Definições e importância do problema
A síndroma hemolítica urémica (SHU) é uma microangiopatia trombótica (MAT) sistémica caracterizada pela tríade – anemia hemolítica não imune, trombocitopénia e lesão renal. Apresentando características em comum com a púrpura trombocitopénica trombótica, é uma causa frequente de lesão renal aguda (LRA) adquirida na idade pediátrica (esta última surgindo na proporção de 0,2-4,3 /100.000 a nível mundial).
A púrpura trombocitopénica trombótica (PTT) é definida como uma entidade rara constituída na forma clássica pela pêntade- febre, anemia hemolítica microangiopática, trombocitopénia, função renal anormal e alterações do sistema nervoso central (estes dois últimos componentes, inconstantes).
Existindo certo grau de redundância relativamente à definição das duas entidades, clinicamente semelhantes, salientam-se, contudo, certas particularidades da PTT: poder ser congénita e evidenciar- usualmente em adultos e, ocasionalmente, em adolescentes.
Na MAT verifica-se lesão histológica das arteríolas e capilares com formação de trombos, resultantes de um processo sequencial de lesão das células endoteliais, aumento da espessura e inflamação da parede vascular, acumulação de proteínas e material de lise celular no espaço subendotelial e, finalmente, formação de trombos plaquetários. Estes ocluem o lume microvascular, de forma parcial ou completa, com consequente fragmentação dos eritrócitos.
Existem leitos vasculares muito susceptíveis, como os localizados no rim, ainda que outros também possam estar implicados.
Na PTT, a trombose microvascular é consequência do défice grave de actividade da metaloproteinase de matriz – ADAMTS13 (A Disintegrin And Metalloproteinase with ThromboSpondin 13), responsável pela clivagem de multímeros do factor de von Willebrand (FvW). As causas podem ser primárias por mutação no gene codificador da ADAMTS13 ou secundárias à presença de anticorpos anti-ADAMTS13; em ambas as circunstâncias, a actividade do ADAMTS13 é inferior a 5% do normal. O FvW é uma glicoproteína multimérica produzida nos megacariócitos e nas células endoteliais, e segregada para o plasma com função essencial na adesão e agregação plaquetar. A deficiente actividade do ADAMTS13 determina maior presença de multímeros grandes na circulação, com maior número de sítios de exposição para adesão de plaquetas induzindo a formação de trombos microvasculares e a MAT.
Classificação
Tendo como base as definições de SHU e PTT, e numa perspectiva integrada, pode afirmar-se que as duas entidades são as principais formas de MAT, sendo lógico proceder ao estudo conjunto daquelas sob a designação de PTT/SHU tendo como base a MAT. O Quadro 1 integra a classificação geral deste tipo de alterações.
Sob o ponto de vista da etiopatogénese distinguem-se dois tipos de SHU:
- SHU típica ou pós-diarreia integrando a entidade mais frequente em crianças (> 90% dos casos);
- SHU atípica/SHUa incluindo formas primárias relacionadas com desregulação na via alternativa do complemento, ou secundárias (a doenças sistémicas, transplante, drogas, gravidez, sépsis, hipertensão maligna e tumores) (~5-10% dos casos). Sobre esta forma atípica sugere-se a consulta do Quadro 2.
QUADRO 1- Classificação geral das SHU, PTT e alterações relacionadas
Etiopatogénese conhecida
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Etiopatogénese desconhecida
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Síndroma hemolítica urémica típica ou associada a diarreia
Definição, etiopatogénese e aspectos epidemiológicos
Esta síndroma é caracterizada por anemia hemolítica microangiopática, trombocitopénia e elevação da creatinina sérica traduzindo lesão renal aguda (LRA).
A etiologia mais frequente (90%) de SHU é a infecção entérica por Escherichia coli O157:H7 produtora de toxina Shiga (STEC) a partir de alimentos contaminados. A Shiga-toxina (Stx) tem efeito lesivo directo sobre o endotélio vascular e manifestações 3 a 8 dias após inoculação com dor abdominal, diarreia aquosa (por vezes com sangue) e posterior anemia hemolítica, trombocitopénia e LRA em 10-15% dos doentes. Em cerca de 10-15% dos infectados com STEC desenvolve-se SHU.
Existem diferenças regionais quanto a incidência. Na Europa Central é divulgada a incidência de 1 caso/100.000 crianças, enquanto na América do Sul há publicações referindo 22/100.000.
As principais fontes de contaminação são bovinos infectados, carne mal cozinhada e consumo de leite não pasteurizado.
