hemoglobinúria paroxística desencadeada pela exposição ao frio (temperaturas inferiores a 37ºC) é autolimitado, explicando cerca de 30% dos episódios de hemólise de causa imune. (ver capítulo seguinte)

Exames complementares

O hemograma e o estudo do sangue periférico evidenciam: anemia normocítica e normocrómica, moderada a grave (por vezes são atingidos níveis de hemoglobina da ordem de 4 a 6 g/dL), esferocitose, células nucleadas e reticulócitos, assim como leucocitose.

O número de plaquetas em geral é normal; no entanto, poderá verificar-se púrpura trombocitopénica concomitante, associação que corresponde à chamada síndroma de Evans.

O exame da medula óssea revela hiperplasia eritróide marcada.

As provas de Coombs directa e indirecta são positivas. A bilirrubinémia não conjugada está elevada assim como o urobilinogénio nas fezes e urina.

No caso da hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo frio, a prova de Coombs é positiva no decurso do episódio, e negativa na fase assintomática.

Tratamento

Na fase aguda pode estar indicada transfusão sanguínea, eventualmente como medida urgente; salientam-se as dificuldades que por vezes surgem para a determinação do grupo sanguíneo, tendo em conta a existência de autoaglutininas. Nos casos de hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo frio, a transfusão comporta riscos (adição de complemento e probabilidade de hemólise).

Outras medidas incluem a administração de ácido fólico, corticosteróide (prednisolona em doses entre 2 a 6 mg/kg/dia em função da intensidade da hemólise, e com duração dependente da mesma, – podendo atingir 1 a 3 meses) e de imunoglobulina intravenosa (nos casos em que a corticoterapia não é eficaz), como meio de bloquear os receptores Fc dos macrófagos e de depurar os eritrócitos sensibilizados.

Nos casos refractários está indicado o anticorpo monoclonal (rituximab) actuando ao nível dos linfócitos B como frenador da produção de anticorpos.

Se as medidas anteriores não tiverem sido eficazes, deverá ser ponderada a esplenectomia, obtendo-se melhores resultados nos casos devidos a IgG. A mesma, que comporta risco elevado de infecções por germes capsulados, sobretudo nas crianças de idade inferior a 2 anos, obrigará a medidas profilácticas, designadamente imunização anti-pneumocócica, meningocócica e Haemophilus influenzae.

Por fim, perante situações, designadamente as associadas ao frio e aos fármacos, há que evitar o frio e suprimir os fármacos ou outros factores eventualmente desencadeantes, assim como proceder ao tratamento de infecções que forem documentadas.

Prognóstico

A forma aguda anteriormente descrita, independentemente da gravidade do quadro, é autolimitada.

Na globalidade, em cerca de 20% dos casos há tendência para hemólise crónica.

Nos casos de síndroma de Evans o prognóstico é reservado com tendência para a cronicidade. A mortalidade nas formas crónicas depende da doença de base.

3. ANEMIA HEMOLÍTICA ADQUIRIDA NÃO AUTOIMUNE

A hemólise pode também ser provocada por mecanismos extra-eritrocitários vários, não mediados por anticorpos. Seguidamente são referidos alguns dos mecanismos de lesão da membrana eritrocitária, relacionando-os com determinadas entidades clínicas.

Etiopatogénese

1. Microangiopatia trombótica

A membrana dos eritrócitos pode ser lesada mecanicamente sempre que se verifique um processo obstrutivo de microangiopatia trombótica. Tal pode surgir na coagulação intravascular disseminada (CIVD), púrpura trombocitopénica trombótica (PTT), síndroma hemolítica urémica (SHU), reacção de hospedeiro contra-enxerto, hipertensão maligna, etc..

2. Dislipoproteinémias

As dislipoproteinémias, sobretudo a hipercolesterolémia, provocam alterações da membrana eritrocitária (aumento do conteúdo em colesterol e alteração da relação colesterol/fosfolípidos) diminuindo a sua deformabilidade, o que predispõe à hemólise.

No sangue periférico são identificados eritrócitos “com esporões”, também observados na abetalipoproteinémia e em certas hepatopatias acompanhadas de dislipoproteinémia.

3. Toxinas e fármacos

Determinadas toxinas (como as produzidas por répteis venenosos) e certos metais pesados (cobre e arsénico), provocam hemólise através da respectiva ligação ao grupo sulfidrilo da membrana.

No sangue periférico podem ser observados eritrócitos com “espículas” irregulares, tal como acontece em doentes com insuficiência renal crónica.

4. Carência de vitamina E

Nestas situações de carência verifica-se sensibilidade anormal dos lípidos da membrana ao estresse oxidante; como exemplos desta carência citam-se: a que surge em recém-nascidos com antecedentes de prematuridade não suplementados com a referida vitamina, sendo que tal carência pode ser agravada pela administração de ferro (agente oxidante); má-nutrição; síndromas de má-absorção (incluindo a fibrose quística); regime transfusional intensivo traduzindo-se por suprimento elevado em ferro.

5. Infecções sistémicas e parasitoses

Numerosas infecções bacterianas sistémicas (por ex. por Clostridium perfrigens e Haemophilus influenzae do tipo b) originam hemólise por libertação de hemolisinas eritrocitárias, do que resulta hemoglobinémia e hemoglobinúria.

Nos casos de anemias por protozoários (por ex. malária) verifica-se destruição directa dos eritrócitos pelos plasmódios que os parasitam.

6. Agentes físicos

Sendo discutível a acção das radiações ionizantes, é aceite a acção da hipertermia ou das queimaduras; com efeito, temperaturas da ordem dos 50ºC originam eritrócitos esferocíticos e fragmentados, com diminuição da resistência osmótica.

7. Outros exemplos

Importa uma referência a: hiperseplenismo de diversas causas provocando sequestração de eritrócitos; próteses valvulares pós-cirurgia cardíaca em que os eritrócitos contactam com superfície não endotelial; e a fluxo sanguíneo elevado no contexto de hemangiomas gigantes (síndroma de Kasabach-Merritt).

O estudo morfológico do sangue periférico evidencia eritrócitos fragmentados, microsferócitos, policromasia e eritrócitos em forma de lágrima.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Cada um dos quadros clínicos sucintamente descritos poderá apresentar variações quanto a manifestações clínicas. Contudo, em todos existe de comum sintomatologia de anemia hemolítica: anemia, icterícia e reticulocitose.

Tratamento

O tratamento deve ser o da causa desencadeante (por ex. CIVD ou SHU), associado a transfusões de concentrado eritrocitário, combatendo a anemia.

Tratando-se de tóxicos como factores desencadeantes, importa removê-los.

Nas situações associadas a microangiopatia, está indicada a utilização de anticorpo monoclonal anti-C5, como o eculizumab.

BIBLIOGRAFIA

Gehrs BC, Friedberg RC. Autoimmune hemolytic anemia. Am J Hematol 2002; 69: 258-271

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2106

Henry K, Harris CR. Deadly ingestions. Pediatr Clin North Am 2006; 53: 293-315

Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill Livingstone, 2007

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2015

Lopez LM, Villa Am (eds). Hematologia y Oncologia Pediatricas. Madrid: Ediciones Ergon, 2004

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Petz L. Treatment of autoimmune hemolytic anemias. Curr Opin Hematol 2001; 8: 411-416

Ramanathan S, Koutts J, Hertzberg MS. Two cases of refractory warm autoimmune hemolytic anemia treated with rituximab. Am J Hematol 2005; 78: 123-126

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Stefan DC, Rodriguez-Galindo C (eds). Pediatric Hematology-Oncology in Countries with Limited Resources. Berlin: Springer, 2014

ANEMIAS HEMOLÍTICAS POR DEFEITOS DA HEMOGLOBINA

Introdução

A hemoglobina (Hb) é a proteína transportadora de oxigénio para todos os tecidos do organismo. É formada por quatro cadeias peptídicas (globinas), cada uma delas ligada a um grupo heme. Diferentes estruturas de Hb evoluem ao longo do desenvolvimento fetal, embrionário, e dos primeiros meses de vida até se atingir a estrutura Hb A (2 cadeias α e 2 cadeias β – α2β2), que predomina na idade adulta. (Quadro 1)

No embrião predominam as Hb Gower-1 (ζ2ε2), Gower-2 (α2ε2) e Portland (ζ2γ2). A partir da décima semana de gestação e até ao sexto mês de vida, predomina a Hb fetal (α2γ2). Com a aproximação do nascimento, passa a ser produzida a Hb A e uma pequena quantidade de Hb A2 (α2δ2). Em estados patológicos associados a eritropoiese ineficaz como a talassémia e a drepanocitose, verifica-se uma diminuição na produção de Hb A com aumento da síntese da Hb F (recapitulação da ontogenia). Cada variante de Hb tem propriedades distintas que conferem vantagens específicas durante a respectiva fase de desenvolvimento.

