Definição 

A glomerulonefrite aguda (GNA) é um processo patológico integrando um conjunto de afecções renais, caracterizado por inflamação e/ou proliferação celular do glomérulo, secundário a alterações imunológicas. A forma de apresentação típica é a síndroma nefrítica caracterizada pelo aparecimento súbito de hematúria, proteinúria não nefrótica, hipertensão arterial (HTA), edema e insuficiência renal aguda/oligoanúria. No entanto, muitas vezes manifesta-se por associações incompletas.

Etiologia

A GNA pode ser causada por uma doença renal primária ou ser secundária a uma doença sistémica. Na idade pediátrica a etiologia mais frequente é a GNA pós-infeciosa, sendo o agente Streptococcus beta-hemolítico do grupo A (SGA) o mais frequentemente implicado. Pode, contudo, ser provocada por outros microrganismos, conforme se descreve no Quadro 1.

QUADRO 1 – Agentes microbianos associados a GNA pós-infecciosa

BactériasVírusFungos/parasitas

Streptococcus beta-hemolítico do grupo A
Staphylococcus
Pneumococo
Haemophilus influenza
Meningococo
Mycoplasma
Salmonella typhi
Pseudomonas
Treponema pallidum

Citomegalovírus
Coxsackie
Epstein-Barr
Hepatite B e C
VIH
Sarampo
Varicela-zóster
Parvovírus B19
Rubéola

Candida albicans
Plasmodium falciparum
Toxoplasma gondii
Filaria
Shistosoma mansoni
Leishmania

Uma vez que a GNA pós-estreptocócica (GNAPE) é o protótipo e a causa mais frequente de GN pós-infecciosa na criança, será abordada com mais pormenor neste capítulo.

Aspectos epidemiológicos

A GNAPE atingindo sobretudo o grupo etário dos 4 aos 14 anos, é rara abaixo dos 2 anos (< 5% dos casos). Por razões desconhecidas, é mais frequente no sexo masculino (2:1). Pode ocorrer esporadicamente ou em epidemia, neste último caso sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

Habitualmente surge 3 a 5 semanas após uma infecção cutânea e 7 a 15 dias após uma infecção das vias respiratórias superiores (faringite, amigdalite) causadas por estirpes nefritogénicas: M 1, 2, 4, 12, 25 e M 2, 42, 49, 56, 57 e 60, respectivamente.

As formas não estreptocócicas são sempre esporádicas, sendo a nefropatia simultânea ao processo infeccioso.

Patogénese

A patogénese da GNAPE não está ainda completamente esclarecida. Admite-se que se trata de uma doença causada por imunocomplexos, estando envolvida quer a imunidade humoral, quer a celular.

São propostos vários mecanismos para explicar a origem das lesões glomerulares, nomeadamente:

  • Formação de imunocomplexos circulantes;
  • Deposição de antigénios do SGA no glomérulo com ulterior formação de imunocomplexos antigénio-anticorpo in situ;
  • Antigénios do SGA com mimetismo molecular para a membrana basal, levando a formação de autoanticorpos.

De acordo com provas científicas, o mecanismo patogénico mais importante é a formação de imunocomplexos in situ. A presença destes no glomérulo leva à activação da via alternativa do complemento com posterior recrutamento de neutrófilos, monócitos e macrófagos que, através da libertação de citocinas e factores de crescimento, originam as lesões inflamatórias e proliferativas ao nível dos capilares glomerulares. Estas lesões são responsáveis pela alteração da perfusão capilar observada, com consequente diminuição da taxa de filtração glomerular, retenção hidrossalina e expansão do líquido extracelular.

Histologicamente, a apresentação típica da GNAPE é de uma GNA proliferativa endocapilar, caracterizada por proliferação celular difusa com aumento de células endoteliais, polimorfonucleares, monócitos e eosinófilos. Por imunofluorescência são observados depósitos granulares de IgG e C3 no mesângio e capilares glomerulares e, pela microscopia electrónica verifica-se que a lesão mais característica, embora não patognomónica, é a presença de depósitos electrodensos (“humps”) na vertente externa da membrana basal (subepitelial).

