DOENÇAS NEURODEGENERATIVAS

Definição e importância do problema

As doenças degenerativas são situações hereditárias de baixa incidência (< 1/5.000 crianças) caracterizadas por regressão progressiva do desenvolvimento e sintomas neurológicos progressivos. Como manifestações sistémicas mais marcantes citam-se: perdas da visão, fala, audição, locomoção, muitas vezes em associação a convulsões, dificuldade alimentar e défice cognitivo).

As doenças degenerativas podem ser classificadas pelo defeito subjacente (no lisossoma, no peroxissoma, na mitocôndria, etc.) ou pela localização anatómica predominante (substância branca, substância cinzenta, gânglios da base e cerebelo). O estudo imagiológico por ressonância magnética constitui o exame que proporciona as indicações mais precisas sobre a localização do defeito. A detecção do estado de portador pode ser feita por estudo enzimático.

Perante um doente com suspeita de doença heredodegenerativa é fundamental uma cuidadosa história clínica. A anamnese permite descobrir casos semelhantes na família e perceber o tipo de hereditariedade em questão. Os antecedentes de gravidez, de parto e pós-natais podem orientar para uma etiologia sequelar e não progressiva. No que se refere à doença actual, pode evidenciar-se o carácter subagudo ou crónico da doença, a idade de aparecimento de sinais ou sintomas, o tipo de doença neurológica, a regressão do desenvolvimento e sinais ou sintomas de doença sistémica.

Apesar de não existir terapêutica eficaz, o diagnóstico é fundamental para proporcionar à família o prognóstico e o aconselhamento genético. Na maioria dos casos a transmissão é autossómica recessiva, o que confere uma probabilidade de 25% de recorrência. Pode verificar-se igualmente transmissão hereditária ligada ao cromossoma X e, mais raramente, autossómica dominante.

Estas doenças devem ser acompanhadas em centros especializados, embora os respectivos cuidados gerais possam ser ministrados no âmbito dos cuidados primários.

Manifestações clínicas

Atraso e regressão do neurodesenvolvimento

Nas formas de início neonatal o atraso pode ser grave, não se verificando aquisições.

Nas formas infantis precoces (início entre 4-18 meses) pode haver alguma aquisição de competências e, nas infantis tardias (início entre 18 meses–4 anos) e juvenis (início após os 4 anos), pode haver claramente um período de desenvolvimento normal.

Em crianças com atraso de desenvolvimento, uma lentidão extrema no ritmo de aquisições, ou a sua regressão constituem indicadores de doença progressiva.

Da mesma maneira, o aparecimento de sinais ou sintomas neurológicos, psiquiátricos ou sistémicos, ou uma história familiar informativa, são indicadores de doença progressiva e obrigam a uma investigação etiológica.

Epilepsia

A epilepsia pode surgir em várias doenças degenerativas, sugerindo o envolvimento da substância cinzenta. De facto, nas doenças da substância cinzenta a epilepsia é a manifestação clínica predominante com a particularidade de ser refractária. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças neurodegenerativas e epilepsia

GM 1Doença de Menkes
Doença de SandhoffDoença mitocondrial
Doença de Tay Sachs(MERRF)
Défice de biotinidaseSialidose II
Síndroma de AlpersD. de Unverricht-Lungborg
Defeito de peroxissomasDoença de Lafora

Doença motora

A espasticidade associada à hiperreflexia osteotendinosa indica lesão da via piramidal, o que é relacionável com doença da substância branca (leucodistrofia).

A ataxia manifesta-se nas doenças do cerebelo e das vias cerebelosas, e a discinésia (distonia e coreoatetose) nas que afectam predominantemente os gânglios da base.

A neuropatia periférica pode ser resultante de desmielinização do neurónio motor periférico no estádio avançado das doenças degenerativas do sistema nervoso central. Constitui a manifestação principal em doenças do neurónio motor periférico (Charcot Marie Tooth) e nos casos de doenças com envolvimento do cerebelo (degenerescências espinocerebelosas).

Comportamento e alterações psiquiátricas

As alterações do comportamento e a doença psiquiátrica podem ser a forma de apresentação, especialmente nas formas de início juvenil e no adulto. São exemplos a doença de Wilson, a adrenoleucodistrofia, a leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe, a doença de Nieman Pick e a lipofuscinose.

Alterações do perímetro cefálico

A microcefalia progressiva por atrofia cerebral é frequente nas doenças degenerativas. Mais raramente verifica-se macrocefalia, como por exemplo nas doenças de Tay Sachs, Alexander e Canavan. O Quadro 2 resume, de modo integrado, as principais alterações do exame neurológico em diversas afecções.

QUADRO 2 – Alterações do exame neurológico nas doenças neurodegenerativas

++: alteração predominante; +: alteração associada; *: ataxia dentado rubro pálido luisiano
 EspasticidadeAtaxiaDiscinésiaOutras alterações
Leucodistrofia metacromática+++ Disartria; deterioração cognitiva; neuropatia
Adrenoleucodistrofia++++Alteração do comportamento; disfagia; neuropatia
Doença de Pelizaeus Merzbacher+++Hipotonia inicial; nistagmo
Doença de Krabbe++++Irritabilidade; neuropatia
Doença de Canavan++  Hipotonia inicial; macrocefalia
Doença de Alexander++++Macrocefalia, sinais bulbares
Argininémia++++Epilepsia; regressão
Doença de Refsum + Neuropatia; surdez
Doença de Tay Sachs GM2+++ Epilepsia; macrocefalia
GM1+++Miocardiopatia; epilepsia
Doença de Nieman Pick++++Hepatosplenomegália; epilepsia; hiperesplenismo
Síndroma de Rett+++Estereotipias das mãos; epilepsia; hiperventilação; microcefalia
Lipofuscinoses +++Epilepsia mioclónica; microcefalia
Défice de biotinidase++ Eczema; alopécia; epilepsia
Doença de Hallervorden Spatz+ ++Deterioração cognitiva
Doença de Wilson  ++Rigidez; tremor; disfagia; disartria; doença psiquiátrica
Doença de Huntington +++Disartria; epilepsia; deterioração cognitiva
Ataxia de Friedreich+++ Neuropatia; diabetes; disartria; miocardiopatia; pés cavus
Ataxia telangiectasia +++Neuropatia; apraxia óculo-motora; infecções
DRPLA* ++Epilepsia; regressão

Alterações oculares

A avaliação oftalmológica é importante, podendo orientar para a etiologia. (Quadro 3) (Partes XXVI e XXXII)

QUADRO 3 – Alterações oculares nas doenças neurodegenerativas

Atrofia ópticaDoença de Krabbe
Doença de Canavan
Doença de Pelizaeus-Merzbacher
Leucodistrofia metacromática
Síndroma de Zellweger
Lipofuscinose
Mácula cor de cerejaGM2 (Tay Sachs)
GM1
Doença de Nieman Pick
Leucodistrofia metacromática
Sialidose (tipo I e II)
Doença de Farber
RetinopatiaSíndroma de Zellweger
Mucopolissacaridoses
CDG
Doença de Refsum
Síndroma de Cockayne
Doença de Hallervoden-Spatz
Síndroma de Kearns-Sayre
Lipofuscinose
NistagmoDoença de Pelizaeus
Merzbacher
Síndroma de Leigh 
OftalmoplegiaSíndroma de Kearns-SayreSíndroma de Leigh 
Ectopia do cristalinoHomocistinúriaDéfice de Sulfito – Oxidase 
Opacidade da córneaMucopolissacaridosesOligossacaridosesMucolipidose IV
CataratasSíndroma de Zellweger
Síndroma de Lowe
Doença de CockayneGalactosémia
Anel de Kayser FleischerDoença de Wilson  
TelangiectasiaAtaxia telangiectasia  

Visceromegália

A visceromegália é sugestiva de doença lisossomial de armazenamento ou tesaurismose. Na doença de Gaucher há esplenomegália e nas mucopolissacaridoses e oligossacaridoses há hepatosplenomegália. A função hepática também pode estar alterada. A cirrose hepática na doença de Wilson e a icterícia na doença de Nieman Pick podem ser a primeira manifestação da doença.

Doença cardíaca

A doença cardíaca (cardiomiopatia e defeitos de condução) está associada a várias doenças heredodegenerativas e pode ser a causa de morte. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Alterações cardíacas nas doenças neurodegenerativas

Doenças degenerativasAlterações cardíacas
GM 1Miocardiopatia, disritmia
Glicogenose IICardiomegália; ECG típico
Doença de RefsumDefeitos de condução, insuficiência cardíaca
Mucopolissacaridoses e MucolipidosesEspessamento do miocárdio: disfunção valvular
Doença de Kearns-SayreDefeitos de condução
Ataxia de FriedreichCardiomiopatia; defeitos de condução
Doença mitocondrial de início precoceCardiomiopatia; alteração do ritmo
Doença de DuchenneMiocardiopatia

Doença renal

Na doença de Fabry há insuficiência renal por acumulação de glicosfingolípidos nos rins; na síndroma de Lowe (cérebro-óculo-renal) verifica-se disfunção tubular renal; na doença de Leish-Nyham há hiperuricémia, nefrolitíase e nefropatia obstrutiva; e, na síndroma de Zellweger, quistos renais.

Alterações cutâneas

Nalguns casos, são as alterações da pele ou do cabelo que alertam para o diagnóstico. São exemplos a síndroma de Menkes com os “pili torti”; a dermatite seborreica do défice de biotinidase; o exantema tipo pelagra da doença de Hartnup; a distribuição anómala da gordura subcutânea da síndroma CDG; ou os nódulos subcutâneos da doença de Farber. Na adrenoleucodistrofia há hiperpigmentação secundária à doença de Addison.

Diagnóstico

O diagnóstico assenta na evidência de regressão, nos sinais e sintomas neurológicos, e na presença de manifestações sistémicas.

Doenças tratáveis do SNC como tumores, processos inflamatórios (relacionáveis, por exemplo, com infecções pelo vírus da imunodeficiência humana), vasculares ou hidrocefalia devem ser excluídas.

A epilepsia refractária pode acompanhar-se de deterioração cognitiva e regressão, num processo muito semelhante ao que se encontra nas doenças degenerativas, sendo o EEG importante nesta situação.

O estudo imagiológico por ressonância magnética é um exame fundamental na investigação deste grupo de doenças, identificando as estruturas cerebrais mais afectadas. A espectroscopia permite detectar alterações do “pico” de lactato nas doenças mitocondriais, do N-acetil-aspartato na doença de Canavan, e da creatina nas doenças por défice de creatina.

O electroencefalograma (EEG), o electromiograma (EMG), a avaliação dos potenciais evocados visuais e o electrorretinograma estão indicados em casos específicos, assim como o exame do líquido céfalo-raquidiano.

Os estudos bioquímicos e metabólicos do sangue e da urina devem ser realizados, mas sempre orientados pela clínica.

O diagnóstico definitivo obtém-se pela identificação do defeito metabólico ou enzimático no sangue ou nos fibroblastos.

A disfunção neurológica acompanha-se de lesão neuronal, a qual se pode identificar por biopsias periféricas. Nas doenças caracterizadas por grande heterogeneidade genética poderá ser necessário comprovar a existência de alterações histopatológicas nos tecidos para orientar o diagnóstico molecular. Noutros casos, o estudo molecular do gene responsável constitui a via mais directa para estabelecer o diagnóstico.

Tratamento

Não existe tratamento eficaz para a grande maioria das doenças heredodegenerativas.

Em doentes assintomáticos cujo diagnóstico foi feito pela identificação da doença num familiar antes do aparecimento de doença neurológica ou em fases muito precoces da doença, são tentadas certas terapêuticas. Na adrenoleucodistrofia, a administração de gliceril trioleato e trierucato (óleo de Lorenzo) a rapazes assintomáticos, com idade inferior a 6 anos e com RM normal pode atrasar o aparecimento de alterações neurológicas.

O transplante medular também já foi utilizado em casos de adrenoleucodistrofia, na doença de Krabbe e na leucodistrofia metacromática, com algum benefício.

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DOENÇAS NEUROMUSCULARES

Definição e importância do problema

As doenças neuromusculares (DNM) constituem um grupo nosológico heterogéneo, tendo em comum o compromisso da unidade motora num dos seus segmentos: neurónio motor ou 2º neurónio (tronco cerebral ou cornos anteriores da medula), raízes nervosas, nervo periférico, junção neuromuscular e músculo.

A maioria destas doenças é determinada geneticamente, tendo nas duas últimas décadas ocorrido um importante avanço na genética molecular, permitindo um diagnóstico mais rigoroso, o aconselhamento genético e o diagnóstico pré-natal.

As alterações supranucleares, ou seja, as situações em que a disfunção encefálica determina a disfunção motora (como a paralisia cerebral) não se incluem no conceito de doenças neuromusculares.

A classificação das DNM pode ser feita de acordo com a topografia, carácter congénito e adquirido, agudo ou crónico, e progressivo ou estático. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças neuromusculares classificadas de acordo com a sua topografia e etiologia

Neurónio Motor Periférico

    • Causa Genética: Atrofia Muscular Espinhal – I a III
    • Causa Adquirida: Poliomielite

Raízes e Nervos Periféricos

    • Causa Genética: Neuropatias Hereditárias Sensitivo-Motoras
    • Causa Adquirida: Síndroma de Guillain-Barré, Paralisia de Bell

Junção Neuromuscular

    • Causas Genéticas: Síndroma Miasténica Congénita
    • Causa Adquirida: Miastenia Gravis e Botulismo

Fibra Muscular

    • Causas Genéticas: Distrofias Musculares, Miopatias Congénitas, Distrofias Miotónicas e Miotonias, Miopatias Metabólicas
    • Causas Adquiridas: Miopatias Tóxicas, Miopatias Infecciosas, Miopatias Inflamatórias, incluindo Dermatomiosite Juvenil

Etiopatogénese e relação com a semiologia clínica

A anamnese e o exame do sistema neuromuscular permitem a suspeição da existência de uma DNM e da sua etiologia provável. A anamnese deverá incluir múltiplos dados relevantes, sendo de salientar a idade de início dos sintomas e a sequência temporal destes, o género do doente, a progressão temporal da doença (aguda, subaguda ou crónica), a presença de história familiar- sugerindo etiologia genética, ou o envolvimento de outros órgãos e sistemas (nomeadamente a nível cardíaco, pulmonar, cerebral, gastrintestinal, ou renal).

O exame físico, na suspeita de DNM, deve incluir a avaliação da presença de dismorfismos, da postura, da marcha, da atividade motora espontânea, do aumento do esforço respiratório, do volume das massas musculares, da presença de fasciculações, e da mobilidade articular (presença de contraturas articulares ou de hiperlaxidão ligamentar, por exemplo). A avaliação rigorosa do tónus muscular e da força muscular são fundamentais na caracterização clínica de uma possível DNM.

A hipotonia periférica ou neuromuscular relaciona-se com lesão da unidade motora. É muito menos frequente do que a hipotonia central. Quando se origina no período pré-natal, pode associar-se a artrogripose, diminuição dos movimentos fetais e poli-hidrâmnio (por dificuldades da deglutição do feto). A hipotonia é generalizada e simétrica, associa-se a parésia, a hipomobilidade, a hipo ou arreflexia (osteotendinosa e dos reflexos arcaicos), e a atrofia muscular. Geralmente não há dismorfismos associados.

No lactente, devido à hipotonia fisiológica observada a partir do 2º mês de vida, o atraso nas aquisições do desenvolvimento motor assume um papel importante.

O espectro de gravidade clínica no recém-nascido e no lactente é grande (Quadro 2), manifestando-se desde hipotonia com ligeiro atraso do desenvolvimento motor, até quadro de dificuldade alimentar (por sucção débil) e insuficiência respiratória. A abordagem terapêutica do recém- nascido com grave compromisso motor e respiratório é delicada, constituindo um problema ético.

Consideram-se parâmetros indicadores de mau prognóstico: índice de Apgar ≤ 5 aos 5 minutos, prematuridade < 36 semanas de gestação, presença de artrogripose e necessidade de ventilação mecânica por período > 4 semanas.

A hipotonia central é secundária a lesão do SNC (encefalopatias não progressivas – encefalopatia hipóxico – isquémica; cromossomopatias – síndromas de Down ou Prader-Willi; e doenças hereditárias do metabolismo – doenças dos peroxissomas, entre outras causas).

Como sinais mais sugestivos, apontam-se: o predomínio axial da hipotonia, a letargia e/ou convulsões, o exame neurológico com assimetrias (sugerindo lateralização), a persistência dos reflexos arcaicos, a hiperreflexia ósteo-tendinosa, a presença de dismorfismos e, habitualmente, a preservação da força.

Na hipotonia mista há compromisso central e periférico simultâneo, com sobreposição dos sinais clínicos referidos. São exemplos, as citopatias mitocondriais e as leucodistrofias.

A criança mais velha com doença muscular apresenta-se geralmente com compromisso das cinturas, caracterizado por défice motor proximal e atrofia dos músculos das cinturas escapular e pélvica.

A perturbação da marcha, que pode ser adquirida tardiamente, associa-se a quedas frequentes e à dificuldade em correr ou subir escadas.

Na marcha miopática (que sugere doença muscular ou uma das atrofias musculares espinhais) observa-se báscula alternada da bacia para compensar parésia proximal dos membros inferiores. Há acentuação da lordose lombar, e sinal de Gowers – (para se levantar, a criança inclinada para a frente com joelhos semiflectidos, vai apoiando as mãos nos membros inferiores, gradualmente dos pés para os joelhos, “como que “ajudando” com as mãos a estender os joelhos, a endireitar o tronco, e como que “estivesse a subir sobre si mesma”. A positividade deste sinal, para além do 3 anos indica provável DNM.

De acordo com o tempo de evolução da doença poderá haver retracções tendinosas (como a retracção do tendão de Aquiles) e deformidades esqueléticas (como o pé equino e varo) associadas ao défice motor e à atrofia muscular. Outras manifestações de doença neuromuscular são possíveis, como o palato arqueado, a paralisia facial e ocular (com ptose palpebral) e a luxação congénita da anca (consequência de hipomobilidade intrauterina).

Um défice motor com predomínio distal, atrofia muscular, hipo ou arreflexia e compromisso, também distal, da sensibilidade, sugerem o diagnóstico de neuropatia periférica. Nesta situação pode observar-se a marcha com steppage: a flexão excessiva das coxas compensa a parésia de dorsiflexão dos pés (pés pendentes).

O padrão evolutivo da doença pode sugerir um diagnóstico específico. Refira-se a fatigabilidade crescente ao longo do dia, típica de miastenia, ou o padrão de surtos desencadeados por infecções, actividade física ou jejum, sugestivos de miopatias metabólicas (citopatias mitocondriais ou glicogenoses), ou paralisia periódica.

Na distrofia miotónica e nas miotonias congénitas ocorre um fenómeno de dificuldade no relaxamento muscular após uma contracção voluntária (habitualmente mais proeminente nos músculos distais).

A associação das alterações neuromusculares com doença sistémica (hepática ou cardíaca) e metabólica (como a acidose láctica), ou de uma afecção do SNC (pela clínica e pela imagiologia), sugerem citopatia mitocondrial.

Nalguns subtipos de distrofia muscular congénita, e na distrofia miotónica, também há envolvimento do SNC. Na distrofia muscular progressiva de Duchenne podem ocorrer cardiopatia e défice cognitivo ligeiro.

O espectro fenotípico das doenças neuromusculares é muito amplo quanto à gravidade mas, na mesma família, o fenótipo tende a ser semelhante.

QUADRO 2 – Doenças neuromusculares e gravidade clínica no recém-nascido e lactente com hipotonia

*Neuropatias hereditárias sensitivo-motoras (NHSM)

Doença NM Grave

    • Dificuldade alimentar
    • Insuficiência respiratória

Atrofia Muscular Espinhal tipo 1
NHSM tipo III (forma congénita) *
Distrofia Muscular Congénita (merosina negativa)
Síndroma Miasténica Congénita
Distrofia Miotónica Congénita
Miopatia Centronuclear
Miopatia Nemalínica
Miopatia Mitocondrial

Doença NM Moderada

    • Atraso do desenvolvimento motor
    • Graus variáveis de paralisia e atrofia muscular

Atrofia Muscular Espinhal tipo 2
NHSM tipo III
Distrofia Muscular Congénita (merosina positiva)
Miopatias Congénitas
Mitocondriopatias

Doença NM Ligeira

    • Com uma vida quase normal

Atrofia Muscular Espinhal tipo 3
Síndroma Miasténica Congénita
Miopatias Congénitas

Exames complementares

A anamnese e o exame objectivo permitem a suspeita de doença neuromuscular, assim como da localização (segmento da unidade motora provavelmente afectado).

Os exames complementares de diagnóstico mais úteis são a enzimologia muscular (doseamento da fosfocreatinocinase – CPK), o electromiograma (EMG), a biópsia de músculo, a biópsia de nervo, as provas terapêuticas (como a prova do edrofónio), e os estudos de genética molecular. Refira-se ainda o estudo metabólico, os exames imagiológicos (TAC e RM), e a avaliação cardíaca (ecocardiografia).

O doseamento da CPK poderá ser útil na diferenciação entre doenças musculares primárias e neuropatias. No recém-nascido, um aumento de CPK poderá indicar distrofia muscular congénita ou distrofia miotónica congénita; no lactente e criança mais velha colocam-se as hipóteses de distrofia muscular congénita, miosite, distrofia muscular progressiva (mesmo em fase pré-sintomática), miopatias congénitas e distrofia miotónica infantil. Nos rapazes no 3º ano de vida com atraso na aquisição ou alterações da marcha, o doseamento de CPK é importante, e caso seja elevado (> 10.000 UI/L) há indicação para realizar estudo genético, dispensando-se o EMG ou a biópsia muscular.

O EMG permite diferençar qual o segmento da unidade motora afectado, sendo especialmente útil para o rápido diagnóstico de atrofia muscular espinhal tipo I (AME I – doença de Werdnig-Hoffman), de neuropatia (distinguindo a neuropatia desmielinizante da axonal, sendo fundamental o registo da velocidade de condução nervosa), e de doença da placa motora (a estimulação repetitiva do músculo induz fatigabilidade progressiva).

A biópsia de músculo (com microscopia óptica, electrónica ou com estudo imuno-histoquímico) permite o diagnóstico dos vários tipos de doenças musculares. Na distrofia muscular congénita, distrofia muscular progressiva e distrofia miotónica congénita, a microscopia óptica comprova a distrofia, sendo necessário o estudo imuno-histoquímico para uma classificação mais completa (estudo da presença de merosina ou de distrofina e sarcoglicanos, com recurso a técnicas de Western Blotting para análise quantitativa). Igualmente importante para caracterizar várias miopatias congénitas e para o diagnóstico de miopatia inflamatória.

A biópsia do nervo confirma a hipótese de neuropatia, classificando-a (por exemplo: desmielinizante ou hipomielinizante).

A RM – CE poderá ser útil nas citopatias mitocondriais (alteração de sinal dos núcleos da base e da substância branca), na distrofia muscular congénita com afecção do SNC (defeitos de desenvolvimento cortical e atrofia cerebelosa) e na distrofia miotónica congénita (áreas de possível gliose cerebral).

O estudo metabólico (lactato, piruvato, amónia, aminoácidos, ácidos orgânicos, entre outros) deve ser realizado se existir suspeita de doença metabólica.

A avaliação cardiológica deve ser feita na suspeita de doença neuromuscular que se associe a cardiopatia (miocardiopatia ou disritmias), como a distrofia muscular progressiva – de Duchenne ou de Becker, algumas mitocondriopatias, glicogenoses, algumas miopatias congénitas e distrofia miotónica.

Os estudos de genética molecular, realizados em centros especializados, são essenciais para a confirmação diagnóstica de algumas doenças neuromusculares e sua classificação mais exacta (classificação que, com os progressos rápidos da ciência, se desactualiza a breve trecho).

Os estudos de genética molecular são essenciais para a confirmação diagnóstica das doenças neuromusculares genéticas. Estes estudos são particularmente úteis para distinção das diferentes formas de distrofias musculares, de miopatias congénitas, de miopatias mitocondriais e de polineuropatias sensitivo-motoras (agrupadas com a designação genérica de CMT- proveniente do epónimo doença de Charcot-Marie-Tooth, que designa grande parte das neuropatias genéticas). Igualmente nos casos suspeitos de distrofinopatia pela verificação de elevação do CPK em jovens pré-escolares do sexo masculino, com hipertrofia dos gémeos/ retração do tendão de Aquiles, ligeiro atraso no início da marcha, com ou sem antecedentes familiares de doença muscular, está indicado o estudo inicial do gene DMD.

Saliente-se que os painéis NGS atualmente disponíveis não identificarão as doenças neuromusculares genéticas devidas à variação do número de cópias, sendo necessário para estas métodos de diagnóstico próprios (como ocorre na maioria dos casos de Distrofia Muscular de Duchenne/ Becker, distrofia fascio-escápulo-umeral, ou na distrofia miotónica, por exemplo). 

Tratamento

A abordagem terapêutica destas doenças consiste sobretudo em métodos paliativos, como a reabilitação motora e a cirurgia ortopédica, tentando minorar os défices motores apresentados pelos doentes. A abordagem terapêutica do recém-nascido com grave compromisso motor e respiratório é delicada, constituindo um problema ético. Nas patologias em que pode haver compromisso da função respiratória, esta deve ser avaliada periodicamente, iniciando, logo que se justifique, programa de ventilação (inicialmente não invasiva, e intermitente, como o BIPAP nocturno); se existirem dificuldades alimentares há que ponderar a gastrostomia. A restante patologia associada (cardiológica, oftalmológica, pedopsiquiátrica, otorrinolaringológica) deverá ser avaliada pelo especialista respectivo por indicação do médico responsável.

Alguns tipos de doença neuromuscular progressiva têm terapêutica farmacológica específica (por exemplo: várias modalidades de imunomodulação e medicamentos colinérgicos na miastenia grave, e corticóides na distrofia muscular de Duchenne).

Uma nova etapa no tratamento das doenças neuromusculares genéticas começa agora. Em 2017 foi aprovada a primeira terapia genética para Atrofia Muscular Espinhal (nusinersen). As terapias aprovadas ou em avaliação através de ensaios clínicos podem ser assim sumarizadas, referindo-se apenas as principais:

  1. Terapêuticas de interferência no mRNA:
    1. exon skipping com oligonucleotidos antisense para promover a restauração da reading frame  em diversos estudos nomeadamente em doentes com Distrofia Muscular de Duchenne com deleções que causam disrupção da reading frame
    2. modificadores do splicing do pre mRNA com oligonucleotidos antisense terapêuticas já aprovadas para Atrofia Muscular Espinhal (nusinersen e risdiplam)
    3. supressão do nonsense promove a leitura do mRNA através de um codão stop prematuro, aumentando a síntese da proteína (ataluren, já aprovado para Distrofia Muscular de Duchenne com mutações nonsense)
  2. Terapia génica: é realizada a transdução do gene através da sua inclusão num vector viral (AAV- vírus adeno-associados) administrado endovenosamente (onasemnogene abeparvovec, já aprovado para Atrofia Muscular Espinhal, outros em avaliação em ensaios clínicos)

A integração do indivíduo com doença neuromuscular no seu meio é um desafio multidisciplinar, envolvendo diferentes parceiros (assistente social, professores, entre outros), e a obtenção de ajudas técnicas (cadeiras de rodas, coletes ortostáticos, computadores, etc.).

Formas clínicas

De acordo com o segmento da unidade motora afectado, são descritas sucintamente as doenças neuromusculares mais frequentes e/ou mais típicas em clínica pediátrica.

1. Doenças do corno anterior medular

Atrofia muscular espinhal (AME)

Importância do problema: trata-se de uma doença degenerativa (por mecanismo apoptótico) dos cornos anteriores medulares e dos núcleos motores de alguns pares cranianos.

Constitui a segunda doença neuromuscular mais frequente (a seguir à distrofia muscular de Duchenne), com uma incidência de 1/20.000 recém-nascidos. 

Etiologia: a AME é uma doença genética autossómica recessiva associada em 95% dos casos à deleção homozigótica do exão 7 do gene SMN-1 (Survival Motor Neuron, de localização telomérica), no braço longo do cromossoma 5 (5q11q13). A gravidade do fenótipo relaciona-se com o número de cópias existentes do gene SMN-2 (idêntico ao SMN-1, mas situado no centrómero); é menos grave se houver muitas cópias presentes, justificando-se assim a variabilidade fenotípica.

Patologia: existe atrofia muscular neurogénica (desnervação) ou secundária.

Clínica e evolução: variam de acordo com a idade de início e a gravidade do envolvimento motor:

  1. AME – 1 (Doença de Werdnig-Hoffmann). É a causa mais frequente de hipotonia neuromuscular no recém-nascido e no lactente. Os sinais clínicos têm início antes dos 6 meses de idade, não adquirindo a criança a capacidade de se sentar sem apoio. Os movimentos fetais são escassos. As manifestações iniciais são: hipotonia progressiva, parésia de predomínio proximal, arreflexia e fasciculações da língua. A afecção dos músculos intercostais e bulbares leva a compromisso respiratório, com insuficiência e infecções respiratórias graves, sendo estas a causa de mortalidade, ocorrendo geralmente antes dos 2 anos de idade.
  2. AME – 2 (Forma Intermédia). Inicia-se entre os 6 e 12 meses de idade, com hipotonia e parésia (sobretudo dos membros inferiores). A criança consegue sentar-se sem apoio, embora não adquira a marcha. Há um progressivo envolvimento dos membros superiores e dos músculos respiratórios, com compromisso respiratório na segunda década de vida (causa de morte).
  3. AME – 3 (Doença de Kugelberg-Welander). Tem início após os 18 meses de idade, com aquisição da marcha (embora com dificuldades associadas). Há diminuição da força das cinturas pélvica e escapular. Poderá haver perda da marcha na segunda década de vida.

Diagnóstico: é confirmado pelo EMG, biópsia de músculo e estudo de genética molecular.

Poliomielite

Etiopatogénese e clínica: a infecção pelo poliovírus tipos 1-3 (enterovírus) é hoje pouco comum nos países desenvolvidos e designadamente em Portugal, o que se explica pelo sucesso dos programas de imunização.

O período de incubação oscila geralmente entre 8-12 dias (com variações entre 5 e 35 dias).

Descrevem-se as seguintes formas clínicas:

  1. Forma assintomática (mais de 90% dos casos);
  2. Doença minor ou não paralítica (cerca de 5% dos casos). As manifestações clínicas são: febre, mal-estar, odinofagia e vómitos surgindo cerca de 4 dias após exposição ao vírus; a evolução é favorável com cura espontânea;
  3. Forma paralítica (cerca de 0,1% dos casos) ocorrendo com uma sequência de manifestações idênticas às da doença minor;
  4. Por sua vez, a poliomielite paralítica integra 3 síndromas distintas relacionadas com os territórios do SNC mais intensamente afectados:
    1. bulbar acompanhada de paralisias dos músculos faciais, da mastigação, respiratórios, etc. em função dos centros afectados;
    2. polioencefalite em que se verifica compromisso dos centros superiores do encéfalo; podem surgir convulsões e coma, para além de paralisia espástica e sinais de irritação meníngea;
    3. espinhal: é esta forma que é paradigmática da afecção do corno anterior e que justifica a inclusão da poliomielite neste capítulo de doenças neuromusculares.

Para além de fasciculações e espasmos, salienta-se a particularidade da paralisia flácida assimétrica, sobretudo das áreas proximais do membro inferior de um lado (um só músculo ou grupos de músculos), podendo posteriormente outro membro (superior) também ser atingido. A fase de paralisia tem duração variável com recuparação ou sequelas, o que depende do grau de lesão neuronal. A paralisia dos membros inferiores pode associar-se a disfunção vesical ou dismotilidade intestinal. Se forem afectados os segmentos espinhais cervicais e torácicos, pode surgir insuficiência respiratória.

Tratamento: o tratamento é sintomático, sendo que não existe tratamento específico antivírico. Na fase aguda estão contraindicados procedimentos cirúrgicos e injecções intramusculares.

De referir que as estirpes de vacina viva podem originar infecções fatais em crianças com agamaglobulinémia ou imunodeficiência combinada.

2. Polirradiculoneuropatias

Síndroma de Guillain-Barré (SGB)

Definição e importância do problema: trata-se de uma polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória aguda, levando a paralisia progressiva após infecção ou imunização.

A SGB tem uma prevalência de 1-4/100.000, afectando, em geral, as crianças com idade superior a 2 anos. Ocorre insuficiência respiratória em 25% dos casos, sendo necessária ventilação artificial. A mortalidade é cerca de 2-3% na criança, sendo superior no adulto (até 15%). 

Etiopatogénese: observa-se lesão do neurónio motor (raiz e nervo periférico) com desmielinização, presença de linfócitos e de macrófagos, mediada por mecanismo auto-imune (presença de auto-anticorpos anti-gangliósido – GM1 e GM1b). Uma infecção ou imunização que leve a uma alteração das populações de células T supressoras, e de linfócitos T e B que reconhecem antigénios do sistema nervoso, poderá estar na génese do SGB. A infecção desencadeante tem geralmente etiologia vírica (VEB, CMV, VHA, VHB, vírus da varicela-zóster, vírus do sarampo e da rubéola, Influenza A e B, Coxsackie e Echovirus), embora possa ser bacteriana (Campylobacter jejuni e Mycoplasma). As vacinas anti-rábica ou anti-influenza também se associam a SGB.

Clínica e evolução: a redução gradual da força e as parestesias são as queixas iniciais. A avaliação neurológica revela uma paralisia generalizada, essencialmente simétrica, geralmente distal (embora possa ser proximal ou mista), com carácter ascendente (sequencialmente: membros inferiores, membros superiores, tronco, e face) e arreflexia generalizada. A paralisia dos músculos respiratórios com necessidade de ventilação mecânica é uma complicação da SGB.

Caso haja ataxia e oftalmoplegia é provável tratar-se da síndroma de Miller-Fisher (SGB com afecção dos pares cranianos). Há sinais de disfunção dos nervos autonómicos tais como hipotensão, taquicardia, hipertensão e arritmia cardíaca; pode verificar-se igualmente disfunção do esfíncter vesical. Após o início dos primeiros sintomas pode haver agravamento no período de 10 a 30 dias.

Diagnóstico: o exame do LCR revela dissociação albumino-citológica (hiperproteinorráquia com contagem celular < 10 células/mm3). A electrofisiologia revela diminuição das velocidades de condução nervosa sensitiva e motora, compatível com desmielinização. O diagnóstico diferencial deve ser feito com as neuropatias periféricas (tóxicas e infecciosas), a poliomielite (sobretudo a vacinal), mielopatia aguda por compressão medular (tumor, trauma, abcesso), esclerose múltipla, doença muscular (polimiosite, miopatia mitocondrial) e doença da placa neuromuscular (miastenia gravis).

Prognóstico: a recuperação é, em geral, completa, havendo sequelas neurológicas em 5-25% dos doentes. Pode haver recorrência de SGB em 3% dos casos. Os factores de mau prognóstico são: maior gravidade do défice motor; maior período desde o início da doença até ao início da recuperação, e EMG com sinais de desnervação.

Tratamento: a instabilidade clínica obriga a internamento hospitalar com monitorização contínua dos parâmetros vitais; poderá ser necessário entubação para ventilação imediata. A abordagem terapêutica actual baseia-se na administração de imunoglobulina (2 g/kg) por via intravenosa (dose total), em 2 dias – com resultados sobreponíveis à plasmaferese.

Neuropatias hereditárias sensitivo-motoras (CMT/Charcot-Marie-Tooth)

Importância do problema: as neuropatias hereditárias sensitivo-motoras são o grupo de doenças degenerativas do sistema nervoso periférico mais comuns na criança (40% das neuropatias crónicas).

Etiopatogénese e clínica: a degenerescência da bainha de mielina e/ou axónios leva a uma amiotrofia paralítica distal com arreflexia, envolvendo inicialmente os membros inferiores. Os avanços na genética molecular contribuiram para uma melhor compreensão destas doenças.

A classificação actual combina critérios electromiográficos (demielinizante versus axonal) com padrões de transmissão genética: dominante e desmielinizante (CMT1), dominante e axonal (CMT2), recessiva (CMT4).

  1. CMT1A (dominante, desmielinizante, duplicação do gene PMP22 no cromossoma 17); pode surgir na criança depois dos 3 anos de idade.
  2. CMT4 (recessiva, múltiplos genes descritos) (o epónimo Déjerine- Sottas era anteriormente usado para algumas destas neuropatias); o quadro clínico tem início na infância precoce com paralisia predominantemente distal, arreflexia, por vezes hipertrofia de troncos nervosos, associando-se a não aquisição ou perda da marcha.
  3. Uma forma congénita mais grave (neuropatia congénita hipomielinizante, também com vários genes identificados) pode ainda determinar insuficiência respiratória e compromisso dos músculos bulbares.

Diagnóstico: o EMG é fundamental, revelando redução na velocidade de condução nervosa. A biópsia de nervo realiza-se actualmente com menor frequência, tendo vindo a ser substituída pelos estudos de genética molecular.

Paralisia de BELL

Definição e etiopatogénese: a paralisia de Bell é uma paralisia aguda do nervo facial, unilateral, não associada a outras neuropatias cranianas ou a disfunção do tronco cerebral.

Surge em todas as idades abruptamente, cerca de 2 semanas após uma infecção vírica (mais frequentemente por vírus Herpes simplex tipo 1), mas também em associação a Mycoplasma ou Borrelia. De tal resulta neuropatia desmielinizante do VIIº nervo craniano.

Trata-se dum processo de mecanismo imune, secundário à agressão infecciosa inicial. No período neonatal, a paralisia facial pode resultar de compressão traumática do nervo facial por forceps.