Com efeito, o equilíbrio entre os pares de globinas é fundamental para os processos metabólico e fisiológico do glóbulo vermelho. A falta de produção de uma cadeia de globina determina que não se forme quantidade normal de Hb; por consequência, os eritrócitos são microcíticos e hipocrómicos. Por outro lado, a cadeia de globina não afectada continua a produzir-se em quantidade normal, do que resulta: – um excedente desta, que precipita e causa lise prematura, inclusivamente na medula óssea (eritropoiese ineficaz); ou – formação de tetrâmeros de uma só cadeia (Hb H, com quatro cadeias β, ou Hb de Bart, com quatro cadeias γ) que não podem libertar oxigénio como acontece com a Hb normal e precipitam nas células em qualquer momento do seu desenvolvimento. Os eritrócitos resultantes têm consequentemente vida média encurtada, destruindo-se de forma prematura, sobretudo no baço.

As diferentes cadeias de globina são codificadas por dois grupos génicos: o grupo β localiza-se no cromossoma 11 e contém um gene β, um δ, um ε e um γ; o grupo α localiza-se no cromossoma 16 e contém 2 genes α e 1 ζ. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Hemoglobina humana

Fase da ontogéneseHemoglobinaEstrutura%
EmbrionáriaGower-1
Gower-2
Portland
ζ2ε2
α2ε2
ζ2γ2
20-40
10-20
5-20
FetalFetalα2γ290-100
Pós-nascimentoA
A2
Fetal
α2β2
α2δ2
α2γ2
96-98
2-4
0-1

As hemoglobinopatias encontram-se entre as doenças autossómicas recessivas mais comuns. Estima-se que mais de 250 milhões de pessoas (cerca de 4,5% da população mundial) sejam portadoras de uma alteração da hemoglobina.

As hemoglobinopatias são classicamente divididas em quantitativas e qualitativas.

As hemoglobinopatias quantitativas ou de síntese, vulgarmente conhecidas como talassémias, resultam da síntese diminuída ou ausente de uma globina estruturalmente normal.

As hemoglobinopatias qualitativas ou de estrutura incluem hemoglobinas com alteração da função ou das suas propriedades físicas ou químicas que resultam da mutação genética, determinando substituição de um aminoácido numa das cadeias polipeptídicas. As hemoglobinas anormais comuns – S, C, D, E provêm de substituições de um aminoácido nas cadeias β; são exemplos as diferentes formas de doença falciforme (Hb S) e outras adiante descritas.

Nalguns países procede-se ao rastreio neonatal das hemoglobinopatias.

ALTERAÇÕES QUANTITATIVAS DA HEMOGLOBINA – TALASSÉMIAS

Definição

As talassémias são anemias hemolíticas congénitas que resultam de anomalia da síntese de uma ou mais subunidades das cadeias de globina que formam a hemoglobina. A cadeia da globina afectada estará presente em quantidades inferiores às normais ou, inclusivamente, ausente.

Patogénese e classificação

Assim, as talassémias classificam-se conforme a cadeia de globina cuja síntese está afectada:

  • Alfa talassémia <> síntese de globina α reduzida ou ausente;
  • Beta talassémia <> síntese de globina β reduzida ou ausente;
  • E assim, sucessivamente, para as restantes globinas (por ex. γ ou outras) que, mesmo se presentes, mas deficitárias, evidenciam estrutura normal.

Assim, designando-se as talassémias pelo nome cadeia de globina ausente ou deficitária, na representação gráfica utilizam-se os seguintes símbolos: por ex. αº ou βº se a síntese estiver ausente; e α+ ou β+ se a síntese estiver reduzida.

A síntese diminuída ou ausência de uma das globinas (α, β ou γ) determina excesso relativo da outra; por outro lado, as referidas globinas não emparelhadas são instáveis, precipitam no interior do glóbulo vermelho e provocam lesões oxidativas da membrana plasmática, resultando em hemólise. A gravidade da hemólise depende da quantidade e da variante de globina mutada.

As cadeias α não emparelhadas são insolúveis, ao contrário das cadeias β e γ, que mantêm alguma capacidade de formar tetrâmeros da mesma globina.

Numa das formas de beta talassémia, chamada major, a ausência de cadeias β cria um grande desequilíbrio entre as globinas, sendo os eritroblastos destruídos ainda na medula óssea, antes de entrarem em circulação, levando a uma anemia grave. Nestes doentes, há um aumento compensatório na actividade eritropoiética medular que, no entanto, nunca é completo – é a chamada eritropoiese ineficaz.

Diagnóstico pré-natal

Na actualidade é possível detectar a mutação responsável por cada tipo de talassémia a partir de amostra de líquido amniótico ou de biópsia coriónica obtida entre as semanas 8 e 18 de gestação. O diagnóstico realiza-se através do estudo do ADN, em geral com técnicas de PCR (reacção em cadeia da polimerase).

Beta talassémia – generalidades

Compreende um grupo de anemias hemolíticas hereditárias causadas por anomalia na síntese da globulina β da Hb, com produção de excesso relativo de cadeias α de globina.

Nesta forma de talassémia, e na sua maioria, verificam-se mutações pontuais que afectam poucas bases, alterando-se a expressão do gene da cadeia β da globina. Foram descritas mais de 100 mutações, mas somente cerca de 5 ou 6 delas afectam mais de 90% dos pacientes; as mutações predominantes variam conforme as etnias.

A beta talassémia é prevalente em populações do Mediterrâneo, Médio Oriente, Centro, Sul e Sueste da Ásia e Sueste da China. Resulta habitualmente de mutações pontuais em várias regiões do gene β, sendo muito raras as deleções.

As manifestações clínicas, muito variáveis, dependem do desequilíbrio entre a síntese das globinas α e β, ou seja, da quantidade de cadeias α não emparelhadas. Mutações na região codificadora do gene β levam à ausência de síntese da globina desse alelo (β0), enquanto mutações noutras regiões do gene levam a redução ligeira ou moderada da respetiva síntese (β+). Sob o ponto de vista clínico, as beta-talassémias classificam-se em major, minor e intermédia.

 Beta talassemia major (anemia de Cooley)

Etiopatogénese e clínica – A beta talassémia major resulta de homozigotia ou heterozigotia composta (β00) com défice grave ou ausência de síntese de globina β nos glóbulos vermelhos. Uma vez que as variantes de Hb embrionárias e a Hb F não possuem cadeias β, os sintomas surgem a partir dos 6 meses de idade.

A ausência de síntese das cadeias β da globina determina anemia hemolítica intensa e crónica. Como mecanismo compensador do organismo verifica-se hiperplasia do tecido hematopoiético (expansão das cavidades medulares, hepatosplenomegália) e aumento da absorção digestiva do ferro.

Os sinais iniciais são palidez, icterícia e hepatosplenomegália ligeiras (por eritropoiese extramedular) que são mais notórias pelos 2 anos de idade. Concomitantemente verifica-se compromisso progressivo do crescimento com agravamento da síndroma anémica (palidez “terrosa”) ao longo dos anos e litíase biliar.

Poderão surgir progressivamente alterações cardíacas como resultado do estado hiperdinâmico secundário à anemia de gravidade progressiva, e hemossiderose miocárdica, a principal causa de mortalidade por insuficiência cardíaca. Igualmente, alterações endócrinas (diabetes mellitus, hipotiroidismo, diminuição da actividade da somatomedina) possivelmente em relação com o depósito do ferro e hipóxia crónica.

