Importância do problema e sistematização

As manifestações clássicas de disfunção plaquetar, de gravidade variável, são as características da hemostase primária: diátese mucocutânea (nomeadamente petéquias, equimoses, epistaxe e menorragia). Com efeito, a verificação de petéquias e equimoses no mesmo doente aponta no sentido de alteração da função das plaquetas.

Previamente consideradas raras em idade pediátrica, as anomalias funcionais das plaquetas são cada vez mais reconhecidas. Estudos recentes sugerem que estes distúrbios poderão ser tão frequentes como a doença de von Willebrand nalguns grupos de doentes (tais como adolescentes com menorragia). Contudo, uma vez que as alterações nestes dois grupos de doenças ocorrem ao mesmo nível (hemostase primária) não é possível distinguir os referidos grupos apenas com base nas manifestações clínicas.

As anomalias funcionais das plaquetas podem ser congénitas ou adquiridas. A base etiopatogénica de tais anomalias assenta fundamentalmente em defeitos de proteínas de membrana, de receptores ou de grânulos plaquetários.

Anomalias funcionais congénitas

Dum modo geral, as anomalias funcionais plaquetárias congénitas relacionam-se com defeitos do receptor do FvW (complexo de glicoproteína GPIb) ou do receptor do fibrinogénio (GP-IIb-IIIa).

Formas graves como as que se descrevem adiante (trombastenia de Glanzmann e síndroma de Bernard Soulier) são raras, mas de diagnóstico mais fácil. As formas que cursam com disfunção ligeira, de diagnóstico mais difícil, poderão não ser identificadas com as provas de rastreio habituais.

É dada ênfase às seguintes formas clínicas que se seguem.

Trombastenia de Glanzmann

É uma doença autossómica recessiva provocada pela ausência ou disfunção do complexo GP IIb-IIa na superfície da plaqueta. Este receptor é responsável pela ligação da plaqueta a proteínas de adesão (fibrinogénio, factor de von Willebrand e fibronectina). Estão descritas duas formas clínicas: tipo I (em que há ausência total da GP), e tipo II (em que há défice parcial variável – 5% a 25%).

Como consequência do defeito, e em resposta aos agonistas habituais (trombina, ácido araquidónico, colagénio, ADP), não se verifica agregação plaquetária, ou esta é anómala.

Como nota característica aponta-se que o valor da contagem de plaquetas é adequado e o volume (VPM) é normal.

As manifestações são variáveis, desde equimoses fáceis até hemorragias fatais (mais graves na trombastenia tipo I).

Síndroma de Bernard-Soulier

Trata-se duma macrotrombocitopénia (outras doenças deste grupo incluem a anomalia de May-Hegglin e a síndroma da plaqueta cinzenta). A transmissão é autossómica recessiva e a disfunção é causada pela ausência ou diminuição do complexo GPIb/IX/V na superfície plaquetar. Este complexo actua como receptor do factor de von Willebrand.

As manifestações clínicas traduzem-se fundamentalmente por hemorragias gengivais espontâneas; concomitantemente, existe risco aumentado de hemorragia relacionada com traumatismos e pós-operatória.

Como achados laboratoriais salientam-se: trombocitopénia discreta e VPM aumentado.

Anomalias dos grânulos plaquetários

Estas incluem um grupo heterogéneo de defeitos associados à diminuição do número, conteúdo ou libertação dos grânulos. Muitas destas anomalias associam-se a defeitos dos grânulos densos (delta) ou alfa. Na maioria dos casos os defeitos de libertação ocorrem em contexto sindromático.

São exemplos as síndromas de Hermansky-Pudlak e de Chediak-Higashi, e a deficiência de grânulos densos (delta) idiopática. As manifestações hemorrágicas são geralmente benignas.

Anomalias funcionais adquiridas

Na prática clínica poderão surgir situações diversas originando secundariamente anomalias funcionais das plaquetas tais como: insuficiência renal, hepatopatias diversas, coagulação intravascular disseminada (CIVD), etc..

A administração de fármacos como antibióticos em doses elevadas (penicilina, cefalosporinas, carbenicilina), certos anestésicos, anti-histamínicos, psicotrópicos, ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não esteroides, poderá conduzir igualmente às referidas anomalias. Salienta-se a importância de questionar o doente previamente à realização de provas de função plaquetar para uma adequada interpretação dos resultados.