Clínica, tratamento e prognóstico: verifica-se no lado afectado parésia da hemiface, sulco nasogeniano menos marcado, comissura labial mais aproximada da linha média e impossibilidade de aproximação das pálperas (lagoftalmo por paralisia orbicular).

Existe diminuição da sensibilidade gustativa dos 2/3 anteriores da língua em cerca de 50% dos casos. No RN a assimetria da mímica facial pode raramente ser causada por ausência congénita do músculo depressor angular oris.

Por vezes verifica-se hipertensão arterial. Como há impossibilidade de aproximação das pálpebras do lado afectado (trata-se duma paralisia facial periférica) pode surgir conjuntivite ou ceratite secundária, implicando cuidados especiais (protecção do globo ocular) com penso oclusivo, a definir pelo oftalmologista.

A prednisolona oral (1 mg/kg/dia) durante 7 dias, iniciada nos primeiros 3-5 dias da evolução poderá contribuir para processo de melhoria mais rápida. A fisioterapia está indicada nos casos arrastados.

O prognóstico é favorável com recuperação espontânea em cerca de 90% dos casos, a qual, no entanto, pode verificar-se em 2-3 meses.

3. Doenças da junção neuromuscular

Estas doenças, raras em Pediatria, integram três tipos:

Síndroma miasténica congénita (não autoimune)

Pode manifestar-se desde o nascimento (raramente), ou durante a infância. Diferentes defeitos ao nível pré-sináptico, sináptico ou pós-sináptico levam a défices distintos (nos receptores colinérgicos, na acetilcolinesterase, etc.). Existem diferentes padrões de transmissão genética (autossómica recessiva ou autossómica dominante) e várias mutações descritas.

O diagnóstico de síndroma miasténica congénita deve ser considerado quando há hipotonia com choro fraco (num recém-nascido ou lactente), fatigabilidade afectando a musculatura ocular, bulbar e dos membros, existência de familiar com quadro clínico semelhante, resposta electromiográfica alterada com a estimulação repetitiva e doseamento de anticorpos anti-receptores de acetilcolina (ACh) negativo. A resposta à terapêutica com medicamentos colinérgicos é geralmente insuficiente.

Miastenia gravis com início juvenil (autoimune)

Caracteriza-se por apresentação aguda de fraqueza muscular nos membros, com fadiga crescente ao longo do dia e envolvimento bulbar (dificuldade na mastigação, na deglutição e na fonação) e ocular (ptose palpebral bilateral e oftalmoplegia). Associa-se a outras doenças autoimunes, sobretudo a hipotiroidismo. A investigação deverá incluir uma prova terapêutica (com edrofónio, ou com neostigmina); o doseamento de anticorpos anti-receptores de ACh; o EMG (com estimulação repetitiva de um nervo motor, obtendo-se potenciais cada vez menos amplos, com aumento do tempo de latência pela fatigabilidade muscular); e a TAC torácica (para pesquisa de timoma). A abordagem terapêutica inclui fármacos colinérgicos, corticoterapia, imunossupressores, gamaglobulina endovenosa, plasmaferese e, por vezes, a timectomia.

Miastenia neonatal transitória

Trata-se duma forma transitória no recém-nascido, filho de mãe com miastenia gravis (ocorrendo em 15% dos casos); manifesta-se nas primeiras 48 horas de vida com sinais miasténicos acentuados (SDR, hipotonia, actividade motora diminuta, reacção fraca ou ausente, dificuldade na deglutição) que duram enquanto houver anticorpos anormais no sangue e músculo. Não existe risco da miasteria grave mais tarde.

O tratamento é sintomático (assistência respiratória, alimentação com sonda gástrica, etc.), incluindo em geral a administração de colinérgicos.

4. Doenças musculares

As doenças musculares constituem um conjunto heterogéneo de patologia afectando primariamente o músculo, na sua maioria transmitidas geneticamente.

Distrofias musculares progressivas

O termo distrofia significa crescimento anormal e deriva do Grego trophe, que corresponde a alimento ou nutrição.

Uma distrofia muscular distingue-se de todas as outras doenças neuromusculares por 4 critérios obrigatórios: miopatia; base genética; evolução progressiva; e degenerescência e morte das fibras musculares em diversas fases da doença.

As distrofias musculares progressivas heredofamiliares são caracterizadas anátomo-patologicamente por alteração do músculo (fibras musculares necrosadas, com sinais de regeneração, hialinizadas, com mistura de fibras atróficas e hipertróficas, e ainda proliferação de colagénio e adipócitos na zona da lesão das fibras musculares), o que se traduz na clínica pela ocorrência de pseudo-hipertrofia dos gémeos e miocardiopatia).

Para além da distrofia muscular de Duchenne e de Becker, a que se dá ênfase como formas de distrofia muscular progressiva, cabe referir ainda a distrofia facio-escápulo-umeral (apenas citada).

  • Distrofias musculares progressivas de Duchenne (DMD) e de Becker (DMB). A DMD é a doença neuromuscular hereditária mais comum, com padrão de transmissão recessiva ligada ao cromossoma X. Tem uma incidência aproximada de 17 por 100.000 recém-nascidos. A DMB tem uma menor incidência (cerca de um terço), mas igual prevalência devido à maior longevidade nesta última.
    Pelo facto de a proteína implicada na etiopatogénese ser a distrofina, estas doenças também se denominam distrofinopatias. O gene da distrofina, localizado no braço curto do cromossoma X (Xp21), apresenta habitualmente deleção, sendo possível demonstrá-lo em 60-70% dos casos na DMD, e em 90% dos casos na DMB.

A distrofina localiza-se nas membranas celulares dos miócitos, encontrando-se também no SNC. Cerca de 30% dos casos deve-se a novas mutações. As mulheres portadoras são geralmente assintomáticas, embora raramente possa haver manifestações ligeiras a moderadas (por lionização desigual, mosaicismo X0/ XX, ou cromossoma X anómalo).

Na DMD a distrofina está ausente, e na DMB há produção de distrofina, embora em menor quantidade ou com menor peso molecular.

As manifestações clínicas iniciais da DMD têm início entre os 2-4 anos (por vezes mais cedo), com pseudo-hipertrofia dos gémeos, sinal de Gowers e marcha miopática. Aos 6-7 anos surge envolvimento da cintura escapular, e entre os 9-12 anos há perda da marcha autónoma. No final da segunda década de vida ou início da terceira há insuficiência respiratória e cardíaca, conduzindo à morte. Na DMB os sintomas iniciam- se entre os 6-7 anos (ou mais tarde); a perda da marcha nem sempre acontece.

Ocorre défice cognitivo, em geral ligeiro, em 30% dos casos de DMD, e em 10% dos casos de DMB. A cardiomiopatia observa-se em mais de metade dos doentes com distrofinopatia, afectando sobretudo a parede póstero- lateral do ventrículo esquerdo e levando a valvulopatias e arritmias.

O diagnóstico baseia-se fundamentalmente na genética molecular e na biópsia muscular (nos 20% dos casos em que não se encontra a mutação). Em determinados casos, o doseamento de CPK (geralmente > 10.000 UI/L, sendo normal < 160) poderá dar o seu contributo. É possível diagnóstico pré-natal.

O tratamento com corticóides – prednisolona ou deflazacort – com início aos 5-6 anos (ainda com a massa muscular conservada), em esquema intermitente, parece reduzir a velocidade da progressão da doença, podendo atrasar em 1 a 3 anos a utilização da cadeira de rodas, e a progressão da cifoscoliose. O transplante de mioblastos e a terapia génica encontram-se em investigação. Relativamente a este último tópico, cabe referir estudos sofisticados (englobando vectores adenovíricos e fragmentos da molécula da distrofina/microdistrofina, de resultados ainda não conclusivos) com o objectivo de restaurar a expressão da distrofina.

Distrofias musculares congénitas (DMC)

A designação de DMC pode considerar-se confusa, pois todas as DM são geneticamente determinadas (transmissão AR é a regra).

Estas situações correspondem a um grupo heterogéneo de doenças degenerativas primárias e progressivas do músculo esquelético, com início no período intrauterino, ou até ao primeiro ano de vida. A incidência é cerca de 1/60.000 nascimentos, e a prevalência é de 1/100.000 habitantes. Várias DMC têm sido identificadas com base nas características clínicas, patológicas e genéticas: deficiência de merosina ou laminina alfa 2, tipo Ullrich (genes do colagénio 6A), com «rigid spine» (gene SEPN1), síndromas oculocerebromusculares (múltiplos genes) e outras.

No tipo mais frequente (no Japão, Alemanha, Escandinávia e Turquia) a seguir à DMD foi identificado defeito genético no locus 8q 31-33; e em certas formas clínicas, mutações em genes essenciais para a migração do neuroblasto no SNC, como o POMT1. É o designado por “tipo de Fukuyama”.

As DMC caracterizam-se por hipotonia, paralisia com predomínio proximal, arreflexia, retracções tendinosas, frequente afecção dos músculos respiratórios e dificuldade alimentar. Nalguns casos há afecção do SNC, com anomalias estruturais encefálicas, cardiomiopatia e microcefalia.

O diagnóstico baseia-se na clínica, no doseamento de CPK (com ligeiro/moderado aumento), na biópsia muscular e na genética molecular (diagnóstico definitivo).

Histologicamente ocorrem alterações distróficas musculares (fibras com calibre variável, com necrose e proliferação de tecido intersticial), podendo a imuno-histoquímica revelar a presença, ou não, de merosina (alfa-2 laminina).

A evolução clínica é em geral lentamente progressiva ou estática, podendo haver compromisso respiratório (com envolvimento do diafragma), levando à morte.

Outras distrofias musculares

Estão de longa data descritos na literatura neurológica doentes ou famílias com um fenótipo semelhante a DMD ou intermédio entre DMD e DMB, e um padrão de transmissão de doença recessiva ou dominante. Este grande grupo de distrofias musculares foi progressivamente individualizado com base em estudos de genética molecular. Utiliza-se habitualmente a sigla LGMD (limb-girdle muscular distrophy).

O tipo LGMD1 corresponde às formas dominantes que têm em geral uma apresentação mais tardia e um curso menos grave. O tipo LGMD2 designa as formas recessivas. Os subtipos classificam-se com letras (exemplos LGMD2A-calpainopatia, LGMD2B-disferlinopatia, LGMD2C-alfa-sarcoglicanopatia, etc.).

As distrofias musculares de tipo recessivo têm frequentemente um início na primeira infância. São relativamente frequentes, evidenciando pseudo-hipertrofia dos gémeos e cardiomiopatia. Algumas crianças têm uma apresentação «pseudo-metabólica» com episódios de mioglobinúria associados com esforço ou doenças infecciosas.

Miopatias congénitas

As miopatias congénitas são doenças primárias do músculo, na sua maioria de transmissão genética (com vários padrões), e manifestação precoce. Na base desta patologia estão diversos genes implicados em anomalias do processo de diferenciação da célula mesodérmica indiferenciada.

A evolução é lentamente progressiva ou estática. A histopatologia revela anomalia estrutural muscular, com variações no tamanho e número de fibras e/ou presença de inclusões evidenciadas por microscopia electrónica. Na sua origem haverá provavelmente uma anomalia do desenvolvimento e maturação das fibras musculares.

Geneticamente estão descritos diferentes loci implicados.

Como manifestações clínicas referem-se hipotonia, hiporreflexia, amimia facial, micrognatia e palato ogival. A CPK pode estar normal ou moderadamente aumentada; e o EMG revela potenciais motores polifásicos de baixa amplitude. A biópsia muscular associada à microscopia electrónica e a genética molecular confirmam o diagnóstico.

As miopatias congénitas mais bem caracterizadas são:

  • Miopatia central core
    Pelo exame anátomo-patológico identificam-se, nas fibras musculares tipo I, áreas centrais desprovidas de enzimas oxidativas. Há hipotonia neonatal e deformidades-luxação congénita da anca, cifoscoliose e contracturas dos dedos da mão em flexão.
    Estão descritos padrões de transmissão dominante, recessiva e formas esporádicas. Este tipo de miopatia evidencia susceptibilidade à hipertermia maligna.
  • Miopatia nemalínica 
    Histologicamente observam-se estruturas em forma de filamento (rods), compostas por a-actinina e desmina (dos discos z). Há heterogeneidade fenotípica, apresentando a forma mais grave hipotonia neonatal e paralisia proximal, amimia, dificuldade alimentar e respiratória, dismorfismos craniofaciais e envolvimento cardíaco. Os quadros menos graves têm um início mais tardio. O padrão de transmissão pode ser autossómico recessivo ou autossómico dominante. São conhecidas várias mutações genéticas afectando uma proteína muscular específica.
  • Miopatia centronuclear
    A microscopia revela miotúbulos fetais dispostos centralmente na fibra muscular, sugerindo um atraso na maturação do sistema sarcotubular. Há várias apresentações possíveis: na forma ligada ao cromossoma X (locus Xq28) a sintomalogia clínica é muito grave, com insuficiência respiratória e dificuldade alimentar após o parto; as formas autossómicas (recessivas ou dominantes) são menos graves, com variabilidade fenotípica. A sinomatologia é muito grave, com insuficiência respiratória, dificuldade alimentar, ptose palpebral, oftalmoplegia e ocasional envolvimento do SNC (com convulsões e défice cognitivo).

Doença miotónica (Doença de Steinert)

Com uma incidência de 1/30.000 na população geral e, de transmissão AD, é a segunda distrofia muscular mais comum nos EUA, Europa e Austrália. Não somente a musculatura estriada está afectada, mas igualmente e musculatura lisa do aparelho digestivo, útero e coração. Pode haver endocrinopatia, imunodeficiência e cataratas.

As manifestações iniciais aparecem no período pré-natal (artrogripose múltipla ou polidrâmnio) ou neonatal com hipotonia, fácies miopática, palato ogival, dificuldade alimentar e respiratória (com necessidade de ventilação); a mortalidade é elevada (25% dos doentes) por insuficiência respiratória. As crianças que sobreviveram ao 1º ano podem apresentar défice cognitivo e “fraqueza” facial, (lábio superior em V invertido) com melhoria evidente da função muscular até à 2ª ou 3ª década de vida, altura em que se instala um quadro de miopatia progressiva com défice cognitivo. A miotonia só se observa após o período neonatal. A mãe da criança é doente, podendo não manifestar os sintomas exuberantes.

A biópsia muscular sugere deficiente maturação muscular (fibras pequenas, pouco diferenciadas com padrão muito semelhante ao da miopatia miotubular). A genética molecular contribui para o diagnóstico, revelando a expansão da repetição do tripleto CTG na análise da mutação do gene DMPK (gene da miotonina-locus 19q13.3). Nesta doença há o fenómeno de antecipação que consiste numa maior precocidade no início da doença, e num aumento da gravidade da mesma nas gerações seguintes.

Miosites

A inflamação do tecido muscular ou miosite (pós-infecciosa) é uma situação aguda e transitória, possivelmente mediada imunologicamente, e desencadeada por uma infecção vírica (Enterovirus, Echovirus, Coxsackie B, Influenza A e B, VEB, HSV, Varicella-zoster, entre outros). O quadro clínico consiste em mialgias intensas (geralmente nos gémeos), com dor à palpação dos músculos envolvidos, e impotência funcional. A terapêutica é sintomática, sendo esta situação auto-limitada. As miosites de origem bacteriana ou parasitária são muito raras nos países desenvolvidos.

NOTA: Sugere-se a consulta do Glossário Geral relativamente aos termos Artrogripose e Miotonia.

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SÍNDROMAS NEUROCUTÂNEAS

Definição

As síndromas neurocutâneas (anteriormente designadas facomatoses – termo derivado de phakos <> lesões na pele, e de oma <> tumorações extracutâneas) são definidas como doenças hereditárias heterogéneas que se caracterizam por anomalias nas estruturas de origem ectodérmica, manifestações cutâneas com tendência tumoral, e alterações do sistema nervoso; outros órgãos como o olho, rim e coração, pulmão e esqueleto são também afectados.

Por estar comprometida a diferenciação e o crescimento celulares (designadamente a diferenciação da ectoderme primitiva), a organogénese está igualmente perturbada, com consequente formação de tumores, geralmente benignos.

As situações que cabem no âmbito da definição são a neurofibromatose, a esclerose tuberosa, a síndroma de Sturge-Weber, a incontinentia pigmenti, a ataxia telangiectasia, a doença de von Hippel-Lindau, a síndroma PHACE, a hipomelanose de Ito e a síndroma de nevus linear.

Formas clínicas

Nesta alínea são abordadas as formas mais frequentes de síndromas neurocutâneas.

1. Neurofibromatose tipo 1 (NF1), ou doença de Recklinghausen, é a síndroma neurocutânea mais frequente, ocorrendo aproximadamente na proporção de 1/3.000 nascimentos. É devida a uma mutação no gene NF1 localizado no cromossoma 17q11.2 o qual codifica uma proteína citoplásmica activadora – a neurofibromina – que actua como supressor ou regulador do crescimento celular e tumoral.
Afecta todos os sexos e raças, e a hereditariedade é autossómica dominante, com penetrância de 98%. A clínica pode ter uma expressão muito variável, sendo o diagnóstico afirmado na presença de determinados critérios (dois ou mais) dos referidos no Quadro 1. Salienta-se que o diagnóstico pode demorar a fazer-se até aos 4-5 anos, quando a doença adquire maior expressividade.

QUADRO 1 – Diagnóstico de neurofibromatose

Critérios de diagnóstico de neurofibromatose (presença de dois ou mais)
    • 6 ou mais manchas “café com leite” (≥ 5 mm abaixo dos 6 anos e ≥ 15 mm acima dos 6 anos)
    • Áreas hiperpigmentadas (sardas), axilares e inguinais
    • 2 ou mais nódulos de Lisch (hamartomas da íris)
    • 2 ou mais neurofibromas ou um neurofibroma plexiforme
    • Lesão óssea (escoliose/cifose, pseudartrose, displasia esfenoidal)
    • Glioma óptico
    • Parente em primeiro grau com a doença

As manchas de tipo “café com leite”, geralmente presentes desde o nascimento, tendem a aumentar em número e tamanho com a idade, ao mesmo tempo que vão surgindo os neurofibromas na pré-puberdade (Figura 1). Associam-se frequentemente ao glioma das vias ópticas (Figura 2) e a estenose do aqueduto de Sylvius. De referir, contudo, que nem todos os indivíduos com tais manchas padecem de neurofibromatose.

Os hamartomas da íris ou nódulos de Lisch raramente se encontram nos primeiros anos de vida, surgindo durante a adolescência. Podem ser identificados através do exame com lâmpadas de fenda.

FIGURA 1. Neurofibromatose tipo I. Manchas tipo “café com leite”

FIGURA 2. Glioma da via óptica (TAC-CE)

A NF1 constitui a forma clínica que mais frequentemente se associa a tumores do sistema nervoso central (SNC), periférico e doutros órgãos, sendo de natureza histológica e de incidência muito variáveis.

Os gliomas da via óptica, os mais frequentes (cerca de 15%), estão presentes desde o nascimento na maioria dos casos (Figura 2). O diagnóstico deve ser feito nos primeiros anos de vida; o exame imagiológico através da ressonância magnética (RM) é o ideal para avaliação das lesões tumorais.

Os tumores do sistema nervoso periférico são neurofibromas e schwannomas, localizados na maioria das vezes na zona de exteriorização das fibras sensitivas no canal raquidiano.

FIGURA 3. Neurofibromatose tipo I: imagem radiológica de pseudartrose.

As alterações ósseas são também frequentes, destacando-se a escoliose com ou sem cifose, a pseudartrose, (Figura 3) a displasia facial (esfenoidal) e, menos frequentemente, a hemi-hipertrofia facial ou generalizada.

As dificuldades escolares são muitas vezes a primeira preocupação dos pais. O défice cognitivo nestes doentes não é habitualmente acentuado, mas estima-se que o quociente de inteligência (QI) se situe entre 15 a 20 pontos abaixo do dos irmãos não afectados. A epilepsia é habitualmente uma complicação menor da NF1 e geralmente de fácil controlo. Outras complicações descritas são a puberdade precoce, além de perturbações endócrinas e a agenesia do corpo caloso.

Neste tipo I de neurofibromatose, advoga-se o tratamento conservador. Quando existem tumores invasivos de crescimento rápido pode tentar-se o tratamento cirúrgico, radioterapia ou quimioterapia, sendo que se gera controvérsia nalgumas modalidades tais como no caso do glioma do nervo óptico.

Na maioria dos casos de NF tipo I a evolução é lentamente progressiva, o que permite sobrevivência significativa. Como se pode depreender, está indicado o seguimento multidisciplinar dada a complexidade da etiopatogénese. 

2. Neurofibromatose tipo II (NF2), com uma incidência de 1/50.000 (10% das neurofibromatoses), e manifestando-se após a segunda década de vida, comporta também o modo de transmissão autossómica dominante; podem ocorrer casos esporádicos. O seu gene (NF2), localizado no cromossoma 22q12.2 em 70% dos casos, determina a produção duma proteína anómala chamada merlina. As manchas “café com leite”, clássicas da NF1, podem ou não estar presentes; quando presentes, em menor número relativamente à NF1.

As manifestações iniciais traduzem-se dum modo geral por hipoacusia uni ou bilateral; daí o facto de esta doença ser inicialmente conhecida por neurofibromatose acústica, traduzindo a presença de neurinomas (schwannomas) do acústico unilaterais ou bilaterais. Neste tipo de NF pode verificar-se igualmente o desenvolvimento doutros tumores intracranianos, tais como meningiomas, astrocitomas e schwannomas espinhais.

O diagnóstico obriga à presença dos seguintes critérios: massas bilaterais do VIIIº nervo craniano e história familiar de NF2 com massa do VIIIº nervo craniano unilateral, ou 2 dos seguintes: neurofibroma, meningioma, glioma, schwannoma e cataratas subcapsulares posteriores.

Na maior parte das situações de NF tipo II, opta-se por tratamento conservador, estando indicada a radioterapia perante sinais de malignização. Recentemente nalguns centros tem-se administrado erlotinib para tratamento do schwannoma vestibular com bons resultados.

O prognóstico é muito reservado, em especial pela associação com tumores evolutivos do SNC que recidivam e se multiplicam rapidamente.

3. Incontinentia pigmenti, ou síndroma de Bloch – Sulzberger, afecção dominante ligada ao cromossoma X, atinge sobretudo o sexo feminino (morte in utero dos indivíduos do sexo masculino). Trata-se dum alteração hereditária da mesoderme devida a mutação no gene IKBKG, também denominado NEMO (Xq28.34). O fenótipo resulta de mosaicismo funcional causado por inactivação aleatória do referido gene dominante no cromossoma X, que é letal no sexo masculino.

A afecção, fundamentalmente de expressão dermatológica, caracteriza-se por diminuição ou ausência de melanina nas células basais da epiderme, com incremento da mesma na derme. As lesões da pele passam habitualmente por quatro estádios, desde uma fase inflamatória a outra exclusivamente pigmentada. Em 90% dos doentes na primeira semana de vida (50% dos casos na data do nascimento) surgem lesões eritematosas, vesículas, máculas, pápulas e bolhas, com uma distribuição linear, proximal e predomínio nas superfícies flexoras, acompanhadas de eosinofilia marcada. (Figura 4)

FIGURA 4. Caso de incontinentia pigmenti ou doença de Bloch-Sulzberger. Distribuição linear das lesões cutâneas. (NIHDE)

Mais tarde, estas lesões tornam-se pustulares, queratosas, desenvolvendo-se a pigmentação, usualmente simétrica, de forma espiralada e cor acinzentada ou de chocolate, desaparecendo apenas na segunda ou terceira décadas de vida. Na idade adulta, a presença de máculas hipomelânicas constitui a única manifestação. Quando a doença evidencia esta evolução típica não há necessidade de exame histológico da pele para o diagnóstico.

As manifestações neurológicas, presentes em 30 a 50% dos casos, como epilepsia, atraso mental, paraparésia espástica, microcefalia ou ataxia, constituem as manifestações extradermatológicas mais importantes, na medida em que condicionam o prognóstico. Outras manifestações frequentes são as oculares (em 1/3 dos doentes: retina displásica, pseudoglioma e estrabismo), dentárias (erupção tardia ou dentes cónicos) e ortopédicas (luxação da anca e hemivértebras).

A RM permite demonstrar alterações da substância branca subcortical ou estruturais.

Não existe tratamento específico. De salientar a importância do conselho genético e do seguimento multidisciplinar para detecção de complicações.

4. Síndroma de Sturge-Weber, ou angiomatose encefalotrigeminal, rara, ocorre esporadicamente com uma frequência de 1/50.000. Estão descritos casos de transmissão autossómica recessiva e transmissão dominante. Atinge igualmente os dois sexos e caracteriza-se por anomalias vasculares, habitualmente num processo multissistémico que envolve a pele, SNC, olhos e outros órgãos.

A sua forma completa associa sinais e sintomas relacionados com o angioma leptomeníngeo, o angioma cutâneo e o angioma ocular. (Figura 5)

O angioma cutâneo é um angioma cutaneomucoso facial, cor de vinho do Porto, presente desde o nascimento, que tende a ser unilateral e a envolver a metade superior da face e pálpebra (nevus flammeus), limitado ao território de um ou vários ramos do trigémio. O angioma ocular (da coróide) é ipsilateral, presente em 30% dos casos e pode estar associado a glaucoma.

Da patologia associada, destaca-se a epilepsia em 75 a 90% dos casos, com início no primeiro ano de vida em quase metade destes doentes; a gravidade está muitas vezes relacionada com a localização e extensão da lesão cerebral.

A hemiparésia, (ou hemiplegia), está presente em 30 a 45% dos casos antes dos dois anos e é quase sempre colateral à lesão angiomatosa cerebral.

A insuficiência intelectual afecta > 70% dos doentes e a sua gravidade relaciona-se com a precocidade e gravidade da epilepsia.

O contributo da imagiologia para o esclarecimento do quadro clínico desta situação é importante.

FIGURA 5. Síndroma de Sturge-Weber: angioma cutaneomucoso da hemiface direita e fronte. (NIHDE)

A radiografia simples do crânio pode evidenciar calcificações cranianas a partir da segunda década de vida.

A TAC-CE demonstra precocemente a localização e extensão das calcificações, assim como a hemiatrofia cerebral e a maior captação do contraste na zona angiomatosa e no plexo coroideu homolateral.

A RM com gadolínio permite a visualização em toda a sua extensão da angiomatose meníngea de forma precoce e ainda em fase assintomática.

A angio-RM permite detectar angiomas venosos e lesões trombóticas.

Mediante a PET/tomografia de alta resolução/com emissão de positrões, pode evidenciar-se o hipometabolismo cortical da glucose nas áreas afectadas e estabelecer uma correlação entre a extensão da lesão e o prognóstico.

O prognóstico da síndroma de Sturge-Weber é muito variável e dependente, sobretudo, do controlo das crises, bem como dos défices motor e cognitivo. É muito frequente a evolução para epilepsia refractária à terapêutica médica, razão pela qual a cirurgia da epilepsia deve ser encarada muito precocemente em tais situações.

Com o tratamento estético com laser para o angioma facial têm sido obtidas melhoras parciais. Nos casos de descolamento da retina está indicada a fotocoagulação. O surgimento do glaucoma implica a intervenção do oftalmologista. Tal como nas situações descritas anteriormente, é fundamental a colaboração multidisciplinar.


5. Ataxia telangiectasia
, afectando cerca de 1/40.000 nados vivos, pelas suas características clínicas ocupa um lugar importante dentro das doenças degenerativas.

A transmissão é autossómica recessiva, com uma alta incidência de novos casos, por mutações do respectivo gene ATM (11q23.3); de tal resulta uma proteína truncada não funcionante com efeitos diversos, tais como hipersensibilidade a radiações ionizantes, atingimento do processo de reparação do ADN, inibição da sua síntese, incremento de rupturas cromossómicas com consequentes anomalias imunológicas, e incremento da apoptose.

Cursa com ataxia cerebelosa, coreoatetose, telangiectasias oculocutâneas, imunodeficiência, hipersensibilidade às radiações e elevada incidência de neoplasias, como leucemias e linfomas. A ataxia cerebelosa é progressiva, com um início precoce e presente em todos os doentes, (cerca dos 2 anos) enquanto a coreoatetose pode surgir em menos de metade dos mesmos. As telangiectasias oculocutâneas, evidenciando-se geralmente entre os 4-6 anos, afectam de uma forma simétrica a conjuntiva, formando uma rede de finas telangiectasias.

Movimentos oculares anómalos (apraxia óculo-motora), presentes em todos os doentes, podem preceder as telangiectasias. Posteriormente, aparecem as telangiectasias cutâneas (em 40% dos casos), sempre simétricas, na base do nariz, nos pavilhões auriculares ou nas mãos.

O doseamento da alfa-fetoproteína, (elevada), do antigénio carcinoembrionário e das imunoglobulinas (diminuição de Ig A secretória, Ig G2, IgG4 e IgE), são importantes marcadores diagnósticos, associados ao estudo cromossómico e à evolução clínica.

A RM-CE em fases avançadas evidencia atrofia cerebelosa.
O prognóstico está sobretudo dependente da deterioração neurológica. Existe degenerescência espinocerebelosa, lesão dos cornos posteriores da medula com perda dos reflexos tendinosos e atrofia espinal medular: na maioria dos doentes há necessidade de cadeira de rodas entre os 10-15 anos.

A imunodeficiência leva a infecções recorrentes, por vezes graves, interferindo também de uma forma importante no prognóstico.

O tratamento, que não é específico, baseia-se essencialmente na administração de imunoglobulina nos casos de infecções recorrentes, na fisioterapia e na terapia ocupacional. Salienta-se que é importante o diagnóstico precoce, a vigilância clínica atendendo à detecção de eventual surgimento de tumores, o conselho genético e o diagnóstico pré-natal com estudos moleculares.


6. Complexo esclerose tuberosa (CET)
, ou doença de Bourneville-Pringle, tem uma prevalência de 1/6.000 a 1/8.000, sem diferenças de sexo ou raça. Doença hereditária com ampla variabilidade clínica, devida a anomalia congénita do desenvolvimento embrionário, associa basicamente sinais cutâneos e tumores do SNC.

Transmite-se de modo autossómico dominante (penetrância variável), tendo-se demonstrado mutações espontâneas em 60-80% dos casos. Foram identificados 2 loci génicos, TSC1 no cromossoma 9 (9q34.3) e TSC2 no 16 (16p13.3). A incidência de novas mutações é muito elevada.

A patogénese desta anomalia reside na presença de tuberosidades corticais (que deram o nome à doença), nódulos subependimários e tumores de células gigantes, juntamente com anomalias da migração, proliferação e diferenciação neuronais.

Sob o ponto de vista anatomopatológico encontram-se no cérebro tuberosidades corticais formadas por nódulos de tamanho variável, com células gigantes, redução do número de neurónios e aumento dos núcleos astrocíticos, e nódulos subependimários formados por células astrocíticas fusiformes com deposição cálcica fazendo, no seu conjunto, procidência para dentro do ventrículo.

As manifestações clínicas que habitualmente conduzem ao diagnóstico são cutâneas, podendo existir também neurológicas, retinianas, cardíacas e renais.

O atingimento cutâneo é constante. As manchas cutâneas hipopigmentadas (90% dos doentes), poligonais ou em forma de folha ou ponta de lança, podem estar presentes desde o período neonatal ou infância precoce. Podem observar-se à vista desarmada ou com lâmpada de Wood.

O angiofibroma facial ou adenoma sebáceo (em > 70% dos doentes) compreende um conjunto de nódulos rosados no nariz, região malar e região nasogeniana (os chamados nódulos de Pringle), de tamanho variável, entre o da ponta duma agulha e de uma lentilha. Estas lesões podem aparecer já na idade pré-escolar.

Podem coexistir fibromas ungueais, periungueais (tumores de Koenen) e na mucosa oral, falhas no esmalte dentário em forma de fossetas, e lesões de despigmentação tipo serpentina ou madeixas de cabelos brancos.

As manifestações neurológicas – que podem preceder ou surgir em simultâneo com as cutâneas – são a epilepsia (80-90%), o défice cognitivo (60-70%) e as alterações do comportamento como défice de atenção e hiperactividade, autismo, agressividade e psicose.

Os tumores benignos resultantes da proliferação glial são mais frequentes no córtex cerebral, gânglios da base e paredes dos ventrículos. Os nódulos subependimários de maiores dimensões podem condicionar hidrocefalia (ver atrás).

Quanto às manifestações oculares destacam-se os hamartomas retinianos e as manchas hipopigmentadas na íris.

Os rabdomiomas cardíacos (30-70% dos casos) são hamartomas que tendem a ser múltiplos, podendo ser detectados por ecocardiograma fetal e desaparecer espontaneamente nos primeiros anos de vida.

Outras manifestações sistémicas do CET são o angiomiolipoma (75% dos casos) ou quistos renais, a linfangiomatose pulmonar com formação de quistos, pólipos hamartomatosos do recto, lesões ósseas quísticas e alterações endócrinas como puberdade precoce, doenças da tiroideia e gigantismo.

Para o diagnóstico consideram-se as chamadas características major e as minor.

As características major incluem: lesões cutâneas, cerebrais, oculares, e tumores no coração, rins ou pulmões.

As características minor incluem: quistos ósseos, pólipos rectais, alterações do esmalte dentário, anomalias do SNC (alterações da migração celular na substância branca), fibromas gengivais, hamartomas não renais, alterações despigmentares da retina, lesões cutâneas e quistos renais múltiplos.

O diagnóstico definitivo do CET faz-se em função da presença de 2 ou mais critérios major ou 1 major e 1 minor. O diagnóstico provável faz-se, se existir 1 critério major e 1 minor.

Na avaliação diagnóstica destes doentes é fundamental a imagiologia cerebral (TAC ou, de preferência, RM), EEG, ecografia renal, ECG, ecocardiograma, radiografia do tórax, etc..

O tratamento e o prognóstico são variáveis e dependem, não das manifestações cutâneas, mas essencialmente do aparecimento de tumores internos.

A verificação de hipertensão intracraniana relacionável, por ex. com obstrução do buraco de Monro, poderá estabelecer a indicação de intervenção neurocirúrgica urgente.


7. Síndroma PHACE

Esta síndroma agrupa um conjunto de anomalias a que correspondem as letras da sigla PHACE, a saber: anomalias da fossa Posterior, Hemangiomas, anomalias Arteriais, Coarctação da aorta, e outras anomalias – cardíacas e oculares (Eye).

Verifica-se predomínio no sexo feminino. Os hemangionas da via aérea podem originar obstrução. O interferão-alfa tem sido empregue para tratamento dos hemangiomas.


8.
Angiomatose cerebelorretiniana (doença de von Hippel-Lindau)

Esta doença transmite-se com carácter autossómico dominante e penetrância variável. A anomalia relaciona-se com o gene VHL (3p25-26), o qual codifica duas proteínas supressoras de tumores.

As manifestações clínicas são marcadas fundamentalmente pela presença de hemangioblastomas do cerebelo e angioblastomas da retina a partir dos 10 anos de idade. A sintomatologia integra sinais agudos de disfunção cerebelosa e policitémia devida à produção de eritropoietina pelo tumor.

As complicações podem surgir a vários níveis: compressão medular por hemorragia, descolamento da retina, laucoma secundário, quistos congénitos do pâncreas e rim, hipernefroma ou feocromocitoma.

O tratamento é cirúrgico e o prognóstico depende da presença e dimensões dos tumores intracranianos ou abdominais. Actualmente nalguns centros especializados têm sido aplicados inibidores da angiogénese nos tumores extraneurais.

AGRADECIMENTOS

Os autores e editor agradecem ao Dr. Raul Silva a cedência das imagens das Figuras 1, 2 e 3.

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A RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NO DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL DOS DEFEITOS CONGÉNITOS DO SNC

Importância do problema

A Neurologia Pediátrica é uma especialidade devotada ao estudo das afecções do sistema nervoso central (SNC) e periférico, as quais comportam elevada complexidade explicada pelos problemas diagnósticos colocados, pelas dificuldades em estabelecer um prognóstico e pelos escassos recursos terapêuticos disponíveis.

A este propósito, importa referir que grande número de doenças neurológicas detectadas em idades tardias da vida da criança têm origem pré-natal, e que em cerca de 25% das respectivas gravidezes se verificam alterações do SNC explicando, em tais circunstâncias, elevada percentagem de mortes fetais.

Daí, a importância do diagnóstico pré-natal (DPN) incidindo especialmente sobre a patologia do SNC, devido à multiplicidade de diagnósticos neuropatológicos possíveis, dos quais poderão decorrer decisões importantes dos pontos de vista terapêutico, ético e do acompanhamento médico pós-natal.

Desde há várias décadas que a ultrassonografia é utilizada como técnica de imagem amplamente difundida, disponível e indicada por rotina em todas as gravidezes, sendo que os defeitos congénitos ou as alterações adquiridas do SNC representam um dos grupos nosológicos mais frequentemente detectados.

Independentemente do reconhecido valor da ultrassonografia fetal no diagnóstico de patologia do SNC, importa relevar que as respectivas sensibilidade e especificidade são relativamente baixas, o que tem implicações clínicas. A corroborar esta realidade, num estudo prospectivo em 2017 por Griffiths e colaboradores, concluiu-se que a precisão diagnóstica neuropatológica desta técnica é de apenas 68%.

Os avanços recentes da técnica da Ressonância Magnética (RM) tornaram possível uma melhoria da resolução da imagem obtida, oferecendo informação anatómica detalhada de estruturas cerebrais milimétricas. Assim, apesar da menor disponibilidade e do maior custo inerente, o diagnóstico fetal de patologia do SNC tem-se tornado progressivamente mais comum utilizando a RM.