De salientar que o ferro acumulado provém, tanto da degradação da Hb, como da sua absorção intestinal aumentada; como consequência poderá instalar-se um quadro de deposição visceral generalizada de Fe. (Figura 1)

FIGURA 1 – Etiopatogénese da ß-talassémia. Adaptado de Weatherall DJ, 1998

Por volta dos 4 a 6 anos passa a ser progressivamente notório um conjunto de características dismórficas craniofaciais ou fenótipo sui generis: prognatismo do maxilar superior, retrognatismo do inferior, procidência das bossas frontais, turricefalia.

As alterações esqueléticas são o resultado da hiperplasia da medula óssea que determinam alargamento do espaço medular, com adelgaçamento da cortical e marcada osteoporose. Com efeito, estas alterações são mais evidentes nos ossos do crânio (padrão radiográfico “crânio em escova”, citado a propósito da drepanocitose) (Figura 3) e face dando origem à típica fácies asiática ou “de esquilo” (crescimento excessivo do maxilar, malares e gengivas salientes, depressão da ponte do nariz e protrusão dos dentes anteriores). Estas alterações e a eritropoiese extramedular são o epifenómeno de eritropoiese ineficaz. (Figuras 2 e 3)

FIGURA 2 – Radiografia do crânio: A – Crânio em escova; B – Sinais de hiperplasia medular. (NIHDE)

FIGURA 3 – Fácies talassémica. Hepatosplenomegália exuberante*. (NIHDE)

*Este quadro exuberante, observado há três décadas, é hoje raro dados os progressos verificados no diagnóstico e na terapêutica. (Cortesia da Profa MG Gomes da Costa ao NIHDE).

A expansão eritróide nos ossos longos, crânio e ossos faciais leva a adelgaçamento cortical com risco de fracturas ósseas e a alterações craniofaciais características (há um agravamento da hemólise após exposição a situações de estresse oxidativo e susceptibilidade a crises aplásicas por parvovírus B19).

Achados analíticos – Verifica-se anemia grave com microcitose e hipocromia (índice de Mentzer < 11,5) e reticulocitose. O esfregaço de sangue periférico apresenta anisopoiquilocitose, hipocromia, microcitose, células em alvo, eritroblastos e ponteado basófilo. O estudo das hemoglobinas por HPLC (high performance liquid chromatography) revela a ausência de Hb A e predomínio de Hb F.

No recém-nascido os valores iniciais de Hb são normais, diminuindo progressivamente para atingirem progressivamente valores inferiores a 5 g/dL nos primeiros meses de vida. O número de reticulócitos varia entre 2 e 8%.

O exame da medula óssea mostra sinais de hipercelularidade com intensa hiperplasia eritróide e diseritropoiese. Os depósitos de ferro estão muito aumentados. A resistência osmótica está também aumentada. A siderémia está elevada assim como a saturação da transferrina e a ferritina.

A avaliação da cinética do ferro mostra um padrão de eritropoiese ineficaz.

Tratamento – O suporte transfusional regular, em regra mensal, é o principal tratamento dos doentes com beta talassémia major. Permite suprimir a eritropoiese endógena ineficaz e prevenir a restrição do crescimento e as alterações esqueléticas. A fenotipagem eritrocitária alargada antes da primeira transfusão é fundamental para minorar o risco de aloimunização. A esplenectomia está indicada em situações de esplenomegália sintomática ou de necessidades crescentes de suporte transfusional.

Existe risco elevado de tromboembolismo após a esplenectomia, pelo que a profilaxia com antiagregante plaquetar deve ser considerada nalguns casos, sobretudo na presença de trombocitose.

A forma mais simples de quantificar a sobrecarga de ferro baseia-se na contagem do número total de transfusões. Os níveis séricos de ferritina correlacionam-se com os depósitos corporais de ferro e constituem outro método simples, embora aqueles sejam influenciados por estados de infecção/inflamação. A ressonância magnética (RM) é um método não invasivo de quantificar os depósitos corporais de ferro, em particular o ferro cardíaco, que pode ser monitorizado por RM cardíaca T2*: -níveis de T2* inferiores a 20 ms associam-se a um risco aumentado de insuficiência cardíaca.

A quelação do ferro deve ser iniciada após 20-25 transfusões, ferritina > 1000 ng/mL ou evidência imagiológica de sobrecarga de ferro. Existem actualmente três fármacos aprovados em doentes pediátricos: desferroxamina (via subcutânea ou endovenosa), deferiprona (via oral) e deferasirox (via oral). Cada um apresenta um perfil particular de características farmacocinéticas e farmacodinâmicas e de efeitos adversos.

Os indivíduos com sobrecarga de ferro e sob quelação (sobretudo sob desferroxamina) têm um risco elevado de bacteriémia, nomedamente por Yersinia enterocolitica; por isso, a suspensão da quelação é obrigatória durante qualquer intercorrência infecciosa.

O transplante alogénico, actualmente o único tratamento curativo, tem excelentes resultados em indivíduos jovens sem doença avançada.

Beta talassémia intermédia

Etiopatogénese e clínica – Esta forma, correspondendo geralmente a 2 genes da β-globina afectados, integra fundamentalmente os genótipos β+/β+ ou β+/βº. A cromatografia da Hb revela valores aproximados de HbA: 20-40%, Hb A2: 5% e HbF: 60-80%.

Caracteriza-se por um fenótipo clínico heterogéneo em que há anemia hemolítica moderada a grave (com icterícia e esplenomegália moderadas), parcialmente compensada sem necessidade de suporte transfusional regular.

Alguns doentes mantêm-se assintomáticos sem transfusões, e outros necessitam de transfusões periódicas. Verifica-se frequentemente hepatosplenomegália, litíase biliar e estigmas de expansão medular. Importa sublinhar que a eritropoiese ineficaz com aumento da absorção de ferro leva a sobrecarga importante de ferro mesmo na ausência de suporte transfusional, pelo que a quelação deve ser considerada.

Achados analíticos – Observa-se um grau variável de anemia com glóbulos vermelhos hipocrómicos e microcíticos, e células em alvo no esfregaço de sangue periférico. O valor de Hb por vezes atinge 8 g/dL.

Tratamento – Não existem orientações quanto ao início de suporte transfusional nestes doentes; a decisão de transfundir, bem como a sua periodicidade, devem ser individualizadas. Níveis basais de Hb de 7 a 9 g/dL são eficazes na maioria dos doentes; contudo, outros podem necessitar de valores mais elevados, sobretudo durante o crescimento, gravidez ou intercorrências infecciosas.

A utilização de hidroxicarbamida, evidenciando resultados satisfatórios num subgrupo de doentes com aumento dos níveis basais de Hb, tem permitido diminuir a necessidade transfusional.

A esplenectomia melhora a anemia, mas existe, para além do risco infeccioso inerente, risco muito elevado de tromboembolismo; por isso, deverá ser evitada, se possível.

Beta talassémia minor (ou traço talassémico)

Etiopatogénese e clínica – Ocorre em indivíduos heterozigóticos assintomáticos. Verifica-se apenas um alelo mutado. Esta forma a que corresponde ausência de expressão de 1 gene da β-globina afectado (β°) (genótipo ββ0), caracteriza-se por escassez de sinais e sintomas.

Encontra-se distribuída em grupos étnicos da zona mediterrânica (Itália e Grécia), Sueste asiático e em populações de origem africana.

Achados analíticos e diagnóstico diferencial – São comprovados parâmetros de hipocromia e microcitose, sem anemia (ou, existindo, muito ligeira), ou de hemólise. A fracção A2 da Hb está aumentada (habitualmente 4-7%) e em 50% dos casos verifica-se também aumento da HbF.

É importante o diagnóstico diferencial com ferropénia e com talassémia εγδβ. A Hb A2 pode estar falsamente normal na presença de ferropénia grave: nestes casos, a cromatografia deve ser repetida após a reposição das reservas de ferro.

Os raros indivíduos heterozigóticos para a deleção εγδβ apresentam uma anemia hemolítica moderadamente grave durante o período neonatal, a qual melhora durante os primeiros anos de vida. Durante a adolescência são identificadas alterações hematológicas semelhantes às da beta talassemia minor, à excepção da electroforese de hemoglobinas, que evidencia Hb A2 normal.

Actuação prática – Os portadores de β-talassémia minor não necessitam de qualquer tratamento ou vigilância específicos. No entanto, é fundamental alertar e sensibilizar os pais e crianças para a necessidade de rastreio de hemoglobinopatias nos futuros companheiros de forma a reduzir a incidência das formas mais graves da doença.