Exames complementares

  1. O diagnóstico de disfunção plaquetar constitui um desafio. Na presença de diátese mucocutânea e/ou história familiar, a avaliação inicial deve incluir hemograma (com VPM), morfologia do sangue periférico, TP e aPTT. Adicionalmente deve excluir-se doença de von Willebrand (pela frequência e relativa facilidade de acesso aos exames laboratoriais para diagnóstico).
  2. Historicamente utilizava-se o tempo de hemorragia para avaliar a função plaquetária. Contudo, tal análise é difícil de realizar na criança pequena, é pouco reprodutível, e pouco sensível para distúrbios ligeiros-moderados.
  3. Por isso, foi substituída por outro exame analítico como o PFS (Platelet Function Screen), o qual se encontra facilmente disponível, é reprodutível, e pode ser realizado na criança pequena. É igualmente pouco sensível nos distúrbios ligeiros.
    Uma vez que é influenciado: – pelo factor de von Willebrand, – pelo valor da contagem de plaquetas (nº de plaquetas < 100.000/mcL não permitindo uma correta interpretação dos resultados), – pelo hematócrito (especialmente se inferior a 30%), e – por fármacos, etc., se o resultado evidenciar alteração, deve ser confirmado.
  4. O exame de eleição para esta patologia é a Avaliação formal da agregação plaquetar com diversos agonistas, evidenciando maior sensibilidade que o PFS; contudo, não está tão amplamente disponível, é difícil de interpretar e reproduzir, e tem custos mais elevados.
  5. Outros exames que podem ser utilizados de acordo com a suspeita clínica incluem avaliação de glipoproteínas de membrana por citometria de fluxo, microscopia electrónica (anomalias dos grânulos) e estudos moleculares.

Tratamento

Medidas de suporte

Para além da terapêutica para as situações de maior gravidade é fundamental que o doente e família saibam como proceder perante algumas hemorragias (nomeadamente epistaxe). É necessário validar estas práticas na consulta (tempo e local de compressão, utilização de agentes lubrificantes e humidificadores).

Salientando que a patologia em análise comporta risco elevado de anemia ferropénica, importa proceder a vigilância e a eventual suplementação com ferro de acordo com a clínica e avaliação laboratorial. Nas adolescentes com menorragias, há que ponderar a administração de anticonceptivos orais.

É igualmente importante reforçar os cuidados de higiene dentária para evitar inflamação da mucosa (agravamento de gengivorragia) perante a necessidade de procedimentos invasivos e de extrações dentárias.

Os anti-inflamatórios não esteroides (AINE) devem ser evitados.

Tratamento não farmacológico

As transfusões de plaquetas devem ser reservadas para situações de hemorragia grave. Para além das reações alérgicas, e outras, associadas às transfusões, existe o risco de aloimunização que poderá determinar a condição de “paciente refractário a transfusões de sangue”. A utilização de agentes hemostáticos em geral deve ser ponderada sempre que possível.

Tratamento farmacológico

A utilização de antifibrinolíticos (ácido aminocapróico e tranexâmico) está estabelecida na hemorragia de mucosas e nos casos de extracções dentárias. Devem ser mantidos até cicatrização, geralmente durante 5 a 10 dias. Podem ser utilizados em conjunto com outros fármacos facilitando a hemostase e estabilizando o coágulo. Podem também ser utilizados na epistaxe recorrente e em casos de menorragias.

A desmopressina, actuando por um mecanismo não esclarecido, melhora a função plaquetar em cerca de 2/3 dos doentes com disfunção ligeira; por isso, pode ser uma alternativa neste grupo de doentes, devendo entretanto ser formalmente avaliada de forma electiva. Não deve ser utilizada antes dos 2-3 anos de idade.

Hemorragias mais importantes, não controladas com as medidas anteriores, devem ser tratadas com factor VII recombinante activado (rFVIIa) e transfusões de plaquetas.

O rFVIIa tem sido utilizado em doentes com disfunção plaquetar grave, nomeadamente trombastenia de Glanzmann como meio de evitar transfusões de concentrados de plaquetas; igualmente em doentes refractários. A sua eficácia é variável.

Nas formas de disfunção plaquetar adquirida o tratamento, logicamente, consiste em eliminar a causa.

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