Em termos quantitativos, o panorama actual quanto à precisão diagnóstica de técnicas imagiológicas aplicadas ao SNC do feto pode traduzir-se do seguinte modo: a RM fetal “demarca-se” da ultrassonografia pela sua maior precisão diagnóstica (93%), acrescentando informação adicional ao diagnóstico ultrassonográfico em 49% dos casos e alterando o prognóstico em 20%, com consequente influência nas decisões clínicas em cerca de 1 em cada 3 casos.

Abordagem clínica

O uso indiscriminado de exames complementares e a profusão tecnológica de marcadores biológicos poderão levar ao abuso na utilização daqueles em detrimento da valorização da história clínica.

Na situação específica que tem por base o DPN, o enquadramento clínico dos resultados obtidos por RM fetal deverá sempre ser realizado por uma equipa multidisciplinar constituída por obstetra, pediatra, neonatologista, neurologista pediátrico, neurorradiologista, neurocirurgião, geneticista, entre outros especialistas considerados relevantes.

Depois da recolha e análise da informação disponível, a discussão com a família poderá ser complexa, com implicações médicas, éticas, legais, culturais e filosóficas. Frequentemente a família poderá procurar aconselhamento sobre eventual interrupção da gravidez e definição clara do prognóstico e do tipo de limitações previsíveis durante o crescimento da criança.

De acordo com a lei vigente, a interrupção da gravidez em caso de defeito congénito grave do SNC, apenas poderá ocorrer antes das 24 semanas de gestação, razão pela qual é importante a realização atempada de RM fetal.

Generalidades

A sensibilidade e especificidade diagnósticas da RM fetal são influenciadas não apenas pela sua excelente resolução espacial, mas também pelo facto de ser pouco influenciada pelo morfotipo materno, posição placentária, apresentação fetal ou oligo-hidrâmnio. A possibilidade de aquisição de imagens volumétricas e consequentes reformatações multiplanares, embora realizada com menor frequência, constitui uma vantagem adicional desta técnica.

Tendo como base os dados obtidos em mais de 3 décadas de utilização, não existe prova científica de que a RM fetal tenha qualquer efeito prejudicial sobre o feto ou sobre o desenvolvimento a longo prazo da criança. Desta forma, a RM é considerada uma técnica segura e não invasiva, quando utilizada a partir das 18 semanas de gestação.

Os aspectos observados por RM reflectem alterações da organogénese, da histogénese e da mielinização. Estão claramente identificadas as datas de gestação referentes aos diferentes estádios do volume encefálico, padrão de sulcação, configuração interna e mielinização. (Figura 1)

FIGURA 1. Exemplos de normal padrão de sulcação de acordo com idade gestacional (IG), representando sequencialmente, 21 semanas, 28 semanas e 35 semanas, apenas com esboço de fissura sílvica às 21 semanas e desenvolvimento progressivo de sulcos e maior opercularização

Actualmente, o diagnóstico imagiológico fetal é baseado no estudo da morfologia; todavia, está a ser estudada a utilização de técnicas avançadas de RM, como tractografia, espectroscopia e RM funcional. Admite-se que estas técnicas possam vir a dar um valioso contributo quanto ao incremento da sensibilidade e especificidade da RM fetal.

Indicações da RM

A RM fetal não está indicada como método de rastreio. A sua utilização está preconizada apenas após detecção de anomalias por ultrassonografia perante antecedentes familiares relevantes ou a suspeita de lesões potencialmente destrutivas, causadas por factores maternos, como coagulopatia, hipóxia, trauma ou infecção. As indicações mais comuns estão enunciadas no Quadro 1, sendo a ventriculomegália a mais frequente.

QUADRO 1 – Indicações comuns da realização de RM fetal

Ventriculomegália
Suspeita de defeito congénito
Lesão destrutiva potencial
Anomalias congénitas fetais múltiplas
Antecedentes familiares de anomalias congénitas e/ou de doença genética
Infecção materna
Gravidez gemelar com transfusão fetofetal e avaliação pós-ablação de vasos placentários por técnica de laser

Tendo em conta os objectivos deste livro, dispensando-nos de descrição pormenorizada, as alterações fetais do SNC identificadas por RM, neste capítulo são descritas de modo sucinto as mais representativas e frequentes.

Alterações fetais do SNC

Ventriculomegália

Relativamente a esta alteração – ventriculomegália -, (Figura 2) facilmente identificável por RM fetal, a respectiva causa apenas em 60% dos casos é esclarecida. É importante referir que a ventriculomegália se acompanha de outra alteração do SNC (disgenésia do corpo caloso, por ex.) em 85% dos casos, sendo a RM um instrumento valioso para a sua detecção.

O prognóstico desta situação depende da causa da dilatação ventricular, da idade gestacional em que ocorre, e da sua progressão. Todavia, ventriculomegália ligeira está associada a atraso do neurodesenvolvimento em 19 a 36% dos casos, sendo este mais prevalente se existirem concomitantemente outras anomalias do SNC associadas.

Lesões adquiridas do SNC

Lesões destrutivas, isquémicas, hemorrágicas, calcificações ou tumores podem ocorrer como consequência de doença materna ou fetal adquirida.

A RM permite a identificação da presença de produtos de degradação da hemoglobina. A presença de pequenas hemorragias da matriz germinal (Figura 3) é relativamente frequente, muitas vezes com significado clínico indeterminado. No entanto, as hemorragias da matriz germinal podem causar lesão parenquimatosa extensa com consequências sérias no neurodesenvolvimento (Figura 4). A detecção de produtos de degradação da hemoglobina ajuda a identificar a potencial causa de ventriculomegália ou porencefalia. A RM é particularmente sensível no diagnóstico de lesões isquémicas agudas e subagudas, ao contrário da ultrassononografia.

FIGURA 2. Marcada dilatação ventricular supratentorial, com evidente redução da espessura dos hemisférios cerebrais, a que se associa ruptura da porção anterior do septum pellucidum (seta), traduzindo assim processo de hidrocefalia. Idade gestacional/IG: 19 semanas

FIGURA 3. Imagens T2 e T1 demonstrando hemorragia da matriz germinal direita, grau I. IG: 24 semanas

FIGURA 4. Enfarte hemorrágico periventricular frontal direito, com extensão intraventricular, edema envolvente e hidrocefalia. IG: 31 semanas

A infecção fetal por citomegalovírus (CMV) (Figura 5) é a infecção congénita mais comum, apresentando um espectro alargado de alterações neuropatológicas, dependendo do estádio de desenvolvimento em que ocorreu a agressão. Assim, a apresentação em RM fetal poderá ser microcefalia, lesão encefaloclástica, ventriculomegália, quistos, calcificações periventriculares ou anomalias do desenvolvimento cortical.

Os tumores congénitos do SNC são extremamente raros, sendo os teratomas os mais frequentes (Figura 6), representando entre 33% a 50% do total. Outros possíveis tumores congénitos incluem os astrocitomas, papilomas do plexo coroideu, meduloblastomas, tumores embrionários anteriormente designados por tumores neuroectodérmicos primitivos, entre outros, ainda mais raros. A RM fetal é particularmente útil na sua detecção e caracterização.

Os quistos aracnoideus (Figura 7) são colecções de líquido cefalorraquidiano que se desenvolvem entre os folhetos aracnóides, e que normalmente não têm significado patológico. No entanto, quando volumosos e presentes durante o desenvolvimento do SNC, podem ter impacte na formação das normais estruturas anatómicas.

FIGURA 5. Assimetria ventricular, quistos subependimários, dismorfia e dilatação do corno temporal direito, admitindo-se alterações da substância branca e eventual alteração cortical frontal direita. Aspectos sugestivos de infecção congénita por CMV. IG: 32 semanas

FIGURA 6. Volumosa lesão intracraniana ocupando espaço, aparentemente extra-axial, heterogénea, maioritariamente quística e com componentes sólidos periféricos, determinando significativo efeito de massa. A suspeita de teratoma confirmou-se histologicamente. IG: 21 semanas

FIGURA 7. Volumoso quisto inter-hemisférico direito, septado, com características de sinal idênticas ao restante LCR. IG: 35 semanas

Disgenésias do corpo caloso

A agenésia do corpo caloso (Figura 8), frequentemente encontrada na população geral, com uma prevalência de 0,02% a 0,5%, tem um impacte muito variável no neurodesenvolvimento; por isso, torna-se difícil estabelecer o prognóstico. Contudo, estando esta anomalia frequentemente associada a outros defeitos tais como anomalia de Dandy-Walker ou disrafismos, anomalias cromossómicas e síndromas genéticas, a sua identificação poderá ser importante na marcha diagnóstica.

A hipogenésia do corpo caloso pode resultar de um desenvolvimento incompleto ou de um processo destrutivo ulterior à sua formação. Estudos retrospectivos demonstraram que 43% dos casos de agenésia do corpo caloso diagnosticados por RM fetal não tinham sido detectados por ultrassonografia.

Patologia malformativa da fossa posterior

Este termo engloba um vasto leque de defeitos congénitos, sendo os mais frequentes aqueles que se definem como um espaço aumentado de líquido cefalorraquidiano na fossa posterior, sem ou com patologia cerebelosa. Entre estas, destacam-se: – no primeiro grupo as mais comuns, mega cisterna magna (Figura 9) e quisto da bolsa de Blake, habitualmente sem significado patológico; e – no segundo grupo, a hipoplasia vermiana inferior e a anomalia de Dandy-Walker (Figura 10). Ao contrário desta última, os casos de hipoplasia vermiana inferior isolada apresentam prognóstico muito variável, sendo impossível prever as manifestações clínicas durante o desenvolvimento fetal.

Através da descrição anatómica pormenorizada dos achados imagiológicos fetais é possível identificar, quer situações que virão a ser raramente sintomáticas, quer outras com prognóstico muito reservado, associado a compromisso neuropsíquico. As anomalias cerebelosas mais graves são frequentemente parte constituinte de síndromas complexas, associadas a patologia cerebral e extracerebral.

FIGURA 8. Agenésia completa do corpo caloso. IG: 33 semanas

FIGURA 9. Mega cisterna magna. Vérmis e 4º ventrículo normais. IG: 23 semanas

FIGURA 10. Anomalia de Dandy-Walker. Hipoplasia acentuada do vérmis, com dilatação de aspecto quístico do 4º ventrículo e alargamento da fossa posterior. IG: 34 semanas

Distúrbios do desenvolvimento cortical

Frequentemente indetectáveis por ultrassonografia, uma grande parte das anomalias do desenvolvimento cortical (proliferativas, migratórias ou pós-migratórias) podem ser diagnosticadas por RM fetal, nomeadamente microcefalia (Figura 11), lisencefalia, polimicrogiria, heterotopia ou esquizencefalia. Esta informação é particularmente útil no âmbito do aconselhamento genético para gravidezes futuras, pois a maioria dos distúrbios do desenvolvimento cortical têm uma origem genética.

Apesar de se tratar de alterações frequentemente subtis, esta técnica evidencia sensibilidade e especificidade elevadas no DPN de polimicrogiria e esquizencefalia; contudo, no que se refere a heterotopia (Figura 12), a identificação frequentemente não é viável antes do terceiro trimestre de gestação.

FIGURA 11. Microcefalia com concomitante atraso no padrão de sulcação e giração. IG: 23 semanas

FIGURA 12. Heterotopias subependimárias ao longo do contorno ependimário dos cornos occipitais e átrios. IG: 23 semanas

FIGURA 13. Malformação de Chiari tipo 2 associada a mielomeningocele, com representação dos aspectos típicos: fossa posterior pequena, implantação baixa da tenda do cerebelo e da torcula de Herófilo (confluência dos seios), herniação do tronco cerebral e amígdalas cerebelosas com apagamento dos espaços de LCR, e disrafismo lombar. IG: 33 semanas

Anomalias do desenvolvimento do tubo neural dorsal

Sobre as anomalias congénitas associadas ao desenvolvimento do tubo neural dorsal, abordadas em capítulo próprio, é importante referir que a RM fetal evidencia elevada sensibilidade para o seu diagnóstico, nomeadamente no que se refere à malformação de Chiari Tipo 2 associada a mielomeningocele (Figura 13); tal sensibilidade, contudo, não é tão elevada nos casos de disrafismos fechados discretos.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem muito reconhecidamente à Dra. Eulália Calado a revisão do manuscrito e as sugestões apresentadas.

GLOSSÁRIO

Espectroscopia > Avaliação semiquantitativa de metabólitos (por exemplo, colina, N-acetilaspartato, lactato, lípidos, creatina, etc.) por RM de determinado volume parenquimatoso seleccionado.

Matriz germinal > Região adjacente aos ventrículos laterais do cérebro fetal onde existe proliferação neuronal com ulterior migração neuronal. Devido à sua elevada taxa metabólica, a matriz germinal é particularmente a hemorragia.

Opercularização > Formação do opérculo que ocorre com o normal desenvolvimento dos lobos frontal, parietal e temporal, que acabam por cobrir o lobo da ínsula, com a consequente formação da fissura sílvica.

RM funcional > Técnica RM que pretende discriminar áreas de maior actividade neuronal, baseando-se no fluxo sanguíneo.

Sulcação e giração > Normal desenvolvimento encefálico resulta no aumento da superfície cortical, resultando na formação dos sulcos corticais e giros/circunvoluções.

Tractografia > Imagens 3D que pretendem representar as vias neuronais, baseando-se na maior difusibilidade das moléculas de água ao longo dos axónios.

T1 e T2 > Ponderações básicas de RM obtidas a partir dos “tempos de relaxamento” nuclear, que diferem consoante o tipo de tecido ou alterações patológicas. O sinal obtido traduz-se numa escala de cinzento, revelando características consideradas normais ou patológicas.

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DEFEITOS DA MIGRAÇÃO NEURONAL E OUTRAS ANOMALIAS DO SNC

Sistematização

Como foi referido no capítulo dedicado aos defeitos do tubo neural, as anomalias congénitas do SNC são detectadas no RN com uma frequência de 0,5 a 5%.

Neste capítulo são abordados:

  1. os defeitos da migração, proliferação e diferenciação neuronais;
  2. as anomalias da segmentação e da divisão cerebrais;
  3. e, sucintamente, a porencefalia.

Trata-se de situações raras, por vezes com diversidade de anomalias associadas, e com consequências diversas: o espectro de manifestações varia entre casos detectados sem repercussões clínicas relevantes (heterotopia mínima de neurónios), e outros com repercussões devastadoras incluindo incapacidade intelectual e motora graves, e síndromas acompanhadas de convulsões.

1. DEFEITOS DA MIGRAÇÃO, PROLIFERAÇÃO e DIFERENCIAÇÃO NEURONAIS

No que respeita a alterações da migração neuronal, investigações experimentais recentes chamaram a atenção para o papel de determinados genes e suas mutações.

Nesta alínea é feita uma abordagem sucinta de algumas formas clínicas em que a imagiologia, designadamente a RM, tem um papel fundamental na respectiva identificação.

Lisencefalia

Também designada agiria, esta anomalia rara é caracterizada por ausência de circunvoluções cerebrais/cérebro “liso”, com fissura sílvica vestigial; o aspecto macroscópico do cérebro é o de cérebro fetal com cerca de 12-16 semanas de gestação. (Figura 1A: imagem de RM – CE)

Lisencefalia do tipo I

A este grupo pertence à síndroma de Miller-Dieker caracterizada por fenótipo especial: fronte estreita e saliente, hipertelorismo, nariz curto com anteversão das narinas, orelhas de implantação anómala e micrognatismo, microcefalia, convulsões, atraso do desenvolvimento, hipocrescimento, hipoplasia do nervo óptico e microftalmia.

Esta forma clínica depende de expressão defeituosa do gene LIS1(17p13.3) e do gene da lisencefalia (LIS-1).

Nos casos em que se comprova associação a disgenesia do corpo caloso e a hipoplasia do cerebelo e do tronco cerebral foram identificadas mutações no gene TUBA1A (12q22-q24).

Lisencefalia do tipo II

O protótipo desta forma clínica é a síndroma de Walker-Warburg, caracterizada por hidrocefalia, agíria, defeito do cerebelo, displasia da retina, onfalocele e distrofia muscular congénita, hipotonia e morete precoce.

A transmissão hereditária é do tipo autossómico recessivo, tendo-se identificado vários genes responsáveis, tais como POMT1, POMT2, ISPD, FKTN, etc., situados respectivamente nos cromossomas 9q14, 14q24.3, 7p21, 9q31-33.

FIGURA 1A: Imagem de lisencefalia. (RM-CE)

Esquizencefalia

Nesta anomalia verifica-se a presença de fendas unilaterais ou bilaterais ou ao nível dos hemisférios cerebrais. Nalguns casos os achados da RM permitem visualizar fenda de comunicação entre o ventrículo e o espaço craniano extra-axial; muitas destas fendas/”comunicações” estão tapetadas por substância cinzenta anormal. Como manifestações clínicas refere-se atraso mental, convulsões refractárias, microcefalia, e tetraparésia espástica quando as fendas são bilaterais. Se a fenda for unilateral pode verificar-se hemiparésia. (Figura 1B: imagem de RM – CE)

Esta anomalia pode ser determinada geneticamente (gene EMX2, 10q26.1).

Descrevem-se dois tipos I e II, conforme respectivamente os bordos estajam abertos ou fechados.

Agenesia do corpo caloso

A esta anomalia, clinicamente muito heterogénea (desde formas assintomáticas e QI normal, até síndromas neurológicas complexas acompanhadas de défice mental), está associada hereditariedade ligada ao X, ou autossómica dominante; pode igualmente estar ligada a anomalias cromossómicas (trissomias 8 e 18) e associada a certas doenças hereditárias do metabolismo.

Na síndroma de Shapiro a agenesia do corpo caloso associa-se a episódios recidivantes de hipotermia e diaforese.

 

FIGURA 1B: imagem de esquizencefalia. (RM-CE)

A síndroma de Aicardi (quadro complexo caracterizado essencialmente por atraso mental, espasmos em flexão/hipsarritmia, convulsões refractárias, coriorretinite “em queijo Gruyères” e anomalias vertebrais/hemivértebras) está tipicamente também associada a agenesia do corpo caloso. Predominando no sexo feminino, admite-se anomalia do cromossoma X, a que corresponde elevada letalidade no sexo masculino.

Na síndroma de Anderman (gene SLC12A6) existe associação a neuropatia periférica.

Agenesia dos nervos cranianos

Esta anomalia, por vezes associada a diversas situações clínicas, compreende ausência de certos nervos cranianos ou dos respectivos núcleos originando sinais clínicos diversos, por ex. ptose palpebral congénita, fenómeno de Marcus Gunn (concomitância de movimentos de sucção e pestanejo/sincinésia, etc.). Na síndroma de Moebius verifica-se paralisia facial bilateral.  

Heterotopias neuronais

Neste defeito existem colecções de neurónios em localiazação anómala.

Descrevem-se três grupos:

Heterotopias nodulares subependimárias periventriculares

Este grupo tem na sua base diversas alterações genéticas tais como, entre outras: ligadas ao cromossoma X(Xq28, gene da filaminaA, FLNA) e outras dependentes de gene autossómico (20q13.13), gene ARFGEF2).

Heterotopias subcorticais e marginais glioneurais

Este grupo está relacionado com alterações nos genes LIS1 (17p13.3) e DCX (Xq22.3-q23).

Heterotopias laminares subcorticais

Este grupo está limitado praticamente ao sexo feminino, com transmissão dominante ligada ao cromossoma X(Xq22.3-q23, gene DCX). No sexo masculino esta alteração genética pode associar-se a lisencefalia.

Megalencefalia, macrocefalia e hemimegalencefalia

A megalencefalia define-se como desenvolvimento precoce de cérebro anormalmente grande. Existe uma forma familiar benigna (com hereditariedade autossómica dominante, sobretudo no sexo masculino. Os ventrículos cerebrais podem ser de dimensões normais ou moderadamente de grandes dimensões.

Na macrocrânia ou macrocefalia observa-se crânio grande, nem sempre acompanhado de cérebro grande (constitucional ou familiar, igualmente observado nas síndromas de Sotos, de Weaver, acondroplasias, etc.).

A hemimegaloencefalia define-se como hipertrofia difusa cerebral unilateral, secundária a anomalias na proliferação e migração neuronais (gene L1-CAM, Xq28), a qual se manifesta por macrocefalia nem sempre assimétrica, atraso psicomotor e epilepsia precoce rebelde ao tratamento.

Microcefalia

Define-se pela verificação de perímetro cefálico inferior a 2 DP do considerado normal para a idade, sexo e idade gestacional. Consideram-se dois grupos: microcefalia primária e microcefalia secundária.

Uma forma extrema de microcefalia primária é o chamado microcérebro radial a que corresponde cérebro com < 50 g.

Num grupo característico de microcefalias primárias familiares, de hereditariedade autossómica recessiva, estão implicados fundamentalmente sete genes, desde MCPH1, 8p23; MCPH2, 19q13.12; MCPH3, 9q33, etc., a MCPH7, 1p32.3-p33. Estas situações, em geral no contexto de consanguinidade, estão associadas a fenótipo em que ressaltam, entre outras, as seguintes características: nariz proeminente, orelhas desproporcionadamente grandes, micrognatismo, e incapacidade intelectual.

2. ANOMALIAS DA SEGMENTAÇÃO E DIVISÃO CELULARES

Holoprosencefalia

Trata-se duma anomalia resultante de clivagem defeituosa do prosencéfalo com incidência da ordem de 1/5.000-1/16.000 e susceptível de ser diagnosticada no período pré-natal a partir da 10ª semana. Compreende três formas: alobar, semilobar, e lobar.

De transmissão autossómica recessiva, por vezes associada a diabetes materna, em cerca de 50% dos casos, existe associação com trissomias 13, 15 e 18; Estão implicados diferentes genes, tais como: SHH (7q36), ZIC2 (13q32), SIX3 (2p21), TGIF (18p11.3), etc..

Como manifestações clínicas de anomalias da segmentação e divisão cerebrais, são notórias as anomalias faciais: fenda palatina, lábio leporino, ciclopia, cebocefalia, incisivo central único, e agenesia pré-maxilar. Através da RM, a forma lobar evidencia ausência de separação dos hemisférios e ventrículos laterais, substituídos por ventrículo único central.

Anomalias do septum pellucidum

Este tipo de anomalias pode ter duas expressões:

  • quisto do septum pellucidum que pressupõe a persistência duma cavidade intrasseptal própria do feto (cavum) para além dos 4-5 meses de vida, a qual é raramente sintomática;
  • ausência do septum pellucidum a qual provoca a fusão dos ventrículos laterais para originar uma cavidade única central. Este defeito pode estar associado a hipoplasia dos nervos ópticos, malformações do prosencéfalo e disfunção hipotalâmica (displasia septo-óptica ou síndroma de Morsier com anomalias nos genes HESX1/PAX3, 3p21.1-p21.2, e SOX2, 3q27), que se manifesta por nistagmo, ambliopia, hipopituitarismo e défice motor. O diagnóstico é confirmado através de exames de imagem –TAC e RM.

3. PORENCEFALIA

A designação genérica de porencefalia refere-se às situações em que existem quistos ou cavidades intracerebrais. Para além da etiopatogénese relacionada com defeito do desenvolvimento (congénita), tal quadro morfológico pode também ser adquirido na sequência de enfarte tecidual.

Esta anomalia, por vezes associada a outras (encefalocele, microcefalia, etc.), manifesta-se fundamentalmente por insuficiência intelectual, hemi ou tetraparésia espástica, atrofia óptica e convulsões.

Nota final: Como foi referido no capítulo 196, os defeitos do cerebelo, as hidrocefalias, as cranossinostoses e síndroma de Klippel-Feil são abordadas noutros capítulos, de modo integrado.

AGRADECIMENTO

O autor agradece à Dra. Eulália Calado a cedência das imagens. (Figura 1)

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PLAGIOCEFALIA POSICIONAL

Definição e importância do problema

Como foi descrito no capítulo anterior, o termo plagiocefalia significa genericamente obliquidade ou assimetria da forma da cabeça nos planos sagital ou coronal.

A plagiocefalia posicional (PP) é a designação dada à plagiocefalia não sinostótica, variedade que surge como resultado da acção de forças extrínsecas de moldagem sobre o crânio.

Tais forças extrínsecas exercidas de modo mantido ao nível da mesma área da cabeça são tipificadas pela postura cefálica preferencial nos primeiros meses de vida (posição viciosa da cabeça no berço, por exemplo, recém-nascido em decúbito dorsal mantido).

Com efeito, num período em que o crânio imaturo e em crescimento rápido é susceptível de se deformar, poderá surgir depressão na região occipital na sequência da referida posição, com compensação do crescimento ósseo ao nível da região frontal. O efeito de pressão poderá também verificar-se ainda in utero por posição fetal mantida.

A incidência desta forma posicional é superior à das restantes, anteriormente descritas.

A propósito do problema da plagiocefalia posicional e da sua génese, importa abordar um facto histórico. Com efeito, a Academia Americana de Pediatria lançou em 1992 a campanha Back to Sleep aconselhando a posição dos lactentes para dormir em decúbito dorsal, no sentido de prevenir a morte súbita. Esta medida teve bastante sucesso: conseguiu-se uma diminuição significativa (~40%) da morte súbita; mas simultaneamente observou-se um incremento exponencial (~600%) da plagiocefalia.

Aspectos epidemiológicos

De acordo com diversos estudos nas últimas décadas, a incidência da plagiocefalia posicional é cerca de 20% pelos 4 meses de idade, diminuindo nos três anos seguintes (~7% aos 12 meses e ~3,3% aos 24 meses), e tornando-se irrelevante pelos 3 anos de idade.

Estes valores são muito superiores aos verificados nas outras formas de plagiocefalia: – 0,003%.

Etiopatogénese

Determinados factores de risco (muitos dos quais não susceptíveis de prevenção) têm relevância nos pacientes com plagiocefalia posicional: torcicolo congénito, preferência posicional para dormir com cabeça para o mesmo lado, actividade motora escassa, posição supina desde o nascimento e às 6 semanas, alimentação exclusiva com biberão, tummy time (isto é, tempo de posição em decúbito ventral permitido sob vigilância com o bebé acordado – ver adiante) < 3 vezes por dia e atraso no neurodesenvolvimento.

Sem ser possível estabelecer seguramente uma relação de causa-efeito, foram comprovadas diferenças significativas quanto às etapas-chave da motricidade grosseira (sedestação, gatinhar, rolar, etc.) entre pacientes com e sem PP.

No que respeita a factores causais mais relevantes relacionados com as forças extrínsecas de moldagem sobre o crânio, salientam-se as seguintes situações:

  • no período pré-natal à oligoâmnio, e gestação múltipla;
  • no período pós-natal à a posição de dormir (predominantemente), e o torcicolo miogénico congénito (sendo que existe um mecanismo de potenciação entre plagiocefalia e torcicolo).

Anamnese, observação e diagnóstico diferencial

Dado que o diagnóstico de plagiocefalia é essencialmente clínico, e considerando a semelhança de características entre plagiocefalia lambdóide (sinostótica) e plagiocefalia posicional (as quais têm indicações terapêuticas diferentes), importa que o pediatra e o clínico geral estejam capacitados para proceder ao diagnóstico diferencial.

No Quadro 1 são referidos os parâmetros que permitem a destrinça entre plagiocefalia posicional (não sinostótica) e sinostótica.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial entre plagiocefalia posicional e lambdóide (sinostótica)

CaracterísticasPlagiocefalia posicionalCraniossinostose occipital lambdóide
InícioGeralmente depois do nascimentoAo nascimento
Posição cefálica preferencialComumRara
Sutura lambdóide Não palpávelPalpável (crista óssea)
Bossa frontalIpsilateral (do mesmo lado do achatamento occipital)Contralateral (do lado contrário ao do achatamento occipital)
Pavilhão auricular ipsilateralDeslocamento anterior (maior angulação)Deslocamento posterior (menor angulação) – critério variável
Forma do crânio
Visão superior/vértex

Semelhante a paralelograma

Semelhante a trapézio
DiagnósticoHistória clínicaHistória clínica e Imagiologia
Tratamento Não cruento (encaminhamento para centro de medicina física e reabilitação)Cirúrgico (encaminhamento para centro especializado)

Prioritariamente deve proceder-se à inspecção:

  • da forma do crânio;
  • visão por cima (semelhante a paralelograma na plagiocefalia posicional, e trapezoidal na forma sinostótica) e;
  • da angulação da orelha relativamente à região mastoideia, verificando se há afastamento (ângulo maior na forma posicional), ou aproximação (ângulo menor na forma).

Dois parâmetros que também podem ser considerados são:

  • na forma sinostótica à bossa parieto-occipital associada a bossa frontal no lado oposto ao do achatamento occipital;
  • na forma posicional à bossa occipital no lado oposto ao do achatamento occipital.

A palpação da sutura lambdóide também deve ser realizada: a verificação de crista óssea aponta para forma sinostótica.

Do exame físico faz também parte a avaliação do tono dos músculos do pescoço. O tono passivo, responsável pela postura, pode avaliar-se pela resistência aos movimentos passivos. A resistência à mobilização passiva aponta para a presença de torcicolo (factor de risco para forma posicional). A verificação de atraso no desenvolvimento motor aponta também para a presença de factor de risco para plagiocefalia posicional por diminuição da actividade motora e tendência para postura preferencial mantida.

De acordo com o que foi referido no capítulo anterior, em qualquer situação de deformação craniana deve proceder-se à avaliação do índice cefálico utilizando-se o craniómetro (consultar infocefalia.com). Nos casos de plagiocefalia deve igualmente proceder-se à medição dos diâmetros diagonais (à direita e à esquerda) para obter a diferença diagonal transcraniana (medindo as 2 diagonais a partir das eminências frontais e com o mesmo ângulo de cada lado em relação à linha ântero-posterior). Numa cabeça sem deformação, o valor das duas é igual. Na Figura 1 exemplifica-se um caso em que existe diferença entre os referidos dois diâmetros.

O Quadro 2 mostra a relação entre tal diferença e o grau de plagiocefalia.

FIGURA 1. Diferença transcraniana diagonal (diâmetros transcranianos occipitofrontais). Na Figura do lado direito verifica-se diferença do comprimento entre os dois diâmetros

FIGURA 2. Aspecto geral do craniómetro (A) e utilização do mesmo (B).
O afastamento ou aproximação das hastes de aplicação à cabeça, em ligação a um “ponteiro”, permite a deslocação do mesmo, deslizando ao longo de escala (régua curva) com numeração em centímetros (cm) e milímetros (mm)

QUADRO 2 – Medição com craniómetro (diferença entre as duas diagonais) e graus de plagiocefalia

0 – 9 mm Plagiocefalia leve
10 – 19 mm Plagiocefalia moderada
> 20 mm Plagiocefalia grave

Nos casos em que os parâmetros clínicos apontam para craniossinostose, está indicado o estudo imagiológico.

Actuação prática

O pediatra ou clínico geral com responsabilidade na assistência ao paciente com plagiocefalia posicional obtém a colaboração do centro de medicina física e reabilitação onde constitui rotina:

  • proceder a medições que fornecem dados objectivos permitindo quantificar o estudo evolutivo;
  • determinar o grau de deformidade segundo a classificação de Argenta, considerando 5 níveis.

Prevenção

Numa perspectiva preventiva deste problema crescente relacionado com a campanha Back to Sleep, anteriormente referida, a Academia Americana de Pediatria em 2000 lançou nova campanha designada Back to Sleep – Tummy Time to Play, passando a aconselhar durante o período em que o bebé está acordado, o decúbito ventral de 10-15 minutos, pelo menos 3 vezes por dia, sob estrita vigilância.

Entretanto, outras medidas foram desenvolvidas:

  • alternar a rotação da cabeça da criança quando colocada a dormir;
  • alternar diariamente a sua orientação na cama;
  • reduzir o tempo nas cadeiras de transporte e noutros dispositivos restritivos;
  • promover ambientes que permitam o movimento espontâneo.

Em suma, a actuação descrita, a explicar aos pais, tem diversas vantagens: estimulação do desenvolvimento psicomotor; diminuição do tempo de postura mantida da cabeça; e redução do efeito de pressão constante da mesma área da cabeça contra plano duro.

Intervenção

Perante um quadro clínico de plagiocefalia posicional, a intervenção inclui as seguintes medidas simples, a ensinar aos pais: reposicionamento, aconselhando, no decúbito dorsal, a rotação da cabeça para posição sobre a região occipital mais proeminente; estimulação sensorial (visual, auditiva), preferencialmente feita do lado da região occipital mais proeminente; todas as medidas descritas devem ser aplicadas igualmente na cadeira de transporte; os posicionamentos ao colo devem permitir o alívio de pressão na zona occipital achatada; mantém-se o aconselhamento de períodos em decúbito ventral (tummy time) de acordo com a metodologia descrita antes, logo que a criança evidencie estabilidade cefálica, sempre sob vigilância.

A fisioterapia está indicada, quer nos casos de torcicolo associado, quer no contexto de ensino aos pais, pressupondo a colaboração activa dos mesmos.

A ortótese craniana (capacete) é opção apenas em casos mais graves.

Devem ser enviados para consulta de Medicina Física e de Reabilitação: os pacientes que apresentam torcicolo associado à plagiocefalia; e aqueles que, após aplicação de medidas simples de posicionamento, evidenciam ausência de resposta ou agravamento.

Notas finais

  • Todas as situações de craniossinostose eventualmente detectadas devem ser encaminhadas para consulta de Neurocirurgia.
  • O incremento do perímetro cefálico (PC) é exponencial nos 3 primeiros meses de vida e mantém-se a uma velocidade elevada nos 9 meses seguintes; a partir dos 12 meses o referido incremento é muito mais lento.
  • Quanto mais precoce for a intervenção, melhores e mais rápidos serão os resultados, tendo em conta a potencialidade de remodelação, mais relevante nos primeiros meses de vida.

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DISCRANIAS E VARIANTES

Definição e nomenclatura

Discrania (ou alocefalia) define-se como anomalia da dimensão e/ou da forma do crânio, congénita ou adquirida, de patogénese diversa, com um espectro variado de manifestações.

A normocrania (ou normocefalia) engloba as situações de normalidade da forma e dimensões do crânio, assim como as respectivas variantes dismórficas consideradas fisiológicas.

Na literatura científica relacionada com a Dismorfologia, existem ainda as designações de deformidades cranianas, dismorfias e de dismorfismos, compreendendo as discranias e as variantes.

Adoptando a classificação de A. Galdó e M. Cruz, são considerados três grandes grupos de discranias: as macrocefalias, as microcefalias e as craniossinostoses.

Como exemplos de normocranias citam-se: mesocefalia, dolicocefalia, braquicefalia e hiperbraquicefalia.

Semiologia

Com interesse semiológico para o diagnóstico diferencial das dismorfias cranianas, e para a caracterização de situações-limite, importa recordar a noção de índice cefálico.

O índice cefálico (IC) obtém-se dividindo o resultado do diâmetro cefálico transversal (DCT) pelo do diâmetro cefálico ântero-posterior (DCAP), multiplicando este quociente por 100: IC = DCT/DCAP x 100.

Os valores traduzindo normalidade de dimensões oscilam entre 70 e 90.

Assim, IC < 75 corresponde a dolicocefalia; IC entre 75 e 79 corresponde a mesocefalia; IC entre 80 e 85 corresponde a braquicefalia; e IC > 85 corresponde a hiperbraquicefalia.

Para as medições pode utilizar-se um instrumento simples (~ pinça curva de abertura larga para adaptação ao crânio, envolvendo-o, articulada com ponteiro deslizando ao longo de régua de leitura acoplada, indicando entre 80 e 170 mm: craniómetro. (Figura 1)

Com interesse semiológico para o diagnóstico diferencial das dismorfias cranianas, e para a caracterização de situações-limite, importa recordar a noção de índice cefálico.

O índice cefálico (IC) obtém-se dividindo o resultado do diâmetro cefálico transversal (DCT) pelo do diâmetro cefálico ântero-posterior (DCAP), multiplicando este quociente por 100: IC = DCT/DCAP x 100.

Os valores traduzindo normalidade de dimensões oscilam entre 70 e 90.

Assim, IC < 75 corresponde a dolicocefalia; IC entre 75 e 79 corresponde a mesocefalia; IC entre 80 e 85 corresponde a braquicefalia; e IC > 85 corresponde a hiperbraquicefalia.

Para as medições pode utilizar-se um instrumento simples (~ pinça curva de abertura larga para adaptação ao crânio, envolvendo-o, articulada com ponteiro deslizando ao longo de régua de leitura acoplada, indicando entre 80 e 170 mm: craniómetro. (Figura 1)

Como notas semiológicas importa ainda salientar:

  • a importância da avaliação seriada do perímetro cefálico – com ou sem dismorfia – relacionando-o com outros parâmetros como o peso, idade e estatura;
  • perante história de prematuridade e/ou muito baixo peso de nascimento (inferior a 1.500 gramas) deve relacionar-se o perímetro cefálico com a idade pós-concepcional e não com a idade pós-natal (consultando tabelas próprias).

FIGURA 1. Craniómetro

Desenvolvimento do crânio

Na criança, o crânio é uma estrutura que mantendo a rigidez necessária à sua protecção, permite o enorme crescimento do cérebro em tal grupo etário.

A calote craniana, de origem membranosa, é constituída a partir da 6ª semana de gestação pela união de centros de ossificação; por sua vez, a membrana mesenquimal passa a integrar dois folhetos: o externo que origina o pericrânio, e o interno que origina a dura-máter, com poder osteogénico.

Cerca da 23ª semana de gestação está formada a calote craniana, com ossos separados por áreas não ossificadas: 1) fontanelas (anterior ou bregmática, posterior ou lambdóide, e ântero-laterais ou esfenoidais); e 2) suturas (sagital ou interparietal, coronal/transversal ou parietofrontal, metópica ou interfrontal, lambdóide ou parieto-occipital e esfenoparietal); a metópica funde-se até aos 2 anos.

