Definições

Na idade pediátrica, neutropénia define-se como o número absoluto de neutrófilos no sangue periférico inferior a dois desvios padrão da média para a idade (ver capítulo sobre síndromas hematológicas e Quadro 1).

Na ausência da utilização de tabelas de percentis, podem ser estabelecidas as seguintes noções práticas:

Leucopénia: número absoluto de leucócitos circulantes < 4000/μL ou /mmc., tendo como referência os limites de normalidade: 4500-13.500/μL (7-12 anos).

Neutropénia: designação que corresponde ao número absoluto de neutrófilos no sangue periférico < 1500/μL (entre 1 mês e 10 anos, considerando limites de normalidade os valores 1500 e 8000 células/μL); < 1800/uL em adultos de ambos os sexos; e < 1200/μL em adultos de raça negra.

Em função do número de neutrófilos, a neutropénia pode ser ligeira, com valores entre 1000 e 1500/μL; moderada, com valores entre 500 e 1000/μL; grave, com valores entre 200 e 500/μL; e muito grave, com valores < 200/μL.

Etiopatogénese

Os neutrófilos, fazendo parte do sistema fagocítico, são produzidos a partir de células precursoras da medula óssea. Este processo, denominado mielopoiese, é dinâmico e requer um ambiente medular próprio auxiliado por factores de crescimento hematopioéticos específicos, tais como o factor de crescimento de granulócitos (G-CSF), factor de crescimento de granulócitos-monócitos (GM-CSF), factor de células precursoras (SCF), interleucina 3 (IL-3) e interleucina 6 (IL-6).

Os estádios de maturação dos neutrófilos são: mieloblasto, promielócito, mielócito, metamielócito, bastonete e neutrófilo segmentado. O tempo médio de maturação medular de um neutrófilo é de 10 dias; este é depois libertado para a circulação, onde permanece em média 6 a 10 horas, podendo então migrar para diversos tecidos, onde o seu tempo de semi-vida é curto.

Os neutrófilos circulantes correspondem apenas a 3 a 5% de todos os neutrófilos do corpo humano. Assim se compreende que na etiopatogénese da neutropénia possam estar envolvidos vários mecanismos, tais como: 1) diminuição da produção, 2) mielopoiese ineficaz, 3) aumento da marginalização ou 4) aumento da destruição periférica.

O número total de neutrófilos no sangue periférico depende também da idade e da etnia. O número de leucócitos na data de nascimento é elevado, seguindo-se um declínio rápido a partir das 12 horas, até ao final da primeira semana. Após este declínio, os valores estabilizam até ao ano de idade. Assim, durante a infância, os neutrófilos constituem 20 a 30% da população leucocitária circulante; por volta dos 5 anos de idade, o número de neutrófilos e linfócitos é semelhante e, na adolescência, a percentagem de neutrófilos em relação aos leucócitos totais aumenta, constituindo 70%. (Quadro 1)

De referir que os valores de neutropénia definidos para a raça caucasiana não podem ser utilizados na raça negra; com efeito, estima-se que, em pelo menos 3 a 5% das crianças apresentem valores normais de neutrófilos entre 1000 a 1500/μL.