Não deverá ser administrado ferro sob pena de agravamento da tendência para hemossiderose.

Alfa talassémia

A alfa talassémia, que integra quadros de diagnóstico mais difícil porque não são acompanhados de alterações significativas da HbA2 e Hb F, tem uma elevada prevalência em África, Sueste Asiático e Índia.

Recorda-se que os indivíduos normais possuem quatro genes α activos responsáveis pela síntese de cadeias α (2 em cada cromossoma 16).

Nas α – talassémias, a que corresponde largo espectro de síndromas, há diminuição da síntese de cadeias α levando a anemia, salientando-se que o grau de anemia é directamente proporcional ao número de deleções.

Em função do número de genes activos afectados da globulina α (mutações relacionadas com deleções) são descritas quatro síndromas. (Quadro 2)

Como cada indivíduo possui quatro cópias do gene α, as alterações são mais heterogéneas do que na β talassémia.

O gene α é expresso desde as primeiras semanas de vida, razão pela qual a alfa talassémia se manifesta na vida fetal e pós-natal. As manifestações clínicas dependem do número de alelos funcionantes. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Síndromas de alfa talassémia

Síndroma

Número de genes afectados com mutações

Alterações laboratorais

Padrão da hemoglobina

Portador silencioso

1 (-α/αα)

Sem anemia

Hb Bart 1-2%

Traço talassémico

2 (–/αα; cis)
 (-α/-α; trans)

Anemia ligeira
Microcitose e hipocromia

Hb Bart 5-10%

Doença Hb H

3 (–/-α)

Anemia moderada
Microcitose e hipocromia
Corpos de inclusão citoplasmáticos

Hb H 10-30%

Hidropisia fetal

4 (–/–)

Anemia grave
Morte intrauterina ou pós-natal

Hb Bart 97%
Hb H 3%

Cerca de 1 em cada 3 afro-americanos é portador silencioso de alfa talassémia. Tais indivíduos não têm anemia nem hemólise e apresentam parâmetros hematológicos (volume globular médio e hemoglobina globular média) no limite inferior da normalidade.

O traço talassémico pode ocorrer de duas formas (–/αα ou cis, comum na Ásia, ou -α/-α ou trans, comum em África) e associa-se a ligeira anemia hipocrómica e microcítica. O esfregaço de sangue periférico mostra glóbulos vermelhos hipocrómicos e microcíticos e células em alvo. A cromatografia da Hb é normal, pelo que o diagnóstico definitivo só é possível mediante estudo molecular.

À semelhança dos portadores silenciosos, estes indivíduos não necessitam de vigilância ou tratamento específicos. Nos indivíduos asiáticos (–/αα) devem ser feitos estudos familiares e aconselhamento genético de forma a evitar a Hb Barts – hidropisia fetal que é incompatível com a vida e pode acarretar graves complicações para a grávida.

Na doença da Hb H apenas um dos quatro genes está activo (–/-α). Existe, portanto, deleção de três genes.

Na vida adulta predomina a HbA com 5-30% de Hb H; no período neonatal predomina a HbF com 10-20% de Hb Bart, sendo vestigial o teor de Hb H.

O quadro clínico é semelhante ao da talassémia major ou da intermédia.

No esfregaço de sangue periférico, é característica a presença de inclusões citoplasmáticas após coloração com azul cresil. Alguns indivíduos são dependentes de transfusão enquanto outros têm uma anemia mais ligeira. Há o risco de exacerbação após exposição a estresse oxidativo com maior susceptibilidade a aplasia/hipoplasia no decurso de intercorrências infecciosas. Como a eritropoiese ineficaz é pouco significativa, a sobrecarga de ferro ocorre mais lentamente do que a observada na beta-talassémia.

A hidropisia fetal por Hb Bart caracteriza-se pela ausência de cadeias α (por deleção dos quatro genes respectivos, com genótipo –/–) e formação de tetrâmeros de cadeias γ (γ4), com uma hemoglobina com elevada afinidade pelo oxigénio levando a hipóxia celular fetal, hidropisia fetal (hepatosplenomegália e anasarca) com elevado risco de morte fetal e neonatal. Estão descritos alguns casos de sucesso de transfusão intra-uterina seguida de regime transfusional regular e transplante alogénico de células progenitoras hematopoiéticas.

Existem ainda outras síndromas de alfa-talassémia causadas por mutações de novo, ou adquiridas, alterando a expressão dos genes da α-globina:

  • A síndroma de alfa-talassémia com atraso mental, integrando duas formas:
    • uma, associada a deleções extensas no cromossoma 16 envolvendo os genes da α-globina (ATR16, por mutação de novo);
    • outra, com genes da α-globina estruturalmente normais mas com alteração de um factor de transcrição localizado no cromossoma X, fundamental para a regulação da expressão dos respectivos genes (ATRX). Estão presentes dismorfias faciais e/ou genitais a que se associa uma forma moderada de Hb H, geralmente menos grave que a verificada na doença da HbH.
  • A doença da Hb H adquirida associada a síndromas mielodisplásicas. Também nesta situação os genes da α-globina são estruturalmente normais. As alterações decorrem de mutações somáticas adquiridas no gene ATRX, com fenótipo mais grave.

ALTERAÇÕES QUALITATIVAS DA HEMOGLOBINA – VARIANTES ESTRUTURAIS DA HEMOGLOBINA

Foi referido anteriormente que as hemoglobinopatias qualitativas ou de estrutura incluem hemoglobinas que resultam da mutação genética, determinando substituição de um aminoácido numa das cadeias polipeptídicas, sendo que nas mais comuns tal substituição ocorre nas cadeias β. Acrescenta-se que o conjunto de genes necessários para a produção de hemoglobina localizam-se no braço curto dos cromossomas 16 e 11.

No Quadro 3 descrevem-se as bases moleculares de algumas variantes de hemoglobina relacionadas com diferentes cadeias polipeptídicas afectadas, para além da cadeia β, em que se verificou substituição de aminoácido. As variantes que não evidenciam repercussão clínica relevante são designadas por alguns autores como hemoglobinoses.

QUADRO 3 – Algumas variantes de hemoglobina

Substituição de um único aminoácido

    • Cadeia β: Hb S, Hb C, Hb D, Hb E
    • Cadeia α: G-Philadelphia, I, Q
    • Cadeia γ
    • Cadeia δ
Deleções de aminoácidos: Freiburg
Fusão de hemoglobinas: δβ (Lepore), βδ, γβ

No Quadro 4 são sistematizadas as variantes de hemoglobina com relevância clínica, a seguir abordadas.

QUADRO 4 – Variantes de hemoglobina com relevância clínica

Doença de células falciformes/Hb S, e outros defeitos- Hb S, Hb C, Hb E, Hb SC
Hemoglobinas instáveis
Hemoglobinas com alta ou baixa afinidade para o oxigénio
Hemoglobinas M
Variantes estruturais com fenótipo simile talassémico α e β

DOENÇA DE CÉLULAS FALCIFORMES

Definição

Doença de células falciformes é o nome dado a um conjunto de defeitos da Hb em que se verifica a presença da chamada HbS. Trata-se duma hemoglobinopatia qualitativa ou de estrutura resultante de mutação genética, determinando substituição de um aminoácido numa das cadeias polipeptídicas, neste caso por mutação de gene da globina β no cromossoma 11.

Aspectos epidemiológicos e classificação

Sendo a hemoglobinopatia mais frequente (nos EUA ~1/600 recém-nascidos), tal entidade, com diversidade de apresentação clínica, evidencia morbilidade e mortalidade muito significativas, partilhando com as síndromas talassémicas muitas características.

Com efeito, em relação à respectiva distribuição, ambas apresentam uma elevada frequência nos países do Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia e África Oriental e Equatorial, nos quais constituem um problema de saúde pública. Afectando fundamentalmente a raça negra, a sua distribuição na Europa e Américas, incluindo Caraíbas, explica-se pelo fluxo migratório desde há mais de cinco séculos, o que tem implicações de ordem genética.

Ambas coincidem com as regiões onde a malária pelo Plasmodium falciparum foi endémica, o que confere uma selecção natural responsável pela manutenção e perpetuação dos genes.