Na data de nascimento os ossos estão justapostos e unidos por tecido fibroso. Relativamente às fontanelas, no recém-nascido após gestação de termo e em condições de normalidade, somente é notória a fontanela anterior; de salientar que o encerramento desta fontanela não é acompanhado de obliteração das suturas.

A fontanela posterior, de escassas dimensões, poderá ser palpada no RN pré-termo ou em casos associados a atraso de ossificação de diversas etiologias, nomeadamente hipotiroidismo. As restantes somente são demonstráveis através de radiografia. (Figura 1-A)

FIGURA 1-A. Crânio: fontanelas e suturas; visão esquemática superior abstraindo as observadas em visão lateral (Adaptado de SBP)

Fisiopatologia

A propósito da relação da estrutura óssea craniana com o conteúdo encefálico importa reter as seguintes noções básicas:

  • o aumento de capacidade do crânio é um processo secundário ao aumento de volume das estruturas intracranianas;
  • o tamanho da cabeça pode ser afectado pela espessura dos ossos do crânio;
  • a dimensão e a forma do crânio ao longo do desenvolvimento resultam do equilíbrio entre esse estímulo e a capacidade de crescimento dos ossos ao longo das suturas;
  • a ruptura de tal equilíbrio depende de três factores: moldagem interna, moldagem externa e encerramento precoce de uma ou várias suturas (craniossinostose).

Como exemplo de moldagem interna (situação em que o conteúdo craniano influencia a forma da cabeça) cita-se o aparecimento de bossas frontais observáveis nos casos de colecções extracerebrais benignas.

Como exemplos de moldagem externa (por forças externas ou pela acção do próprio peso) citam-se as deformações transitórias no pós-parto, nas primeiras semanas nos RN pré-termo e, as resultantes do decúbito dorsal ou lateral mantido, recomendado para dormir, na perspectiva da prevenção da morte súbita. (ver adiante)

Sobre o encerramento/ossificação precoce de suturas ou craniossinostose (com aspectos da patogénese ainda não totalmente esclarecidos), importa uma referência à chamada lei de Virchow: quando determinada sutura é precocemente encerrada, o crescimento ósseo é interrompido no sentido perpendicular à referida sutura; por compensação, o desenvolvimento do crânio ocorre no sentido paralelo, à custa das suturas não afectadas. O resultado final será o surgimento de deformações de grau variável e/ou assimetrias; por outro lado, a palpação da zona da sutura encerrada precocemente evidencia saliência óssea.

A repercussão clínica das craniossinostoses em termos de lesões do sistema nervoso é muito variável, dependendo da localização. Enquanto nalguns tipos poderá não se verificar qualquer lesão, noutros, por exemplo, poderá ser causa de atrofia óptica por alongamento do nervo óptico. (ver adiante)

1. MACROCEFALIA

Definição e semiologia

A macrocefalia, significando crânio de grandes dimensões, define-se pela verificação de perímetro cefálico acima do percentil 97 e crescimento excessivo da cabeça. Na prática, tal critério sobrepõe-se ao que é definido por alguns autores: perímetro cefálico > 2 desvios-padrão acima da média para uma determinada idade e sexo.

Como notas semiológicas importantes a propósito da definição (que tem limitações), importa salientar que:

  • cerca de 2-3% da população considerada dentro da normalidade preenche os referidos critérios diagnósticos de macrocefalia;
  • o perímetro cefálico pode ter uma velocidade de crescimento muito rápida traduzida pelo cruzamento de percentis (nomeadamente nos casos de lactentes em fase de recuperação de crescimento ou catch up growth), sobretudo se houver antecedentes de prematuridade ou de restrição de crescimento fetal;
  • nem sempre um perímetro cefálico de valor elevado é sinónimo de crânio volumoso: por exemplo, em determinados casos de dolicocefalia o crânio terá um perímetro maior do que outro mais esférico, conquanto o volume de ambos seja o mesmo.

O Quadro 1 resume as principais causas de macrocefalia.

QUADRO 1 – Causas principais de macrocefalia

isiológicas
Lactente ex-pré-termo ou restrição de crescimento fetal, familiar constitucional, estatura elevada
Alterações predominantemente ósseas
Raquitismo, hipofosfatasémia, acondroplasia, disostose crânio-facial de Crouzon, mucopolissacaridoses – gargoilismo ou doença de Hurler, etc.
Alterações da substância nervosa
Megaencefalia, tumores cerebrais, neurofibromatose, gigantismo cerebral ou síndroma de Sotos
Alterações das meninges
Derrame subdural, hematoma subdural
Alterações da circulação do líquido cefalorraquidiano
Hidrocefalia congénita ou adquirida, ventriculite

As situações de macrocefalia devem ser encaminhadas para centros especializados. (ver capítulo sobre alterações da migração neuronal)

2. MICROCEFALIA

Definição e classificação

A microcefalia ou diminuição do volume do crânio é definida pela verificação de perímetro cefálico abaixo do percentil 3 (ou inferior a 2 desvios – padrão/DP abaixo da média) em associação a velocidade lenta, anormal, do crescimento da cabeça.

Situações com DP entre < 2 e < 3 poderão comportar-se sob o ponto de vista neurológico como normais. Por outro lado, a incapacidade intelectual é praticamente uma constante nos casos de perímetro cefálico < 3 DP. Exceptuando nos casos de craniossinostose, a microcefalia implica sempre microencefalia, isto é, encéfalo anormalmente pequeno.

A microcefalia é classificada como primária quando resulta de aberração do desenvolvimento ou de agressão em fase precoce da neurogénese; a consequência é a diminuição do número ou das dimensões das células. São considerados diversos tipos de hereditariedade (AD, AR, ligada ao X), sendo mais favorável o prognóstico nas formas dominantes. Como regra, a microcefalia já é óbvia na data de nascimento.

A microcefalia é considerada secundária quando resulta de agressões ou noxas variadas actuando sobre um encéfalo previamente normal, ou no final do 3º trimestre da gravidez, ou durante o período perinatal (pós-natal precoce).

As situações de microcefalia devem ser encaminhadas para centros especializados.

O estudo imagiológico por TAC ou RM tem um papel fundamental na investigação etiopatogénica. Para além da possibilidade de visualização das estruturas ósseas, permite revelar eventuais calcificações, sugestivas de eventaul infecção pré-natal. (ver capítulo sobre RM e defeitos congénitos do SNC)

O Quadro 2 resume as principais causas de microcefalia.

QUADRO 2 – Causas principais de microcefalia

Genéticas
Familiar não associada a atraso do neurodesenvolvimento (microcefalia vera), forma autossómica recessiva associada a dificuldades de aprendizagem, associada a diversas síndromas (por ex. Menkes, Cornelia de Lange, Rubinstein – Taybi, Smith-Lemli-,Opitz, Seckel, etc.
Cromossómicas
Associada a trissomias: 21-síndroma de Down, 18-síndroma de Edwards, 13-síndroma de Patau
Causas intrauterinas
Infecções do grupo TORCHS, irradiação fetal, diabetes materna, fenilcetonúria ou aminoacidúria materna, etc.
Causas perinatais
Sequelas de hipóxia-isquémia, de infecção do sistema nervoso central, de lesões traumáticas, de toxicidade bilirrubínica/kernicterus, etc.)

3. CRANIOSSINOSTOSE

Aspectos epidemiológicos

A craniossinostose, quer na sua forma isolada, quer associada a outras anomalias congénitas integrando ou não síndromas, ocorre aproximadamente em 1 para 2.000 nados-vivos.

A situação mais frequente corresponde ao encerramento prematuro da sutura sagital, com um predomínio no sexo masculino de 3/1. A craniossinostose coronal surge com uma frequência aproximada de 20%, predominando no sexo feminino. As craniossinostoses metópica e lambdóide são mais raras.

A frequência com que se verifica associação de encerramento de duas ou mais suturas é cerca de 15%.

Estão descritas formas esporádicas e familiares, respectivamente com incidências de 1/1.700 a 2.500, e 1/25.000 nados-vivos.

Aspectos genéticos

Certas formas clínicas de craniossinostose são geneticamente determinadas; a este respeito, importa salientar 4 genes principais associados a formas sindrómicas de craniossinostose. Descrevem-se mais de 100 síndromas com craniossinostose associada.

A caracterização molecular dos genes associados a formas sindrómicas de craniossinostose é importante, pois permite fazer um diagnóstico mais preciso, especialmente durante o período neonatal, de forma a definir o tratamento e o seu possível resultado (como a eficácia duma intervenção cirúrgica craniana); igualmente, por permitir calcular o risco de recorrência na família.

O painel de testes inclui 10 mutações pontuais nos 4 genes principais associados a formas sindrómicas de craniossinostose: FGFR1 (Pfeiffer), FGFR2 (Apert, Crouzon e Jackson-Weiss), FGFR3 (Muenke e Seathre-Chotzen) e RAB23 (Carpenter). Com este painel de mutações é possível identificar a base molecular das formas mais frequentes e graves das síndromas genéticas de craniossinostose. De salientar que as mutações FGFR (gene do factor de crescimento dos fibroblastos) representam a maioria das formas sindrómicas.

Classificação

As craniossinostoses, quanto ao tipo, podem classificar-se em:

  • simples, quando somente está afectada uma sutura;
  • complexas, quando várias suturas estão afectadas;
  • sindrómicas, quando existe associação a outros defeitos, constituindo síndromas genéticas perfeitamente definidas. (ver adiante)

Manifestações clínicas

Para além do sinal de alerta que é a dismorfia craniana, aponta-se a possibilidade de perda de visão. Pode observar-se também proptose na sinostose da sutura coronal e nas craniossinostoses complexas e sindrómicas.

FIGURA 2. Esquema de conformações anormais do crânio. A: Turricefalia; B: Braquicefalia; C: Escafocefalia; D: Plagiocefalia (Adaptado de SBP)

I – Craniossinostoses não sindrómicas

Seguidamente procede-se à descrição sucinta de diversas formas de craniossinostose, exemplificando-se esquematicamente com algumas destas na Figura 2 (designadas por A, B, C e D).

Escafocefalia ou craniossinostose longitudinal
ou sagital – C

Como se referiu antes, é a mais comum das craniossinostoses, predominando no sexo masculino. Resultando da ossificação precoce da sutura sagital, surge a forma de crânio em nave “com a quilha virada para cima”: crânio alongado no sentido ântero-posterior com proeminência dos ossos frontal e occipital; por conseguinte, verifica-se simultaneamente dolicocefalia. A fontanela anterior ou bregmática pode estar presente e desviada.

Dum modo geral não existe modificação importante do perímetro cefálico nem repercussão neurológica.

Plagiocefalia

Este termo significa genericamente obliquidade ou assimetria da forma da cabeça nos planos sagital ou coronal. Existem três formas de plagiocefalia: frontal, occipital e posicional.

Plagiocefalia frontal ou craniossinostose coronal unilateral/crânio oblíquo – D

Seguindo-se em frequência à escafocefalia, neste tipo verifica-se assimetria do crânio e face: depressão ou achatamento unilateral da fronte, elevação ipsilateral da órbita e sobrancelha e redução da cavidade orbitária com desvio do nariz para o lado não afectado. Tipicamente resulta da fusão prematura de uma sutura coronal e esfenofrontal. O índice cefálico pode estar normal, aumentado ou diminuído.

Plagiocefalia occipital lambdóide sinostótica

Resulta da fusão ou esclerose de uma sutura lambdóide, unilateralmente, com consequente achatamento occipital unilateral, procidência contralateral dos ossos frontal e occipital, o que determina forma trapezóide da cabeça. Esta discrania ocorre na proporção ~1/300.000 nados vivos. A forma bilateral é mais rara.

O diagnóstico diferencial da plagiocefalia sinostótica faz-se com a plagiocefalia posicional ou não sinostótica. (ver capítulo seguinte)

Trigonocefalia ou craniossinostose metópica ou frontal

A ossificação precoce da sutura frontal origina saliência ao longo do trajecto da mesma ou proeminência em forma de “quilha de barco”. Verifica-se hipotelorismo e a fontanela bregmática está sempre fechada. O crânio tem aspecto triangular com certa retracção das porções laterais das regiões frontais. As formas ligeiras são mais comuns.

Como a fusão ocorre em geral in utero, a criança evidencia esta anomalia ao nascer. De referir a probabilidade de associação a outras anomalias do encéfalo, tais como holoprosencefalia.

Turricefalia – A

A combinação mais frequente diz respeito à craniossinostose coronal e sagital. Tal pode conduzir a crescimento do crânio para cima em “torre” ou turricefalia; pode associar-se a braquicefalia (B).

Podendo estar associada a hipoplasia do maciço facial, esta modalidade conduz, em geral, a défice de crescimento do encéfalo e a insuficiência mental.

Braquicefalia (acro ou acrobraquicefalia) ou craniossinostose coronal bilateral – B

Nesta modalidade de craniossinostose verifica-se redução da distância ântero-posterior e aumento látero-lateral. A fronte apresenta-se achatada. A fontanela anterior, quando presente, está desviada para diante.

Pode associar-se turricefalia (A) e a sinais de hipertensão intracraniana.

Oxicefalia ou craniossinostose coronal e sagital

A manifestação mais típica da ossificação de todas as suturas é uma protuberância ou “gibosidade” na região da fontanela anterior originando a chamada oxicefalia.

Uma vez que se trata de deformação pouco notada, em geral o diagnóstico é tardio, quando surgem por vezes manifestações como convulsões ou sinais de hipertensão intracraniana. (Figura 3)

FIGURA 3. Aspecto de lactente com quadro de escafocefalia associada a oxicefalia. (NIHDE)

II – Craniossinostoses sindrómicas

No âmbito deste tipo de craniossinostoses, cabe salientar algumas das mais representativas entidades clínicas:

  • síndroma de Crouzon com acantosis nigricans ou disostose craniofacial em que se verificam: exoftalmia, hipertelorismo, nariz curvo em “bico de papagaio” e prognatismo consecutivo a hipoplasia do maxilar superior. Trata-se de doença hereditária com transmissão autossómica dominante de expressividade variável (4p 16.3, FGFR3).
  • síndroma de Apert ou acrocefalossindactilia de tipo I, em que as manifestações são similares às da síndroma de Crouzon, acrescentando-se sindactilia das mãos e pés. Esta afecção tem hereditariedade dominante, salientando-se que, na maioria das vezes, tem carácter esporádico relacionado com mutações de novo (10q26, FGFR2).
  • síndroma de Carpenter ou acrocefalossindactilia do tipo II, em que existe dismorfismo facial, acrocefalia, braquiclinossindactilia das mãos e polissindactilia dos pés. A transmissão hereditária é de tipo autossómico recessivo com expressividade variável (16p12.1-q12, RAB23).
  • síndroma de Pfeiffer ou acrocefalossindactilia do tipo V, caracterizada por turricefalia, anomalias faciais dismórficas, sindactilias discretas, polegares e dedos dos pés grandes. A transmissão hereditária é de tipo autossómico dominante com expressividade variável (8p11.2, FGFR1; 10q26, FGFR2).

Exames complementares

As craniossinostoses correspondem a situações diagnosticadas na sua maioria durante os períodos pré-natal (por ecografia) ou neonatal (por radiografia simples do crânio).

Havendo antecedentes familiares, e na perspectiva do diagnóstico sindrómico, poderá estar indicado o estudo do ADN, o qual pode ser obtido a partir das vilosidades coriónicas, líquido amniótico, sangue ou fibroblastos de biópsia fetal.

A radiografia simples do crânio é um exame considerado de eleição por confirmar a anomalia morfológica e permitir objectivar as suturas encerradas. (Figura 4)

A tomografia axial computadorizada (TAC) confirma o diagnóstico com mais rigor, permitindo estudo tridimensional. A ressonância magnética (RM) do encéfalo permite o diagnóstico de anomalias encefálicas associadas por vezes.

O diagnóstico diferencial deve fazer-se com as microcefalias ligadas a compromisso encefálico primitivo em que o atraso do neurodesenvolvimento não é acompanhado de encerramento precoce das suturas nem de hipertensão intracraniana.

Tratamento e prognóstico

O tratamento das craniossinostoses tem os seguintes obectivos: 1- assegurar o crescimento normal do cérebro; 2- prevenir a hipertensão intracraniana; 3- prevenir as sequelas neurológicas, oculares e auditivas; 4- contribuir para a melhoria estética do crânio e face.

Nos casos de escafocefalia a actuação é apenas estética. Como regra geral, pode estabelecer-se que, quando está indicado tratamento, este é sempre cirúrgico, da competência dos especialistas de neurocirurgia pediátrica; se a intervenção for realizada nos primeiros seis meses de vida serão obtidos melhores resultados.

O prognóstico depende de vários factores: tipo de craniossinostose, idade do diagnóstico, existência ou não de anomalias congénitas associadas, de hipertensão intracraniana, estrabismo, atrofia óptica, e de neurodesenvolvimento afectado. 

FIGURA 4. Aspecto radiográfico do crânio em lactente com turricefalia, não sendo visíveis as suturas por sinostose. (NIHDE)

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HABILITAÇÃO PARA A MARCHA E AJUDAS TÉCNICAS EM CRIANÇAS COM SPINA BIFIDA

Importância do problema

Conforme é tratado no capítulo anterior, a spina bifida (SB) é a forma mais comum de disrafismo espinal.

Tendo em perspectiva a habilitação para a marcha nos casos com esta anomalia, o Quadro 1 discrimina os diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas.

QUADRO 1 – Diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas

Nível da lesãoDéfices muscularesAlterações ortopédicas
L2 e acimaParalisia completa dos membros inferioresAncas – Flexum e luxação
L3Paralisia praticamente completa dos membros inferiores,
excepto parte dos flexores e adutores das ancas
Ancas – Flexum e luxação
Pés – Deformidades várias
L4Ancas – Défice dos abdutores, extensores e recto interno
Joelhos – Défice do quadricípete
Pés – Défice do tricípete e do tibial posterior
Ancas – Flexum e rotação externa Risco de luxação
Joelhos – Recurvatum
Pés – Talus-varus
L5Ancas – Défice dos extensores Joelhos – Défice dos ísquio-tibiais
Pés – Défice do tricípete sural
Ancas – Flexum
Joelhos – Défice de flexão
Pés – Talus
S1Ancas – Défice dos extensores
Pés – Défice do tricípete sural e dos peroneais
Ancas – Flexum redutível
Pés – Talus e talus-valgus
S2Défice dos músculos intrínsecos dos pésPés cavus e dedos em garra

Intervenção

A actuação envolve uma série de intervenções pluridisciplinares escalonadas ao longo do tempo, adaptadas à evolução da criança, e tentando responder às solicitações da família em que ela se insere.

Em qualquer intervenção (re)-habilitadora há que: respeitar e facilitar as diversas etapas do neurodesenvolvimento da criança, nomeadamente a aquisição do controlo cefálico e do tronco, da quadrupedia (quando possível), da verticalização, e da funcionalidade dos membros superiores; e, igualmente estimular o desenvolvimento das funções perceptivas e cognitivas e da aquisição da linguagem e da fala.

Em geral, as crianças com SB são simpáticas e sociáveis, e não levantam problemas de comunicação nem de socialização.

Só uma equipa multi e transdisciplinar que envolva médicos, médicos fisiatras, enfermeiros, terapeutas (fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e terapeutas da fala), psicólogos, técnicos do serviço social, educadores e professores, pode dar resposta aos inúmeros desafios que um doente com spina bifida coloca.

A (re)-habilitação destas crianças visa essencialmente três objectivos: 1 – a preservação da função renal (e a obtenção de continência esfincteriana socialmente aceitável). 2 – a aquisição da marcha ou, na impossibilidade desta, a deambulação autónoma. 3 – a promoção dum desenvolvimento psicomotor adequado.

Neste capítulo é abordada concisamente a intervenção na área da (re)abilitação motora, que visa essencialmente: a) – evitar as deformidades e alterações posturais; b) – a aquisição da deambulação autónoma.

O tratamento preventivo dos desalinhamentos segmentares dos membros inferiores em crianças com esta patologia, uma preocupação presente desde o nascimento, mantém-se ao longo do crescimento.

Desde os primeiros dias de vida avaliam-se as alterações músculo-esqueléticas, motoras, sensitivas e esfincterianas, estabelecendo o nível da lesão medular. Nas situações em que se detectam, ou prevêem, alterações posturais ou contracturas musculares (que podem originar flexum, subluxações, talismo ou equinismo), utilizam-se técnicas de fisioterapia (mobilização, estimulação e posicionamentos) e confeccionam-se pequenas ortóteses; de preferência ligaduras funcionais executadas com adesivo hipoalérgico, ou talas de material termomoldável, necessariamente leves e almofadadas para posicionamento dos joelhos, tíbio-társicas e pés. Um exemplo frequente de contracturas precoces é o dos flexores da anca e do joelho, (flexum) cuja instalação pode ser prevenida colocando o bebé em decúbito ventral várias vezes por dia.

À medida que a criança cresce e se desenvolve vai sendo necessário reavaliá-la periodicamente, estabelecendo de modo definitivo o nível de lesão medular, o que nem sempre se consegue nas primeiras observações. Presta-se especial atenção à detecção precoce de deformidades, não só nos membros inferiores, como na coluna vertebral. A luxação ou subluxação das ancas, os flexa dos joelhos, as alterações posturais dos pés e as escolioses são frequentes e exigem intervenções terapêuticas atempadas.

As luxações e subluxações das ancas têm indicação cirúrgica se forem dolorosas, caso a criança tenha potencialidades para a marcha (lesões abaixo de L3); ou se forem unilaterais (provocando assimetria da bacia e dificuldade em assumir a posição de se sentar).

As alterações dos joelhos e a sua repercussão funcional são habitualmente de menor importância. A prevenção dos seus flexa faz-se pelo posicionamento com talas de extensão.

As deformidades dos pés (talus, equinus, aductus, valgus, equino varus), quando rígidas, requerem correcção cirúrgica em tempos que devem ser discutidos entre especialistas que tratam o doente, como o ortopedista, o neurocirurgião e o fisiatra.

As escolioses, por serem progressivas, com graves consequências posturais e respiratórias, têm indicação cirúrgica desde que a curvatura torácica tenha angulação superior a 40 graus. Antes, logo que sejam detectados desvios estruturados da coluna vertebral, deve actuar-se através do uso de ortóteses do tronco (coletes). Estes não irão alterar a progressão da curvatura, mas permitem uma postura mais correcta do tronco, facilitando a posição de sentar e a funcionalidade dos membros superiores.

Para conseguir o ortostatismo e a marcha, a criança com SB necessita, regra geral, de algum tipo de ajuda técnica (abordada adiante). Caso não consiga uma marcha autónoma, poderá beneficiar de algum meio de deambulação adaptado, como a cadeira de rodas, de propulsão manual ou eléctrica.

Atendendo ao carácter de multideficiência de que a maioria das crianças com SB padece, são necessárias intervenções terapêuticas que englobem, quer técnicas de estimulação do neurodesenvolvimento, quer fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e outras.

Todas estas terapêuticas, sejam as preventivas e correctivas das alterações músculo-esqueléticas, com os esforços na obtenção da marcha, sejam as estimuladoras do desenvolvimento, utilizam algum tipo de ajudas técnicas, para compensar a deficiência ou incapacidade presentes.

As ajudas técnicas também denominadas apoios tecnológicos (AT), incluem um conjunto de equipamentos, produtos e serviços que têm como objectivo promover a independência das pessoas com deficiência e incapacidade, tendo como finalidade a igualdade de oportunidades e a inclusão social. As mesmas abrangem um vasto leque de aparelhos e mecanismos que vão, de simples talas, até equipamentos sofisticados de controlo remoto, passando por cadeiras de rodas manuais ou motorizadas, próteses para amputados, aparelhos auditivos, óculos e lentes de contacto, ventiladores mecânicos, e equipamentos de apoio às actividades de vida diária.

Em resumo, no conceito de AT é englobado qualquer aparelho ou mecanismo que auxilia o doente com deficiência, promovendo a normalização funcional e melhorando a sua qualidade de vida. Um dos subgrupos das AT é o das ortóteses atrás definidas.

As AT são necessárias à maioria das crianças com SB, não só pela necessidade de alinhamento do tronco e membros, com vista à verticalização e deambulação, mas também para estimular o desenvolvimento e facilitar a sua integração na família, na escola e na sociedade. O seu uso deve ser iniciado precocemente. É comum a indicação de ligaduras funcionais e de talas posteriores logo no período neonatal.

Também nos primeiros 3 meses, após a estabilização clínica, se introduzem as cunhas e os rolos para estimulação do controlo cefálico e do tronco. Posteriormente serão: o banco triangular – que facilita o equilíbrio do tronco e a função dos membros superiores; o plano inclinado com rodas – que promove a verticalização e permite à criança ter uma perspectiva diferente do ambiente que a rodeia e a deambulação assistida; o standing frame – para o ortostatismo, que possibilita actividades numa mesa de trabalho ou de refeições; e o andarilho, na preparação da marcha. Esta, em grande número de casos, só é possível com o uso de ortóteses para os membros inferiores e de auxiliares de marcha, que podem ser canadianas, pirâmides ou andarilhos.

Para conseguir o ortostatismo e eventual marcha, procede-se aos ajustes posturais e correcções de deformidades através do uso de ortóteses do tronco (coletes e assentos moldados) e dos membros inferiores (talas de posicionamento). Todas as ortóteses devem ter protecção das zonas de pressão, devido ao défice sensitivo.

De salientar que é possível estabelecer uma relação entre o nível da lesão, as ortóteses necessárias e o prognóstico de marcha.

Na realidade, devido a múltiplos factores (excesso de peso, deformações adquiridas, medula ancorada, défice cognitivo, alterações emocionais, problemas familiares e outros) nem todas as crianças atingem a capacidade de deambulação prevista para um determinado nível de lesão.

Há AT ligadas às novas tecnologias que podem aplicar-se à (re)-habilitação de crianças com deficiências específicas. O uso de computador na escola justifica-se quando o ritmo de execução da criança é lento, não conseguindo acompanhar os outros alunos. Embora a motricidade fina possa estar afectada, a maioria das crianças com SB consegue ter um grafismo e escrita aceitáveis, sendo o computador apenas um auxiliar e não um substituto destas funções.

Nos casos raros em que existem alterações da linguagem e da fala, recorre-se aos meios aumentativos e alternativos de comunicação que, através de tecnologia informática, com software e acessos adaptados, favorecem o desenvolvimento dos conceitos linguísticos e promovem a comunicação e a socialização das crianças com estas deficiências.

GLOSSÁRIO

Flexum > termo considerado por alguns especialistas como “gíria”, e não completamente correcto, para significar rigidez articular em flexão ou contractura articular em flexão.

Ortóteses > aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de um membro, ou a deficiência de uma função.

Prótese > aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, membro ou parte de um membro destruído ou gravemente afectado.

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DEFEITOS DO TUBO NEURAL

Introdução às anomalias congénitas do SNC

Os defeitos congénitos do SNC no RN, com uma frequência oscilando entre 0,5 e 5%, e representando cerca de 10% a 20% do total dos referidos defeitos, são responsáveis por 70% das mortes fetais e 40% das mortes durante o primeiro ano de vida.

Tais afecções integram um conjunto de entidades clínicas que podem ser sintetizadas do seguinte modo:

  • Defeitos do tubo neural ou disrafismo
  • Defeitos da migração, proliferação e diferenciação neuronais
  • Anomalias da segmentação e da divisão cerebrais
  • Hidranencefalia, porencefalia e quistos intracerebrais
  • Defeitos congénitos do cerebelo
  • Hidrocefalias
  • Craniossinostoses ou craniostenoses
  • Síndroma de Klippel-Feil

Neste capítulo é dada especial ênfase às situações que integram a alínea 1).

Noutros capítulos, são abordados temas referentes às restantes alíneas.

Sistematização e importância do problema

Os defeitos do tubo neural (DTN) (ou disrafismo) incluem anomalias congénitas da coluna e do cérebro; os mais frequentes são a spina bifida (SB) e a anencefalia (esta incompatível com a vida).

A spina bifida (SB) consiste no não encerramento do arco posterior de algumas vértebras, com possibilidade de herniação do tecido neural. (Figura 1).

FIGURA 1. Imagens axiais de RM da coluna que mostram o não encerramento posterior das vértebras e a existência de hidro-siringomielia (seta). (ver adiante)

O espectro clínico dos DTN inclui ainda o encefalocele, a craniorraquisquise (anencefalia associada a raquisquise ou fissura congénita da coluna vertebral com exposição do tecido neural) e a iniencefalia (disrafismo na região occipital, acompanhado por retroflexão acentuada do pescoço e tronco).

Tais defeitos devem-se a um desenvolvimento anómalo do neuroporo durante a embriogénese, com disrupção do osso e das estruturas mesenquimatosas. A lesão primária neurológica vai afectar outros sistemas além do sistema nervoso, o que torna os DTN as anomalias de desenvolvimento mais complexas.

Tratando-se de multideficiências (coexistência de duas ou mais perturbações nas áreas motora, sensorial e cognitiva) de baixa incidência e prevalência que entram no âmbito das doenças raras, as mesmas obrigam ao recurso a cuidados de saúde de nível terciário dada a multiplicidade, especificidade e complexidade dos problemas habitualmente associados.

A SB constitui o paradigma de problema complexo implicando enorme consumo em recursos de saúde, com múltiplas consultas, tratamentos, internamentos e intervenções cirúrgicas não só neurológicas mas também ortopédicas e nefro-urológicas. A possibilidade de prevenção de muitas complicações, com melhoria significativa da qualidade de vida e redução substancial dos custos, passa necessariamente pelo ensino e crescente corresponsabilização do doente e família na prestação de cuidados.

Os doentes com SB têm compromisso motor e sensitivo, malformações ortopédicas, ausência de controlo de esfíncteres, e complicações renais secundárias à bexiga neurogénica.

Existem também complicações da hidrocefalia consequente, traduzidas frequentemente por dificuldades de aprendizagem, atraso mental, perturbações do equilíbrio, da marcha e problemas oftalmológicos. (ver adiante)

Devido à multiplicidade e complexidade dos problemas destes doentes, foi sentida a necessidade de se constituirem equipas multidisciplinares que pudessem prestar cuidados de saúde abrangentes e coordenados. No Hospital Dona Estefânia funciona desde 1985 um Núcleo de Spina Bífida onde são seguidas regularmente cerca de 220 crianças e adolescentes.

FIGURA 2. RN com uma forma fechada de SB (lipomielomeningocele). Nota-se tumefacção lombar, angioma cutâneo e fosseta mediana horizontal

Na prática utiliza-se o termo de spina bifida (SB) ou espinha bífida como sinónimo de DTN, atendendo a que as crianças com os outros tipos de DTN raramente sobrevivem. Esta anomalia localiza-se mais frequentemente na região lombo-sagrada, embora possa aparecer ao longo de toda a coluna. Compreende as formas fechadas e as formas abertas, consoante o tecido neural se encontra ou não coberto pela pele normal.

As formas fechadas podem incluir uma massa subcutânea (lipomielomeningocele, lipomeningocele, mielocistocele), que faz saliência na região lombo-sagrada (Figura 2).

As formas fechadas sem massa subcutânea compreendem o filum terminal ancorado, o lipoma intradural, o sinus dérmico ou mesmo disrafismos mais complexos como o quisto neuroentérico, a diastematomielia ou a agenésia caudal.

A chamada spina bifida oculta, que se encontra em 5% da população, diz respeito em sentido estrito apenas ao defeito ósseo do não encerramento de uma ou duas vértebras na transição lombo-sagrada (L5 e/ou S1), demonstrada nas radiografias desta zona, com completa integridade da medula e meninges; de referir que isoladamente não tem repercussão clínica.

As formas fechadas associam-se, por vezes, a alterações cutâneas (hipertricose, hemangiomas capilares, fossetas) na linha média da região lombo-sagrada (Figura 2 e 3).

FIGURA 3. SB oculta com um tufo de pêlos sinalizando o encerramento incompleto do arco posterior da vértebra. A medula e as meninges estão intactas

FIGURA 4. Meningocele com herniação das meninges através do defeito ósseo. Medula íntegra

FIGURA 5. Mielomeningocele. A medula e as meninges herniam através da abertura óssea

Das formas abertas faz parte o meningocele (Figura 4), em que já existe herniação das meninges através do defeito ósseo e que implica correcção neurocirúrgica; em geral, não se acompanha de qualquer sintomatologia motora. No mielomeningocele (Figura 5), a forma mais grave de SB (e aquela que habitualmente se subentende quando se faz referência a SB), existe procidência da medula espinal ou das raízes nervosas através do defeito ósseo, com lesões neurológicas mais ou menos importantes. Usa-se frequentemente o termo de SB quística para denominar o mielomeningocele e o meningocele. Em cerca de 80% dos casos a SB (na sua forma de mielomeningocele) acompanha-se de hidrocefalia (Figura 6) por malformação cerebral associada (malformação de Arnold Chiari II e/ou estenose do aqueduto de Sylvius).

Recordam-se, a propósito, as seguintes definições complementares:

  • Hidrocefalia (ou hidrencefalia): dilatação das cavidades ventriculares e dos espaços subaracnoideus da cavidade craniana por pressão excessiva do LCR, (produzido pelos plexos coroideus nos ventrículos laterais) podendo determinar aumento do perímetro cefálico.
  • Malformação de Arnold-Chiari: defeito congénito que consiste na descida do cerebelo e tronco cerebral para o canal vertebral e penetração das amígdalas cerebelosas no canal cervical com consequente hidrocefalia.
  • Siringomielia: afecção crónica caracterizada pelo desenvolvimento progressivo, na medula cervical e cérvico-dorsal, de uma cavidade na substância cinzenta, atrás do canal ependimário, por obstrução da normal circulação de LCR ao nível do foramen magnum. Como consequência, surge atrofia muscular, sobretudo nos membros superiores com hipotonia, atrofia dos tegumentos e abolição da sensibilidade dolorosa e térmica. (Figura 7)

FIGURA 6. TAC evidenciando hidrocefalia com DVP em criança com mielomeningocele ao nível D12, siringomielia extensa, atrofia significativa do manto cortical, e atraso cognitivo grave

FIGURA 7. Siringomielia “septada” a nível cérvico-dorsal (com aspecto quístico), numa criança de três anos com mielomeningocele nível S1 e Arnold-Chiari II concomitantes

Aspectos epidemiológicos

A prevalência da SB tem vindo a descrescer nos países desenvolvidos, sendo actualmente cerca de 0,1/1000 nados-vivos. Isto deve-se, em parte, às possibilidades de diagnóstico pré-natal possibilitando a interrupção da gravidez nos casos mais graves; as ecografias pré-natais de alta resolução (ecografias morfológicas) permitem a visualização do defeito neural entre a 16ª e a 20ª semana de gestação em cerca de 99% dos casos. Reportando-nos ao estado nutricional, cabe referir que a ingestão de ácido fólico (4mg/dia) durante 3 meses antes da concepção e no 1ºtrimestre de gravidez em mulheres com antecedentes gravidez com DTN, diminui em cerca de 70% a recorrência de DTN (ver adiante).

Até à década de sessenta era escasso o número de doentes com SB que sobrevivia, pois não havia possibilidade de proceder a derivação da hidrocefalia. Logo que tiveram início as intervenções de derivação ventriculoperitoneal (DVP) a sobrevida foi aumentando e, actualmente, nos países ocidentais, cerca de 90% dos doentes atinge a idade adulta.

Etiopatogénese

A falência do encerramento do tubo neural ocorre nos estádios embrionários precoces da gastrulação e da neurulação (primeiras 6 semanas de gestação).

O defeito básico consiste no não encerramento primário do tubo neural, embora a reabertura secundária também seja considerada nalguns casos.

Os factores etiológicos podem ser exógenos (víricos, tóxicos, radioactivos, nutricionais, químicos, etc.) e endógenos (anomalias cromossómicas, ou génicas).

O momento da actuação da noxa sobre o feto é mais importante do que a própria natureza da noxa.

Nesta perspectiva cabe salientar o importante o papel desempenhado pela privação vitamínica na mãe, na data da fecundação, sobretudo de ácido fólico. Este aspecto explica o aumento de incidência da SB nas classes mais desfavorecidas e em situações de guerra ou de catástrofe, caracterizadas por carências nutricionais.

Relativamente aos factores genéticos, eles relacionam-se essencialmente com os genes, ainda não completamente identificados, que regulam o metabolismo do complexo folato-homocisteína, principal responsável pelo controlo dos mecanismos celulares de encerramento do tubo neural. O risco de uma mulher com um filho portador de SB vir a ter outro filho afectado é 20 vezes superior ao da população geral. No Núcleo de SB do HDE, houve 4 recorrências de fetos com SB em 165 mães de crianças afectadas, seguidas ao longo de 20 anos. O valproato de sódio e a carbamazepina, medicamentos antiepilépticos, aumentam a incidência de DTN quando tomados durante a gravidez, por muito provável interferência no metabolismo do ácido fólico. Na impossibilidade de mudar a terapêutica, estas mulheres devem obrigatoriamente receber suplementos de ácido fólico e, ao engravidarem, ser seguidas em consulta de alto risco, com ecografias obstétricas morfológicas de elevada resolução. Nas 136 crianças actualmente seguidas no Núcleo de SB do HDE, duas mães tinham tomado carbamazepina e uma valproato de sódio, durante a gravidez.

A solução de continuidade ao nível do tubo neural permite a excreção de substâncias produzidas no feto (alfa-feto-proteína [AFP], acetilcolinesterase) para o líquido amniótico, servindo de marcadores bioquímicos do defeito em causa. Por outro lado, o rastreio no soro materno de AFP entre as 16-18 semanas de gestação permite identificar fetos de risco.