Manifestações clínicas

A GNAPE manifesta-se clinicamente por uma síndroma nefrítica caracterizada pelo aparecimento súbito de hematúria, proteinúria, HTA, edema e insuficiência renal aguda/oligoanúria. A hematúria é um achado quase universal. Trata-se de uma hematúria de características glomerulares que, quando macroscópica, é de cor acastanhada (tipo coca-cola ou vinho do Porto), sem coágulos, indolor e uniforme durante toda a micção; a duração é variável e o desaparecimento progressivo. A proteinúria é habitualmente moderada (< 40 mg/m2/hora), podendo raramente atingir a faixa nefrótica. Em 60 a 80% das situações existe HTA secundária à retenção hidrossalina e expansão do líquido extracelular. O edema, observado em 65 a 90% das crianças, é geralmente palpebral e duro. A insuficiência renal ocorre em 25 a 30% dos casos. Na maioria da vezes é ligeira, com oligúria transitória. A presença de anúria e insuficiência renal significativa deve levantar a suspeita de uma GNA rapidamente progressiva. Sintomas inespecíficos podem também estar presentes, nomeadamente mal-estar geral, astenia, febre, vómitos e dor lombar.

Exames complementares

Perante a suspeita de GNAPE pode ser sistematizada a seguinte avaliação:

  • Sedimento urinário, proteinúria, creatininúria e sódio urinário, podendo utilizar-se a tira-teste urinária. Com estas avaliações é possível a caracterização da hematúria e da proteinúria. No sedimento urinário a presença de eritrócitos dismórficos e cilindros eritrocitários é sugestiva de hematúria de origem glomerular. A relação proteinúria/creatininúria é geralmente > 0,2 mg/mg, mas inferior a 2 mg/mg. O sódio urinário está baixo (< 25 mEq/L) e a fracção excretada de sódio (EFNa+) < 1%;
  • Hemograma, contagem de plaquetas e esfregaço do sangue periférico;
  • Habitualmente verifica-se anemia normocrómica ligeira;
  • Bioquímica sérica: ureia, creatinina, sódio, potássio, cálcio, fósforo, proteínas totais e albumina. Os valores destes parâmetros permitem a avaliação da função renal, da repercussão orgânica da proteinúria e o diagnóstico de distúrbios hidroelectrolíticos associados;
  • Estudo imunológico: C3 e C4, ANCA, ANA e anti-DNA. Trata-se dum estudo fundamental para o dignóstico diferencial. A determinação do C3 é essencial para a confirmação da GNAPE, já que nesta os seus níveis estão diminuídos em 70-90% dos casos (pela activação da via alternativa do complemento). Esta diminuição é obrigatoriamente transitória (com duração máxima de 6-8 semanas), não se correlacionando com a gravidade da doença. Os níveis de C4 revelam envolvimento da via clássica do complemento e estão geralmente normais. A sua redução significativa e persistente leva a admitir outras etiologias – GNA secundária a lúpus eritematoso sistémico (LES), endocardite bacteriana, etc.;
  • Outros estudos: exame bacteriológico do exsudado da orofaringe, título de antiestreptolisinas O (TASO) e anticorpos antidesoxirribonuclease B (anti-DNA-ase B).

Devido ao período de latência entre a infecção e as manifestações clínicas, o exame bacteriológico do exsudado da orofaringe só é positivo em 25% dos casos. O TASO está geralmente elevado após infecção faríngea, mas tal é pouco provável após infecção cutânea estreptocócica. A determinação do título de anti-DNA-ase B é mais sensível para identificar infecção cutânea.

  • Estudo serológico para VEB, CMV, VHB, VHC e VIH para excluir outras etiologias.
  • Ecografia renal, revelando habitualmente rins aumentados de tamanho e hiperecogénicos.