QUADRO 1 – Valor normal da contagem de leucócitos

IdadeLeucócitosNeutrófilosLinfócitosMonócitosEosinófilos
Média(-2DP+2DP)Média(-2DP+2DP)%Média(-2DP+2DP)%Média%Média%
Nascimento
12 horas
24 horas
1 semana
2 semanas
1 mês
6 meses
1 ano
2 anos
4 anos
6 anos
8 anos
10 anos
16 anos
21 anos
18,1
22,8
18,9
12,2
11,4
10,8
11,9
11,4
10,6
9,1
8,5
8,3
8,1
7,8
7,4
9,0 – 30,0
13,0 – 38,0
9,4 – 34,0
5,0 – 21,0
5,0 – 20,0
5,0 – 19,5
6,0 – 17,5
6,0 – 17,5
6,0 – 17,0
5,5 – 15,5
5,0 – 14,5
4,5 – 13,5
4,5 – 13,5
4,5 – 13,0
4,5 – 11,0
11,0
15,5
11,5
5,5
4,5
3,8
3,8
3,5
3,5
3,8
4,3
4,4
4,4
4,4
4,4
6,0 – 26,0
6,0 – 28,0
5,0 – 21,0
1,5 – 10,0
1,0 – 9,5
1,0 – 8,5
1,0 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,5
1,5 – 8,0
1,5 – 8,0
1,5 – 8,5
1,8 – 8,0
1,8 – 7,7
61
68
61
45
40
35
32
31
33
42
51
53
54
57
59
5,5
5,5
5,8
5,0
5,5
6,0
7,3
7,0
6,3
4,5
3,5
3,3
3,1
2,8
2,5
2,0 – 11,0
2,0 – 11,0
2,0 – 11,5
2,0 – 17,0
2,0 – 17,0
2,5 – 16,5
4,0 – 13,5
4,0 – 10,5
3,0 – 9,5
2,0 – 8,0
1,5 – 7,0
1,5 – 6,8
1,5 – 6,5
1,2 – 5,2
1,0 – 4,8
31
24
31
41
48
56
61
61
59
50
42
39
38
35
34
1,1
1,2
1,1
1,1
1,0
0,7
0,6
0,6
0,5
0,5
0,4
0,4
0,4
0,4
0,3
6
5
6
9
9
7
5
5
5
5
5
4
4
5
4
0,4
0,5
0,5
0,5
0,4
0,3
0,3
0,3
0,3
0,3
0,2
0,2
0,2
0,2
0,2
2
2
2
4
3
3
3
3
3
3
3
2
2
3
3
Valores apresentados em 103/μL, intervalos de confiança de 95% ou percentagem.
Adaptado de Segel GB, et al. Neutropenia in Pediatric Pratice. Pediatr Rev 2008; 29 (1)

Classificação

Relativamente ao tempo de evolução, a neutropénia classifica-se como aguda (inferior a 3 meses) ou crónica (≥ 4 meses).

A neutropénia pode ainda ser classificada como: – central quando existe depleção celular da medula óssea (deficiência na fase inicial de maturação); ou – periférica se a maturação dos neutrófilos na medula óssea é normal.

Para uma abordagem clínica mais prática, neste capítulo optou-se por usar uma classificação baseada no carácter congénito ou adquirido da neutropénia.

Neutropénias adquiridas

As neutropénias adquiridas constituem a forma mais frequente de neutropénia na idade pediátrica. Na sua origem, podem estar várias causas, sendo a infecciosa a mais frequente e benigna. No Quadro 2 estão descritas as causas mais comuns.

QUADRO 2 – Neutropénias adquiridas

CausasFactores Etiológicos/AgentesComentários
Neutropénia pós-infecciosaVírus, bactérias, protozoários e fungosRedistribuição dos neutrófilos, sequestro das células por lesão tecidual e diminuição da produção de neutrófilos.
Neutropénia induzida por fármacosAnalgésicos e anti-inflamatórios não esteróides; anticonvulsantes, anti-infecciosos; antipsicóticos e antidepressivos, antitiroideusReacção de hipersensibilidade (febre, adenopatias, exantema, hepatite, nefrite, pneumonite, anemia aplásica).
Neutropénia imune
AloimuneSensibilização pré-natal a antigénios específicos dos neutrófilos herdados do pai. Presença de anticorpos antineutrófilo circulantes ou fagocitose esplénica.
Autoimune agudaRelacionada com fármacos ou infecções.
Autoimune crónicaPrimária: presença de anticorpos antineutrófilo. Medula óssea normo ou hipercelular. Secundária: doenças autoimunes, neoplasias hematológicas, tumores sólidos ou imunodeficiências primárias.
Sequestro reticulo-endotelialHiperesplenismoAnemia e trombocitopénia podem coexistir.
Alterações da medula ósseaNeoplasias (linfomas, tumores sólidos metastáticos)Presença de formas mielóides imaturas e percursores eritróides no sangue periférico.
Quimioterapia ou radioterapia com atingimento da medula ósseaSupressão da produção de células mielóidesHipoplasia da medula óssea, anemia, trombocitopénia.
Leucemia aguda, leucemia mielóide crónicaSubstituição da medula óssea por céluas malignasPancitopénia, leucocitose.
MielodisplasiaMaturação displásica das “Stem cells”Hipoplasia da medula óssea. Trombocitopénia.
Neutropénia idiopática crónicaAlteração na maturação/ proliferação mielóideTambém conhecida por neutropénia crónica benigna. Ocorre em idades mais tardias (adolescência). Sem morbilidade significativa. Diagnóstico de exclusão.
Neutropénia por deficiência nutricionalDéfice de vitamina B12 ou ácido fólicoCoexistem anemia megaloblástica e neutrófilos hipersegmentados devido a hematopoiese ineficaz.
Adaptado de Walkovich K et al. How to Approach Neutropenia in Childhood. Abril 2013. Vol 34 (4) 