A hidrocefalia, que surge na grande maioria dos casos de DTN, explica-se fundamentalmente por 3 mecanismos gerais:

  • insuficiência de reabsorção do LCR pelas vilosidades aracnoideias de Pacchioni, sendo o mesmo segregado pelos plexos coroideus nos ventrículos laterais (por ex. trombose dos seios venosos);
  • hipersecreção de LCR (raramente), por exemplo, por papiloma dos plexos coroideus;
  • obstrução mecânica (98% dos casos) impedindo a circulação do LCR; para além de processos inflamatórios, cabe referir fundamentalmente tumores e anomalias congénitas já citadas antes, associadas a DTN, acrescentando a anomalia de Dandy-Walker (dilatação quística do IVº ventrículo por ausência congénita dos respectivos orifícios de evacuação – buracos de Magendie e Lushka) e atrésia do aqueduto de Sylvius.

A circulação do LCR depende dum gradiente de pressões; em situação normal a pressão intraventricular é ~ 180 mm H2O e a do seio longitudinal superior ~ 90 mm H2O.

A hidrocefalia que resulta de obstrução ao nível do sistema ventricular é chamada obstrutiva ou não comunicante; a que resulta de obliteração ao nível das cisternas subaracnoideias, ou de disfunção das vilosidades aracnoideias é chamada não obstrutiva ou comunicante.

Manifestações clínicas

Em termos de sistematização, os doentes com SB dividem-se em 3 grupos, de acordo com o nível da lesão: nível superior (L2 ou acima), nível médio (L3 a L5), e nível inferior (S1 ou abaixo). Quanto mais elevado for o nível da lesão (Figura 8) maior a probabilidade de ocorrência de hidrocefalia e maior o grau de incapacidade motora e de complicações secundárias.

FIGURA 8. A: Mielomeningocele de nível superior (D10), com exposição do tecido neural. B: Criança vinda de África com um mês de vida. Mielomeningocele íntegro e hidrocefalia sintomática (vómitos e letargia)

Cerca de 40% dos doentes com SB desloca-se em cadeira de rodas. A lesão medular e/ou das raízes nervosas é responsável pela paraplegia mais ou menos grave, pelo compromisso da sensibilidade com risco de úlceras de pressão e queimaduras, pelas malformações e deformações ortopédicas, pela ausência de controlo dos esfíncteres vesical e anal, e pelas complicações nefro-urológicas.

A hidrocefalia que, como foi referido, ocorre na grande maioria dos casos de mielomeningocele, é a causa dos problemas cognitivos, visuais e de equilíbrio que alguns doentes com SB apresentam.

Nos doentes com SB sem hidrocefalia, a função cognitiva é habitualmente sobreponível à da população geral.

A epilepsia, presente num número restrito destes doentes (3% – na casuística do Núcleo do HDE), é habitualmente secundária a complicações da hidrocefalia.

Apneia, alteração de deglutição e estridor podem surgir nalguns doentes com SB, sobretudo lactentes, devido à malformação de Arnold-Chiari e a conflito de espaço a nível do foramen magnum, com disfunção dos pares cranianos inferiores.

Mais de metade dos doentes com malformação de Arnold-Chiari II apresenta siringo-hidromielia, logo nos primeiros anos de vida. Localizando-se habitualmente nas regiões cervical ou dorsal, traduz-se por compromisso das sensibilidades dolorosa e térmica nos dermátomos correspondentes, e diminuição de força e atrofia dos músculos da mão ou mesmo de todo o membro superior (Figura 7).

Praticamente todos os portadores de SB têm incontinência de esfíncteres urinário e anal, por compromisso do sistema nervoso autónomo. São frequentes as infecções urinárias, e cerca de um terço evoluirá para insuficiência renal se não houver um correcto acompanhamento tendo em conta as particularidades da bexiga neurogénica.

Com o crescimento existem sérias possibilidades de deterioração da marcha nas formas inicialmente ambulatórias, devido à baixa terminação da medula (L5-S1 em vez de L1 como nos indivíduos normais), e à sua fixação às estruturas envolventes (medula ancorada), com o consequente estiramento. Esta situação também é responsável pela deterioração nefro-urológica secundária ao agravamento da bexiga neurogénica, com pressão intravesical elevada, o que facilita o aparecimento de refluxo vesico-ureteral e de cicatrizes renais secundárias a infecção. Este problema neurocirúrgico deve ser atempadamente resolvido, logo que surjam os primeiros sinais neurológicos “de novo” (pés cavus, hiperreflexia, espasticidade distal com encurtamento do tendão de Aquiles, diminuição de força, atrofia dum dos membros inferiores ou síndromas álgicas) e/ou agravamento dos exames urodinâmicos, com repercussão clínica.

As deformações ortopédicas também são frequentes e determinadas pelo nível da lesão e complicações da medula ancorada. O pé equinovaro, a luxação da anca e a cifoscoliose são as alterações que motivam maior número de intervenções ortopédicas nesta população. As fracturas espontâneas nos membros inferiores ocorrem com frequência nas SB com nível mais elevado e maior compromisso motor; atendendo à ausência de sensibilidade nestes doentes, o diagnóstico pode ser tardio (Figura 9).

De salientar que cerca de 50% da população com SB tem hipersensibilidade ao látex.

FIGURA 9. Fractura espontânea do colo do fémur esquerdo em criança com mielomeningocele nível L1

Diagnóstico

O diagnóstico do disrafismo espinhal pode ser feito a partir da 14ª semana de gestação através da ecografia pré-natal morfológica. A hidrocefalia na SB tem início, na maioria dos casos, no período pré-natal, a partir das 20 semanas de gestação. A RM fetal veio tornar possível uma melhor identificação dos DTN; o recurso a este exame é indispensável para fundamentar a decisão relativamente ao prosseguimento ou interrupção duma gravidez cursando com DTN.

Após o nascimento é ainda a RM o exame de escolha para uma adequada avaliação destas situações; sempre que possível deve ser realizada à totalidade do SNC antes do encerramento do DTN, para estudo evolutivo mais apurado.

A inexistência de pregas radiárias perianais ou a sua escassez apontam para o quadro de intestino neurogénico com maior probalidade de incontinência anal.

Nas formas fechadas deve ser sempre realizado o estudo imagiológico por RM da coluna, sobretudo se houver a associação de 2 ou mais sinais cutâneos.

A medula ancorada é uma complicação frequente das formas abertas e fechadas de disrafismo; pode tornar-se sintomática em qualquer idade, mas mais frequentemente na criança ou jovem adulto: desenvolvimento de sinais piramidais nos membros inferiores, deterioração da marcha, aumento da frequência de infecções urinárias, maiores dificuldades na continência, e desenvolvimento de escoliose.

Tratamento

O tratamento da SB já é possível iniciar-se durante a gravidez, com a cirurgia fetal. O encerramento do mielomeningocele (MM) in utero diminui a probabilidade de desenvolvimento de hidrocefalia, mas parece não melhorar muito a funcionalidade dos membros inferiores.

Trata-se duma área da cirurgia fetal, ainda em investigação, e restrita a alguns centros neurocirúrgicos; é, por isso, necessário avaliar mais estudos prospectivos comparando os resultados do encerramento no período pré-natal com os do encerramento no período pós-natal.

Após a criança nascer, o encerramento do mielo ou do meningocele deve realizar-se nas primeiras 24 a 72 horas de vida num bloco operatório isento de látex, medida que deverá ser sempre seguida em ulteriores intervenções cirúrgicas. Se houver rotura da membrana envolvente, a cirurgia deverá realizar-se logo nas primeiras horas de vida de modo a evitar a infecção e, assim, diminuir o risco de agravamento da lesão motora e o compromisso cognitivo. Quanto aos lipomeningoceles, a intervenção pode ser adiada vários meses ou mesmo anos, desde que não sejam muito volumosos e não apareçam sinais associados à medula ancorada.

A hidrocefalia pode estar presente desde o nascimento (em cerca de 15% dos mielomeningoceles) e a DVP pode realizar-se em simultâneo com o encerramento do MM. Na maioria dos casos a hidrocefalia torna-se aparente 2 a 3 semanas depois do encerramento do DTN. Daí a necessidade da derivação, colocando um tubo flexível no sistema ventricular cerebral (geralmente no ventrículo lateral direito) para drenar o excesso de LCR para o peritoneu. Nos raros casos em que não existe possibilidade de absorção pelo peritoneu, esta derivação deverá ser feita para uma das aurículas.

O “desancoramento” da medula melhora a disfunção da bexiga e evita a progressão de sinais piramidais nos membros inferiores. Uma vez estes instalados, já é problemática a sua regressão, embora se possa evitar a sua progressão.

A maioria das crianças com SB necessita de apoios para a sua mobilidade – talas, canadianas e/ou cadeiras de rodas. A obesidade é um dos problemas frequentes nesta população, a qual não só compromete ainda mais a sua deambulação, como aumenta o risco de doenças cardiovasculares.

A ausência de sensibilidade favorece o aparecimento de escaras, feridas ou queimaduras nas zonas afectadas devido à inexistência de dor. A sua cicatrização é lenta e obriga muitas vezes à imobilização prolongada e a longos internamentos hospitalares.

Outros factores condicionantes do prognóstico da SB, e causas frequentes de mortalidade, são as complicações (obstrução, infecção) das DVP para resolução da hidrocefalia. Mesmo as hidrocefalias sem válvula necessitam de vigilância periódica, pois existe sempre a possibilidade da sua descompensação, com repercussões a nível cognitivo visual e motor. No Quadro 1 figuram os sinais mais frequentes de disfunção duma DVP.

QUADRO 1 – Sinais de disfunção de DVP

Agudos
    • Cefaleia, vómitos, estrabismo, letargia
Insidiosos
    • Dificuldade de concentração
    • Aparecimento/agravamento de dificuldades escolares
    • Alterações do humor
    • Cefaleia intermitente
    • Sonolência

Grande parte das crianças e jovens com SB tem alterações vesicais e intestinais (bexiga e intestino neurogénicos), implicando necessidade de aprendizagem do seu controlo e de tratamento de modo a obter, sempre que possível, uma continência social.

Para evitar lesões renais, os pais e mais tarde as próprias crianças (de preferência antes de entrarem na escola primária), devem aprender a fazer algaliações para esvaziar a bexiga de 4 em 4 horas, com pausa nocturna de 8 horas. A cateterização intermitente deve ser instituída logo nos primeiros meses de vida sempre que os resíduos urinários sejam superiores a 10% da capacidade vesical calculada para a idade da criança.

Prognóstico

São necessários exames complementares de diagnóstico seriados (urinoculturas, ecografias e cintigrafias renais, cistografias, estudos urodinâmicos, RM, TAC) e múltiplos tratamentos médicos e/ou cirúrgicos para prevenir e tratar as complicações ao longo da vida do doente com SB. A inexistência de equipas multidisciplinares que assegurem uma adequada vigilância do doente com SB reflecte-se habitualmente em deterioração da qualidade de vida.

Há menos de três décadas, poucos bebés com SB sobreviviam ao seu primeiro ano de vida. Hoje, graças a um melhor tratamento que passa, não só por uma sofisticação das técnicas actualmente disponíveis, mas também por um forte investimento na prevenção das complicações secundárias, em 90% dos casos é atingida a idade adulta.

Prevenção

O tubo neural desenvolve-se nas primeiras 4 semanas da gravidez, quando a maioria das mulheres ainda desconhece que está grávida. Reitera-se o que foi dito a propósito da importância do suplemento oral de ácido fólico na dose de 4 mg/dia (nos casos de antecedentes de SB em filho anterior), desde 1 mês antes da data planeada para a concepção e, pelo menos, ao longo do primeiro trimestre da gravidez, enquanto durar a neurulação; não se verificando antecedentes de risco, em idêntico período é recomendada a dose menor (0,4 mg).

As mulheres com epilepsia e que queiram engravidar devem evitar tomar o valproato de sódio ou a carbamazepina; caso não seja possível substituir esta medicação antiepiléptica, são imprescindíveis os suplementos pré e periconcepcionais com ácido fólico e a sua orientação para uma consulta de alto risco.

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PARALISIA CEREBRAL

Definições e importância do problema

De acordo com a definição de consenso da SCPE (Surveillance of Cerebral Palsy in Europe, rede europeia de centros de registo de PC, de que Portugal faz parte) paralisia cerebral é um termo diagnóstico que designa um “conjunto amplo de situações permanentes, mas não imutáveis, envolvendo uma alteração do movimento e/ou postura e da função motora e devidas a interferência/ lesão/ anomalia não progressiva do desenvolvimento do cérebro imaturo.”

Trata-se duma designação de conveniência, baseada na avaliação clínica constando da combinação de sinais e sintomas englobando situações neurológicas heterogéneas com múltiplas etiologias, de origem cerebral.

Devem ser excluídas todas as situações progressivas resultando de perda de competências adquiridas, as doenças da medula espinhal e os casos em que a hipotonia constitui o único sinal neurológico. Depois da insuficiência intelectual, é a causa de incapacidade neurológica mais frequente na criança.

Na PC a deficiência motora é habitualmente a mais evidente, com realce para a presença de sinais piramidais ou extrapiramidais; contudo, é frequente a ocorrência simultânea de perturbações sensoriais sobretudo visuais e auditivas, compromisso da linguagem e fala, atraso cognitivo, dificuldades na aprendizagem, epilepsia e alterações comportamentais.

Aspectos epidemiológicos

Apesar da melhoria dos cuidados perinatais nos países desenvolvidos, com uma enorme redução da mortalidade perinatal nos últimos 30 anos, a prevalência de paralisia cerebral tem-se mantido com valores oscilando nos centros europeus entre 1,5-3/1.000 nados-vivos. Tal deve-se essencialmente à sofisticação crescente dos cuidados intensivos neonatais que permitem, cada vez mais, a sobrevivência dos recém-nascidos (RN) pré-termo e de muito baixo peso (< 1.500 gramas). Actualmente, nos países desenvolvidos os RN pré-termo e de termo contribuem com percentagens muito semelhantes para as casuísticas de PC (cerca de 20-40% dos casos). Habitualmente existe um predomínio do sexo masculino numa proporção de 2/1.

De acordo com a SPCE, a idade mínima para confirmar o diagnóstico e recolher os dados deve ser os 3 anos, e a idade ideal os 5 anos, sendo que, ao registar os dados, podem ser incluídas crianças com quadro clínico de PC e que faleceram entre os 1 e 5 anos.

Num estudo multicêntrico recente, de âmbito internacional (Estudo Europeu sobre a Etiologia da Paralisia Cerebral – EEEPC), abrangendo um total de 432 casos nascidos entre 1996 e 1998, entre os quais um grupo de 100 crianças com PC da área metropolitana de Lisboa, confirmou-se a incidência atrás referida. A casuística do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia engloba 45% de casos com antecedentes de prematuridade (22% com 32-36 semanas, 14% com 28-31 semanas, e 9% com menos de 28 semanas).

Etiopatogénese

As causas de PC, múltiplas, podem ser genéticas ou o resultado de noxas pré, peri ou pós-natais (Quadro 1). Por vezes estes factores actuam em simultâneo, o que torna difícil determinar a etiologia específica e realizar uma prevenção eficaz. Diferentes formas clínicas de PC podem ter a mesma patologia cerebral, enquanto etiologias diferentes podem originar quadros clínicos semelhantes. A Figura 1 mostra em esquema as principais áreas motoras afectadas na PC, e a Figura 2 a relação entre vias, estruturas e tipos de PC.

QUADRO 1 – Causas de paralisia cerebral

Pré-nataisPerinataisPós-natais
Infecções congénitas
(Herpes, Toxoplasma, Rubéola,
Citomegalovírus, Sífilis)
Complicações placentares
(abrupta, ruptura prematura
das membranas, corioamnionite)
Traumatismo cranioencefálico
Doenças genéticasPrematuridadeInfecções do sistema nervoso central
(meningite, encefalite)
Agentes teratogénicos
(chumbo, mercúrio)
Drogas maternas ou álcool
Complicações do trabalho de parto
(asfixia perinatal, trauma)
Acidente vascular cerebral
Vasculares
(hipóxia, isquémia, trombose,
hemorragia, embolia)
Infecção do sistema nervoso central
(Enterobacteriáceas, Streptococcus
do grupo B, Listeria)
Convulsões neonatais
Perturbações do
desenvolvimento cerebral
(disgenésias cerebrais)
Alterações metabólicas
(hipoglicémia, desequilíbrios
hidroelectrolíticos)
Afogamento e asfixia
Metabólicas
(deficiência de iodo)
Hiperbilirrubinémia
(Kernicterus)
 
Incompetência cervical ou
hemorragia do 3º trimestre
  
Gravidez gemelar  

FIGURA 1. Principais áreas motoras afectadas na PC (ver Figura 2)

FIGURA 2. Vias e estruturas atingidas nos diferentes tipos de paralisia cerebral. (Cerebelo assinalado a cor na figura do meio)

A asfixia perinatal, (considerada no passado uma das causas mais frequentes de PC), admite-se hoje que em certas circunstâncias seja, sim, o epifenómeno de outros problemas que, na vida pré-natal, afectam o desenvolvimento das estruturas cerebrais.

O nascimento pré-termo e o baixo peso de nascimento são factores de risco de grande importância e com tendência para aumentar, pelo que se torna essencial o investimento na prevenção destas situações, melhorando os cuidados de saúde às grávidas. Igualmente, as gravidezes multigemelares têm um risco 4 vezes superior de ocorrência de PC (prematuridade, restrição de crescimento intra-uterino, morte dum dos fetos in utero). A fertilização in vitro (FIV), pela sua contribuição para o aumento do número de gravidezes gemelares, habitualmente em mulheres de idade superior aos 35 anos, tem-se vindo a revelar nos últimos anos uma causa importante de PC nos países desenvolvidos.

O tipo clínico mais frequente no RN pré-termo é a diplegia, devido ao mecanismo das lesões por ruptura dos vasos da matriz germinal e leucomalácia periventricular. Recém-nascidos de termo também podem apresentar um quadro de diplegia se a lesão pré-natal tiver ocorrido no último trimestre. No entanto, a forma clínica de PC mais frequente nos RN de termo com asfixia perinatal é a tetraparésia espástica. A hemiplegia, habitualmente, é consequência de um acidente vascular cerebral (AVC) ocorrido no período pré ou perinatal. (ver adiante)

Actualmente o estudo imagiológico pela ressonância magnética (RM) permite caracterizar as lesões cerebrais e precisar o momento em que ocorreram, bem como relacioná-las com as manifestações clínicas e sua gravidade. Este exame tornou-se, assim, um instrumento indispensável na determinação da etiologia e do prognóstico da PC.

Os padrões de lesão da RM traduzem a vulnerabilidade selectiva em determinadas idades pré-natais de certas áreas do cérebro, de acordo com o desenvolvimento e maturação das estruturas cerebrais. É o conceito de “períodos críticos”; assim as anomalias congénitas correspondem a noxas ocorrendo antes da 20ª semana de gestação; a lesão da substância branca periventricular entre a 24ª e 34ª semana, e a lesão da substância cinzenta, já no cérebro mais maturo, após a 34ª semana.

Nos casos de hipóxia-isquémia grave e abrupta, são afectados, sobretudo, os núcleos da base; e, se for prolongada, são afectadas as estruturas cortico-subcorticais.

As causas pré-natais são as que mais contribuem para a etiologia da PC. A RM veio demonstrar que um terço das PC em RN de termo se deve a disgenésias corticais, secundárias a alterações da migração neuronal. Alguns destes casos são cromossomopatias que, com frequência, se associam a perturbações da migração; se forem suspeitadas, devem ser investigadas com cariótipos de bandas de alta resolução e/ou técnicas moleculares.

Na PC pós-natal (< 5% total das PC) as causas mais frequentes são a infecção (50%), as lesões vasculares (20%) e os traumatismos cranioencefálicos (18%). A casuística do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia até 2007, num total de 100 crianças, engloba 4 casos com etiologia pós-natal (1 com meningite pneumocócica aos 18 meses, 1 por paragem cardiorrespiratória ao 28º dia de vida, 1 com anomalia vascular cerebral com hemorragia aos 20 meses e 1 com encefalite pós-vacinal).

Estima-se que 2% das PC são devidas a causas genéticas. Trata-se habitualmente de formas clínicas espásticas e simétricas, tendo-se identificado nalgumas famílias afectadas um gene em 2q24-q25, (marcadores D2S124 e D2S148). Este gene codifica um grupo de proteínas que são essenciais nos estádios precoces do desenvolvimento.

Manifestações clínicas

De acordo com o tipo de distúrbio motor predominante, são considerados os seguintes tipos clínicos:

  • tipo espástico (hemiplegia, diplegia, tetraplegia);
  • tipo atáxico;
  • tipo discinético (atetose, coreoatetose, distonia).

Na diplegia há envolvimento dos quatro membros, com franco predomínio dos inferiores. Na hemiplegia estão afectados os membros superiores e inferior do mesmo lado. Na tetraplegia, os quatro membros são igualmente afectados. A escala de Ashworth, com uma graduação entre 1 e 4, é a mais usada para avaliar o grau de espasticidade. (Figuras 3 e 4)

FIGURA 3. Envolvimento anatómico nas paralisias cerebrais espástica e discinética

FIGURA 4. Paralisia cerebral espástica diplégica em criança com antecedentes de prematuridade (postura dos membros inferiores em “tesoura”)

Nos 100 casos portugueses do EEEPC os tipos mais frequentemente identificados foram a diplegia (31%), seguindo-se a tetraparésia em 24%, a discinésia em 17%, a hemiparésia em 14% e a ataxia em 6%. Os movimentos involuntários eram predominantemente do tipo atetósico, sendo os menos frequentes os coreoatetósicos.

A classificação da PC pelo tipo e topografia da lesão é útil em termos clínicos e epidemiológicos, mas tem muitas limitações como indicador de mobilidade, o qual é contemplado em escalas de avaliação das incapacidades, que estão numa fase de uniformização internacional.*

*Actualmente o problema da deficiência em geral é encarado numa perspectiva biopsicossocial na tentativa de valorizar de modo estruturado as potencialidades remanescentes, ou seja , os aspectos positivos da interacção entre o indivíduo com limitações e o contexto ambiental e pessoal. Assim, em diversos centros estão a ser cada vez mais aplicados diversos instrumentos tais como: curvas de referência para a funcionalidade, curvas de desenvolvimento motor específicas para a PC, escalas de medida da função de motricidade grosseira, etc.. Sugere-se, a propósito, a consulta do Glossário Geral para a terminologia: Funcionalidade e Incapacidade (Disability).

A mais frequentemente utilizada é a GMFM (Gross Motor Function Measure). A utilização deste tipo de escalas permitirá avaliar e comparar os resultados de diversas abordagens terapêuticas nas múltiplas casuísticas. Em relação ao grau de deficiência neuromotora, no grupo acima referido, 38% apresentava défice ligeiro, 35% moderado e 27% grave.

A disfunção pseudobulbar e oromotora, com compromisso da articulação verbal e dificuldades alimentares, são frequentes na PC. Problemas de comunicação verbal foram observados em 62% dos casos do Serviço de Neuropediatria do Hospital Dona Estefânia (SNPHDE) incluídos no EEEPC. Encontrou-se disartria em 41% e dificuldade de deglutição da saliva em 36%. De facto, este fenómeno na PC não é devido a hipersecreção salivar.

Os problemas visuais são frequentes na PC, sobretudo o estrabismo que aparece em cerca de metade dos casos. A hemianópsia deve ser sempre avaliada, sobretudo nos casos de hemiparésia. O défice auditivo também é um problema frequente, tendo ocorrido em 6 casos do SNPHDE.

O atraso cognitivo está presente em 60 a 70% da população com PC. No grupo das 100 crianças acima mencionado, avaliadas entre os 4-5 anos (Escala de Griffiths e/ou Escala de Minnesota, classificados de acordo com os critérios do “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” (DSM-IV) só 37% apresentava quociente de inteligência (QI) > 70 e 44% tinha um atraso grave ou profundo (QI < 40). De referir que são as tetraparésias que se acompanham mais frequentemente de atraso grave/profundo (75%).

Cerca de um terço dos casos de PC acompanha-se de epilepsia, sendo mais frequente nas tetraparésias e hemiparésias (58% e 21% respectivamente no EEEPC). Trata-se habitualmente de epilepsias parciais sintomáticas, com crises parciais motoras, frequentemente com generalização secundária. As crises associadas às hemiparésias podem ser refractárias à terapêutica antiepiléptica, o que estabelece indicação para intervenção cirúrgica.

As formas mais graves de PC (tetraplegias) apresentam, ainda hoje, um atraso importante do crescimento estaturo-ponderal (< percentil 5 em 47% da casuística atrás referida).

A osteoporose é um problema comum, consequência da imobilização, de terapêutica crónica com antiepilépticos (sobretudo o valproato de sódio) e de défices nutricionais; daí o risco elevado de fracturas ósseas.

Diagnóstico diferencial

Várias doenças genéticas e metabólicas, com início na infância e de curso lentamente progressivo, podem confundir-se com PC, dado partilharem sinais e sintomas comuns.**

**Contudo, reportando-nos ao fluxograma elaborado pela SCPE (consultar Bibliografia no fim do Capítulo: G Andrada et al), determinada situação com síndroma genética ou com anomalia cromossómica, se evidenciar perturbação do movimento e postura de origem central, hipotonia generalizada e sinais de ataxia corresponderá a PC atáxica.

O diagnóstico correcto e precoce destas situações é fundamental, o que permite instituir um tratamento quando este é possível, informar a família do prognóstico da situação e proceder a aconselhamento genético. Em muitos casos já é possível o diagnóstico pré-natal.

Uma investigação mais aprofundada numa criança com clínica sugestiva de PC justifica-se nas seguintes situações:

  • ausência de história de lesão perinatal;
  • outros casos semelhantes na família;
  • regressão no desenvolvimento;
  • presença de anomalias oculomotoras, movimentos involuntários, ataxia, alterações da sensibilidade.

Quadro 2 discrimina de modo prático os quadros clínicos de não PC, mas com sintomatologia compatível com PC. Sugere-se, a propósito, a consulta do Glossário Geral.

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial da paralisia cerebral

Com hipotonia

    • Doenças neuromusculares
    • Distrofia neuroaxonal
    • Citopatias mitocondriais

Com distonia/movimentos involuntários

    • Distonia dopa-sensível
    • Acidúria glutárica tipo I
    • Síndroma de Lesch – Nyhan
    • Doença de Pelizaeus – Merzbacher
    • Deficiência de piruvato desidrogenase
    • Síndroma de Rett
    • Acidúria 3 – metilglutacónica

Com diplegia/tetraplegia

    • Argininémia
    • Paraparésia espástica progressiva hereditária
    • Leucodistrofia metacromática (forma infantil

Com ataxia

    • Síndroma de Angelman
    • Ataxia telangiectasia
    • Atrofia/hipoplasia pontocerebelosa
    • Ataxia espinocerebelosa ligada ao X
    • Doença de Niemann – Pick tipo C

Exames complementares

Face aos conhecimentos actuais, em toda a criança com clínica de PC deve proceder-se a RM encefálica, de preferência pelos 2-3 anos de vida, para uma melhor avaliação da mielinização cerebral. Em muitos casos este exame é feito antes, numa tentativa de descobrir a etiologia (sobretudo quando está em causa um eventual insulto perinatal) e estabelecer o prognóstico. Nesta última circunstância justifica-se a repetição da RM em data a definir em função do contexto clínico.

Mesmo que exista história de complicações perinatais, a criança deve ser igualmente investigada, pois uma doença neurológica (ou uma doença metabólica) subjacente poderá ter contribuído para maior vulnerabilidade ao processo do parto. Se não for encontrada uma causa que explique o quadro clínico sugestivo de PC, ou se houver suspeita de perda de aquisições, a criança deve ser obrigatoriamente orientada para uma consulta de Neurologia Pediátrica com o objectivo de investigação mais detalhada.

Tratamento

O tratamento da PC tem por objectivo essencial rendibilizar as potencialidades remanescentes da criança e prevenir as complicações secundárias, as quais contribuem para um agravamento da incapacidade pré-existente.

Logicamente o tratamento deve ser multidisciplinar, com elaboração dum plano de cuidados, tornando-se fundamental que a família, desde o início, se envolva em todas as acções que promovam a reabilitação.

O diagnóstico e intervenção precoces são fundamentais de modo a rendibilizar também a plasticidade cerebral dos primeiros anos de vida, ou seja, a reorganização cerebral pós-lesional através do estabelecimento de novas conexões sinápticas e circuitos neuronais. Tal como é referido no capítulo 10, a recuperação da função é tanto mais eficaz quanto mais precoce, intensiva e continuada for a estimulação com técnicas de neurodesenvolvimento realizadas por profissionais especializados, com colaboração dos pais e as ajudas técnicas necessárias.

Nos últimos anos, o uso da toxina botulínica veio diminuir significativamente o número de intervenções ortopédicas. No grupo do EEEPC receberam toxina botulínica 41% dos casos de diplegia, 23% de tetraparésias e 13% de discinésias, num total de 20 casos, até 2006. Ainda num número significativo de doentes é necessário actuar cirurgicamente, quer nas regiões tendinosas, quer ósseas. Quando existem já contracturas, a cirurgia ortopédica aplicada criteriosamente será a única solução.

O recurso à cirurgia da cifoscoliose tem vindo a aumentar nas formas graves de PC, no sentido de melhorar a postura em doentes não ambulantes e preservar a função respiratória.

A terapêutica farmacológica oral antiespástica tem a vantagem de ser de fácil administração, mas habitualmente à custa de efeitos secundários importantes. As mais usadas são o baclofeno, o diazepam e o dantroleno.

A rizotomia dorsal selectiva, que envolve a secção de cerca de 50% das raízes dorsais, diminui a espasticidade dos membros inferiores, melhorando a posição de sentado e a marcha; é uma opção terapêutica, sobretudo nas diplegias espásticas graves.

A perfusão contínua intratecal de baclofeno está indicada, sobretudo nos doentes com espasticidade dos membros inferiores, sendo de referir que já foram descritos benefícios quanto à espasticidade dos membros superiores e às formas distónicas.

A gastrostomia nos casos graves de PC (como as tetraparésias com componente pseudobulbar) melhora significativamente o estado nutricional e a qualidade de vida destas crianças.

Prognóstico

O prognóstico é variável em função do tipo de paralisia cerebral, grau de compromisso funcional e dos problemas associados. Alguns pacientes têm uma expectativa de vida curta, enquanto noutros a tal expectativa é igual à da população geral, conquanto a proporção de problemas cognitivos seja mais significativa naqueles.

Em cerca de 25% dos casos há impossibilidade da marcha, sobretudo nas tetraparésias e hemiplegias. Em idêntica proporção de casos, relacionados com lesões cerebrais ligeiras, verificam-se alterações na linguagem e aprendizagem.

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ACIDENTES VASCULARES CEREBRAIS

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

Nas últimas duas décadas, a incidência de acidentes vasculares cerebrais (AVC) em idade pediátrica tem aumentado, sendo referidas actualmente frequências entre 2 e 8 por 100.000 habitantes em idade pediátrica por ano. Essencialmente, duas circunstâncias poderão explicar este aumento: a utilização dos métodos de neuroimagem mais sensíveis e específicos – tomografia axial computadorizada (TAC), ressonância magnética (RM), angiorressonância (ARM) e estudos ecográficos cranianos – permitindo o diagnóstico de pequenas lesões anteriormente indetectáveis; por outro lado, tratamentos mais eficazes têm permitido maior sobrevivência de doentes em risco de complicações vasculares, incluindo prematuridade, cardiopatia congénita, doença de células falciformes e leucemia.

Diferenças importantes entre os AVC de adultos e crianças colocam, por vezes, dificuldade no reconhecimento e tratamento desta situação. Estas diferenças incluem: 1) a relativa raridade desta patologia nas crianças, aliada a apresentações clínicas subtis e inespecíficas nas mais jovens; 2) a multiplicidade de factores de risco que muitas vezes se sobrepõem; 3) diferenças de desenvolvimento nos sistemas neurológico, cerebrovascular e da coagulação. Estas diferenças limitam muitas vezes a extrapolação dos resultados dos estudos de investigação em adultos sobre AVC para a idade pediátrica.

A importância deste problema pode sintetizar-se do seguinte modo:

  • afecção cada vez mais reconhecida como causa de morte (uma das dez principais), e de incapacidade, na criança e jovem;
  • frequência semelhante à dos tumores do SNC, e incidência aumentando com a idade: de cerca de 2 a 8 casos por 100.000 habitantes, dos 5 aos 14 anos por ano;
  • no período neonatal surge em cerca de 1 para 2.300 partos de termo, com uma frequência 17 vezes superior à verificada noutras idades pediátricas.

Classificação e etiopatogénese

Os AVC podem ser de tipo isquémico ou hemorrágico. Os AVC isquémicos, mais frequentes, dão por vezes origem a hemorragia secundária, tornando necessário considerar muitas situações de trombose no diagnóstico diferencial de hemorragia.

Os AVC isquémicos podem ser de origem arterial ou venosa, com uma relação arterial/venosa de 3/1 no período pós-neonatal, e de 2/1 no RN. Alguns factores etiológicos são comuns aos vários tipos de AVC, diferindo muitas vezes consoante o grupo etário e o tipo de associação de vários factores de risco.

Os factores etiológicos de AVC em idade pediátrica são numerosos e diferem grandemente dos verificados nos adultos. Estão relacionados com a idade e são frequentemente múltiplos (Quadro 1).

QUADRO 1 – Factores etiológicos de doença cerebrovascular na idade pediátrica

Factores etiológicos de doença cerebrovascular na idade pediátrica

Cardiopatias congénitas

    • Cardiopatias complexas
    • Estenose aórtica
    • Comunicação interauricular
    • Comunicação interventricular
    • Coarctação da aorta
    • Estenose mitral
    • Prolapso da válvula mitral
    • Canal arterial patente

Cardiopatias adquiridas

    • Doença cardíaca reumática
    • Próteses valvulares
    • Endocardite bacteriana
    • Cardiomiopatia
    • Miocardite
    • Mixoma auricular
    • Rabdomioma cardíaco
    • Arritmia

Malformações cerebrovasculares congénitas

    • Malformação arteriovenosa
    • Aneurisma intracraniano
    • Malformação cavernomatosa
    • Telangiectasia hemorrágica hereditária
    • Síndroma de Sturge-Weber

Traumatismo

    • Traumatismos intra-orais
    • Dissecção arterial
    • Embolia gasosa ou gorda
    • Embolia de corpo estranho

Iatrogenia

    • Anticoagulação
    • Arteriografia
    • Cateterismo cardíaco
    • Cirurgia cardíaca
    • Laqueação da carótida (ex. ECMO)
    • Cateter na artéria umbilical
    • Terapêutica com L-asparaginase
    • Pós-irradiação

Vasculites

    • Meningite
    • Lúpus eritematoso sistémico
    • Poliarterite nodosa
    • Angeíte granulomatosa
    • Angeíte cerebral primária
    • Arterite de Takayasu
    • Artrite reumatóide juvenil
    • Dermatomiosite
    • Doença de Behçet
    • Doença inflamatória intestinal
    • Doença de Kawasaki
    • Abuso de drogas (cocaína, anfetaminas)
    • SIDA

Arteriopatias

    • Arteriopatia cerebral transitória da infância
    • Angiopatia pós-varicela
    • Displasia fibromuscular
    • Síndroma moyamoya
    • Vasculopatia pós-irradiação
    • Doenças vasculares sistémicas
    • Aterosclerose precoce
    • Diabetes
    • Hipercolesterolémia familiar
    • HTA sistémica
    • Hipernatrémia
    • Síndroma da veia cava superior

Doenças vasospásticas

    • Hemiplegia alternante
    • Enxaqueca
    • HTA
    • Vasospasmo secundário a hemorragia

Doenças hematológicas

    • Hemoglobinopatias (Hb SS, SC)
    • Trombocitose
    • Policitémia
    • Leucemia e outras neoplasias hematológicas
    • Púrpura trombocitopénica imune/trombótica

Coagulopatias adquiridas

    • Medicações protrombóticas
    • Gravidez/período pós-parto
    • Anticorpos antifosfolípidos
    • Anticoagulante lúpico
    • Anticorpos anticardiolipina
    • Anomalia das lipoproteínas
    • Disfunção hepática com défice da coagulação

Coagulopatias congénitas

    • Défice de antitrombina III
    • Défice de proteína S
    • Défice de proteína C
    • Factor V de Leiden
    • Défice de plasminogénio
    • Mutação do gene da protrombina

Doenças metabólicas

    • Homocistinúria
    • Dislipoproteinémias
    • MELAS
    • Acidúrias metilmalónica e propiónica

A verificação de AVC intra-uterino tem sido associada a múltiplos factores etiológicos, sendo que nalguns casos a evidência é apenas marginal: trauma, pré-eclampsia, diabetes materna, uso de drogas pela mãe (ex. cocaína), infecção fetal (em particular por citomegalovírus), várias doenças fetais que causam hidropisia fetal. Admite-se também que algumas trombofilias (nomeadamente relacionada com a mutação de Leiden do Factor V) desempenham também um papel na etiologia de enfartes cerebrais na vida intra-uterina.

Nos recém-nascidos a etiologia do AVC na maioria dos casos é desconhecida. Os dados da literatura apontam para uma prevalência de enfarte arterial neonatal de cerca de 1/4.000; poderá ser superior, dado que se presume que nem todos sejam sintomáticos inicialmente. É mais provável enfarte embólico (de origem placentar ou cardíaca) do que enfarte trombótico. É possível que situações de trombofilia (congénita, ou adquirida como anticorpos maternos com transmissão transplacentar – anticorpos antifosfolípidos) desempenhem papel importante. Estão ainda descritos como prováveis factores etiológicos: trauma, sépsis e asfixia.

Deve salientar-se que um enfarte cerebral neonatal é uma importante causa de convulsões neonatais (12 a 17,5% segundo várias séries).

Nalguns lactentes em que se diagnostica hemiplegia, verifica-se lesão cerebral vascular exibindo padrão compatível com ocorrência na vida fetal tardia ou pós-natal.