Como apresentado no Quadro 5, a doença de células falciformes inclui diversos genótipos a que corresponde sintomatologia variada (fenótipo), desde a forma homozigótica – Hb SS ao chamado traço falciforme – HbAS, este último assintomático ou com manifestações benignas. Como se depreende pela observação do mesmo quadro, a proporção de Hb F, Hb A1, Hb A2 nas hemoglobinopatias S é variável.

A anemia de células falciformes (ACF), também denominada drepanocitose, de transmissão autossómica recessiva, é a forma mais grave do espectro da doença de células falciformes.

A prevalência da homozigotia (Hb SS), que resulta da mutação dos genes da globina β no cromossoma 11 de ambos os progenitores, varia entre 0,2% nos afro-americanos e 6% em certas regiões de África. A heterozigotia, que resulta da mutação de apenas um gene da globina β de um dos progenitores, afecta cerca de 12% dos afro-americanos e cerca de 40% da população em certas regiões de África. Dados relativos a Portugal são limitados. Estimativas recentes apontam para cerca de 600 indivíduos homozigóticos no nosso país e para um gradiente crescente Norte-Sul na sua prevalência, explicado pelos fenómenos migratórios das populações (imigração de escravos africanos no século XV e imigração de países de elevada prevalência nos últimos anos).

QUADRO 5 – Características das diferentes formas de doença de células falciformes

Tipo de Hb Gravidade clínicaHb S (%)Hb F (%)Hb A2 (%)Hb A (%)Valor Hb (g/dL)VGM (fL)
Anemia de células falciformes
SSNormalmente grave> 90< 10< 3,506-9> 80
Heterozigótias duplas

0

+

SC

S PHHF

Moderada a grave

Ligeira a moderada

Ligeira a moderada

Assintomática

> 80

> 60

50

< 70

< 20

< 20

< 5

> 30

> 3,5

> 3,5

0

< 2,5

0

10-30

0

0

6-9

9-12

10-15

12-14

< 70

< 75

75-85

< 80

Traço falciforme
ASHabitualmente assintomática30-401,5< 2,560-7011-1285
β° = gene talassémico com ausência de síntese da cadeia β; β+ = gene talassémico com diminuição de síntese da cadeia β; VGM = volume globular médio; S- PHHF: = Persistência hereditária de Hb fetal (PHHF) Nesta entidade (de que existem descritas > 20 variantes), resultante de deleção ou mutação originando défice de produção de cadeias β ou δ ou de ambas, verifica-se incapacidade para a síntese da cadeia γ na fase de transição da vida intrauterina para a extrauterina; de tal resulta a manutenção durante toda a vida de níveis elevados de Hb F. As manifestações são silenciosas (anemia e microcitose ligeiras).

Etiopatogénese

A base molecular da anemia de células falciformes (ACF), a forma mais grave da doença de células falciformes, é a substituição de um único aminoácido na cadeia da β-globina (valina por ácido glutâmico na sexta posição originando a HbS ou α2 βs2); tal acarreta modificação da forma do eritrócito, perdendo a forma bicôncava e adquirindo a forma em foice (falciforme) donde deriva o nome da doença.

A HbS (α2 βs2) tem a propriedade única e própria da variante β6 Glu-Val de se polimerizar quando desoxigenada, processo central da vasoclusão e causa primária de certas manifestações clínicas. Na polimerização poderão interferir factores agravantes (como a hipóxia e acidose, desidratação, elevação da temperatura, factores genéticos, etc.), ou atenuantes como por exemplo a percentagem de hemoglobina fetal (Hb F), a qual constitui o inibidor mais potente da despolimerização da desoxi-hemoglobina.

Os referidos eritrócitos falciformes têm fragilidade excessiva, menor deformabilidade (eritrócitos mais rígidos), vida média muito encurtada (cerca de 20 dias), circulando com dificuldade na microcirculação por hiperviscosidade, aderindo à parede do endotélio e lesando-a (vasculopatia secundária).

Na vasculopatia, a hipóxia, componente fundamental da fisiopatologia da ACF, leva à diminuição da produção de óxido nítrico (NO), o qual é importante regulador do tono vascular, de adesão celular e da formação de trombose.

As consequências são estase, vasoclusão, hipóxia tecidual, trombose, enfarte e fibrose, entre outras alterações crónicas ao nível de vários órgãos. No baço, tal processo de fibrose conduz a redução de dimensões e a uma depressão funcional do órgão, o que corresponde a verdadeira “autosplenectomia”. Os enfartes teciduais traduzem-se na clínica por dor, por vezes intensa, com localização variável.

O processo de falciformação é muitas vezes iniciado e/ou agravado pela diminuição da pressão parcial de oxigénio e pela acidémia.

FIGURA 4 – Vasoclusão na anemia de células falciformes. Adaptado de Embury et al, 1994

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas das diferentes formas de doença falciforme são variáveis, constituindo o epifenómeno de anemia hemolítica crónica com episódios de agudização. Em geral, não surgem antes dos 3 meses; as primeiras manifestações podem surgir de forma insidiosa com palidez, icterícia, colúria e esplenomegália, ou aguda (infecção fulminante por exemplo). Nos extremos deste espectro clínico (fenótipo) estão o traço falciforme e a anemia de células falciformes, que descrevemos a seguir.

Traço falciforme

Esta forma clínica, por vezes assintomática, caracteriza-se por manifestações ligeiras e benignas, destacando-se risco aumentado de hematúria, disfunção renal (hipostenúria, compromisso da capacidade de acidificação urinária-pH urinário alcalino) (predomínio de Hb A sobre Hb S). Ambientes de grande altitude (> 3000 metros) ou a prática de exercícios extenuantes (futebol americano, hóquei no gelo, pólo aquático) podem levar a enfartes pulmonares e esplénicos potencialmente fatais.

Anemia de células falciformes ou drepanocitose

As manifestações têm, em geral, início após os 3 meses de idade, coincidindo com a diminuição da Hb F e aumento da HbS, sendo que quanto maior o teor de Hb F menor o risco de falciformação eritrocitária.

Estão classicamente presentes várias alterações além das que surgem nas formas mais benignas (traço falciforme).

Em termos de magnitude e gravidade das manifestações clínicas, a forma heterozigótica Hb Sβ0 é sobreponível à ACF (Hb SS); nos restantes genótipos as manifestações são ligeiras a moderadas.

É importante salientar que todos os órgãos e sistemas podem ser afectados, com maior relevância o respiratório, o cerebrovascular e o renal.

As chamadas crises vasoclusivas agudas (CVO) manifestam-se por sinais e sintomas que dependem da localização específica: sistema respiratório (por ex.: pneumopatia, enfartes pulmonares), osteoarticular (tumefacção simétrica e dolorosa denominada síndroma “mão-pé” ou dactilite drepanocítica, dores nos ossos longos), digestivo (dor abdominal intensa relacionável com enfartes em órgãos abdominais, síndroma da “cintura”), sistema nervoso central (acidente vascular cerebral isquémico/AVC, sobretudo nos territórios das artérias carótida interna, cerebral média e cerebral anterior).

A doença cerebrovascular representa actualmente uma das principais morbilidades da ACF. A incidência de AVC é cerca de 61/10.000 crianças-ano (600 vezes superior à incidência na ausência de ACF) entre os 6 e 18 anos; tal patologia é muito rara durante os primeiros 12 meses de idade. Em regra, cerca de 10% dos doentes irão sofrer um AVC até aos 20 anos de idade. Os chamados enfartes silenciosos (sintomatologia discreta ou ausente, mas com alterações nos exames de imagem) também comprometem o desenvolvimento cognitivo.

A repercussão no sistema respiratório traduz-se mais frequentemente pela síndroma torácica aguda (STA), mais frequente em crianças do que em adultos e a segunda causa mais comum de internamento. O diagnóstico baseia-se no aparecimento de um infiltrado observável na radiografia torácica associado a febre e/ou sintomas respiratórios. Em idades pediátricas, os principais factores desencadeantes são as infecções por S. pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e Chlamydia.