Neutropénias congénitas

A classificação das neutropénias congénitas não é consensual, sendo que o estudo genético assume um papel fundamental na sua distinção. No quadro 3 estão descritas neutropénias congénitas de acordo com a presença ou ausência de manifestações extra-hematopoiéticas e defeitos associados.

QUADRO 3 – Neutropénias congénitas – defeitos no número e/ou função dos neutrófilos*

NomeOMIMAlteraçõesDefeitos associadosHereditariedadeGene
Neutropénia congénita sem manifestações extra-hematopoiéticas
Neutropénia congénita grave202700Diferenciação mielocítica ADELANE (19q13.3)
Neutropénia congénita grave com mutação somática de CSF3R202700Diferenciação mielocítica, sem resposta a G-CSF  CSFR3 (1p35p34)
Neutropénia congénita sem manifestações extra-hematopoiéticas Com defeito da imunidade inata/adaptativa
Neutropénia congénita grave202700Diferenciação mielocíticaLinfopéniaADGFI1 (1p22)
Neutropénia/Mielodisplasia associada ao X301000Diferenciação mielocíticaMonocitopéniaXWAS (Xp11.4-p11.21)
Síndroma WHIM193670Diferenciação mielocíticaLinfopénia, trombocitopéniaADCXCR4 (2q21)
Neutropénia congénita com manifestações extra-hematopoiéticas
Síndroma de Kostmann202700Diferenciação mielocíticaDéfices cognitivos e neurológicosARHAX1 (1q21.3)
Neutropénia cíclica162800Diferenciação mielocíticaTrombocitopénia e monocitopénia que ocorrem durante os períodos de neutrofiliaADELANE (19p13.3)
Síndroma de Shwachman-Diamond260400QuimiotaxiaPancitopénia, condrodisplasia, insuficiência pancreática exócrina, cardiomiopatia, défice cognitivoARSDBS (7q11.22)
Neutropénia com malformação cardíaca e urogenital202700Diferenciação mielocíticaDefeitos estruturais cardíacos, urogenitais, telangiectasias venosas do tronco e dos membrosARG6PC3 (17q21)
Síndroma de Barth302060Diferenciação mielocíticaCardiomiopatia hipertróficaXTAZ (G4.5) (Xq28)
Síndroma de Hermansky-Pudlak tipo 2608233Diferenciação mielocíticaAlbinismoARAP3B1 (5q14.1)
Neutropénia com mutação de AP14610789Diferenciação mielocíticaAlbinismoARAP14 (1q21)
Poiquilodermia tipo clericuzio604173Diferenciação mielocíticaPoiquilodermia, alterações cutâneasAR16ORF57 (16q13)
Doença por acumulação de glicogénio tipo 1b232220Quimiotaxia, Produção de O2, MicrobiocidaHipoglicémia, acidose, hiperlipidémia, neutropénia, hepatomegáliaARG6PT1 (11q23.3)
Síndroma de Cohen216550Diferenciação mielocíticaAtraso do desenvolvimento psicomotor, microcefalia, distrofia retinocoroidal progressiva, miopatia, hiperlaxidão articularARVPS138 (8q22-q23)
*OMIM – Online Mendelian Inheritance in Man; AD – autossómica dominante; AR – autossómica recessiva; X – ligada ao X
Adaptado de Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian Journal of Allergy and Immunology. 2013;1(1):23-38.

Formas clínicas

Descrevem-se a seguir algumas formas clínicas mais frequentes de neutropénia.

Neutropénia pós-infecciosa

A causa mais frequente de neutropénia na infância (transitória) é a infecção vírica (vírus respiratório sincicial, influenza A e B, varicela, rubéola e sarampo). A neutropénia surge nos primeiros 2 dias da doença e pode persistir 3 a 8 dias, o que corresponde a um período de virémia aguda.