Nalgumas crianças (com cardiopatia estrutural conhecida ou com doença de células falciformes) a causa do AVC é óbvia. Em crianças com doenças crónicas que predispõem para AVC, uma intercorrência aguda, como desidratação, sépsis e outras, podem precipitar um AVC. No entanto, em cerca de 50% dos casos o AVC ocorre em crianças sem doença prévia conhecida.

Num estudo com documentação angiográfica cerca de 50% dos enfartes cerebrais em crianças eram devidos a uma arteriopatia (a uma anomalia primariamente vascular). Neste grupo o diagnóstico etiológico mais frequente foi dissecção arterial e síndroma moya-moya.

Estudos recentes concentraram-se de novo no papel de varicela como causador de vasculopatia cerebral: num destes verificou-se que tal infecção (no período de 12 meses antecedendo o AVC) tinha sido três vezes mais frequente que a incidência num grupo controlo.

Para além dos factores de risco adquiridos (como os anticorpos antifosfolípidos) e do risco protrombótico, estão descritas várias anomalias genéticas que podem influenciar o risco de tromboembolismo (em muitos casos arterial e venoso) associadas a factores ambientais, como trauma, imobilização, septicémia, etc..

O papel de alguns dos factores de risco tradicionais na população adulta como dislipoproteinémia ou hipertensão arterial pode ser também relevante em idade pediátrica.

O AVC pode ainda ser a manifestação inicial de uma doença sistémica como lúpus eritematoso disseminado, diabetes ou neoplasia.

A identificação de factores de risco de doença cerebrovascular é, pois, extremamente importante dado que a recorrência e o prognóstico estão fortemente relacionados com o número e o tipo de factores de risco. Por outro lado, o tratamento de um episódio agudo e a prevenção das recorrências dependem da causa subjacente.

Manifestações clínicas

Nesta alínea é realçado o papel dos factores de risco.

1. Acidente isquémico arterial (AIA)

A presença de vasculopatia constitui factor de risco de AIA e de recorrência; daí a importância de a caracterizar.

Existe um grande espectro de vasculopatias, algumas reversíveis, outras progressivas.

A chamada arteriopatia cerebral transitória monofásica da infância pode corresponder ao tipo mais comum de arteriopatia em crianças com AIA. A etiologia desta situação não é conhecida e o respectivo diagnóstico baseia-se apenas no quadro clínico e imagiológico (incluindo a aparência em angiografia).

A angiopatia pós-varicela (uma arteriopatia transitória) que ocorre semanas a meses após episódio de varicela não complicada, tem sido cada vez mais reconhecida como causa de enfarte isquémico. Com uma incidência de 1/15.000 crianças com varicela, associa-se a enfarte dos gânglios da base e estenose da carótida interna distal, artérias cerebrais anterior, média e posterior proximal.

O enfarte isquémico pós-herpes zóster oftálmico (vários dias ou semanas após a erupção cutânea) pode ocorrer por trombose no território da artéria cerebral média ipsilateral, provavelmente resultante da invasão da artéria através do nervo trigémio.

A meningite pode causar inflamação dos vasos cerebrais que atravessam o espaço subaracnoideu infectado e promover oclusão venosa ou arterial.

A vasculite cerebral associada a vasculites sistémicas ou outras doenças é uma causa relativamente rara de AVC em crianças (sendo o lúpus eritematoso disseminado a causa mais importante neste grupo).

A dissecção das artérias carótida ou vertebral pode ocorrer em associação com traumatismo craniano, cervical ou intra-oral, ou espontaneamente. A dissecção é diagnosticada em 9-20% de crianças com AIA. O défice neurológico pode surgir imediatamente após a lesão ou tardiamente. As descrições iniciais referem casos de dissecção usualmente traumática das artérias carótidas e vertebrais, mas provou-se que pode ocorrer também dissecção no território vascular intracraniano.

FIGURA 1. AVC e RM; A: Múltiplas lesões isquémicas assinaladas, com localização frontal, bilaterais, num doente com 7 anos, portador de drepanocitose homozigótica, em regime hipertransfusional. B: Angio-RM revelando sinais de grave estenose da artéria cerebral média à direita (seta).

A síndroma moyamoya é uma vasculopatia cerebral da infância, progressiva e grave, que consiste na oclusão gradual das artérias intracranianas, com subsequente desenvolvimento de uma rede de pequenos vasos colaterais que dá o aspecto angiográfico característico (“puff of smoke”). Pode ser idiopática (maioria dos casos) ou estar relacionada a síndromas genéticas (neurofibromatose, trissomia 21), ou ainda a lesões adquiridas das artérias cerebrais como a vasculopatia da radiação ou anemia de células falciformes.

A vasculopatia pós-irradiação apresenta-se como uma estenose progressiva dos grandes vasos, com acidentes isquémicos transitórios ou AVC vários meses a anos após irradiação de gliomas do quiasma óptico ou outros tumores da região selar ou supra-selar.

A doença de células falciformes é a causa mais frequente de AVC em crianças, em determinadas áreas geográficas (Figura 1)

Com a idade de 20 anos, em cerca de 11% dos doentes homozigóticos (HbSS) verifica-se o problema. Os enfartes isquémicos podem resultar dos episódios vasoclusivos cerebrais múltiplos, ou de uma arteriopatia progressiva característica que envolve predominantemente a artéria carótida interna distal e a artéria cerebral média proximal; pode surgir mais tarde um quadro do tipo moyamoya nos casos graves.

A incidência global das doenças protrombóticas em crianças com AVC é referida entre 10 e 50%. As anomalias protrombóticas associadas a AVC nas crianças podem ser congénitas ou adquiridas e incluem: défices de proteína C, de proteína S, de antitrombina III, de plasminogénio; presença de resistência à proteína C activada (Factor V de Leiden); mutação do gene 20210 da protrombina; anticorpo anticardiolipina, anticoagulante lúpico, e valores séricos elevados de homocisteína e de lipoproteína (a) [Lp(a)].

A presença do anticorpo anticardiolipina é a doença adquirida mais comum, enquanto a situação associada ao factor V de Leiden, a situação congénita mais comum.

Vários defeitos podem ocorrer simultaneamente, sobretudo nos défices adquiridos.

Outros factores de risco como a desidratação e infecção podem aumentar o risco de trombose.

Em 25% das crianças com AVC de tipo embólico, as cardiopatias congénitas são a causa subjacente. O AVC pode ocorrer espontaneamente ou estar associado a procedimentos cardíacos (cateterismo ou cirurgia). As cardiopatias cianóticas aumentam o risco de tromboembolismo devido à policitémia. Se existir um shunt intracardíaco direito-esquerdo, pode ocorrer uma embolia paradoxal (proveniente do território venoso).

O prolapso da válvula mitral é uma anomalia relativamente frequente e habitualmente assintomática. Não são actualmente identificáveis os doentes em risco de AVC embólico, havendo contudo a estimativa de que 1 em 6.000 casos por ano irá ter uma complicação deste tipo. Os AVC cardioembólicos de origem mitral podem afectar a circulação carotídea ou vertebrobasilar. A apresentação inicial é mais frequentemente a de um acidente isquémico transitório.

A situação de foramen ovale patente também se pode associar a AVC, de acordo com publicações recentes. Efectivamente, como resultado de esforços ou manobras de Valsalva foram demonstrados enfartes múltiplos bilaterais.

A apresentação clínica depende da idade, do tipo de AVC e do mecanismo fisiopatológico da lesão cerebral subjacente.

Um AIA pré-natal é geralmente diagnosticado quando se torna evidente hemiparésia entre os 4 e os 8 meses de idade.

No recém-nascido, um AIA tipicamente manifesta-se por letargia ou convulsões focais e hemiparésia transitória. Os sinais focais persistentes são raros.

Nos lactentes mais velhos e nas crianças em idade pré-escolar frequentemente verifica-se um início abrupto de hemiplegia. As crianças em idade escolar e adolescentes podem apresentar sinais mais subtis, como afasia, alterações visuais, cefaleia ou défices sensitivos focais, para além da hemiparésia.

Na síndroma moyamoya os doentes apresentam-se com enfarte cerebral agudo. Têm sido descritos também acidentes isquémicos transitórios, hemiplegia alternante, coreia ou outras doenças do movimento. Pode ocorrer disfunção clínica insidiosa, com deterioração intelectual, cefaleia crónica ou alterações da linguagem. A frequência dos acidentes isquémicos é maior nos primeiros 4 anos após o início dos sintomas.

Nos doentes mais velhos há um risco de hemorragia subaracnoideia.

As convulsões podem acompanhar o AVC em cerca de 50% das crianças.

2. Trombose sinovenosa

A trombose dos seios venosos (TSV) pode resultar de uma combinação de factores intravasculares e vasculares.

Os recém-nascidos são o grupo etário com maior incidência de TSV. Os factores de risco associados com AVC no período neonatal são: estados de hipercoagulabilidade maternos, hematócrito elevado, shunt intracardíaco direito-esquerdo transitório, asfixia, sépsis e desidratação.

As infecções localizadas da cabeça e pescoço, como mastoidite, meningite, sinusite e otite média existem em cerca de 23% das crianças com TSV, predominando no grupo etário pré-escolar.

Doenças sistémicas crónicas, incluindo lúpus eritematoso sistémico, síndroma nefrótica, doença inflamatória intestinal, doenças hematológicas, doenças cardíacas e outras, são factores de risco subjacentes, presentes em 60% dos casos e nas crianças mais velhas.

Os estados pró-trombóticos são factor de risco de trombose venosa ou arterial.

Nas TSV podem ocorrer enfartes do parênquima cerebral (cerca de 40% dos casos).

A TSV em recém-nascidos manifesta-se mais frequentemente com convulsões e letargia. Os lactentes com oclusão sinovenosa extensa podem apresentar dilatação das veias da cabeça, fontanela anterior procidente e diastase das suturas cranianas.

Em crianças mais velhas a apresentação mais frequente é a de um quadro clínico de “pseudotumor cerebri”, com cefaleias, papiledema e, ocasionalmente, parésia do VI° par uni ou bilateral. Estão presentes alterações visuais em 18% dos casos; hemiparésia e outros sinais focais surgem em 35-45% dos casos e relacionam-se com a presença de enfarte venoso. As convulsões podem ocorrer como primeira manifestação em 70% dos recém-nascidos e em 48% de crianças com TSV.

3. Hemorragia cerebral

As malformações vasculares (malformações e fístulas arteriovenosas) são a principal causa de hemorragia intraparenquimatosa e subaracnoideia não traumática em crianças. De salientar o predomínio da localização intraparenquimatosa sobre a subaracnoideia (relação de 2,5/1).

Os aneurismas arteriais ocorrem menos frequentemente em crianças e adolescentes que nos adultos. As malformações cavernomatosas também podem originar AVC hemorrágico na idade pediátrica.

A hemorragia cerebral pode ocorrer em situações de trombocitopénia com valores inferiores a 20.000/mmc embora raramente; quando surge, está associada a trauma.

Várias coagulopatias hereditárias ou adquiridas têm sido associadas a hemorragia intracraniana: a hemofilia A e B, outros défices congénitos de factores da coagulação (ex. factor VII, XIII), o défice da vitamina K em recém-nascidos (actualmente raro devido à administração de vitamina K após o parto), a coagulopatia secundária a doença hepática ou a coagulação intravascular disseminada. Embora o risco individual relativamente a cada uma destas doenças não seja elevado, o seu risco colectivo é considerável.

Nas crianças com doença de células falciformes a hemorragia é menos comum que o enfarte, podendo ocorrer hemorragia subaracnoideia e intraparenquimatosa, particularmente em doentes mais velhos.

De referir a possibilidade de transformação hemorrágica de um enfarte isquémico, venoso ou arterial, o que amplia o diagnóstico diferencial das hemorragias intraparenquimatosas. O enfarte hemorrágico é provavelmente mais comum após embolia do que após trombose, sendo importante considerar o risco de hemorragia em crianças com embolismo, que requerem anticoagulação.

A hemorragia no interior de um tumor intracerebral é relativamente comum. É mais frequente em tumores de alta malignidade, como os meduloblastomas ou os tumores neuroectodérmicos primitivos.

A encefalopatia hemorrágica pode constituir complicação da hipernatrémia grave. Os achados patológicos característicos são: múltiplas hemorragias pericapilares ou tromboses capilares, hemorragias subaracnoideia e subdural, e trombose dos seios venosos.

A hipertensão arterial sistémica é uma causa rara de enfarte e hemorragia cerebral em crianças, ao contrário do que acontece em adultos. Pode ser um factor de risco cumulativo em crianças com outra patologia, como doença de células falciformes ou arterite.

Diagnóstico

Exames imagiológicos

  • Tomografia axial computadorizada (TAC). É geralmente o estudo inicial; de referir que a TAC poderá não revelar alterações nas primeiras 24 a 48 horas após um acidente isquémico.
  • Ressonância magnética (RM). É mais sensível que a TAC na detecção precoce e em enfartes pequenos, particularmente na fossa posterior. É mais sensível para detectar conversão hemorrágica dos enfartes. Técnicas mais recentes em RM (difusão, perfusão, espectroscopia) melhoraram ainda a detecção precoce e a especificidade. Nos recém-nascidos, um enfarte isquémico poderá somente ser detectado em imagens de difusão porque a RM tradicional é menos sensível para este diagnóstico num cérebro não mielinizado. A RM com venografia permite o diagnóstico de trombose dos seios venosos.
  • Angiorressonância. É um exame não invasivo que permite a avaliação das principais artérias cerebrais ao nível do polígono de Willis. No entanto, por vezes subestima o grau de estenose e a presença de oclusão, não permitindo identificar anomalias nas artérias de médio e pequeno calibre. Também tem limitações quanto à detecção de sinais específicos de vasculite e dissecção.
  • Angiografia convencional. Quando é necessário um diagnóstico vascular mais específico realiza-se este exame.
  • Doppler das carótidas e doppler transcraniano. É útil para detecção de vasculopatia nos grandes vasos (ex. na anemia de células falciformes)
  • Ecocardiograma.

Outros exames complementares

Em função do contexto clínico haverá que proceder a determinados exames complementares no sangue, urina e ou LCR, a seleccionar:

  • Hemograma com plaquetas;
  • Tempo de protrombina e PTTa;
  • Electroforese de hemoglobinas;
  • Proteína S (total e livre), proteína C, antitrombina III;
  • Factor V de Leiden (resistência à proteína C activada);
  • Plasminogénio, factor de von Willebrand, factor VIII, factor XII;
  • Anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina;
  • Mutação 20210 do gene da protrombina;
  • Homocisteína total, metileno-tetra-hidrofolato-redutase, folato, vitamina B6 e vitamina B12, amónia, aminoacidémia, lactato no plasma e LCR;
  • Ácidos orgânicos na urina;
  • Colesterol total, das HDL, das LDL, triglicéridos, Lipoproteína (a), Apo A, Apo B;
  • Anticorpos antivaricela-zóster séricos e no líquido cefalo-raquidiano;
  • Estudo toxicológico.

Tratamento

O tratamento dos AVC em crianças é dirigido primariamente para os factores de risco subjacentes e para a prevenção de episódios isquémicos cerebrais recorrentes.

Importa referir que as normas de orientação terapêutica para os AVC pediátricos, baseadas em consensos e opiniões de peritos e sociedades científicas, variam de país para país, o que reflecte a necessidade de continuação de estudos prospectivos em larga escala.

Seguidamente procede-se à sistematização de acordo com a experiência dos autores.

Antiagregantes plaquetares
(ácido acetilsalicílico – AAS)

Não existem estudos controlados com o uso de AAS ou qualquer outro antiagregante plaquetar em crianças. No entanto, o AAS tem sido usado cada vez mais na prática clínica em crianças com AVC isquémicos arteriais, como forma de prevenir um episódio recorrente.

Apesar do risco teórico de síndroma de Reye (ver Glossário Geral) em crianças submetidas a terapêutica prolongada com AAS, os dados da literatura são escassos.

A dose diária recomendada é 3 a 5 mg/Kg/dia (dose antiagregante plaquetar).

Nota: Em determinados centros utiliza-se o clopidogrel como antiagregante plaquetar.

Anticoagulantes

a) Heparina e heparina de baixo peso molecular

Embora não existam ensaios clínicos de grande escala utilizando heparina em crianças com AVC, a experiência acumulada sugere que as crianças podem ser tratadas com as mesmas linhas orientadoras dos adultos, com segurança razoável.

A anticoagulação como primeira escolha é usada em determinados centros em crianças com embolia cerebral de origem cardíaca, dissecção arterial, trombose dos seios venosos, doenças da coagulação, trombose recorrente ou elevado risco de embolismo (ex. coágulo intracardíaco).

b) Varfarina

A utilização de varfarina constitui o meio de anticoagulação prolongada mais eficaz. A experiência clínica sugere que pode ser usada em crianças e adolescentes com razoável segurança. As crianças afectadas deverão evitar actividades com risco de lesão traumática tais como desportos de contacto.

As principais indicações incluem: cardiopatia congénita ou adquirida, estados de hipercoagulabilidade, dissecção arterial e trombose dos seios venosos.

Nota: Este fármaco não é citado nas normas de alguns centros.

Fibrinolíticos

Os fibrinolíticos actualmente não estão indicados nos AVC em crianças, devido ao risco elevado de complicações hemorrágicas e à falta de estudos de eficácia/segurança.

Em adultos, os benefícios do activador do plasminogénio tecidual (r-tPA) parecem sobrepor-se bastante aos riscos se o mesmo for usado nas primeiras 3 horas após o início dos sintomas de AVC. Dado haver frequentemente atraso no diagnóstico de AVC em crianças, esta terapêutica raramente poderá estar indicada.

Transfusão

Nos casos de doença de células falciformes a prevenção de recorrência faz-se com transfusões regulares (cada 4-6 semanas). O estudo por ecodoppler transcraniano permite identificar crianças em risco que devem ser submetidas a um tratamento hipertransfusional profiláctico com o objectivo de prevenir a progressão da doença vascular cerebral em tal situação.

As complicações graves desta terapêutica (sobrecarga crónica de ferro, com toxicidade cardíaca e endócrina) têm levado a considerar alternativas terapêuticas como a perfusão de hidroxiureia (que aumenta os níveis de Hemoglobina F) e mesmo o transplante de medula óssea.

Tratamento na fase aguda/Neuroprotecção

  • Manter posição da cabeça a 30º, pressão arterial e oxigenação adequadas.
  • Hipotermia controlada (em centros diferenciados).
  • Manter o suprimento de fluidos e o equilíbrio hidroelectrolítico.
  • Manter a normalidade da glicémia.
  • Manter Hb > 6,2 mmol/L.
  • Tratamento agressivo da febre e das convulsões (situações que aumentam as necessidades metabólicas, podendo aumentar a área cerebral com isquémia).

Tratamento neurocirúrgico

  • Drenagem nos AVC hemorrágicos.
  • Descompressão cirúrgica de grandes enfartes – hemicraniectomia.
  • Derivação ventriculoperitoneal.
  • Procedimentos de revascularização (ex. na síndroma moyamoya), trombectomia, etc..

Prognóstico

O prognóstico difere consoante as séries. No registo canadiano os principais dados apontam para probalidade de morte ~10% nas formas isquémicas, ~30% nas formas hemorrágicas, e para défice neurológico em 50% dos casos.

A recorrência nas formas isquémicas pós-neonatais é ~20-30% (sobretudo da doença de moyamoya e estados protrombóticos) e nas formas hemorrágicas ~11%.

A sequela neurológica mais frequente é a hemiparésia, mas também ocorrem défices residuais menos óbvios (compromisso da linguagem e outros défices corticais, problemas na aprendizagem e comportamento, etc.).

A epilepsia surge em 10 a 15% das crianças afectadas com AVC. A recorrência estimada de AVC isquémico é inferior a 5% em recém-nascidos, e 20 a 30% em lactentes e crianças mais velhas.

Nas TSV os enfartes venosos e a ocorrência de convulsões na apresentação são factores preditivos de pior prognóstico.

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EPILEPSIA E CONVULSÕES

Definições e importância do problema

A epilepsia define-se como doença neurológica estrutural ou funcional e crónica do SNC, caracterizada pela ocorrência de episódios de distúrbios motores, somato-sensitivos, sensoriais, psíquicos e/ou da consciência, originados por uma descarga eléctrica súbita/anomalia eléctrica cerebral, inapropriada e excessiva na substância cinzenta cerebral. Tais episódios, que são denominados crises, superam em frequência todas as outras afecções do SNC.

Importa referir que a crise é um sintoma e não um processo patológico em si; com efeito, pode constituir a tradução clínica de variadíssimas situações de etiologia muito diversa, para além da epilepsia, sendo a duração e a gravidade da doença determinadas pela causa subjacente. Ou seja, existem crises epilépticas e não epilépticas (ver adiante).

A convulsão, definida como episódio de contracções musculares involuntárias associadas ou não a perda de consciência, constitui um dos tipos de distúrbio ou fenómeno motor atrás referido. Tais fenómenos motores podem ser mantidos (tipo tónico), ou interrompidos por momentos de relaxamento de duração variável (tipo clónico).

Salienta-se que em cerca de 2/3 dos casos, tais manifestações ou fenómenos paroxísticos, não sendo de tipo epiléptico, não resultam, portanto, de alteração estrutural ou funcional do SNC. Efectivamente, as mesmas poderão surgir como resultado de alterações somáticas extra-SNC, como febre, infecção, síncope, traumatismo craniano, hipóxia, toxinas, arritmia cardíaca, pausa expiratória após choro no contexto de refluxo gastresofágico (os chamados “espasmos do choro ou do soluço”, etc.).

Por sua vez, cabe referir a este propósito que os episódios de fenómenos motores desencadeados pela febre na idade pediátrica (crises febris) são a causa mais frequente de convulsões em crianças com menos de 60 meses.

Aspectos epidemiológicos

A incidência anual de epilepsia nos países do hemisfério norte, traduzida em cerca de 50-70 casos por 100.000 habitantes, varia grandemente com a idade. Os valores mais elevados são encontrados na infância e adolescência, diminuindo no adulto jovem e voltando a aumentar no idoso. A frequência na população em geral é aproximadamente de 1%. Estima-se que em Portugal existam actualmente cerca de 5 doentes com tal patologia por 1.000 habitantes.

A morte súbita inesperada, relacionável com a doença, ocorre em cerca de 1 a 5 doentes por 1.000 habitantes/ano, particularmente naqueles com crises não controladas. A proporção de casos refractários ao tratamento é cerca de 10-20%.

Etiopatogénese e semiologia

Como já foi referido, para afirmar um diagnóstico de epilepsia é geralmente pressuposta a existência de duas ou mais crises; nalguns casos, no entanto, poderá ocorrer uma única crise isolada ao longo da vida.

Antes de se iniciar terapêutica anti-epiléptica e escolher qual a medicação mais adequada, importa confirmar se determinado paroxismo constitui realmente um evento de natureza epiléptica e quais as suas características; por isso, é fundamental uma completa anamnese para correcta descrição do tipo de crise e diagnóstico diferencial com fenómenos paroxísticos não epilépticos.

Assim, interessa indagar todos os pormenores, como as circunstâncias em que ocorreu a crise (no sono, na vigília, associada a que tipo de actividade, existência de estímulos luminosos ou outros possíveis factores precipitantes); sintomas iniciais (aura); sinais de focalização e lateralização, desvio dos olhos, movimentos predominantes de uma parte do corpo; se foi generalizada de início ou no final; qual o tipo de movimentos; se havia hipo ou hipertonia; se existiu ou não alteração da consciência; duração; existência de um período pós-crítico; se existe mais de um tipo de crises. Importa obter, se possível, a descrição do próprio doente, mas geralmente são imprescindíveis as informações de alguém que presenciou a crise.

É fundamental conhecer os antecentes pessoais: gravidez, parto e período perinatal, existência de traumatismos ou doenças (nomeadamente infecciosas, vasculares) podendo originar lesão do sistema nervoso central. É importante também saber se existe história familiar de epilepsia ou outras doenças neurológicas.

Foram identificados cerca de 20 genes implicados na função neuronal e relacionados com determinadas síndromas epilépticas. São citados alguns exemplos: o CLCN2 relacionado com o efluxo neuronal do cloro; o CHRNB2 relacionado com um dos receptores da acetilcolina; o SCN2A com o canal do sódio, o início do influxo rápido do sódio e propagação do potencial de acção; o KCNQ3 relacionado com o canal do potássio, etc..

O exame objectivo contribui para caracterizar a situação, destacando-se a importância de um exame neurológico completo, da medição do perímetro cefálico, da pesquisa de organomegálias no caso das doenças neurometabólicas, de manchas na pele nas doenças neurocutâneas, de sinais dismórficos nas situações geneticamente determinadas.

Dadas as implicações terapêuticas e de prognóstico, é fundamental esclarecer qual o tipo de epilepsia, nomeadamente se se trata de uma epilepsia idiopática generalizada (sem lesões cerebrais identificadas e muitas vezes familiar), ou sintomática e focal (i.e., com um local de início e uma causa potencialmente identificável); por isso torna-se necessário por vezes recorrer a técnicas de neurofisiologia, nomeadamente ao electroencefalograma, e aos exames imagiológicos, sobretudo à ressonância magnética encefálica.

Os factores etiológicos da epilepsia e das síndromas epilépticas variam muito com a idade. De um modo geral pode considerar-se que:

  • no período neonatal as principais causas de convulsões são os traumatismos de nascimento, a hipóxia, as hemorragias intracranianas, a hipoglicémia e os desequilíbrios iónicos, nomeadamente a hipocalcémia;
  • as anomalias congénitas, a esclerose tuberosa e as doenças metabólicas constituem as etiologias mais frequentes nos 4 ou 5 primeiros anos de vida;
  • as infecções intracranianas (meningites, encefalites) são proeminentes na idade escolar;
  • as “epilepsias genéticas” iniciam-se mais frequentemente pelos 5-6 anos ou na adolescência;
  • na juventude e início da idade adulta uma das causas mais frequentes de crises epilépticas são os traumatismos cranianos e situações relacionadas com o consumo de drogas e álcool;
  • entre a terceira e a quinta década de vida têm especial incidência os tumores cerebrais e, a partir daí, as doenças degenerativas cerebrovasculares.

No âmbito das afecções não epilépticas da infância, as crises ou convulsões febris – que adiante se abordam – ocorrem predominantemente entre os 3 meses e os 5 anos.

Classificação

Tendo em mente a definição acima descrita, ao clínico cabe caracterizar o tipo de crise, pois daí decorrem importantes implicações para a escolha dos antiepilépticos mais adequados, a possibilidade de existência de uma lesão cerebral subjacente, o prognóstico e a eventualidade de base genética.

De acordo com a Classificação da Liga Internacional Contra a Epilepsia (ILAE), as crises podem ser divididas em dois grupos: parciais e generalizadas. Por sua vez, as crises parciais podem ser simples, complexas ou secundariamente generalizadas. As crises generalizadas subdividem-se em ausências, crises mioclónicas, tónicas, tónico-clónicas e atónicas (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das crises epilépticas (Liga Internacional contra a Epilepsia)

1. Crises parciais

1.1 – Crises parciais simples

1.1.1 – Com sinais motores

a) Parciais motoras sem marcha
b) Parciais motoras com marcha jacksoniana
c) Versivas
d) Posturais
e) Fonatórias

1.1.2 – Com sintomas somatossensitivos ou sensoriais

a) Somatossensitivas
b) Visuais
c) Auditivas
d) Olfactivas
e) Gustativas
f) Vertiginosas

1.1.3 – Com sintomas ou sinais autonómicos

1.1.4 – Com sintomas psíquicos

a) Disfásicas
b) Dismnésicas
c) Cognitivas
d) Afectivas
e) Ilusões
f) Alucinações

1.2 – Crises parciais complexas

1.2.1 – Com início parcial simples
1.2.2 – Com perturbação da consciência desde o início

1.3 – Crises parciais evoluindo para generalizadas secundariamente

1.3.1 – Crises parciais simples evoluindo para generalizadas
1.3.2 – Crises parciais complexas evoluindo para generalizadas
1.3.3 – Crises parciais simples evoluindo para parciais complexas, e depois para generalizadas

2 – Crises generalizadas

2.1 – Ausências
2.2 – Ausências atípicas
2.3 – Mioclónicas
2.4 – Clónicas
2.5 – Tónicas
2.6 – Tónico-clónicas
2.7 – Atónicas

3 – Crises não classificadas

As crises parciais ou focais são devidas a uma descarga numa determinada região do córtex cerebral e denominam-se: simples, se a consciência estiver preservada; ou complexas se houver perturbação da consciência. Em ambos os tipos pode ocorrer propagação da descarga a outras áreas corticais, originando uma crise secundariamente generalizada.

Os sintomas e sinais das crises parciais simples dependem da região do córtex onde se origina a descarga anómala. Se esta ocorrer na área motora, surgirão clonias contralaterais dos membros e da hemiface; se em regiões sensoriais, responsáveis pela memória ou emoções, poderá haver, por exemplo, sensações de “déjà vu” ou de medo, alucinações olfactivas, visuais ou auditivas. De um modo genérico pode dizer-se que “tudo o que o cérebro faz, a epilepsia pode fazer”.

As crises parciais complexas podem ser precedidas de uma “aura” (que é, no fundo, uma crise parcial simples), percebida pelo doente, seguida de perturbação da consciência. Têm mais frequentemente origem nos lobos temporais, mas podem partir de outras regiões corticais. O doente perde o contacto com o meio, com olhar fixo ou vago e não responde com lógica a perguntas ou ordens; fica parado ou executa movimentos sem propósito e pode ter automatismos e alterações do tono. Existe amnésia para o episódio e segue-se um estado pós-crítico de confusão ou sonolência que pode durar minutos ou horas e, muitas vezes, cefaleias.

As crises generalizadas são a tradução, logo de início, de um envolvimento difuso e simultâneo do córtex de ambos os hemisférios com perda da consciência. Como já foi referido, podem ser ausências, crises mioclónicas, tónicas, clónicas, tónico-clónicas e atónicas.

As crises tónico-clónicas são muitas vezes precedidas de um grito, podendo ocorrer queda mais ou menos súbita; há uma fase tónica inicial seguida de movimentos convulsantes, eventualmente com rotação dos globos oculares, mordedura da língua, sialorreia ou perda de controlo de esfíncteres. A duração é variável, seguindo-se um período pós-crítico com confusão e/ou sonolência, e cefaleias.

Nas ausências há interrupção abrupta da consciência, geralmente breve (segundos), muitas vezes em salvas. Tipicamente o doente fica com o olhar parado, interrompe a actividade que estava a executar, pode ter movimentos de pestanejo ou de mastigação, logo retomando a actividade sem se aperceber do ocorrido.

As crises mioclónicas consistem em contracções musculares, súbitas e breves, isoladas ou em salvas, que podem envolver qualquer grupo muscular.

As crises tónicas traduzem-se por hipertonia súbita dos músculos extensores, acompanhada de perda da consciência.

Nas crises clónicas há contracções musculares mais ou menos rítmicas, envolvendo mais frequentemente as extremidades superiores, o pescoço ou a face.

Nas crises atónicas há perda súbita do tono muscular com queda brusca para o chão (também chamados “drop attacks”), o que pode originar lesões.

Síndromas epilépticas

Além da classificação das crises epilépticas, a ILAE aprovou também a Classificação Internacional das Epilepsias, Síndromas Epilépticas e Perturbações Relacionadas (Quadro 2), entrando em conta com um conjunto de características tais como a idade de início, história familiar de epilepsia, tipo(s) de crise, e sinais e sintomas neurológicos associados. É muito importante tentar o enquadramento da situação de um determinado doente naquela classificação, o que permitirá definir o prognóstico, a escolha mais acertada da terapêutica e, eventualmente, o aconselhamento genético.

QUADRO 2 – Classificação Internacional das Epilepsias, Síndromas Epilépticas e Perturbações Relacionadas (Liga Internacional contra a Epilepsia)

1 – Epilepsias parciais

1.1 – Idiopáticas

1.1.1 – Epilepsia benigna da infância com pontas centro-temporais (rolândica benigna)
1.1.2 – Epilepsia da infância com paroxismos occipitais
1.1.3 – Epilepsia primária da leitura

1.2 – Sintomáticas

1.2.1 – Epilepsia do lobo temporal
1.2.2 – Epilepsia do lobo frontal
1.2.3 – Epilepsia do lobo parietal
1.2.4 – Epilepsia do lobo occipital

1.3 – Criptogénicas

2 – Epilepsias generalizadas

2.1 – Idiopáticas

2.1.1 – Convulsões neonatais familiares benignas
2.1.2 – Convulsões neonatais benignas
2.1.3 – Epilepsia mioclónica benigna do lactente
2.1.4 – Epilepsia de ausências da criança
2.1.5 – Epilepsia de ausências juvenil
2.1.6 – Epilepsia mioclónica juvenil
2.1.7 – Epilepsia com crises tónico-clónicas generalizadas do acordar
2.1.8 – Outras epilepsias generalizadas idiopáticas, não definidas acima
2.1.9 – Epilepsias com crises caracterizadas por modos específicos de precipitação

2.2 – Criptogénicas e/ou sintomáticas

2.2.1 – Síndroma de West (espasmos infantis)
2.2.2 – Síndroma de Lennox-Gastaut
2.2.3 – Epilepsia com crises mioclónico-asiáticas
2.2.4 – Epilepsia com ausências mioclónicas

2.3 – Sintomáticas

2.3.1 – Etiologia não específica

2.3.1.a – Encefalopatia mioclónica precoce
2.3.1.b – Encefalopatia epiléptica infantil precoce com padrão de surto-supressão no EEG (Síndroma de Ohtahra)
2.3.1.c – Outras epilepsias sintomáticas generalizadas

2.3.2 – Síndromas específicas

2.3.2.a – Malformações
2.3.2.b – Doenças hereditárias do metabolismo

3 – Epilepsias indeterminadas quanto a serem parciais ou generalizadas

3.1 – Com crises parciais e crises generalizadas

3.1.1 – Crises neonatais
3.1.2 – Epilepsia mioclónica grave do lactente
3.1.3 – Epilepsia com ponta-onda contínua durante o sono de ondas lentas
3.1.4 – Afasia epiléptica adquirida (síndroma de Landau-Kleffner)
3.1.5 – Outras epilepsias indeterminadas não definidas anteriormente

3.2 – Sem características inequívocas de serem parciais ou generalizadas

 

4 – Síndromas especiais

4.1 – Convulsões febris
4.2 – Crises isoladas ou estados de mal epiléptico isolados
4.3 – Crises ocorrendo apenas quando há um acontecimento tóxico ou metabólico agudo

As epilepsias e as síndromas epilépticas podem ser generalizadas (i.e. com crises generalizadas) ou focais (i.e. com crises de início focal ou parcial). São consideradas sintomáticas ou secundárias quando existir uma causa conhecida (por exemplo uma lesão cerebral); e idiopáticas ou criptogénicas se não estiver identificada etiologia.

Tendo como base a classificação que integra o Quadro 2, seleccionámos algumas destas síndromas epilépticas que, pela sua frequência e/ou gravidade, têm maior relevância na prática clínica: epilepsia rolândica benigna, epilepsia de ausências, epilepsia mioclónica juvenil, espasmos infantis/síndroma de West, síndroma de Lennox-Gastaut.

No que respeita a crises não epilépticas, é dada ênfase às convulsões febris, fazendo parte no mesmo quadro da alínea “Perturbações relacionadas”, o que está em sintonia com as noções descritas anteriormente, na alínea “definições e importância do problema”.

O tema “Estado de mal epiléptico”, descrito neste capítulo de modo muito sucinto, é explanado com mais pormenor na Parte XXVIII, sobre Urgências e Emergências.

Já existem actualmente estudos conclusivos acerca da origem genética de algumas destas síndromas e, cada vez mais, o conhecimento das epilepsias se baseará na sua caracterização genética.

Epilepsia rolândica benigna

Nesta forma de epilepsia benigna também designada por epilepsia benigna da infância com pontas centro-temporais, existe grande incidência familiar; as crises surgem entre os 3 e os 12 anos em indivíduos com capacidades cognitivas e exame neurológico normais, sem lesão estrutural subjacente. É das epilepsias mais frequentes na criança. As crises ocorrem quase sempre durante o sono, têm início focal, cursando com clonias da região peribucal ou da hemiface, parestesias da língua, impossibilidade de falar, salivação, inicialmente com consciência preservada, podendo generalizar-se.

O electroencefalograma (EEG) é característico, com pontas na região centro-temporal, muito exacerbadas pelo sono. As crises são geralmente fáceis de controlar com os antiepilépticos e, se forem raras e bem toleradas pelos doentes e seus pais, muitas vezes decide-se pela não medicação. O prognóstico é excelente, com remissão pelos 13-16 anos.

Epilepsia de ausências

Trata-se duma forma de epilepsia generalizada idiopática ou primária, com forte carga genética; inicia-se entre os 4 e os 12 anos, com interrupção súbita da actividade e da consciência, durando 5-20 segundos, com olhar parado, por vezes pestanejo e/ou mastigação. Geralmente as crises ocorrem em salvas, inúmeras vezes por dia. O EEG tipicamente mostra breves descargas de pontas-ondas a 3 Hz. A maioria dos casos de ausências típicas cede bem à terapêutica, havendo remissão na adolescência.

Epilepsia mioclónica juvenil

É também uma epilepsia generalizada idiopática, com incidência familiar; começa na adolescência em jovens neurologicamente normais, com abalos mioclónicos, repetidos ou isolados, geralmente pouco após o acordar, sem perda de consciência. Pode haver também ausências, crises tónico-clónicas generalizadas (sobretudo ao acordar) ou fotossensibilidade. A privação de sono ou o álcool podem precipitar uma crise. A terapêutica com valproato de sódio é muito eficaz mas, se o tratamento for interrompido, é habitual a recaída. Daí a importância do diagnóstico correcto e da adesão do doente a uma terapêutica para toda a vida.