Uma vez ingerido o microrganismo, verifica-se a sua colonização da mucosa intestinal, produzindo-se diarreia e desidratação. A toxina Stx, entrando na circulação e atingindo o rim, une-se ao seu receptor Gb3 provocando lesão endotelial, principalmente ao nível do córtex, área onde existe maior número dos citados receptores.
Manifestações clínicas
Como manifestações clínicas iniciais citam-se diarreia sanguinolenta e desidratação, associando-se, ulteriormente manifestações hematológicas (palidez, púrpura e/ou equimoses), renais (edema, hematúria e hipertensão arterial) e, invariavelmente, neurológicas (alterações da consciência, convulsões e coma).
A evolução pode ser autolimitada e com bom prognóstico, salientando-se, no entanto, a elevada probabilidade de LRA com diminuição da massa nefrónica.
Diagnóstico
O diagnóstico laboratorial baseia-se na associação de LRA, Hb < 10 g/dL, eritrócitos fragmentados (> 1%) e plaquetas < 150.000/mm3 ou descida de > 25% do valor basal. Outros achados laboratoriais incluem: > LDH, < haptaglobina e prova de Coombs negativa.
Através da cultura das fezes pode comprovar-se o diagnóstico etiológico com a investigação de E. coli produtora de toxina Shiga.
Tratamento e prognóstico
Perante SHU típica ou associada a diarreia, não existe tratamento específico, excepto em contexto de LRA. A transfusão de sangue está indicada com valores de Hb entre 5 e 7 g/dL. Somente estará indicada transfusão de plaquetas se existir síndroma hemorrágica ou valor de plaquetas < 10.000/mm3.
Com o diagnóstico feito atempadamente e internamento em unidade de cuidados intensivos, a mortalidade dos casos de SHU associada a diarreia é < 5% na maior parte dos centros idóneos. Até cerca de 50% dos casos poderá haver necessidade de diálise. Nos sobreviventes, na proporção de 5% poderá haver dependência crónica da diálise, podendo estabelecer-se evolução para doença renal crónica em 30% dos casos.
Existe contraindicação de antibioticoterapia com antibióticos que destroem a parede bacteriana pela possibilidade de libertação de toxinas.
Síndroma hemolítica urémica atípica
Definição e aspectos epidemiológicos
A síndroma hemolítica urémica atípica (SHUa) define-se pela presença clássica da tríade anemia hemolítica, trombocitopénia e lesão renal aguda (LRA) não acompanhada classicamente de processo diarreico, embora a presença de diarreia não indique obrigatoriamente SHU típica.
Menos comum que a forma típica, corresponde a 5-10% das SHU e inclui um grupo heterogéneo de factores etiológicos, sendo que o conceito de atipia se utiliza em geral para denominar condições de activação incontrolada da via alternativa do complemento em circunstâncias diversas, a seguir analisadas. Pode evidenciar-se de modo esporádico e modo recorrente.
Etiopatogénese
A SHU atípica, surgindo de forma esporádica, relaciona-se com a acção de agentes desencadeantes tais como, infecções não entéricas (doença invasiva pneumocócica/Streptococcus pneumoniae- sobretudo serótipo 19A, infecção por VIH e vírus da gripe do subtipo H1N1), toxinas produzidas por diversos microrganismos, fármacos, doenças malignas, transplantes, imunossupressores e gestação.
A SHU recorrente ou familiar (relacionada com desregulação da via alternativa do complemento determinando impossibilidade de frenação da sua actividade) é devida a défice de factores reguladores (proteínas), entre os quais se encontram factores circulantes (factor I ou CFI, factor H ou CFH, factor B ou CFB) e de membrana (cofactor de proteína de membrana – MCP/CD46 e trombomodulina/TM) codificados por genes, sujeitos a mutações.
Em geral, a regulação do complemento mantém-se; contudo, a acção de certos desencadeantes como infecções, vacinas ou gravidez, originando inflamação e activação do complemento, determina a formação de certos complexos que provocam lesão endotelial. Tal lesão também pode ser originada por anticorpos anti-factor H.
Neste contexto, importa relevar que certo tipo de leitos vasculares, como os capilares glomerulares, são altamente predispostos a lesão por exposição constante da matriz subendotelial a grande variedade de proteínas circulantes. A este propósito, importa salientar que em cerca de 50% dos casos publicados de SHUa foi demonstrada lesão endotelial provocada pelo complemento.