Outras infecções:

  • Víricas – por herpes vírus 6, vírus influenza, vírus de Epstein-Barr (VEB), citomegalovírus (CMV), vírus da imunodeficiência humana (VIH), etc.;
  • Bacterianas, incluindo riquétsias (septicémia, tosse convulsa, febre tifóide e paratifóide, tuberculose disseminada, brucelose, febre das Montanhas Rochosas, erliquiose, etc.);
  • Protozoários (malária, leishmaniose);
  • Fúngicas (histoplasmose disseminada).

Neutropénia induzida por fármacos

Os fármacos, tais como analgésicos/anti-inflamatórios (acetaminofeno, ibuprofeno), antibióticos (cloranfenicol, penicilinas), sulfonamidas, anticonvulsantes (carbamazepina) e citostáticos são a segunda causa mais comum de neutropénia ligeira/moderada adquirida. (Quadro 4)

Nestas circunstâncias, a neutropénia inicia-se de forma súbita 7 a 14 dias após a primeira exposição, ou imediatamente a seguir à reexposição. A neutropénia induzida por fármacos, resultante de mecanismos tóxicos, imunológicos ou de hipersensibilidade, é grave, comportando taxas de mortalidade elevadas. A intervenção terapêutica mais eficaz consiste em retirar os fármacos não essenciais.

QUADRO 4 – Fármacos associados a agranulocitose

Analgésicos e anti-inflamatórios não esteróides: ácido acetilsalicílico, aminofenazona, benoxaprofeno, diclofenac, diflonisal, dipirona, fenoprofeno, indometacina, ibuprofeno, fenilbutazona, piroxicam, sulindac, tenoxicam, tolmetina

Antipsicóticos, hipnossedativos e antidepressivos:
amoxapina, clorodiazepóxido, clozapina, diazepam, haloperidol, imipramina, indalpina, meprobamato, mianserina, fenotiazidas, respiridona, tiaprida

Anti-epilépticos: carbamazepina, etossuximida, fenitoína, trimetadiona, valproato, propiltiouracilo

Antitiroideus: carbimazol, metimazol, perclorato de potássio, tiocianato de potássio, propiltiouracilo

Anti-infecciosos: aciclovir, cefalosporinas, cloranfenicol, cloroquina, ciprofloxacina, clindamicina, cotrimoxazol, dapsona, etambutol, flucitosina, gentamicina, hidroxicloroquina, isoniazida, levamizol, lincomicina, mebendazol, mepacrina, metronidazol, nitrofurantoína, novobiocina, penicilinas, pirimetamina, quinina, rifampicina, sulfametoxazol, estreptomicina, terbinafina, tetraciclina, tiacetazona, tinidazol, vancomicina, zidovudina

Cardiovasculares: ácido acetilsalicílico, aprindina, captopril, furosemida, hidralazina, lisinopril, metildopa, nifedipina, fenindiona, procainamida, propafenona, propranolol, quinidina, espironolactona, diuréticos tiazídicos, ticlopidina

Outros: acetazolamida, alopurinol, aminoglutetimida, compostos de arsénico, bezafibrato, bronfeniramina, clorofeniramina, cimetidina, colchicina, diferiprona, famotidina, flutamida, sais de ouro, metapirileno, metazolamida, metoclopramida, levodopa, glibenclamida, diuréticos mercuriais, penicilamina, ranitidina, sulfonamidas (maioria), tamoxifeno, tenalidina, ácido retinóico, tripelenamina

 

Neutropénia imune

A neutropénia imune é uma entidade rara causada por anticorpos contra antigénios específicos dos neutrófilos. Dividem-se em aloimune (ou isoimune), e autoimune (primária ou secundária).

A neutropénia neonatal aloimune ocorre em 0,2% das gravidezes e está associada à presença de anticorpos antineutrófilo circulantes que provocam a destruição de neutrófilos, mediada pelo complemento, ou a fagocitose esplénica dos neutrófilos opsonizados. Ocorre por sensibilização pré-natal a antigénios específicos dos neutrófilos herdados do pai (não presentes nos neutrófilos maternos) com posterior passagem transplacentar de anticorpos IgG maternos contra antigénios dos neutrófilos do feto (processo semelhante ao que se passa na anemia e trombocitopénia isoimunes). A neutropénia verifica-se durante o tempo em que circulam os anticorpos maternos transferidos via placenta, o que geralmente acontece entre as 7 semanas e os 6 meses após o parto.