Espasmos infantis/Síndroma de West

Os espasmos infantis são uma forma de epilepsia, fundamentalmente dos lactentes; consistem em crises muito breves, tónicas, tipicamente em flexão, (podendo ser em extensão), envolvendo o tronco, o pescoço e as extremidades. Podem ocorrer isoladamente, mas quase sempre fazem parte da síndroma de West, que se define pela existência de espasmos, regressão do desenvolvimento psicomotor e padrão de hipsarritmia no electroencefalograma (electrogénese de base desorganizada a que se sobrepoem pontas-ondas amplas, difusas e ondas lentas irregulares).

Os espasmos iniciam-se antes do primeiro ano de vida, mais frequentemente entre os 4 e os 6 meses, podendo ocorrer dezenas ou centenas por dia, por vezes em salvas.

A síndroma de West pode ser idiopática, (quando não é conhecida a sua causa e o desenvolvimento prévio da criança era normal) ou ser sintomática, i.e., causada por uma situação subjacente. Existem inúmeras possíveis etiologias, nomeadamente anomalias do sistema nervoso central, lesão do sistema nervoso central perinatal ou pós-natal, doenças neurometabólicas ou outras geneticamente determinadas, como por exemplo a esclerose tuberosa, situação que evolui para síndroma de West em quase metade dos doentes.

Esta síndroma dificilmente cede aos antiepilépticos usuais, sendo muitas vezes necessário recorrer à terapêutica com corticóides, nomeadamente com ACTH.

O prognóstico é reservado, sobretudo nas formas sintomáticas: a mortalidade atinge 10-20% e, dos casos que sobrevivem, em cerca de 75% virá a desenvolver-se atraso importante do desenvolvimento psicomotor e, em metade destes, epilepsia. Poderá haver igualmente evolução para síndroma de Lennox-Gastaut (SLG) abordada a seguir.

Síndroma de Lennox-Gastaut

A síndroma de Lennox-Gastaut (SLG) é uma das formas mais graves e de pior prognóstico – entre as epilepsias da criança; caracteriza-se pela existência de vários tipos de crises, atraso e/ou deterioração progressiva do desenvolvimento global, problemas de comportamento e anomalias no EEG que incluem electrogénese de base lenta e mal diferenciada, sobrepondo-se actividade de ponta-onda lenta anterior, a 2-2,5 Hz.

Muitas doenças do sistema nervoso central podem cursar com SLG, verificando-se geralmente um exame neurológico alterado. As crises são muito frequentes e refractárias à terapêutica, coexistindo ausências atípicas, crises tónico-clónicas, mioclónicas, atónicas (com quedas muitas vezes violentas), tónicas (estas ocorrendo tipicamente durante o sono).

Convulsões febris

Definições, etiopatogénese e importância do problema

As chamadas convulsões febris, fortemente influenciadas por factores genéticos, constituem um grupo especial dentro dos fenómenos motores paroxísticos: convulsões (atrás definidas) associadas a febre, geralmente durante a subida térmica e sem evidência de outra causa precipitante (pressupondo nomeadamente, que não existe infecção do sistema nervoso central). Por vezes é após a crise que se nota a febre.

Nos casos de convulsões recorrentes sem febre (relacionáveis com epilepsia) há maior probabilidade de a febre desencadear uma crise; neste caso não se trata da chamada convulsão febril, mas de convulsão com febre.

As convulsões febris surgem em cerca de 3-4% das crianças entre 18 meses e 3 anos com um “pico” entre 14 e 18 meses. São raras antes dos 3 meses e após os 5 anos.

As infecções víricas são as que mais frequentemente originam a febre nestas circunstâncias. Outras situações habituais são as otites e as infecções respiratórias. Pode existir história familiar de convulsões febris (15-30%) e/ou de epilepsia (3-4%). Nalgumas famílias verificou-se hereditariedade autossómica dominante e genes associados nos cromossomas 19p e 8q 13-21. Alguns estudos têm revelado maior probalidade de convulsões febris nos casos de carência em ferro (ferritina baixa).

Manifestações clínicas e diagnóstico

As convulsões febris integram dois grandes grupos: as simples e as complicadas ou complexas. As convulsões simples (a maioria) são breves (< 15 minutos) e do tipo tónico-clónico, generalizadas.

As convulsões complexas ou complicadas duram > 15 minutos, são focais ou lateralizadas, poderão repetir-se dentro de 24 horas, e/ou acompanhando-se de sinais focais (por ex. hemiplegia) no período pós-crise.

Só em 1 de cada 3 crianças se verifica recorrência de convulsões febris simples. Contudo, podem constituir a primeira manifestação de uma epilepsia, de que a febre é apenas um factor desencadeante. Na verdade, cerca de 5% destas crianças terão epilepsia mais tarde, sendo maior esse risco: se as convulsões febris forem complicadas ou complexas, se existir história familiar de epilepsia, se a convulsão se repetir dentro de 24 horas e se esta se desencadear com o aparecimento de febre “não muito alta” (37,5-38°C).

Prevenção e tratamento

A base essencial da prevenção consiste no arrefecimento externo aquando dos primeiros sinais de febre e na administração de antipiréticos (paracetamol oral: 15 mg/kg; ou ibuprofeno: 8-10 mg/kg oral).

Somente se houver antecedentes de crises muito frequentes ou prolongadas se justifica terapêutica preventiva com diazepam oral (1 mg/kg/dia enquanto durar a febre); ou, mais raramente, com terapêutica prolongada, por exemplo com valproato de sódio e apenas nas crianças com > 2 anos, tendo em conta a hepatotoxicidade (dose inicial: 10 mg/kg/dia aumentado semanalmente 5-10 mg/kg até 30-60 mg/kg/dia). Esta estratégia implica esclarecimento dos pais e disponibilidade do clínico e equipa assistencial responsáveis para eventual apoio à distância.

A actuação prática nos casos em que surge convulsão febril de duração superior a cinco minutos é esquematizada na Figura 1.

CONVULSÃO FEBRIL

Arrefecimento, Antipirético
Aspiração de secreções, permeabilidade das vias aéreas,
Oxigenoterapia, Manobras de ressuscitação
Ventilação artificial se necessário

Diazepam*
(0,2-0,5 mg/Kg por via rectal ou 0,1-0,3 mg/Kg iv – 2 mg/minuto
(IV directo)

Na ausência da resposta em 5 minutos 

Diazepam (idem até 3 doses)

Na ausência da resposta: hospitalização

 Determinação da glicémia
(se glicémia < 45 mg/dL administrar glucose iv (0,5 g/kg) e
reavaliação da glicémia

FIGURA 1. Actuação sequencial nos casos de convulsão febril, complicada evoluindo para status epilepticus

*O Midazolam nasal (0,5 mg/Kg) ou o Lorazepan sublingual (0,05-0,1 mg/kg) são alternativas

Na hipótese de se tratar do primeiro episódio, reiterando-se a prioridade do tratamento sintomático descrito, antes do diagnóstico etiológico há, no entanto, que excluir infecção do SNC (ver adiante).

A ausência de resposta ao cabo de quinze minutos, legitimando o diagnóstico de convulsão febril complexa e a possibilidade de evolução para estado de mal epiléptico (status epilepticus) implica hospitalização.

A convulsão prolongada (associada por vezes a hipóxia variável e implicando maior consumo de glucose com risco de hipoglicémia e de sequelas do SNC) obriga à determinação da glicémia (para além doutros exames laboratoriais) e à aplicação de linha endovenosa para administração de glucose (0,5 g/kg se glicémia < 45 mg/dL).

Quando surge a primeira convulsão acompanhada de febre, se a causa da febre não for evidente, especialmente no primeiro ano de vida e em caso de convulsão complexa, não podendo excluir-se meningite ou encefalite, está indicada punção lombar para exame do LCR.

Estado de mal epiléptico

O status epilepticus coresponde à situação em que a convulsão dura mais de 30 minutos ou em que não se verifica recuperação do estado de consciência entre as crises; tal se deve, na maior parte das vezes, a infecção do SNC (por ex. meningite bacteriana ou vírica) o que, como foi dito, não corresponde à entidade “convulsão febril”.

Nos casos em que o status epilepticus se segue a episódio de convulsões associadas a febre, há que admitir a hipótese de encefalite.

Diagnóstico diferencial

Muitas situações podem, numa primeira abordagem, ser confundidas com crises epilépticas; antes de se afirmar um diagnóstico de uma doença potencialmente grave ou de se iniciar uma terapêutica, é fundamental colocar a pergunta: é realmente epilepsia? Aqui, revela-se particularmente importante a anamnese que, quando correcta e completa, permite na maioria das situações estabelecer o diagnóstico; só nalguns casos será necessário recorrer a exames complementares (designadamente vídeo-EEG) ou a consultas de especialidade.

Eis alguns exemplos de episódios paroxísticos não epilépticos:

  • os espasmos do choro – os episódios paroxísticos não epilépticos mais frequentes na idade pediátrica – ocorrem em relação com o choro; são desencadeados por uma dor ou uma contrariedade, em crianças saudáveis, entre os 6 e 18 meses. Após a perda de consciência pode haver um breve período de hipertonia e mesmo clonias, mas a recuperação é rápida e nunca existem sequelas.
    Descrevem-se duas formas: 1) a pálida, basicamente uma síncope vasovagal produzida por um mecanismo cardio – inibitório neurologicamente mediado, regredindo com a idade ou evoluindo para síncopes vasovagais; impõe-se o diagnóstico diferencial com doença cardíaca; curiosamente surge por vezes associado a anemia ferropénica; 2) a cianótica, também neurologicamente mediada, mas com mecanismo de produção desconhecido;
  • os períodos de distracção, frequentemente denominados de “ausências”, são facilmente interrompidos por um estímulo externo;
  • as crises histéricas ou pseudocrises ocorrem muitas vezes em simultâneo no mesmo doente ou em familiares que servem como “modelo”. Raramente resultam em traumatismo; não se acompanham de perda de controlo de esfíncteres e são geralmente mais aparatosas. Contudo, é por vezes necessário recorrer à realização de um vídeo-EEG para permitir a distinção com as verdadeiras crises de epilepsia;
  • a síndroma de Sandifer no lactente pequeno surge em geral entre os 18 e 36 meses. Os episódios, ocorrendo poucos minutos após refeição, associando-se ou não a regurgitações, traduzem-se por posturas anómalas do pescoço, tronco e extremidades, como consequência de refluxo gastresofágico (RGE), hérnia do hiato ou disfunção esofágica. O quadro cede com o tratamento do RGE;
  • algumas perturbações do sono, nomeadamente, terrores nocturnos, despertares nocturnos incompletos, pesadelos ou sonambulismo;
  • os tiques e algumas doenças extrapiramidais são outros exemplos de situações em que a epilepsia pode fazer parte do diagnóstico diferencial;
  • o torcicolo paroxístico inicia-se no primeiro ano de vida, regredindo antes dos 5 anos. Consiste em movimentos oculares anormais seguidos de torcicolo doloroso, durando minutos, horas, ou até, dias. Suspeita-se de relação com enxaqueca;
  • as síncopes vasovagais são os episódios paroxísticos não epilépticos mais frequentes entre os 2 e 12 anos de idade, muitas vezes relacionados com situações de ortostatismo prolongado ou emoções.
    Sendo habitual a confusão com as crises epilépticas generalizadas, definem-se por perda de consciência e do tono postural (por vezes associados a palpitações, sudação, palidez e mioclonias das extremidades) de curta duração (10-30 segundos) por hipoperfusão/défice de oxigenação arterial cerebral ultrapassando a duração de 8-10 segundos. Nalguns casos há sintomas prodrómicos: vertigem, perda da audição, de visão ou visão “nebulosa”, e sensação de calor. A recuperação é espontânea; existe uma base familiar e os episódios podem repetir-se.
    Este quadro clínico surge por falência hemodinâmica, mais habitualmente neurologicamente mediada.
    Importa fazer o diagnóstico diferencial com síncope cardiogénica, menos frequente; situações raras com quadro clínico semelhante poderão ser explicadas por certas arritmias cardíacas e cardiopatias estruturais, algumas das quais se traduzem por síndroma de QT longo.
  • outras situações descritas na literatura: hemiplegia alternante da infância (ligada em 70% dos casos a mutação no gene ATP31A), Opsoclonus, Balanceamentos da cabeça e corpo, Vómitos cíclicos do lactente, etc..

Exames complementares

O electroencefalograma (EEG) é o exame complementar mais usado em epileptologia, sendo útil para confirmar o diagnóstico e para estabelecer a classificação (crises parciais ou generalizadas, síndromas). Contudo, em cerca de 50% dos casos dos doentes epilépticos os EEG – padrão intercríticos são normais, mesmo se for incluído registo de sono. Ao invés, indivíduos saudáveis podem ter alterações electroencefalográficas sem nunca virem e ter epilepsia. As técnicas de activação (hiperpneia e estimulação luminosa intermitente), poderão ajudar a desencadear alterações epileptiformes no traçado.

Na neurofisiologia actual são imprescindíveis as técnicas de monitorização prolongada (vídeo-EEG e “Holter-EEG”) com vista a obter um registo ictal e uma correcta caracterização de muitos dos casos de epilepsia, nomeadamente nos doentes candidatos a cirurgia da epilepsia.

De mencionar a utilidade do EEG no diagnóstico do estado de mal não convulsivo e no diagnóstico diferencial com pseudocrises e outros fenómenos paroxísticos não epilépticos.

Destaca-se a importância de os clínicos conhecerem as indicações e os limites do EEG e a necessidade de ser fornecida ao electroencefalografista uma informação clínica o mais completa possível para uma correcta interpretação.

Na maioria dos casos de epilepsia é essencial a realização de exames de imagem cerebral para uma correcta caracterização, sobretudo nas epilepsias parciais. Com as técnicas actualmente disponíveis é possível encontrar sinais de lesão estrutural em cerca de 50% dos doentes com crises de início focal.

 A ressonância magnética (RM) cerebral tem maior sensibilidade e, salvo raras excepções, pode afirmar-se que em epileptologia a tomografia axial computadorizada (TAC) só deverá ser realizada se a RM não estiver disponível, ou nos doentes em que esta última esteja contra-indicada. Variando com o grupo etário, são exemplos de lesões detectáveis pela RM: displasias corticais e anomalias artério-venosas nas crianças; esclerose mesial, sequelas de traumatismo craniano, tumores cerebrais, lesões vasculares no jovem; acidentes vasculares, doenças degenerativas cerebrais, neoplasias primárias e secundárias.

Embora não indicadas em avaliações de rotina, técnicas de neuroimagem como a RM funcional, a tomografia com emissão de positrões (PET) ou a RM com espectroscopia têm especial interesse nos doentes candidatos a cirurgia da epilepsia.

Tratamento

Atendendo a que a epilepsia é uma doença crónica e considerando as suas particularidades (por exemplo o aparecimento inesperado das crises, o estigma social, a terapêutica diária e prolongada), deve dar-se especial atenção ao acompanhamento psicossocial e familiar destes doentes, além do tratamento medicamentoso.

Apesar de as drogas antiepilépticas (DAE) serem parcialmente eficazes na eliminação ou redução do número de crises, não são dirigidas à origem das doenças ou lesões neurológicas subjacentes. Contudo, constituem a pedra angular do tratamento destes doentes, actuando como estabilizadores da neurotransmissão, quer inibindo a excitabilidade neuronal, quer aumentando o efeito polarizante do ácido gama-amino-hidroxi-butírico (GABA) (neurotransmissor inibitório). Os mecanismos da epileptogénese, a farmacodinâmica das DAE e o seguimento de epilepsias refractárias estão fora do âmbito deste livro, pelo que apenas se abordam as regras gerais do tratamento dos doentes com a patologia em análise.

Salienta-se desde já, aliás como em todas as doenças crónicas, a necessidade da estreita colaboração entre o especialista, neste caso o neuropediatra, e o pediatra ou médico de família. No caso de epilepsias estáveis (por exemplo epilepsia rolândica benigna, epilepsia de ausências), as consultas de neuropediatria poderão ser bastante espaçadas e os pequenos reajustamentos terapêuticos, ou exames analíticos ser realizados pelo médico assistente.

Só deve iniciar-se uma terapêutica com DAE quando o diagnóstico de epilepsia for seguro, o que nem sempre é fácil; daí a importância da anamnese e dos outros aspectos descritos anteriormente. O início do tratamento deve ser guiado pela epidemiologia e por factores individuais, e os riscos e benefícios discutidos amplamente com o doente e/ou familiares. Como já foi referido, é fundamental tentar um diagnóstico sindrómico pois, considerando os diferentes mecanismos de acção das várias DAE, sabe-se que existem medicamentos mais eficazes e outros contra-indicados em certas circunstâncias. Por exemplo o valproato de sódio é de primeira escolha nas epilepsias generalizadas enquanto a carbamazepina está indicada nas crises parciais, podendo agravar uma epilepsia generalizada.

Do Quadro 3, que discrimina algumas das regras gerais da terapêutica antiepiléptica, salienta-se a preferência, sempre que possível, pela monoterapia e a introdução das DAE em doses crescentes. Salienta-se ainda a variabilidade individual na eficácia e na tolerância a estes medicamentos; daí a necessidade de medicação adaptada a cada doente e, no mesmo doente, ao longo do tempo. Em relação aos doseamentos das DAE disponíveis na prática clínica diária (valproato de sódio, carbamazepina, fenitoína e fenobarbital), importa referir que, estando o doente sem crises e não sendo observados efeitos secundários, não deverão ser alteradas as doses das DAE independentemente dos níveis séricos.

Apesar da introdução mais ou menos recente de novos medicamentos antiepilépticos, a maioria dos doentes encontra-se bem controlada com as DAE já estabelecidas, como o valproato de sódio, a carbamazepina, a difenil-hidantoína, o fenobarbital, a primidona, o clobazam, o clonazepam ou a etossuximida. São exemplos de novos antiepilépticos, quase todos usados como medicamentos de segunda linha e em terapia de associação: lamotrigina, topiramato, vigabatrim, oxcarbazepina, gabapentina, tiagabina, felbamato, zonizamida. Estes são usados para as epilepsias de mais difícil controlo. Tal acontece também em situações de terapêuticas invasivas para algumas situações mais refractárias, como implantação de um estimulador do vago (medida paliativa) e cirurgia potencialmente curativa (ressecção cortical focal, hemisferectomia, etc.) ou paliativa (por ex. corpo calosotomia). Os candidatos a estas intervenções devem reunir indicações muito precisas e ser exaustivamente estudados em centros diferenciados.

QUADRO 3 – Regras gerais da terapêutica antiepiléptica

Notas:
1 – as situações de epilepsia deverão ser seguidas em centros especializados.
2 – as terapêuticas prolongadas implicam o doseamento sérico de determinados fármacos
(por exemplo fenobarbital, fenitoína, etc.) na perspectiva da eficácia e/ou da toxicidade.
    • Início se houver um diagnóstico seguro de epilepsia
    • Os doentes (ou os pais) devem compreender as razões do tratamento e estar motivados para os benefícios da terapêutica. A má adesão é causa frequente de insucesso
    • Usar os antiepilépticos mais apropriados para o tipo de crise (caracterização clínica – EEG)
    • Iniciar em monoterapia (sempre preferível), em doses crescentes
    • Aumentar as doses até ao controlo das crises ou até aparecimento de efeitos secundários
    • Usar durante tempo suficiente para avaliar a eficácia
    • Se for necessário, substituir gradualmente um antiepiléptico por outro
    • Somente se deve passar a politerapia se se verificar insucesso em monoterapia
    • O doente deve elaborar um “calendário de crises”
    • Usar o menor número possível de tomas diárias (para facilitar a adesão)
    • Verificar a adesão
    • Evitar outros medicamentos não indispensáveis (verificar interacções)
    • Vida “regrada”: ritmo regular de sono/vigília/álcool…
    • Após 1 a 3 anos sem crises: suspensão gradual das DAE
    • Os antiepilépticos têm muitos efeitos colaterais (pesquisar sistematicamente)

Prognóstico

Nas últimas décadas ocorreram grandes progressos no conhecimento da fisiopatologia da epileptogénese, na caracterização clínica e classificação das crises e das síndromas epilépticas, e igualmente no âmbito da imagiologia cerebral, da neurofisiologia e de novos medicamentos anti-epilépticos.

Mais recentemente, abrindo-se o capítulo da cirurgia da epilepsia, com indicação nalguns casos refractários, surgiu uma modalidade terapêutica mais eficaz e menos dispendiosa do que politerapia durante toda vida.

Salienta-se que, embora a epilepsia possa ser considerada uma doença crónica extremamente grave, interferindo grandemente com o quotidiano, nalguns casos verifica-se remissão espontânea, sendo actualmente tratável na grande maioria dos doentes, o que é compatível com uma vida praticamente sem limitações.

Em suma, a maioria das pessoas com epilepsia pode actualmente ter uma vida normal ou quase normal. Contudo, para aquelas em que o controlo das crises se revela mais difícil, algumas esperanças existem face aos grandes avanços a decorrer em epileptologia, quer no âmbito da fisiopatologia, genética e da investigação diagnóstica (neuroimagiologia e neurofisiologia), quer ainda no âmbito da terapêutica médica e cirúrgica.

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ATAXIA

Definições e importância do problema

A ataxia define-se como perturbação da coordenação dos movimentos voluntários. Pode manifestar-se na posição de pé (estática), durante a marcha (locomotora), ou durante a execução de um movimento (cinética). Trata-se de um problema relativamente comum em idade pediátrica; na sua forma de manifestação aguda não é raro que necessite de uma abordagem diagnóstica, pelo menos inicial, pelo pediatra ou pelo clínico geral no serviço de urgência.

Tratando-se dum tipo de alteração dos movimentos, importa, por razões didácticas, definir sucintamente outros tipos não abordados em capítulos específicos, mas integrando diversos problemas clínicos:

  • coreia, como situação caracterizada por movimentos involuntários e irregulares, umas vezes rápidos, outras vezes lentos, acompanhada por hipotonia muscular e perturbação da coordenação (por exemplo coreia de Sydenham, coreia de Huntington);
  • atetose, como movimentos involuntários, lentos e ondulantes, predominantes nas extremidades; tais movimentos são amplificados por emoções ou excitações, atenuados com o repouso e desaparecem com o sono;
  • tremor, como sucessão de oscilações rítmicas involuntárias que agitam uma parte do corpo ou o corpo inteiro; podem ser contínuas ou intermitentes, rápidas ou lentas, discretas ou acentuadas;
  • tique, como movimento anormal intermitente, súbito e involuntário, que resulta da contracção de um ou mais músculos; desaparece durante o sono e pode ser controlado temporariamente pela vontade; o blefarotique ou tique localizado nas pálpebras constitui um exemplo.

Aspectos semiológicos e nosológicos

A ataxia resulta duma disfunção do cerebelo ou das suas conexões. Com efeito, o cerebelo coordena os movimentos e os mecanismos de ajustamento postural e da marcha.

Para a compreensão dos problemas clínicos nas disfunções cerebelosas a analisar neste capítulo, será importante uma abordagem prévia de aspectos essenciais da fisiologia e da semiologia.

As lesões cerebelosas produzem um quadro clínico característico:

  1. incoordenação e tremor chamado intencional ou cinético; os movimentos de aproximação, por exemplo nas provas dedo-nariz e calcanhar-joelho, são afectados por um tremor (ou perturbação da amplitude dos movimentos) que se torna mais amplo com a aproximação do alvo (dismetria); os movimentos de perseguição ocular são afectados por oscilações lentas e oscilações rápidas em vez de se realizarem de uma maneira gradual e uniforme, impedindo a manutenção dos olhos numa posição excêntrica (nistagmo); o discurso é perturbado por uma perda de nitidez na articulação e por uma entoação variável que decompõe as palavras nos seus componentes silábicos: disartria cerebelosa que traduz perturbação motora dos órgãos de fonação;
  2. desequilíbrio, sem direcção predominante; o encerramento dos olhos pode agravá-lo ligeiramente, mas não se observa um verdadeiro sinal de Romberg como nas lesões vestibulares ou cordonais posteriores; a marcha tem uma base larga e os passos são irregulares na direcção e na amplitude;
  3. hipotonia, mais notória nas lesões agudas, estando os reflexos osteotendinosos preservados; nas lesões crónicas (degenerativas ou outras), a hipotonia é menor ou pode não se verificar.

Ou seja, a ataxia apresenta diversas expressões semiológicas tais como, disartria, dismetria, tremor intencional, nistagmo e ainda a diadococinésia (esta última traduzindo impossibilidade de execução rápida de movimentos alternantes como pronação-supinação). De acentuar que as marchas peculiares das miopatias, neuropatias e doenças vestibulares não constituem ataxias.

As ataxias integram um tópico muito extenso e complexo, sendo de referir os constantes avanços nos aspectos genéticos moleculares e terapêuticos, os quais têm dado origem a múltiplas classificações ao longo do tempo. Tal circunstância é, pois, susceptível de tornar as actualizações obsoletas a curto prazo.

Sob o ponto de vista genético existem formas com padrão autossómico dominante, autossómico recessivo, ligadas ao cromossoma X e de hereditariedade mitocondrial, salientando-se a quantidade cada vez maior de genes reconhecidos.

Existem grupos em que ao compromisso neurológico se somam sinais extraneurológicos ou sistémicos. Coadjuvando a clínica, a este respeito, salienta-se o papel orientador da RM na identificação de alterações anatómicas como aplasia, hipoplasia, atrofia cerebelosa, ou outras alterações da substância branca e cinzenta.

No que respeita às ataxias hereditárias, são considerados três grande grupos: congénitas, em geral não evolutivas, com início ou maior expressão na infância; degenerativas que são evolutivas; e ataxias intermitentes.

Neste capítulo são considerados, numa perspectiva clínica, três tipos de ataxia: aguda, recorrente e crónica.

Ataxia aguda

A ataxia aguda pode, por vezes, constituir um problema complexo de diagnóstico diferencial, o que releva a importância da história clínica. De facto, numa situação aguda é fundamental definir se se trata do primeiro episódio de afecção com antecentes familiares do mesmo foro, ou se existe a possibilidade de, entre outros aspectos, efeito tóxico.

Nesta alínea são abordadas as situações de ataxia aguda mais frequentes, devendo salientar-se as infecções e as intoxicações.

Ataxia aguda para ou pós-infecciosa

O quadro de uma criança com uma história de varicela recente, provavelmente ainda com um exantema característico desta situação que, ao acordar, recusa a posição de pé, manifesta um claro desequilíbrio e tem tremor, constitui um dos exemplos mais frequentes de ataxia aguda observados pelo médico no serviço de urgência.

A ataxia aguda pós-infecciosa por cerebelite é uma situação que parece ser devida a invasão directa de um agente infeccioso ou a uma resposta inflamatória mediada imunologicamente após uma infecção.

Agentes microbianos mais frequentemente implicados são: vírus varicela-zoster, Mycoplasma, o vírus de Epstein-Barr, o citomegalovirus e enterovirus. Deve ter-se em conta que em cerca de 30-50% dos casos não é identificável uma infecção associada ao quadro de ataxia, ou antecedendo-o.

O quadro clínico típico é o de uma criança entre os 2 e os 7 anos, que no decurso de uma doença exantemática ou outra doença infecciosa, ou cerca de 1 a 2 semanas depois, acorda, verificando-se ataxia que é habitualmente mais notória de início. A ataxia pode ser tão marcada que não permite a posição sentada e determina um tremor cefálico. Podem também coexistir nistagmo, disartria (existem raras descrições de mutismo), tremor intencional e dismetria nos 4 membros, simetricamente, com reflexos mantidos e com uma hipotonia ligeira global. Não se verifica depressão do estado de consciência, nem alteração major de comportamento. A recuperação começa habitualmente após 1 semana e é em geral completa, embora possa ser prolongada.

Uma história de ataxia aguda, com as características descritas, deve determinar, após a avaliação inicial, um período de observação em centro especializado e quase sempre (possivelmente com a excepção da ataxia associada a varicela, em que o diagnóstico é óbvio) a realização de um exame de imagem: pela ressonância magnética podem, por vezes, observar-se sinais de lesões cerebelosas hiperintensas.

A literatura não é consensual sobre a necessidade de realizar, face a um quadro de cerebelite aguda, um exame do LCR (pode encontrar-se neste contexto uma ligeira pleocitose linfocítica, sem outras alterações). A indicação para realizar punção lombar é essencialmente a de suspeita de um diagnóstico alternativo, como encefalite (depressão do estado de consciência, alteração de comportamento ou sinais neurológicos focais).

Intoxicação

É bastante frequente, entre crianças dos 1 a 5 anos, a intoxicação acidental. Muitos casos envolvem a ingestão de fármacos com um efeito sedativo que também causam ataxia e nistagmo (tranquilizantes, antidepressivos, antiepilépticos, anti-histamínicos, antitússicos). A ingestão intencional (mas oculta) de medicamentos deste tipo, ou das chamadas drogas de uso recreativo ou de álcool, são uma possibilidade a considerar em adolescentes. Nem sempre o rastreio laboratorial é positivo e, nestes casos, o diagnóstico poderá depender da evolução clínica ou da exclusão de diagnósticos alternativos.

FIGURA 1. Exame de imagem (TAC) – Glioma da protuberância. Uma volumosa lesão assinalada na figura causa hidrocefalia por obstrução do IVº ventrículo. A história incluía cefaleias, vómitos, ataxia com um envolvimento do tronco e dos membros, e diplopia (por parésia do VIº par)

Tumores da fossa posterior

Uma criança com um tumor cerebral da fossa posterior pode recorrer ao serviço de urgência com uma história recente de ataxia (mais prolongada, semanas ou mesmo meses, eventualmente associada a cefaleias e/ou a vómitos). A ataxia não tem o carácter agudo descrito para a cerebelite e a história terá os elementos sugestivos de hipertensão intracraniana (cefaleias nocturnas que acordam o doente e no despertar, vómitos matinais que aliviam a cefaleia). O exame pode revelar uma ataxia de predomínio axial ou hemiataxia, eventualmente com sinais de compromisso de pares cranianos (mais frequentemente o VIº e o VIIº pares); e, na fundoscopia observar-se-á estase papilar. Mais frequentes neste contexto são o astrocitoma, o meduloblastoma, o ependimoma e o glioma da protuberância.

Os exames de imagem (TAC ou RM) permitem confirmar o diagnóstico (Figura 1).

Ataxia como sintoma de conversão

Perturbações do equilíbrio e da marcha, não raramente, podem surgir como sintomas de conversão em adolescentes. Nestes casos a marcha não tem uma base larga. A posição de “sentado” não causa qualquer dificuldade, mas a “de pé” manifesta-se por desequilíbrio, frequentemente espectacular; não se observam outras anomalias no exame neurológico.

Pseudo-ataxia epiléptica

Raramente uma criança com epilepsia de ausências ainda não diagnosticada, ou com certos tipos de epilepsia parcial refractária, ou ainda com epilepsia criptogénica, como a síndroma de Lennox-Gastaut, pode apresentar-se com um quadro clínico de status epiléptico não convulsivo: flutuação do estado de consciência, períodos sem contacto visual ou auditivo. Existe, contudo, possibilidade de realizar tarefas motoras de modo automático e, eventualmente, andar com algum desequilíbrio. Poderão também surgir mioclonias palpebrais e discretas clonias dos membros, multifocais, ou ainda episódios breves de nistagmo, sugerindo o diagnóstico de epilepsia.

O diagnóstico é confirmado pelo EEG. Estas situações exigem uma terapêutica antiepiléptica urgente, a decidir pelo neurologista pediátrico.

Enxaqueca da artéria basilar

A enxaqueca da artéria basilar, uma forma chamada «complicada» de enxaqueca, frequente na adolescência e no sexo feminino, pode incluir, como sintomas iniciais, de «aura», ataxia, nistagmo, vertigem, alterações visuais, parestesias e mesmo tetraparésia, que regridem já após o início de cefaleia occipital pulsátil (ver capítulo anterior).

O exame neurológico é normal após a recuperação e pode haver uma história precedente típica de enxaqueca (assim como antecedentes familiares de enxaqueca). Na abordagem inicial e na ausência dos referidos dados da história clínica, poderá ser necessário realizar um exame de imagem (para excluir lesão estrutural da fossa posterior), e EEG para excluir epilepsia occipital.

Ataxia pós-traumática

Em crianças, o sintoma pós-traumático mais frequente é a ataxia. A ataxia pós-traumática é habitualmente só axial, determinando um desequilíbrio. Provavelmente deve-se a uma perturbação transitória de funcionamento do tronco cerebral, o qual é submetido a trauma durante fenómenos de rotação e desaceleração contra a tenda do cerebelo.

Na fase aguda, após um traumatismo, uma criança com ataxia deve ser submetida a exame de imagem para excluir hemorragia na fossa posterior. É importante considerar também no diagnóstico diferencial a chamada concussão vestibular em que o desequilíbrio não é atáxico: em geral a criança recusa-se a mobilizar a cabeça, descreve uma sensação de vertigem e pode ter vómitos.

Opsoclónus-mioclónus

Trata-se duma situação rara em que uma criança com ataxia aguda, em geral com um importante componente mioclónico, tem associada uma considerável irritabilidade e uma anomalia oculomotora de tipo opsoclónus (movimentos conjugados, bruscos e amplos, involuntários dos olhos).

Este quadro clínico de opsoclónus-mioclónus pode ser pós-infeccioso ou paraneoplásico (neuroblastoma); dados recentes identificam-no como uma patologia autoimune do cerebelo.

Existe uma evolução crónica, frequentemente com flutuações; nos casos em que a etiopatogenia é paraneoplásica, persiste após o tratamento do tumor. Corticoterapia, gamaglobulina endovenosa e benzodiazepinas são as terapêuticas utilizadas.

Ataxia recorrente

A ataxia recorrente é menos frequente que a ataxia aguda, sendo o diagnóstico etiológico daquela muito diferente do anteriormente exposto para esta última.

Embora enxaqueca e epilepsia sejam doenças recorrentes, a ataxia como manifestação predominante daquelas não é comum, excepto nos já referidos status epiléptico não convulsante e na enxaqueca da artéria basilar.

A intoxicação acidental pode também ser recorrente, importando salientar que a síndroma de Munchausen «por procuração» é também, em função do contexto clínico e do ambiente em que vive a criança, uma causa a considerar.

No âmbito das ataxias recorrentes (as quais se devem, sobretudo, a doenças metabólicas e genéticas, faz-se referência apenas às seguintes situações:

  • ataxia episódica (tipo 1 e 2)
  • doença de Hartnup
  • deficiência de PDHC
  • leucinose (forma aguda intermitente)

A chamada doença vanishing white matter é uma encefalopatia relacionada com mutação no gene EIFB2A , localizado no cromossoma 3. Caracterizando-se por episódios recorrentes de alteração do estado de consciência, frequentemente após traumatismos cranianos minor ou doenças febris, evolui progressivamente para um défice neurológico de tipo atáxico e espástico, com uma relativa preservação das funções mentais. O estudo imagiológico pela RM cerebral permite identificar lesões da substância branca com a formação de quistos relacionáveis com hipomielinização.

Ataxia crónica

No diagnóstico de ataxia crónica devem ser consideradas separadamente: ataxia não progressiva e ataxia progressiva.

Ataxia congénita não progressiva

Neste grupo estão englobadas as ataxias congénitas devidas a defeitos congénitos do sistema nervoso. Existe discordância entre os achados de imagem e o quadro clínico: em geral, prevalece o défice cognitivo (como sintomatologia associada a um grave defeito de desenvolvimento do cerebelo) sobre os sinais clássicos de ataxia. Muitas destas crianças são hipotónicas mantendo reflexos osteotendinosos; algumas têm nistagmo ou estrabismo.

A situação mais caracterizada na literatura é a síndroma de Joubert (agenésia vermiana associada a um defeito de desenvolvimento do mesencéfalo, com atraso psicomotor, anormal controlo respiratório central com episódios de hiperventilação, nistagmo e displasia quística renal).

A hipoplasia congénita do cerebelo pode ser uni ou bilateral. Não são conhecidas as causas de hipoplasia unilateral, sendo de admitir que nalguns casos se trate de sequela atrófica de lesão pré-natal (provavelmente vascular ou infecciosa).

De salientar que o quadro de cerebelo hipoplásico associado a defeitos de migração neuronal de tipo polimicrogiria pode encontrar-se na infecção congénita por citomegalovírus e pode ocorrer associado a lissencefalia em mutações de genes da tubulina (TUBA1A).

Uma situação de ataxia com evolução subaguda implica a procura imediata de uma causa eventualmente tratável, como tumor da fossa posterior.

Ataxia crónica progressiva

Perante uma ataxia crónica progressiva é necessário pesquisar dados de história familiar (casos semelhantes na família sugerindo uma ataxia de tipo dominante e/ou consanguinidade, e irmãos afectados sugerindo uma doença recessiva).

Faz-se referência às seguintes entidades clínicas:

Abetalipoproteinémia

Uma história de ataxia com início na idade pré-escolar, arreflexia, nistagmo, precedida de atraso estaturoponderal e de síndroma de má absorção com esteatorreia, sugere abetalipoproteinémia. O diagnóstico é confirmado pelo achado laboratorial de níveis de colesterol e triglicéridos baixos, anemia de causa nutricional, e pela ausência de apolipoproteína B no plasma. O locus genético foi identificado no cromossoma 4 (gene MTTP: microsomal triglyceride transfer protein).

A terapêutica parentérica com vitamina E corrige as anomalias neurológicas na abetalipoproteinémia.

Ataxia-telangiectasia

A ataxia-telangiectasia é uma doença recessiva determinada por mutação no gene ATM (11q23.3), do que resulta uma proteína truncada não funcionante com efeitos diversos como hipersensibilidade a radiações ionizantes, atingimento do processo de reparação do ADN, inibição da sua síntese, incremento de rupturas cromossómicas, com consequentes anomalias imunológicas e incremento da apoptose.