A realização de biópsia renal, importante para avaliar a actividade e potencial reversibilidade das lesões, está indicada nas seguintes situações:

  • Episódios recorrentes de hematúria macroscópica;
  • C3 persistentemente elevado (durante mais de 6-8 semanas);
  • Aumento progressivo da creatinina sérica.

O Quadro 2 resume as principais manifestações clínicas e laboratoriais da GNAPE e a respectiva alteração fisiopatológica associada.

QUADRO 2 – Clínica, fisiopatologia e alterações laboratoriais na GNAPE

ClínicaFisiopatologiaLaboratório
Faringite/amigdaliteInfecção por SGA 
 Formação de imunocomplexos
                           ↓
 
Hematúria
Proteinúria
Depósitos nos capilares glomerulares
Activação do complemento
C3 baixo
Oligúria/IRADiminuição da filtração glomerularUreia e creatinina aumentadas
 Diminuição da excreção urinária de Na+Excreção fraccionada de Na+ <1%
Edema HTAExpansão do líquido extracelularRenina e aldosterona baixas

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial de GNAPE faz-se principalmente com nefropatia por IgA, glomerulonefrite membranoproliferativa e glomerulonefrite secundária a doença sistémica.

A nefropatia por IgA é mais frequente em adolescentes e manifesta-se tipicamente por episódios recorrentes de hematúria macroscópica com hematúria microscópica persistente intercrises. O intervalo entre o início da infecção e as manifestações clínicas é 1 a 2 dias e o C3 é normal.

A glomerulonefrite membranoproliferativa não se distingue da GNAPE numa fase inicial. Contudo, a hipocomplementémia persiste após 6-8 semanas, havendo ainda a possibilidade de aumento progressivo da creatinina sérica.

As glomerulonefrites secundárias a doença sistémica (como o LES e a púrpura de Henoch-Schonlein) cursam habituamente com manifestações extrarrenais. As fracções do complemento (C3 e C4) estão diminuídas na nefrite lúpica e normais na púrpura de Henoch-Schonlein. Além disso, no LES o diagnóstico é sugerido também pela detecção de autoanticorpos circulantes (ANA e anti-DNA).

Tratamento

Não existe tratamento específico. O tratamento é de suporte e dirigido às complicações por sobrecarga de volume, nomeadamente o edema, HTA e, menos frequentemente, edema agudo do pulmão. Inclui as seguintes medidas:

  • Medidas gerais: peso diário, balanço hídrico e dieta com restrição hídrica (em função da diurese e perdas insensíveis) e salina (sódio: 1-2 mEq/kg/dia) e com restrição de proteínas, potássio e fósforo (estas últimas apenas em situação de insuficiência renal e dependendo do controlo analítico);
  • Terapêutica da sobrecarga hídrica: diurético de ansa (furosemida na dose inicial de 1 mg/kg, máximo 40 mg);
  • Terapêutica da HTA (ver capítulo de hipertensão).


O tratamento etiológico só está indicado se houver evidência de infecção activa. Tem apenas como objectivo reduzir a disseminação da infecção nos contactos, já que não interfere na evolução da doença devido ao seu mecanismo imunológico. Deverá ser realizado com amoxicilina na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1g/dia), administrada de 12 em 12 horas por via oral, durante 10 dias ou a penicilina G benzatínica, administrada por via intramuscular em dose única de 50.000 Unidades por kg de peso.

Evolução e prognóstico

A maioria das situações de GNAPE evolui de forma benigna e autolimitada, com excelente prognóstico a longo prazo. Em greal, atinge-se rapidamente a remissão clínica independentemente da gravidade inicial. São considerados factores de mau prognóstico:

  • Hematúria macroscópica, insuficiência renal e HTA persistentes, em associação ou isoladamente, para além de 3 semanas;
  • C3 persistentemente baixo às 6-8 semanas de evolução;
  • Hematúria microscópica e/ou proteinúria significativa (nefrótica ou não) para além dos 6 meses.

Regra geral, em todos os doentes com síndroma nefrítica está indicada a hospitalização. A recorrência é rara devido à intensa resposta imunológica induzida pelas estirpes de SGA.

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