A neutropénia autoimune primária surge habitualmente entre os 5 e os 15 meses de idade e tem remissão espontânea em praticamente todos os doentes no período de tempo de 7 a 30 meses. Distingue-se das outras formas de neutropénia apenas pela demonstração de anticorpos antineutrófilo (embora, por vezes, existam resultados negativos-falsos), sendo a medula óssea normo ou hipercelular. As infecções graves são pouco frequentes apesar da neutropénia grave.

A neutropénia autoimune secundária surge mais frequentemente em adolescentes ou adultos com: 1) doenças autoimunes (artrite reumatóide, síndroma de Felty, lúpus eritematoso sistémico, síndroma de Sjögren); 2) neoplasias hematológicas (leucemias, linfoma de Hodking, macroglobulinémia de Waldenstrom); 3) tumores sólidos (timoma) ou imunodeficiências primárias (síndroma linfoproliferativa autoimune ligada ao X, imunodeficiência comum variável).

Neutropénia congénita grave

A neutropénia congénita grave caracteriza-se por uma paragem na maturação mielóide na medula óssea na fase de promielócito. Tem uma prevalência de 3-4/1×106 indivíduos. Faz parte de um grupo genético heterogéneo. A forma autossómica dominante resulta de mutações nos seguintes genes: ELANE (19q13.3) (Neutropénia cíclica), CSF3R (1p35p34), GFI1 (1p22); e, quanto à forma recessiva, nos genes: HAX1 (1q21.3) (síndroma de Kostman), G6PC3 (17q21). Outra forma de hereditariedade é a causada por mutação no gene WAS localizado no cromossoma Xp11. A neutropénia congénita grave por mutação de GF1 e WAS associa-se também a defeitos da imunidade inata e adaptativa.

Os doentes com neutropénia congénita grave têm frequentemente valores de neutrófilos inferiores a 500 neutrófilos/μL, febre, infecções recorrentes da pele, do tracto respiratório e digestivo no primeiro ano de vida. Em valor percentual que pode atingir 20% dos doentes, surge leucemia ou síndroma mielodisplásica durante a adolescência.

A síndroma de Kostman é uma forma de neutropénia congénita grave autossómica recessiva com mutação no gene HAX1, localizada no cromossoma 1q21.3. O referido gene tem um papel significativo na apoptose dos neutrófilos, impedindo a sua diferenciação nos estádios de promielócito e mielócito. Deste facto resulta um número absoluto de neutrófilos frequentemente inferior a 200 células/μL, o que se pode verificar logo desde o nascimento ou na primeira infância. Como manifestações clínicas mais frequentes há a citar as infecções bacterianas graves nos seios perinasais, pulmão, fígado, pele e mucosa oral. Em cerca de 40% dos casos verifica-se diminuição da densidade óssea e osteoporose e, numa pequena percentagem, défice associado, cognitivo e neurológico.

Com efeito, antes da era do tratamento com G-CSF, a maioria dos doentes morria de infecções fatais antes da adolescência. De salientar que a mutação no receptor do G-CSF (CSF3R), condiciona má resposta à terapêutica e surge mais frequentemente em doentes que evoluem para mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda (cerca de 10% dos casos).

Apenas os doentes que não respondem ao G-CSF são candidatos a transplante de células hematopoiéticas.

A neutropénia cíclica é uma doença rara autossómica dominante, causada por uma mutação do gene ELANE, localizado no cromossoma 19p13.3. Tem uma prevalência de 3-1/1×106 indivíduos. Caractereriza-se por períodos regulares de neutropénia (valores <1000/μL) durante 3 a 10 dias, que se repetem em intervalos de 21 dias (± 4 dias). A neutropénia é acompanhada por monocitose, linfocitose, trombocitopénia e, por vezes, eosinofilia.