FIGURA 5 – Síndroma mão-pé (dactilite) na ACF. (NIHDE)

FIGURA 6 – Angiografia (A) e TAC CE (B) – no contexto de ACF: imagens sugestivas de lesões isquémicas por oclusão nos territórios das artérias cerebral anterior e média

FIGURA 7 – ACF: padrão radiográfico compatível com síndroma torácica aguda. A – Radiografia convencional (infiltrado no hemitórax direito); B – TAC evidenciando alterações fibróticas residuais num adolescente

As denominadas crises de sequestração esplénica, frequentes entre os 6 meses e 3 anos, constituem outro tipo de episódio agudo em que, por causa desconhecida e de forma aguda, se acumulam grandes quantidades de sangue no baço com consequente choque hipovolémico e aumento do volume do baço. Podem também ocorrer no fígado (com a mesma gravidade, mas mais raramente).

As crises hipoplásticas e as crises de híper-hemólise são outro tipo de manifestações típicas. No primeiro caso está, em geral, afectada a série eritróide sendo frequentemente desencadeadas por infecções (designadamente por Parvovirus B19). As crises de híper-hemólise são traduzidas por aparecimento agudo de icterícia (ou por agravamento de icterícia crónica ligeira) e palidez. Estas crises poderão ser agravadas na presença de défice da desidrogenase da glucose-6-fosfato, que deve ser pesquisado de modo sistemático nestes doentes.

Nos adolescentes e adultos jovens poderão surgir úlceras na região maleolar e priapismo; este pode surgir em episódios de duração e periodicidade variáveis.

Existe um risco aumentado de necrose asséptica da cabeça femoral, osteomielite por Salmonella e infecções por Streptococcus pneumoniae e outros agentes capsulados. (Figura 8)

FIGURA 8 – Quadro radiológico de osteomielite do úmero no contexto da ACF. (NIHDE)

A colelitíase, rara na infância, é frequente após os 10 anos. Verifica-se impacte significativo da doença de células falciformes sobre o rim, traduzido por glomerulopatia que, em cerca de 20% dos casos, culmina em insuficiência renal.

Exames complementares

A ACF caracteriza-se por uma anemia normocrómica e normocítica, em geral com valor de Hb entre 7 e 9 g/dL e reticulocitose acentuada (entre 5 e 15%). As formas heterozigóticas em associação com talassémia podem apresentar diminuição do volume globular médio (VGM) e da concentração de hemoglobina globular média (CHGM). No esfregaço do sangue periférico nem sempre são detectadas células falciformes, as quais podem ser evidenciadas pela prova de falciformação; no entanto, tal prova não permite distinguir o estado homozigótico SS do estado de portador heterozigótico ou de outras hemoglobinopatias; o esfregaço permite ainda identificar glóbulos vermelhos nucleados e corpos de Howell-Jolly. A cromatografia permite separar a Hb S das restantes. A proporção de Hb F nas hemoglobinopatias S varia entre 1 e 20%. 

O diagnóstico molecular pode ser estabelecido no primeiro trimestre de gravidez por biópsia das vilosidades coriónicas, no segundo trimestre através de amniocentese ou após o nascimento no sangue periférico. Nalguns países é efectuado rastreio neonatal às populações de risco.

O exame da medula óssea mostra sinais de hiperplasia eritróide.

As radiografias do crânio e da coluna vertebral evidenciam córtex estreitado, alargamento do espaço medular; ao nível do crânio é típico o padrão de “crânio em escova”, igualmente observável nas síndromas talassémicas.

O estudo imagiológico por Doppler transcraniano (TCD, sigla em inglês) permite identificar precocemente lesões estenóticas nas artérias carótida interna distal, cerebral média proximal e cerebral anterior e estratificar o risco de AVC isquémico em crianças assintomáticas com drepanocitose entre os 2 e os 16 anos. Nas crianças com achados anormais no TCD, ou naquelas com TCD difícil de avaliar ou condicional, deve ser realizado estudo por ressonância magnética (RM) cerebral para avaliar lesões arteriais ou cerebrais.

Tendo em conta a probabilidade de compromisso renal atrás referido, justifica-se em todos os casos de síndroma falciforme a avaliação anual da microalbuminúria como forma de rastreio, nomeadamente o doseamento de alfa-1 e beta-2 microglobulina.

Tratamento

O tratamento da ACF inclui:

  • Medidas gerais: nutrição adequada, prevenção da desidratação, prevenção do arrefecimento corporal, imunizações (designadamente antimeningococócica, anti-Hemophilus influenzae tipo B, anti- pneumoniae conjugada e polissacarídea), evitamento de desportos de moderada a alta intensidade, suporte psicológico e aconselhamento genético;
  • Suplementação com ácido fólico;
  • Tratamento de crises vasoclusivas (dor intensa em qualquer local do organismo, sendo os ossos os territórios mais frequentemente atingidos) requerendo a administração de analgésicos e promovendo concomitantemente a correcta hidratação endovenosa. Os analgésicos mais frequentemente utilizados são: nas formas mais ligeiras, o paracetamol e/ou anti-inflamatórios não esteróides como o ibuprofeno por via oral ou o cetorolac por via endovenosa; nas formas de dor moderada a grave, a utilização de opiáceos (nomeadamente morfina e fentanil) não deve ser protelada. Salienta-se a importância da analgesia mantida em detrimento da administração SOS; é mais eficaz e reduz o tempo de internamento. A aplicação local de calor constitui factor adjuvante no controlo da crise;
  • Prevenção e tratamento de infecções – a profilaxia antibiótica deve ser mantida até aos 5-6 anos, ou indefinidamente em doentes esplenectomizados ou com infecções recorrentes graves. Pode-se utilizar a penicilina (penicilina benzatínica mensal por via intramuscular) nas seguintes doses: crianças com < 10 kg: 300.000 U; 10-25 kg: 600.000 U; > 25 kg: 1.200.000 U. Em alternativa, pode utilizar-se a amoxicilina diária na dose de 20 mg/kg/dia (duas tomas diárias);
  • Tratamento da anemia hemolítica crónica – a anemia é bem tolerada na maior parte dos doentes, uma vez que a Hb S tem menor afinidade para o oxigénio, o que facilita a sua libertação ao nível dos tecidos. As transfusões de concentrado eritrocitário têm o objectivo de melhorar a capacidade de transporte de oxigénio e diluir as células falciformes em circulação para melhorar a perfusão microvascular; consegue-se, assim, baixar os níveis da Hb S para valores ≤ 30% da Hb total, ou aumentar a Hb para cerca de 10 g/dL;
  • As transfusões têm indicações precisas: Hb < 5 g/dL; nas crises aplástica ou hipoplástica; nos sequestros esplénicos e hepáticos; nos AVC e na sua prevenção, quer primária, quer secundária; nas STA isoladas ou de repetição; nas situações de lesão multiorgânica; e no pré-operatório de intervenções cirúrgicas com anestesia geral. Não deve transfundir-se para valores de Hb superiores a 10 g/dL por risco de hiperviscosidade (nestas situações deve considerar-se a transfusão permuta);
  • A esplenectomia está indicada apenas quando as necessidades transfusionais anuais ultrapassam os 200 ou 250 ml/kg, ou no sequestro esplénico grave recorrente; deverá ser protelada, se possível, até cerca dos cinco anos, e seguida de profilaxia antibiótica;
  • A hidroxicarbamida (anteriormente designada por hidroxiureia) reduz a frequência de crises vasoclusivas (CVO), síndroma torácica aguda (STA) e de suporte transfusional. Tal fármaco está indicado em doentes Hb SS ou Hb Sβ0 que apresentam:
  • 1) ≥ 3 episódios de CVO num período de 12 meses; 2) antecedentes de STA ou anemia sintomática; 3) antecedentes de AVC e contraindicação de suporte transfusional regular. Alguns autores defendem mesmo a utilização em crianças ≥ 9 meses de idade, assintomáticas ou com episódios pouco frequentes de CVO. A dose inicial é de 15-20 mg/kg/dia com incrementos de 2,5-5 mg/kg cada 8 semanas de acordo com toxicidade hematológica até máximo do 35 mg/kg/dia.
  • O transplante de células estaminais é o único tratamento curativo, o qual deve ser considerado na presença de, pelo menos, uma das seguintes situações:
  • 1) STA com necessidade de internamentos recorrentes; 2) CVO recorrentes; 3) alteração neuropsicológica com RM cerebral anormal; 4) osteonecrose de múltiplas articulações; 5) doença pulmonar estádio I ou II; 6) proteinúria moderada-grave ou taxa de filtração glomerular entre 30-50%; 7) retinopatia proliferativa bilateral com diminuição major da acuidade visual num olho; 8) aloimunização durante suporte transfusional regular.
  • Prevenção e tratamento de doença renal crónica – nos casos de microalbuminúria significativa utilizam-se os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA);
  • A terapêutica génica constitui uma medida promissora de “cura”. O óxido nítrico (NO) tem sido alvo igualmente de investigação para a terapêutica.