O risco de recorrência e de progressão para doença renal crónica está dependente do tipo de mutação. Em 30% dos casos de SHUa não se encontra qualquer mutação e em 10-15% dos SHUa a causa é relacionável com a existência de anticorpos anti-factor H. De destacar que doseamentos normais destes factores não excluem SHUa.
O facto de existirem indivíduos com mutações nos genes dos referidos factores, e sem manifestação de doença, aponta para o possível papel de determinados agentes ambientais potencialmente desencadeantes.
Tratando-se da infecção invasiva por Streptococcus pneumoniae (sobretudo o serótipo 19A, anteriormente citado) produtor de neuraminidase, é exposto o antigénio T de superfície (das células endoteliais glomerulares, plaquetas e eritrócitos), é facilitado o ataque por anticorpos do hospedeiro e o surgimento de MAT.
Diagnóstico
Para o diagnóstico de SHUa, a exemplo do que acontece com qualquer situação clínica, a realização da anamnese e do exame físico são fundamentais. Sem esquecer as causas esporádicas de SHU em geral (sobretudo infecção por Streptoccoccus pneumoniae, por VIH, pelo vírus da gripe A, subtipo H1N1), é fundamental proceder-se ao estudo da actividade de ADAMTS13 e estudo do metabolismo da vitamina B12.
Em segunda prioridade deve proceder-se ao estudo de possível alteração na regulação do complemento: C3 e C4, factores reguladores e, em função dos resultados, ao estudo genético das mutações relacionadas com CFH, CFI, proteína cofactor de membrana, C3 e CFB.
O diagnóstico genético das mutações de genes relacionados com o complemento permite definir o prognóstico e o risco de recaída.
O Quadro 2 pormenoriza um conjunto de exames complementares a seleccionar de modo criterioso.
QUADRO 2 – SHUa: orientação diagnóstica em função da história clínica
SHU ATÍPICA | Anormalidades no complemento |
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Deficiência de ADAMTS13 |
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Outras |
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LES: Lúpus eritematoso sistémico; GNMP: Glomerulonefrite membranoproliferativa; SAF: síndroma de anticorpos antifosfolípidos; ADAMTS13: Metaloprotease responsável pela clivagem do factor de von Willebrand. A lista destes exames é logicamente aplicável no contexto de PTT, de acordo com o conceito etiopatogénico explanado anteriormente. |
Tratamento
O tratamento de suporte e das alterações hematológicas faz-se em conformidade com os resultados dos exames complementares realizados. Sobre as actuações específicas, aconselha-se a consulta de capítulos próprios.
Enquanto os resultados não excluírem como factor etiológico, alterações da regulação do complemento e da actividade de ADAMTS13, recomenda-se proceder a plasmaferese dentro das 24 horas após início da sintomatologia, excepto se na presença de doença pneumocócica invasiva. Se não se dispuser de plasmaferese, poderá recorrer-se a transfusão de plasma não existindo quadro de hipervolémia nem de hipertensão arterial.
Nos restantes casos, a regra é a plasmaferese diária até remissão hematológica e melhoria da função renal.
Poderá ser utilizado o eculizumab que é um anticorpo monoclonal recombinante humanizado bloqueante específico de C5. Dado que o bloqueio de C5 comporta risco elevado de infecção por Neisseria meningitidis, a indicação daquele anticorpo dependerá da situação de paciente previamente vacinado.
A eventualidade de transplante renal depende da evolução da doença renal crónica consequente.
Prognóstico
A SHUa é uma condição crónica com recorrências, de prognóstico mais reservado (mortalidade de 10-15%) em comparação com a forma clássica, mais frequentemente associada a hipertensão, e tendência de evolução para doença renal crónica em cerca de 50% dos doentes.
Súmula
Perante a suspeita clínica de MAT, o diagnóstico deve orientar-se para SHUa se a pesquisa de Stx-STEC for negativa, a actividade plasmática de ADAMTS13 for superior a 5%, e forem excluídas formas secundárias de SHU. Nos últimos anos foram identificadas e caracterizadas múltiplas mutações e polimorfismos de genes que codificam factores do complemento e se relacionam com a desregulação da via alterna do complemento. A SHUa emerge como uma doença causada pela protecção ineficiente do endotélio contra a agressão pelo complemento. Para o diagnóstico de SHUa é recomendável o doseamento dos níveis plasmáticos destes factores e o estudo genético de todos os doentes com SHU.
O diagnóstico genético das mutações do complemento permite definir o prognóstico e o risco de recaída. O transplante renal poderá estar indicado nas formas de prognóstico mais reservado.
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