As manifestações clínicas coincidem com os períodos de neutropénia; os sintomas e sinais mais comuns são: mal-estar geral, febre, úlceras da mucosa oral, estomatite, gengivite, periodontite, faringite e infecções cutâneas com adenomegálias. Nos períodos de normalização dos valores dos neutrófilos, os doentes são assintomáticos.

A gravidade das infecções relaciona-se com a gravidade da neutropénia, embora nem todos os doentes sejam afectados por infecções. Apesar de ser considerada benigna, uma proporção de cerca de 10% dos doentes morre com infecções complicadas (pneumonia e peritonite com sépsis por Clostridium perfringens). Não existe risco aumentado de desenvolvimento de leucemia mielóide.

O diagnóstico obriga à realização de hemograma, duas vezes por semana e durante 6 semanas. O diagnóstico é confirmado com estudos genéticos moleculares, que demonstram mutação no gene ELANE.

Manifestações clínicas

As infecções bacterianas e/ou fúngicas recorrentes e graves constituem a principal manifestação de neutropénia e associam-se a grande morbilidade. Porém, a frequência e a gravidade das infecções depende, não só da contagem e velocidade com que se instala a neutropénia, mas também de anormalidades da função fagocitária, de defeitos da imunidade adquirida, e de condições do hospedeiro e especificidades dos microrganismos envolvidos. A neutropénia, acompanhada de monocitopénia, linfopénia ou hipogamaglobulinémia, aumenta o risco de infecção. Este risco também aumenta quando a causa da neutropénia é central, versus neutropénia periférica com medula óssea normal.

As manifestações clínicas mais frequentes relacionadas com a neutropénia crónica são: “queda” tardia do cordão umbilical, infecções bacterianas e fúngicas recorrentes e graves, abcessos cutâneos, furunculose, pneumonias de repetição, septicémia, otite média recorrente, infecções perianais e da cavidade oral (estomatite aftosa hemorrágica e gengivites recorrentes). Os locais mais afectados são a pele e mucosas do tracto gastrintestinal, respiratório e genito-urinário.

Entre os agentes infecciosos isolados mais frequentemente nos doentes neutropénicos contam-se: Staphylococcus aureus, S. epidermitis, Streptococcus spp., Enterococcus spp., Burkholderia cepacia, Nocardia asteroides, Pneumococcus spp., Pseudomonas aeruginosa, Candida albicans, Aspergillus spp e bacilos gram-negativos.

Avaliação do doente com neutropénia

A abordagem da criança com neutropénia implica:

  1. Anamnese pormenorizada. É importante investigar a frequência, tipo, gravidade e recorrência de infecções bacterianas, exposição a fármacos, antecedentes familiares de neutropénia ou infecções, internamentos prévios, doenças hematológicas, doenças auto-imunes e consanguinidade. A presença de ulceração da mucosa oral e gengivite são indicadores de mobilização inadequada dos neutrófilos;
  2. Exame físico rigoroso. Devem ser pesquisadas dismorfias congénitas que sugiram síndromas hereditárias. Outros achados que podem orientar no diagnóstico diferencial são: baixa estatura, má nutrição, alterações musculoesqueléticas, pigmentação anómala da pele, distrofia ungueal, leucoplasia, albinismo, eczema, infecções cutâneas, adenomegálias ou organomegálias.
  3. Exames complementares. Será a duração e a gravidade da neutropénia, assim como a existência de sinais de alarme (má progressão ponderal, anemia, trombocitopénia, esplenomegália, adenopatias, dor óssea ou tumefacção articular, dismorfias, sintomas sugestivos de neutropénia crónica, padrão infeccioso cíclico) que determinam a extensão da avaliação laboratorial.

No Quadro 5 está descrita de forma sistemática a abordagem diagnóstica no contexto de neutropénia.