As principais indicações para internamento hospitalar são: dor não controlada com analgesia oral, hipertermia (> 40ºC), mau estado geral (choque e desidratação), sinais imagiológicos de infiltrado pulmonar, hiperleucocitose ou leucopénia, respectivamente > 30.000/mmc e < 5.000/mmc, plaquetas < 100.000/mmc, Hb < 5g/dL, e antecedentes de infecção grave.

Prognóstico e prevenção

A sobrevivência dos indivíduos com ACF melhorou drasticamente devido à melhoria das condições socioeconómicas, ao melhor conhecimento da fisiopatologia, à possibilidade de diagnóstico precoce e de prevenção, e ao tratamento das complicações.

Dado que o diagnóstico precoce proporciona a possibilidade de medidas de profilaxia secundária, o aconselhamento genético e a orientação familiar para os portadores do gene da Hb S, o diagnóstico pré-natal e o rastreio no recém-nascido nas áreas do globo com maior prevalência são estratégias de extrema importância para a melhoria do prognóstico.

A prevenção primária do AVC tem sido levada a cabo nalguns centros pela técnica do Doppler transcraniano medindo a velocidade sanguínea na porção terminal da carótida interna, e na porção proximal da artéria cerebral média. Em 30% dos casos evidenciando dados anómalos (lesões estenóticas), existe probabilidade de AVC isquémico dentro do período de 4 anos.

OUTROS DEFEITOS DA HEMOGLOBINA

A Hb E e a Hb C são, respectivamente, a segunda e terceira alteração mais comum em todo o mundo a seguir à Hb S. São ambas raras no mundo ocidental.

A Hb E é comum no Sueste Asiático e no Sul da China e resulta da substituição do aminoácido na posição 26 da cadeia β da hemoglobina (ácido glutâmico por lisina).

A Hb C é encontrada em indivíduos de descendência africana e resulta da substituição do aminoácido na posição 6 da cadeia β da hemoglobina (ácido glutâmico por lisina).

Ambas determinam quadros clínicos benignos e oligossintomáticos (anemia ligeira, células em alvo, reticulocitose discreta). As crianças com Hb SC têm anemia mais ligeira e menor número de crises dolorosas em comparação com as crianças com ACF (Hb SS).

ANEMIA HEMOLÍTICA CONGÉNITA POR HEMOGLOBINAS INSTÁVEIS

Esta entidade (também designada “anemia com corpos de Einz ou Heinz-Ehrlich”) integra quadros diversos de anemia hemolítica intermitente transmitidos de modo autossómico dominante, destacando-se uma característica biológica clássica: o aparecimento de corpos de Heinz nos eritrócitos e reticulócitos após incubação a 37ºC durante 48 horas.

Foram identificadas mais de 200 hemoglobinas instáveis, quase todas decorrentes de mutações de novo, sendo a Hb Koln a mais frequente. A hemólise intensifica-se com episódios febris e com alguns fármacos oxidantes.

O tratamento é de suporte, com suplementos de ácido fólico. Nalguns casos está indicada a esplenectomia. De salientar a necessidade de evitar medicamentos com efeito oxidante e transfusões de sangue.

HEMOGLOBINOPATIAS COM AFINIDADE ANORMAL PARA O OXIGÉNIO

Trata-se de situações em geral transmitidas de modo autossómico dominante.

  • Se a afinidade estiver aumentada (contexto de mais de 100 variantes de Hb), a tradução clínica é o défice de oxigenação tecidual, podendo conduzir a eritrocitose compensadora não associada a outra sintomatologia.

Em cerca de 20% dos casos o diagnóstico pode fazer-se mediante a medição da P50 (ver Parte de Perinatologia/Neonatologia), que é baixa (valor normal ~23-29 mm Hg). Os valores de eritropoietina e 2,3- difosfoglicerato são normais. Não é necessário tratamento.

  • Se a afinidade estiver diminuída, o resultado poderá ser anemia (com Hb Seattle) ou cianose (com Hb Kansas). As correspondentes variantes da Hb podem resultar de mutações nas cadeias α ou β. A exposição à inalação de oxigénio corrige a cianose, o que não acontece nos casos de metemoglobinémia e de hemoglobinopatia M.

METEMOGLOBINÉMIAS

Patogénese

Em condições normais forma-se continuamente metemoglobina nos eritrócitos a partir da hemoglobina (cerca de 1-2% de Hb está sob esta forma de metemoglobina).

A hemoglobina converte-se em metemoglobina quando o ferro do heme (ferroso na hemoglobina ou Fe2+), uma vez oxidado, passa a férrico ou Fe3+ gerando metemoglobina; esta última é a chamada Hb desnaturada.

A metemoglobina não é um pigmento transportador de oxigénio; assim, a curva de dissociação O2-Hb está também desviada para a esquerda, do que resulta um aumento da afinidade do O2 para a Hb, com défice de libertação de O2 para os tecidos e consequente hipóxia.

Várias enzimas redutoras (metemoglobina-redutases ou diaforases) assegurando a sua retransformação permanente em Hb funcional ou transformação de Fe férrico em Fe ferroso, impedem que aquela percentagem de metemoglobina aumente. A forma principal de diaforases tem por coenzima a NADH (nicotinamida-adenina dinucleótido fosfato) reduzida.

Pode deduzir-se que situações congénitas em que existe défice do referido sistema enzimático, ou anomalias na globina que determinam que os grupos heme existam sempre no estado férrico (formação de Hb anómala designada Hb M), ou adquiridas, em que exista acção directa de compostos oxidantes como nitritos, cloratos, quinonas, originam formação em excesso de metemoglobina.

De salientar que na metemoglobinémia por défice enzimático não existe hemólise.

A clássica cor de chocolate do sangue é notória sempre que a proporção de metemoglobina for superior a 15-20%. Proporções superiores a 70% são potencialmente letais.

Nesta perspectiva, podem ser sistematizadas essencialmente três formas clínicas:

  • Congénitas (familiares) decorrentes de deficiência enzimática, de transmissão hereditária recessiva, mais frequente;
  • Congénitas associadas a defeito da hemoglobina – Hb M, de transmissão dominante;
  • Adquiridas, induzidas pela acção de agentes químicos oxidantes já referidos. Esta última forma clínica é relatada a propósito do diagnóstico diferencial e da actuação terapêutica.

Metemoglobinémia congénita (familiar)

Na maioria dos doentes atingidos por esta doença (transmitida de modo autossómico recessivo e frequente nos índios Navajo) verifica-se défice NADH citocromo b5 redutase ou de diaforase 1. A percentagem de metemoglobina é da ordem dos 40%, não originando, em geral, sintomas; poderá verificar-se cianose ligeira, depressão respiratória ou policitémia compensadora.

Tratando-se de formas assintomáticas, não está indicado qualquer tratamento.

Nas formas sintomáticas a abordagem é semelhante à descrita para as formas tóxicas (adquiridas), adiante referidas a propósito do diagnóstico diferencial.

A electroforese das Hb e o estudo espectrofotométrico contribuem para o esclarecimento diagnóstico.

Metemoglobinémia congénita associada a Hemoglobina M

Existem diversas variantes de Hb M, as quais resultam, como referido antes, de anomalias estruturais da globina (cadeias α ou β).

 As formas homozigóticas são letais; nas formas heterozigóticas a percentagem de metemoglobina oscila entre 20% e 30%, a que corresponde clinicamente cianose com PaO2 normal.

Ao contrário do que acontece com a metemoglobinémia por défice enzimático, existe diminuição da afinidade da Hb para o O2 verificando-se, portanto, desvio da curva da Hb-O2 para a direita, permitindo maior distribuição de O2 aos tecidos e explicando, designadamente, que não se verifiquem sintomas respiratórios.

A característica clínica mais chamativa é a cianose verificável a partir dos 4-6 meses de idade; nas variantes de Hb M Saskatoon e Hyde Park (hemoglobinas instáveis) pode verificar-se anemia hemolítica crónica.

A electroforese das Hb e o estudo espectrofotométrico contribuem para o esclarecimento diagnóstico.

Nas formas sintomáticas a abordagem é semelhante à descrita para as formas adquiridas, relatadas a seguir.

Diagnóstico diferencial e tratamento

O diagnóstico diferencial das metemoglobinémias congénitas hereditárias faz-se essencialmente com a metemoglobinémia adquirida (tóxica).

Esta situação resulta da acção de certas drogas e agentes químicos oxidantes que provocam desnaturação da hemoglobina tais como toxinas produzidas por certas enterobacteriáceas em casos de diarreia, nitritos, nitratos (certos aditivos alimentares, fertilizantes), primaquina, derivados da anilina (corantes, certos lápis), sulfonamidas, análogos da vitamina K, benzocaína, etc.. Os recém-nascidos são mais susceptíveis à formação de metemoglobina dado que possuem maior percentagem de hemoglobina F e mais baixo nível de metemoglobina-redutase.

As manifestações clínicas traduzem-se essencialmente por cianose que não responde à administração de oxigénio. Aliás, trata-se duma pseudocianose com coloração da pele descrita classicamente como “mais castanha do que azul”. Tais manifestações somente se verificam se a taxa de Hb reduzida for > 5 g/dL. Se os valores de metemoglobinémia forem > 1,5 g/dL, o sangue evidencia cor castanha (tipo “chocolate”).

O sintomas e sinais (tanto mais exuberantes quanto maior o teor de metemoglobina formada), em presença de pressão arterial de O2 (Pa O2) normal ou elevada, são: ansiedade, cefaleia, tontura e síncope surgem com níveis entre 20-30%, enquanto confusão, prostração, taquicardia e taquipneia surgem com níveis entre 30-50%. Níveis > 70%, que podem ser letais, associam-se a acidose metabólica, arritmia cardíaca, convulsão e coma.

Deve admitir-se a hipótese de metemoglobinémia na presença de uma disparidade entre a saturação arterial em oxigénio medida por oximetria de pulso e por gasometria arterial – saturation gap/hiato na saturação. A co-oximetria permite determinar a percentagem das diferentes formas de hemoglobina e estabelecer o diagnóstico de metemoglobinémia.

O tratamento (de urgência) da metemoglobinémia tóxica (adquirida) consiste na administração por via endovenosa de azul de metileno (solução a 1%) na dose de 1-2 mg/kg de peso durante 5 minutos; a dose pode ser repetida em intervalos de 4 horas até máximo de 7 mg/kg. [O azul de metileno está contraindicado nos casos de défice dedesidrogenase da glucose-6-fosfato/ G– 6PD]. Em alternativa: ácido ascórbico na dose de 200-500 mg/dia (efeito mais lento). Nos casos em que não se verifica resposta está indicada exsanguinotransfusão ou oxigenação hiperbárica.

Nota: O azul de metileno e o ácido ascórbico são ineficazes em casos de metemoglobinémia associada a Hb M.

BIBLIOGRAFIA

Adekile AD, Gupta R, Khayat AA, et al. Risk of avascular necrosis of the femoral head in children with sickle cell disease on hydroxyurea: MRI evaluation. Pediatric Blood & Cancer 2019; 66: e27503

Angelucci E, Matthes-Martin S, Baronciani D, et al. Hematopoietic stem cell transplantation in thalassemia major and sickle cell disease: indications and management recommendations from an international expert panel. Haematologica 2014; 99: 811-820 

Balwani M, Desnick R. The porphyrias: advances in diagnosis and treatment. Blood 2012; 120: 4496-4504

Cao A, Galanello R. Beta-thalassemia. Genet Med 2010; 12: 61–76

Chiruka S, Darbyshire P. Management of thalassaemia. Paediatr Child Health 2011; 21: 353-356

Claster S, Vichinsky EP. Managing sickle cell disease. BMJ 2003; 327: 1151-1555

Coughlin K, Flibotte J, Cahill AM, et al. Methemoglobinemia in an infant after sclerotherapy with high-dose doxycycline. Pediatrics 2019; 143: (2) e20181642; DOI: 10.1542/peds.2018-1642

Cunningham MJ. Update on thalassemia: Clinical care and complications. Pediatr Clin North Am 2008; 55: 447-460

Driscoll MN, Hurlet A, Styles L, et al. Stroke risk in siblings with sickle cell anemia. Blood 2003; 101: 2401-2404

Gillis VL, Senthinathan A, Dzingina M, et al. Guideline development Group. Management of an acute painful sickle cell episode in hospital: summary of NICE guidance. BMJ 2012; 27: 344 

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Haridasa N, DeBaun MR, Sanger M, et al. Student perspectives on managing sickle cell disease at school. Ped Blood & Cancer 2019; 66: e27507

Hoffman R, Benz EJ, Silberstein LE, et al (eds). Hematology: Basic Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier, 2018

Howard J, Hart N, Roberts-Harewood M, et al. Guideline on the management of acute chest syndrome in sickle cell disease. Br J Haematol 2015; 169: 492–505

Ivankovich DT, Braga JAP, Lanza FC, et al. Lung function in infants with sickle cell anemia. J Pediatr 2019; 207: 252-254

Jayavaradhan R, Malik P. Genetic therapies for sickle cell disease. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 465-480

Lichtman MA, Williams WJ (eds). Williams Hematology. New York: McGraw-Hill, 2006

Kayle M, Docherty SL, Sloane R, et al. Transition to adult care in sickle cell disease: A longitudinal study of clinical characteristics and disease severity. Ped Blood & Cancer 2019; 66: e27463

Kassim AA, Galadanci NA, Pruthi S, DeBaun MR. How I treat and manage strokes in sickle cell disease. Blood 2015; 125: 3401-3410

Kliegman RM, Stanton BF, StGeme JW, Schor NF (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2015

Kumar G, Muwaijei AA, Sohal APS, et al. Sickle cell crisis: A crisis of a different sort? Arch Dis Child Educ & Practice 2018; 103: 290-336

Meier ER. Treatment options for sickle cell disease. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 427-444

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Nathan DG, Oskin SH, Ginsburg D, Look AT (eds): Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia: Saunders, 2003

Peters M, Heijboer H, Smiers F, Giordano PC. Diagnosis and management of thalassaemia. BMJ 2012; 344: e228

Piel FB, Tatem AJ, Huang Z, et al. Global migration and the changing distribution of sickle haemoglobin: a quantitative study of temporal trends between 1960 and 2000. Lancet Glob Health 2014; 2: e80–e89 

Rehman HU. Methemoglobinemia. West J Med 2001; 175: 193-196

Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA (eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Rund D, Rachmilewitz E. Beta -Thalassemia. NEJM 2005; 353: 1135-1146

Smith-Witley K, Thompson AA. Indications and complications of transfusions in sickle cell disease. Pediatr Blood Cancer 2012; 59: 358-364

Taher A, Vichinsky E, Musallam K, et al. Guidelines for the management of non-transfusion dependent thalassaemia (NTDT). Nicosia-Cyprus: Thalassaemia International Federation ed, 2013 

Telfer PT. Management of sickle cell disease: outpatient and community aspects. Paediatr Child Health 2011; 21: 357-362

Towerman AS, Hayashi SS, Hayashi RJ, et al. Prevalence and nature of hearing loss in a cohort of children with sickle cell disease. Ped Blood & Cancer 2019; 66: e27457

Willen SM, DeBaun MR. The epidemiology and management of lung diseases in sickle cell disease: lessons learned from acute and chronic lung disease in cystic fibrosis. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 481-494

Wong TE, Brandow AM, Lim W, Lottenberg R. Update on the use of hydroxyurea therapy in sickle cell disease. Blood 2014; 124: 3850-3857

Wonke B. Clinical management of beta-thalassemia major. Semin Hematol 2001; 38: 350-359

Zaidi AU, Heeney MM. A scientific renaissance: novel drugs in sickle cell disease. Pediatr Clin North Am 2018; 65: 445-494