QUADRO 5 – Abordagem diagnóstica da neutropénia

Abordagem diagnóstica da neutropénia
ANA: anticorpo anti-nuclear; ANCA: anticorpo anti-citoplasma do neutrófilo; anti-CCP (anticorpos antipeptídeo citrulinado) FR: factor reumatóide; CMV: citomegalovírus; EBV: vírus Epstein-Barr; VHB: vírus da hepatite B; VHC: vírus da hepatite C; HIV: vírus da imunodeficiência humana.
Adaptado de Errante PR, et al. Neutropenia congénita. Brazilian Journal of Allergy and Immunology. 2013;1(1):23-38.
Informação clínica
    • História clínica (fármacos, histórico de infecções, doenças autoimunes, hematológicas, neoplásicas)
Avaliação laboratorial
    • Hemograma com reticulócitos; se neutropénia isolada ou neutropénia pós-infecciosa (na ausência de sinais de alarme): reavaliação analítica 3 a 4 semanas depois
    • Morfologia leucocitária com contagem do número de neutrófilos hiposegmentados
    • De acordo com a clínica:
    • Testes imunológicos: ANA (anti-SSa, anti-SSB, anti-DNA), ANCA, FR, anti-CCP
    • Hemograma 2 vezes/semana durante 2 meses
    • Serologias víricas: VEB, CMV, VHB, Parvovírus B19, VHB, VHB, VIH (e outros de acordo com a clínica)
    • Doseamento de imunoglobulinas (Ig A, IgG e IgM)
    • Doseamento vitamina B12 e ácido fólico
    • Função pancreática exócrina
Exame da medula óssea
    • Neutropénia grave ou neutropénia e presença de sinais de alarme: medulograma + biópsia osteomedular. Avaliação para morfologia, citometria de fluxo, citogenética
Testes genéticos
    • Supeita de neutropénia congénita (estão disponíveis painéis de genes associados a neutropénias)

Medidas preventivas

Os doentes neutropénicos devem ter uma alimentação adequada, boa higiene corporal (oral e perineal), assim como beneficiar do programa de imunizações actualizado [incluindo a vacina contra influenza e pneumococos; o uso de BCG (bacilo de Calmette e Guérin) está contraindicado]. Os doentes com neutropénia congénita grave beneficiam da utilização de antibióticos profilácticos de amplo espectro (exemplo: sulfametoxazol/trimetroprim).

Tratamento

Os critérios de eficácia do tratamento da neutropénia congénita incluem: redução das complicações infecciosas, número de infecções e melhoria da qualidade de vida.

O tratamento depende da causa e da gravidade da neutropénia.

Antimicrobianos

Os doentes com neutropénia ligeira ou moderada associada a infecção ligeira devem ser tratados com antibióticos por via oral, enquanto os doentes com neutropénia grave devem ser internados e tratados rápida e agressivamente com antibióticos de largo espectro após realização de hemoculturas e outras culturas consideradas necessárias. Se a febre persistir mais de 48 horas, deve considerar-se a instituição de um antifúngico (por exemplo: anfotericina B lipossómica). Em casos graves está indicado o uso de G-CSF na dose inicial de 5 microgramas/kg/dia.

Factor de crescimento hematopoiético recombinante humano

O tratamento com G-CSF subcutâneo diminui o número de infecções e lesões da mucosa oral. O esquema de tratamento é variável e depende da etiologia da neutropénia. Nos doentes com neutropénia crónica ou auto-imune grave, pode ser administrado diariamente ou três vezes por semana. Na neutropénia secundária à quimioterapia, deve ser utilizada a menor dose efectiva. Os efeitos adversos são pouco comuns, sendo os mais frequentes as dores ósseas e as cefaleias.

Existe risco elevado nas situações de leucemia e mielodisplasia em doentes submetidos a tratamento do G-CSF (doses > 15 microgramas/kg/dia) com mutação dos genes ELANE, HAX1, WASP, SBDS, G6PC3 ou SLC37A4. Contudo, tal não acontece nos doentes com neutropénia clíclica.

Transplante de células hematopoiéticas

O transplante de células hematopoiéticas está indicado:

  • Nos casos refractários ao tratamento com G-CSF;
  • Que apresentem infecções recorrentes graves;
  • Resistência ao tratamento (dose > 50 mcg/kg/dia); ou nos
  • Doentes com pancitopénia ou mielodisplasia/leucemia.

Conclusão

Em suma, a neutropénia na idade pediátrica é uma situação relativamente frequente cuja morbilidade é muito variável e depende da etiologia da doença. O espectro clínico é muito vasto, desde uma situação benigna e autolimitada, até uma situação grave e potencialmente fatal. O diagnóstico atempado de neutropénia congénita grave é essencial para, através de um tratamento profiláctico adequado, se poder diminuir a morbilidade e mortalidade inerentes a este diagnóstico.

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