Os sinais clínicos precoces são as infecções sinopulmonares recorrentes (frequentemente há défice de imunoglobulinas, mais frequentemente IgA associada a subclasses de IgG) e, por vezes, uma anomalia de movimento do tipo coreoatetose verificável nos primeiros dois anos de vida.

A ataxia surge subsequentemente e é progressiva. Na maioria dos doentes vem a desenvolver-se uma anomalia dos movimentos oculares chamada apraxia oculomotora (incapacidade de execução de movimentos voluntários coordenados apesar de se conservarem as funções musculares e sensoriais).

As telangiectasias (mais frequentes nas conjuntivas e nos pavilhões auriculares) observam-se após os dois anos. Na adolescência é frequente a perda da marcha autónoma pelo agravamento da ataxia e por neuropatia axonal progressiva.

Há um risco muito significativo de neoplasia, sobretudo linfoma e leucemia.

Quase todos os doentes têm níveis elevados de alfafetoproteína no soro e, em cerca de 80% dos casos, verifica-se deficiência de imunoglobulinas.

A RM-CE em fases avançadas evidencia atrofia cerebelosa.

O tratamento, que não é específico, baseia-se essencialmente na administração de imunoglobulina nos casos de infecções recorrentes, na fisioterapia e na terapia ocupacional. Salienta-se que é importante o diagnóstico precoce, a vigilância clínica atendendo à detecção de eventual surgimento de tumores, o conselho genético e o diagnóstico pré-natal com estudos moleculares.

Ataxia sem telangiectasia

Um fenótipo de «ataxia sem telangiectasia e sem imunodeficiência» foi descrito ao longo de vários anos, actualmente com 4 genes conhecidos – AOA1-AOA2-AOA3 e AOA4, destacando-se duas entidades: ataxia-telangiectasia-like disorder” e ataxia and oculomotor apraxia.

Ataxia de Friedreich

A ataxia de Friedreich é uma ataxia transmitida de modo recessivo; é explicada por uma mutação com expansão do gene denominado frataxina, no cromossoma 9. Está actualmente demostrado que a frataxina é uma proteína mitocondrial e que as mutações envolvidas nesta doença causam um défice desta proteína nas mitocôndrias e acumulação tóxica de ferro.

O quadro neurológico é o de ataxia progressiva que pode ter início entre os 2 e os 16 anos. A disartria é frequente e precoce. São típicos arreflexia e pés cavus, respostas plantares extensoras e hipostesia postural e vibratória. A perda da marcha autónoma ocorre cerca de 15 anos após o início dos sintomas.

Diabetes mellitus, cardiomiopatia hipertrófica e escoliose são as complicações não neurológicas mais frequentes.

Não há ainda um tratamento curativo para esta situação. O tratamento com antioxidantes como vitamina E e coenzima Q10 poderá retardar a progressão da doença.

Doenças mitocondriais

Um grupo importante de doenças, com expressão neurológica e sistémica que podem manifestar-se por ataxia progressiva, é constituído pelas doenças mitocondriais.

Os tecidos que exprimem clinicamente com mais frequência um defeito de função mitocondrial são aqueles que têm um maior consumo energético, nomeadamente o cérebro e o músculo.

As anomalias de função mitocondrial podem ter repercussão no ADN mitocondrial ou nuclear e podem ocorrer “de novo” ou ser herdadas. Devido a um fenómeno chamado heteroplasmia, os vários tecidos podem ser portadores, no mesmo indivíduo, de maior ou menor número de mitocôndrias com mutante, o que condiciona variantes do quadro clínico, da gravidade e da expressão nos diferentes membros de uma família.

Em geral deve suspeitar-se de doença mitocondrial perante um quadro clínico de doença neurológica, de ataxia, demência, neuropatia, miopatia, surdez, baixa estatura, diabetes, cardiomiopatia, independentemente dos antecedentes familiares (Parte XXXII).

A ataxia progressiva mais bem caracterizada em doenças mitocondriais ocorre nas síndromas de Kearns-Sayre (ataxia, retinopatia pigmentar, surdez, cardiopatia com bloqueio aurículo-ventricular) e NARP (neuropatia, ataxia, retinopatia pigmentar e surdez).

Outras ataxia crónicas

Além das situações referidas que frequentemente combinam ataxia com sinais piramidais e demência, várias outras doenças genéticas raras necessitam de ser consideradas no diagnóstico diferencial de uma ataxia progressiva infantil. Citam-se a doença de Nieman-Pick, as gangliosidoses juvenis (incluindo a doença de Tay-Sachs), a leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe juvenil, a adrenoleucodistrofia ligada ao cromossoma X, a doença de Refsum e a xantomatose cerebrotendinosa.

Ataxias de tipo dominante

Faz-se referência ainda a um grupo de ataxias com modo de transmissão dominante. O início dos sintomas é habitualmente na idade adulta; mas excepcionalmente pode ocorrer na infância ou na adolescência, por vezes com uma expressão clínica diferente. É o caso da doença de Machado-Joseph (SCA3: spinocerebellar ataxia type 3) e da SCA1 (spinocerebellar ataxia type 1).

AGRADECIMENTOS

À Dra. Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologista do Hospital de Dona Estefânia) pela cedência da foto da Figura 1.

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CEFALEIAS

Importância do problema

As cefaleias são um problema frequente em idade pediátrica com repercussões no desempenho escolar, memória, personalidade, atenção e relação social em função da etiologia, frequência e intensidade.

Não é claro a que se deve o sub-reconhecimento deste facto; possivelmente (no caso dos profissionais de saúde) à escassez de literatura médica sobre este tema e (no caso dos familiares da criança) à ideia estabelecida de que as cefaleias primárias não existem em crianças.

As causas mais frequentes, abordadas neste capítulo, são a enxaqueca, factores psicogénicos ou estresse, e hipertensão intracraniana. Situações mais raras como erros de refracção, estrabismo, sinusite e má-oclusão dentária também podem explicar o problema (Partes XIII, XXVI, XXVII).

Etiopatogénese e semiologia

As estruturas intracranianas sensíveis à dor são: a pele, o tecido subcutâneo, os músculos e artérias extracranianas, o periósteo, os seios venosos durais, (sobretudo o seio cavernoso), as meninges da base do crânio, as artérias intracranianas proximais e a porção intracraniana da carótida interna; os seios perinasais e estruturas do olho, do ouvido; e ainda os nervos óptico, oculomotores, trigémeo, glossofaríngeo e primeiras três raízes cervicais.

A tenda do cerebelo demarca, em termos de enervação sensitiva, as estruturas com dor referida à região frontotemporal e orbitária (acima da tenda), e a dor referida à região occipital (abaixo da tenda).

É necessário ter em conta que a dor referida à região frontotemporal pode ter origem nasossinusal, orbitária, na carótida intra ou extracraniana, em estruturas extracranianas subcutâneas, ou ainda na articulação temporomaxilar e em múltiplas patologias intracranianas supratentoriais.

A dor referida à região occipital pode estar relacionada com patologia intracraniana na fossa posterior, ou ter origem na região cervical superior.

Os mecanismos pelos quais ocorre a dor podem ser a hipertensão intracraniana, por exemplo, por uma lesão ocupando espaço, ou uma anomalia na circulação, reabsorção ou, mais raramente na produção de líquido céfalo-raquidiano (LCR). A inflamação e distorção de artérias intracranianas por múltiplas patologias também podem originar dor. Igualmente, inflamação ou obstrução à drenagem dos seios perinasais são causa de cefaleias. O esforço visual associado a um erro de refracção pode causar uma cefaleia frontal, moderada em relação com um esforço continuado dos músculos oculares extrínsecos; e a uveíte e o glaucoma são causas importantes de dor retro-ocular.

O agravamento com a tosse ou com a mudança de posição da cabeça (por exemplo quando a criança se baixa para apanhar um objecto do chão) sugerem hipertensão intracraniana (HIC).

A hipoventilação que acompanha o sono causa uma relativa retenção de CO2 e um aumento correspondente da pressão intracraniana, razão pela qual as cefaleias que ocorrem no sono ou estão presentes no despertar, aliviando subsequentemente, são também sugestivas de HIC.

É bem conhecido que a cefaleia de hipotensão intracraniana (mais frequentemente pós-punção lombar) se inicia na posição de pé e alivia em minutos com o decúbito.

Uma cefaleia unilateral pode dever-se a enxaqueca (tópico a analisar adiante); mas a presença de uma dor deste tipo com características progressivas ou outros sinais de HIC (presente no sono ou no despertar, associada a vómitos, ou a certos sintomas e sinais neurológicos como diplopia e estrabismo, ataxia ou sinais focais) devem fazer suspeitar de uma lesão intracraniana expansiva.

Na criança existem dificuldades particulares relacionadas com a informação anamnéstica, tendo em conta o estádio de desenvolvimento cognitivo e a sua capacidade de aquela se exprimir e de descrever os sintomas. A localização de uma cefaleia é provavelmente mais vaga, nem sempre sendo possível localizar a dor, nem avaliar a sua intensidade e tipo com precisão.

Enxaqueca

Aspectos da epidemiologia e genética

Embora a literatura sobre cefaleias em crianças e adolescentes seja escassa, o consenso actual é de que enxaqueca constitui o tipo de cefaleia mais frequente (cerca de 75% dos casos).

Estudos epidemiológicos apontam uma prevalência de enxaqueca na população de 13 a 18% na idade adulta, de 5 a 10% entre os 6 anos e a adolescência, e de 2,5% na idade pré-escolar. Na criança, a frequência é igual em ambos os sexos, mas após a adolescência é maior no sexo feminino (3/2).

Nalgumas famílias a enxaqueca segue o padrão mendeliano de transmissão autossómica dominante («enxaqueca hemiplégica familiar») com um locus genético identificado (mutações dos genes PRRT2, CACNA1A, ATP1A2, SLC1A3, SLC2A1 e SCN1A). 

Com efeito, existe um componente hereditário nítido que se traduz pela comprovação de antecedentes familiares de tal patologia em cerca de 80% das pessoas com enxaqueca.

Fisiopatologia

Não há uma compreensão completa dos mecanismos que entram em acção na enxaqueca para produzir uma constelação de sintomas e sinais, neurológicos (a aura)*, autonómicos (náuseas e vómitos, palidez) e a própria cefaleia; desconhece-se também o mecanismo das peculiares relações que a enxaqueca tem com o sono e os factores ambientais (luz, ruído, estímulos olfactivos).

Muitas pessoas com enxaqueca relatam, mesmo fora dos períodos de crise, uma sensibilidade exagerada para uma ou várias modalidades de estimulação sensitiva ou sensorial.

As observações clínicas e vários estudos de imagem suportam a noção de que há na fase inicial de aura uma vasoconstrição das artérias intracranianas e hipoperfusão cerebral, seguida de uma fase de vasodilatação e possivelmente, de uma pulsatilidade excessiva que corresponde à sensação de “martelar”. Outros estudos sugerem que a anomalia primária é, não vascular, mas uma depressão da actividade cortical com início nas regiões occipitais e progressão póstero-anterior, sendo as anomalias de perfusão mais provavelmente secundárias. De acordo com uma teoria mais recente admite-se que o nervo trigémeo tem um conjunto de pequenas fibras não mielinizadas que enervam as artérias intracranianas, e que a estimulação destas fibras liberta na parede vascular vários péptidos vasodilatadores que iniciam uma resposta inflamatória na parede vascular. Tem sido sugerido que este sistema trigeminovascular está num estado de excitabilidade persistente nas pessoas com enxaqueca com períodos de maior activação relacionados com influxos** sensoriais ou de origem hipotalâmica.

Manifestações clínicas

Com as limitações relacionadas com a capacidade de a criança descrever os sintomas e, talvez, com as características clínicas intrínsecas da enxaqueca infantil, os respectivos sintomas são muito semelhantes aos dos adultos. Trata-se de uma cefaleia intermitente, não progressiva, diurna, habitualmente frontal, frontotemporal e retro-ocular, de intensidade crescente, pulsátil, precedida ou não de aura* habitualmente visual (por exemplo escotomas ou hemianópsia), acompanhada de náuseas e, por vezes, de vómitos, palidez e sensação subjectiva de «frio». Habitualmente interrompe a actividade, dura mais de uma hora (geralmente não mais de 24 horas), agrava-se com o ruído e a exposição à luz, e melhora com o repouso e o sono. Algumas crianças reportam uma sensação de desequilíbrio.

O exame neurológico é normal fora das crises.

A cefaleia tende frequentemente a ocorrer por «surtos» separados por intervalos livres que podem ser bastante prolongados.

Em geral verifica-se remissão completa até aos 25 anos em 20-30% dos casos.

*Recordam-se as definições de aura: conjunto de sintomas motores, sensitivo-sensoriais, vegetativos ou psíquicos que marcam o início de determinado evento (do latim: aura = sopro); **e de influxo: modificação físico-química fisiológica que se propaga ao longo de um nervo

Diagnóstico

Se o quadro clínico for típico (incluindo a comprovação de antecedentes familiares) e o exame neurológico normal, não estão indicados exames complementares. Deve realizar-se, contudo, um exame de imagem se a história clínica tiver características atípicas, incluindo a presença de aura persistente ou de cefaleia unilateral sempre do mesmo lado, ou de qualquer anomalia no exame neurológico.

Tratamento

O tratamento da enxaqueca (que implica um esclarecimento dos pais e crianças sobre o carácter benigno da situação) resume-se, muitas vezes, a aconselhar o repouso e, ocasionalmente, o uso de analgésicos (paracetamol, ibuprofeno, naproxeno).

Actualmente têm sido publicados estudos sobre a avaliação do papel da hipnoterapia no contexto de enxaquecas.

A terapêutica oral necessita de ser precoce para ser eficaz; tem, contudo, grandes limitações se a criança tiver náusea ou se vomitar. É nestes casos raramente necessário recorrer a terapêutica rectal com analgésicos e, mais raramente, analgésicos e anti-eméticos (como ondansetron) pela via intravenosa, num contexto hospitalar.

No adolescente põem-se problemas terapêuticos por vezes mais complexos; com efeito, há que considerar ocasionalmente o uso excessivo de analgésicos como um factor de agravamento e até de cronicidade; por outro lado, a cefaleia pode ser mais intensa e frequente ou prolongada. Em geral podem ser usados os mesmos recursos terapêuticos (analgésicos, anti-eméticos) ou, se a resposta for inadequada, tentar o uso de triptanos, nomeadamente sumatriptano ou zolmitriptano nasal, almotriptano ou rizatriptano oral. Os triptanos são agonistas dos receptores da serotonina, os receptores 5HT1B e 5HT1D.

Esta terapêutica deve ser reservada para casos especiais e no contexto de seguimento em centro especializado.

A terapêutica profiláctica poderá ser necessária quando a cefaleia é excessivamente frequente (mais de 2 ou 3 episódios por mês). É muito importante fazer um “diário” durante um período de, pelo menos, 1 a 2 meses para se ter uma ideia correcta da frequência das cefaleias, já que é muito subjectiva a resposta à pergunta sobre a sua frequência numa primeira consulta. Os pais tendem nitidamente a exagerar ou minimizar a frequência das crises. Os medicamentos profilácticos de enxaqueca mais frequentemente usados em Pediatria são a flunarizina e o propranolol. É necessário ter a garantia de que a criança não apresenta uma das contra-indicações para o uso de propranolol (asma, diabetes, insuficiência cardíaca, bloqueio auriculo-ventricular ou outra disritmia).

O CGRP (péptido relacionado com o gene da calcitonina) é um neuropéptido implicado na fisiopatologia das crises de enxaqueca; o tratamento da crise reverte a actividade do CGRP. Uma inovação recente é a dos antagonistas do CGRP ou dos seus receptores (gepants).  Estão em curso estudos sobre a sua utilização em adolescentes.

Enxaqueca complicada

Além da aura típica de enxaqueca, podem ocorrer auras neurológicas mais complexas nas síndromas designadas por enxaqueca complicada; a enxaqueca hemiplégica e a enxaqueca da artéria basilar são as mais reconhecidas neste grupo.

A hemiparésia, geralmente associada a sintomatologia sensitiva proeminente, consistindo em parestesias ou hipostesia, e afectando unilateralmente os membros e a face, segue-se a uma cefaleia pulsátil habitualmente contralateral.

Por vezes a hemiparésia prolonga-se para além da cefaleia, mas regride sempre completamente. Esta situação, embora benigna, necessita sempre duma avaliação complementar nomeadamente por RM para excluir diagnósticos alternativos como doença cardiovascular embolígena, encefalopatia mitocondrial, malformação arteriovenosa ou vasculite cerebral.

Na enxaqueca da artéria basilar, a aura é atribuível a disfunção neurológica no território da artéria basilar (defeitos bilaterais dos campos visuais, vertigem, diplopia, hemi ou teraparésia, hemi ou tetra parestesias e ataxia). A estes sintomas segue-se uma cefaleia occipital com náuseas e vómitos. Pode ainda ocorrer estado confusional, e mesmo coma, com características de reversibilidade.

O diagnóstico diferencial inclui epilepsia occipital, doença desmielinizante e trauma com dissecção da artéria vertebral. Raramente pode ocorrer estado confusional. É sempre necessário neste contexto clínico uma avaliação por RMN e estudos adicionais de acordo com o quadro clínico, nomeadamente EEG se houver suspeita clínica de epilepsia. Trata-se, pois, de situações que, pela sintomatologia, têm indicação para envio a centros especializados.

Equivalentes de enxaqueca

Algumas situações mal definidas são chamadas «equivalentes de enxaqueca»: vertigem paroxística benigna, vómitos cíclicos e o torcicolo paroxístico benigno. São abordadas as duas primeiras alterações.

Vertigem paroxística benigna

A chamada vertigem paroxística benigna é uma situação recorrente em crianças dos 2 aos 6 anos, traduzida habitualmente pelo seguinte quadro: num período breve, de alguns segundos a poucos minutos, a criança refere subitamente desequilíbrio e, quando tem capacidade verbal para descrever, refere uma sensação vertiginosa que ocorre na ausência de qualquer alteração do estado de consciência, podendo acompanhar-se de sinais autonómicos como palidez ou vómitos. Desconhece-se a etiopatogénese deste quadro clínico, sendo que o exame neurológico é normal e os episódios são habitualmente raros e finalmente extinguem-se. É comum haver uma história familiar de enxaqueca e, mais tarde, estas crianças terem um verdadeiro quadro de enxaqueca.

Se os episódios forem frequentes, a terapêutica com difenidramina pode ser eficaz.

Vómitos cíclicos

É bem conhecida em Pediatria a situação denominada “vómitos cíclicos”. Crianças saudáveis, por vezes com uma periodicidade de 2 a 4 semanas, têm durante algumas horas (habitualmente até 1 a 2 dias) vómitos incoercíveis com uma vaga dor abdominal periumbilical (embora a dor abdominal não seja proeminente e possa mesmo estar ausente).

Algumas crianças permanecem deitadas, com alguma prostração e fotofobia; outras referem também uma situação mal definida de vertigem. O quadro regride espontaneamente para se repetir algumas semanas mais tarde. Nos intervalos livres a criança está assintomática. Não há uma psicopatologia significativa associada.

Nalguns casos pode verificar-se tendência para evolução para uma situação, também recorrente, sugestiva de enxaqueca no contexto de história familiar com idêntico quadro.

A situação clínica caracterizada por vómitos que surgem “ciclicamente” obriga a uma cuidadosa observação implicando o diagnóstico diferencial com quadros clínicos específicos tais como volvo gástrico, má-rotação intestinal e, raramente, doença metabólica com expressão intermitente (por exemplo defeito da beta-oxidação dos ácidos gordos, acidúria orgânica ou doença do ciclo da ureia).

Cefaleias de tensão

Definição

Considera-se cefaleia de tensão a que surge associada a situações de conflito ou estresse emocional.

Manifestações clínicas

A literatura mais recente reconhece que a chamada cefaleia de tensão, quer de tipo episódico, quer crónica, existe, de facto, em crianças e adolescentes com uma frequência que não é conhecida.

Pode tratar-se de uma dor, de tipo aperto, bilateral difusa, com intensidade moderada, diurna, vespertina, não interrompendo habitualmente a actividade. Pode acompanhar-se de mialgia cervical posterior. Está em geral associada a uma personalidade patológica onde predominam traços ansiosos, fóbicos, obsessivos ou de tipo depressivo. Em mais de 50% dos doentes verifica-se a ocorrência simultânea de enxaqueca.

Diagnóstico

A normalidade do exame neurológico e a história do tipo de cefaleias associada às características psicopatológicas permitem em geral o diagnóstico; contudo, não é raro que seja necessário realizar exames de imagem devido à marcada tendência para a cefaleia se tornar recorrente ou mesmo crónica. Excluídas, com tais exames, causas orgânicas torna-se, por vezes, necessário estabelecer um plano terapêutico que pode passar por intervenção psiquiátrica.

Cefaleias de hipertensão intracraniana

As cefaleias de hipertensão intracraniana podem ser devidas a uma multiplicidade de lesões que ocupam espaço. Na criança, a situação mais frequente é a dos tumores (a neoplasia mais frequente em crianças após as leucemias). Os tumores cerebrais nas crianças são mais frequentes na fossa posterior que em localização supratentorial. Os tumores da fossa posterior mais frequentes são o astrocitoma do cerebelo (Figura 1), o meduloblastoma, o ependimoma e o glioma da protuberância.

FIGURA 1. TAC – Astrocitoma do cerebelo: criança de 9 anos com cefaleias com algumas semanas de evolução; as cefaleias tinham um carácter progressivo e ocorriam no despertar, com vómitos ocasionais (o nódulo mural com captação de contraste, assinalado por uma seta, sugere este diagnóstico)

Manifestações clínicas

Os tumores, independentemente do grau de malignidade e da rapidez de crescimento, produzem uma cefaleia progressiva que tende a ser diária. Nas crianças, não estando as suturas cranianas completamente encerradas, uma situação de hipertensão intracraniana pode levar a diastase das referidas suturas capaz de transitoriamente aliviar os sintomas. A cefaleia tem por vezes um agravamento nocturno, acorda a criança ou está presente no despertar, aliviando ao longo da manhã ou com um episódio de vómitos. Com efeito, como foi já referido, durante o sono a hipoventilação aumenta a pressão de CO2, a qual conduz a vasodilatação e a aumento da volémia intracraniana. Quando a criança vomita de manhã, e/ou se verifica hiperventilação, há consequente diminuição da pressão de CO2, aliviando a cefaleia.

Algumas crianças manifestam irritabilidade ou mesmo anomalias de comportamento mais complexas. Mais tarde, poderão surgir diplopia, estrabismo e ataxia do tronco ou hemiataxia.

Nos casos de cefaleia occipital, o risco de tumor é muito significativo.

O exame neurológico pode mostrar, além das alterações referidas, estase papilar, um dos componentes da tríade clássica apontando para hipertensão intracraniana (cefaleia, vómitos e a referida estase papilar).

Diagnóstico

A suspeita de hipertensão intracraniana implica o encaminhamento atempado da criança para um centro especializado de neurocirurgia.

O diagnóstico é facilmente acessível aos exames de imagem (TAC e RM). Para tumores como o meduloblastoma, com grau de malignidade maior e tendência para disseminação meníngea, é necessário proceder, na avaliação inicial, ao estudo imagiológico por RM de todo o neuroeixo (cerebral e medular).

Tratamento

A terapêutica destas lesões passa, em geral, por intervenção cirúrgica inicial. A terapêutica cirúrgica pode incluir, além da ressecção da lesão tumoral, um procedimento terapêutico para a hidrocefalia secundária (por exemplo uma drenagem ventricular externa). O prognóstico depende, entre outros factores, de se ter obtido, ou não, ressecção completa da lesão.

Hipertensão intracraniana idiopática

Definição

A hipertensão intracraniana idiopática (ou benigna/pseudo-tumor cerebri) é devida a um desequilíbrio entre os mecanismos de formação e de reabsorção do LCR, estando provavelmente implicado um defeito na reabsorção.

Manifestações clínicas

O quadro clínico típico é o de uma adolescente habitualmente obesa com um quadro mais ou menos arrastado de cefaleias com características clínicas de HIC. Muitos doentes referem que a cefaleia é occipital, irradia para a nuca e ouvem um ruído intracraniano. O exame neurológico pode mostrar somente estase papilar ou, adicionalmente, paralisia do VIº par uni ou bilateral.

Diagnóstico diferencial

Só se pode afirmar o diagnóstico de HIC idiopática mediante a realização de punção lombar com medição, em condições adequadas, da pressão intracraniana e após a exclusão de trombose venosa intracraniana, por RM e angio-RM (Figura 2). As causas secundárias, que deverão ser excluídas, são sintetizadas no Quadro 1.

FIGURA 2. Angio-RM – Trombose séptica do seio lateral direito (na imagem de angio-RM a seta branca assinala a ausência de visualização do seio lateral direito, sendo visíveis os seios longitudinal superior e o seio lateral direito; na imagem à direita estão assinaladas a veia jugular com «vazio» de sinal indicativo de fluxo, à esquerda, e um hipersinal devido a trombose à direita). Esta criança tinha uma mastoidite crónica e a trombose do seio lateral é uma complicação desta situação (trombose séptica): o quadro clínico consistiu em cefaleias progressivas no decurso de 2 a 3 semanas seguido de diplopia por paralisia do VIº par (uma complicação de hipertensão intracraniana).

QUADRO 1 – Causas de hipertensão intracraniana benigna secundária

1. Endocrinopatias
    • Doença de Addison
    • Doença de Cushing
    • Hipoparatiroidismo
2. Outras doenças sistémicas
    • Insuficiência renal crónica
    • Anemia carencial
3. Medicamentos
    • Vitamina A
    • Vitamina D
    • Corticosteróides
    • Tetraciclinas
    • Nitrofurantoína
    • Ácido nalidíxico
    • Tamoxifeno
    • Retinóides
    • Carbonato de lítio
    • Ciclosporina

Tratamento

O tratamento baseia-se inicialmente na realização de punções lombares, acompanhadas da administração de acetazolamida. Eventualmente pode ser necessária corticoterapia havendo que ter em conta, com esta última terapêutica, a maior probabilidade de recidiva. É necessário ter presente que a perda de visão pode ocorrer rapidamente numa situação de HIC crónica; por isso é conveniente encarar a cirurgia nos casos em que não há uma resposta pronta às terapêuticas referidas. A cirurgia mais recomendada actualmente é a fenestração da baínha dos nervos ópticos, embora esteja também a ser usada a derivação lomboperitoneal.

AGRADECIMENTOS

À Dr.ª Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologia – Hospital de Dona Estefânia) pela cedência das fotos das Figuras 1 e 2.

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Hipoglicémia na criança não diabética, após o período neonatal

Definição

A glicose é, por excelência, o substrato metabólico dos tecidos, representando o pilar da produção energética celular. Durante a gestação, ela é fornecida por via placentária, pelo que o seu limite sérico inferior ronda os 55 mg/dL. Contudo, nas primeiras horas após o nascimento, no recém-nascido saudável e com peso adequado à idade gestacional, a glicémia pode variar entre 25 mg/dL e 110 mg/dL. Pelas 72 horas de vida, os valores normais em jejum são já sobreponíveis aos do lactente, da criança e do adulto, ou seja, entre 60 mg/dL e 99 mg/dL. Uma vez concluída esta fase de transição, os mecanismos de homeostasia da glicose passam a ser semelhantes ao longo da vida, sendo as únicas diferenças a sua maior taxa de utilização por parte do organismo em crescimento, e um maior risco de sequelas neurocognitivas secundárias à hipoglicémia num sistema nervoso em desenvolvimento.

O intervalo de normoglicémia é mantido por factores que controlam, quer a produção de glicose, quer a sua utilização, pelo que qualquer estado patológico que comprometa este equilíbrio pode desencadear hipoglicémia. As hormonas responsáveis por esta estreita regulação incluem a insulina, o glucagom, a adrenalina, a noradrenalina, o cortisol e a hormona de crescimento.

Apesar de a hipoglicémia ser um fenómeno frequente, em rigor, não é possível definir um valor de corte abaixo do qual esta possa ser estipulada. Na verdade, a hipoglicémia é definida como a concentração plasmática abaixo da qual o indivíduo apresenta sintomas resultantes do fornecimento inadequado deste substrato aos tecidos-alvo, nomeadamente ao sistema nervoso central (SNC). Desta forma, deve ser considerada como um contínuo e os valores plasmáticos devem ser interpretados no contexto clínico e tendo em conta a activação das respostas hormonais de contrarregulação e os respectivos metabólitos intermediários. Classicamente, é caracterizada pela tríade de Whipple: 1. sinais e sintomas consistentes com hipoglicémia; 2. baixa concentração plasmática de glicose; 3. resolução clínica após aumento da glicémia.

As respostas de defesa autonómica e hormonal são desencadeadas quando a glicémia atinge valores entre 69 mg/dL e 55 mg/dL, ocorrendo manifestações major de neuroglicopénia abaixo de 50 mg/dL. Assim, glicémias inferiores a 55 mg/dL constituem uma emergência médica e requerem reversão imediata, sendo comummente aceite um objectivo terapêutico entre 70 mg/dL e 110 mg/dL. No caso de não ser reconhecida e tratada atempadamente, a hipoglicémia pode ter consequências neurológicas graves, particularmente no lactente e na criança pequena. É ainda de extrema importância diagnosticar a etiologia subjacente, de forma a prevenir episódios recorrentes, diminuindo o risco de morbimortalidade associado.

Homeostase

Apesar dos ciclos frequentes de estado pré e pós-prandial, no lactente, na criança e no adulto, os valores de glicémia em jejum normais são mantidos entre 60 mg/dL e 99 mg/dL.

A insulina tem um papel central na regulação da produção e utilização da glicose durante todo este ciclo. A glicémia plasmática começa a aumentar cerca de 15 minutos após a refeição. Este incremento, associado ao estímulo dos eixos neurogénico e êntero-insular (através do peptídeo inibidor gástrico – GIP – e do peptídeo semelhante ao glucagom 1 – GLP1), estimula a produção de insulina pelas células ß pancreáticas. A glicémia atinge um pico 30 a 60 minutos após a ingestão, iniciando a sua descida até um nadir cerca de 4 a 6 horas depois, e seguindo um padrão temporal sobreponível ao da concentração plasmática de insulina.

 Após a refeição, as respostas da insulina e do glucagom vão determinar a magnitude da supressão da produção hepática de glicose. Esta produção endógena pode ser reduzida até 50 a 60%, traduzindo-se pela libertação de cerca de menos 25 g de glicose na corrente sanguínea. Por outro lado, durante este período, também a glicogenólise, a gliconeogénese, a lipólise e a cetogénese estão suprimidas. Os principais tecidos responsáveis pela remoção da glicose da corrente sanguínea são o fígado, o SNC, os músculos, o intestino delgado e o tecido adiposo. A concentração de insulina plasmática determina a extensão da utilização da glicose por parte dos tecidos, com a excepção do SNC. Neste, a utilização depende exclusivamente da sua concentração plasmática.

O estado de pós-absorção contempla o intervalo de 4 a 6 horas após a ingestão. Durante este período é atingido um equilíbrio em que a glicémia é mantida num intervalo normal, uma vez que a produção de glicose iguala o seu consumo, estimando-se que este turnover seja de aproximadamente 4 a 6 mg/kg/min. Neste estado, 80% da utilização de glicose é insulino-independente, especialmente por parte do SNC (50% do total), do rim, do intestino e dos eritrócitos. No decurso desta fase, a interacção entre a insulina e as hormonas da contrarregulação mantém estável a concentração de glicose.

A libertação de glicogénio hepático é controlada pelo glucagom, enquanto a insulina limita os efeitos desta hormona, ao prevenir a lipólise e a proteólise. Outras hormonas da contrarregulação, nomeadamente o cortisol e a hormona do crescimento, têm ainda um papel na sensibilidade dos tecidos periféricos ao glucagom e à insulina (Quadro 1).

QUADRO 1 – Resposta fisiológica à diminuição da glicémia

(Adaptado de Cryer PE, Williams Textbook of Endocrinology 2016)
Glicémia (mg/dL)RespostaGlicogenóliseGliconeogéneseLipóliseCetogénese
80 a 85↓ Insulina
65 a 70↑ Glucagom
↑ Adrenalina
↑ Cortisol  
↑ Hormona de Crescimento  
50 a 55Clínica neuroglicopénica 
< 50Diminuição do nível de consciência 

À medida que o período de jejum se prolonga, os tecidos diminuem a utilização da glicose, aumentando a de ácidos gordos livres e de corpos cetónicos. Nesta fase, há uma redução da libertação de glicose hepática, com inibição da glicogenólise e estímulo da gliconeogénese. Este aumento é explicado pela secreção de glucagom e de cortisol, aliado à redução da produção de insulina, os quais promovem a conversão dos depósitos lipídicos em glicerol e ácidos gordos livres, bem como a degradação das proteínas em aminoácidos. Os ácidos gordos são então transportados até ao fígado, local onde sofrem ß-oxidação mitocondrial, ou onde são re-esterificados em triacilgliceróis e fosfolípidos. A ß-oxidação gera acetil-coenzima A, que pode ser transformada em corpos cetónicos (acetoacetato e ß-hidroxibutirato), ou sofrer oxidação no ciclo de Krebs.

Após um período de jejum nocturno, os principais precursores gliconeogénicos são o lactato, o glicerol e a alanina. Na gliconeogénese, a primeira reacção converte o piruvato em oxaloacetato, e este, em fosfoenolpiruvato. O passo limitante de todo o processo consiste na conversão da frutose 1,6-bifosfato em frutose 6-fosfato. Por fim, esta é transformada em glicose livre, que pode ser então utilizada.

Ao contrário do que acontece nos adultos, nas crianças pequenas o glicogénio armazenado é suficiente apenas para as primeiras 8 a 12 horas de jejum, após as quais a gliconeogénese é a responsável pela manutenção de valores glicémicos normais. Este é o principal motivo pelo qual não toleram períodos prolongados sem comerem. Na criança pequena, proporcionalmente, o encéfalo é muito maior que o do adulto, pelo que a taxa de produção de glicose tem necessariamente que ser mais elevada de forma a responder a esta maior necessidade metabólica. Por outro lado, o adulto tem uma melhor capacidade de adaptação neurológica à utilização dos corpos cetónicos. Este é também o motivo pelo qual a criança é mais vulnerável à hipoglicémia e com consequências neurológicas mais graves.

À medida que o período de jejum se torna ainda mais prolongado, as necessidades energéticas musculares e dos restantes tecidos são progressivamente supridas pelos ácidos gordos livres e pelos corpos cetónicos. No fígado, a oxidação dos ácidos gordos gera corpos cetónicos, que são transportados para os tecidos periféricos como substrato energético alternativo. Para além da glicose e dos corpos cetónicos, o encéfalo não utiliza qualquer outro substrato. Assim, à medida que o jejum se prolonga, de forma a satisfazer as suas elevadas necessidades energéticas, estes metabólitos vão substituindo a glicose como combustível celular neuronal predominante.

Manifestações clínicas

Como explicado previamente, quando a glicémia atinge valores abaixo do limite fisiológico do indivíduo, é desencadeada uma resposta hormonal contrarreguladora. Porém, se esta for ineficaz e a glicémia continuar a diminuir, ocorre um estímulo simpático-adrenérgico (Quadro 1). Por este motivo, as primeiras manifestações clínicas são de natureza autonómica, nomeadamente: ansiedade, astenia, palidez, sudorese, tremor, taquicárdia, taquipneia, náuseas e/ou vómitos. Na criança mais velha e no adulto, ocorre concomitantemente uma resposta comportamental no sentido de procura de alimento. É importante salientar ainda que alguns fármacos, como os bloqueadores ß, e algumas substâncias, nomeadamente a cafeína e a teína, podem, respectivamente, diminuir ou amplificar estas respostas.

No caso de agravamento da hipoglicémia (< 50 mg/dL), surgem então sinais e sintomas de neuroglicopénia, designadamente: irritabilidade, hipotonia, cefaleias, confusão, discurso arrastado, alterações cognitivas e eventualmente, convulsão, coma ou mesmo morte. Nesta fase, os corpos cetónicos constituem o principal substrato energético neuronal, cruzando a barreira hematoencefálica através do transportador de monocarboxilatos 1 (MCT1). Este encontra-se sobre-expresso em indivíduos com cetonémia crónica, motivo pelo qual o jejum repetido e a dieta cetogénica se associam a menor intensidade de sintomas e sinais de neuroglicopénia.

O limiar de resposta neuroendócrina à hipoglicémia varia, não só com a idade e o sexo, mas também com o exercício, o sono e o estado nutricional. Contudo, as diferenças mais significativas decorrem da existência de episódios prévios de hipo ou hiperglicémia. De facto, hipoglicémias prolongadas ou recorrentes podem diminuir de tal forma o limiar de activação da resposta autonómica, que apenas a clínica neuroglicopénica se encontra presente perante uma situação grave, condição designada por insuficiência autonómica associada à hipoglicémia (HAAF). Esta situação preocupante é mais frequente, não só na diabetes insulinodependente, mas também nos doentes com hiperinsulinismo. No extremo oposto, na hiperglicémia crónica o limiar para a resposta contrarreguladora à hipoglicémia é mais elevado.

Diagnóstico diferencial

A hipoglicémia pode dever-se à diminuição da ingestão de glicose (ex. gastrenterite, anorexia), ao aumento da sua utilização (ex. sépsis, hipotermia, exercício intenso, hiperinsulinismo), à diminuição da sua produção endógena (ex.: erros inatos do metabolismo, insuficiência hepática, insuficiência adrenal, défice de hormona do crescimento), ou ser secundária a intoxicação ou a fármacos (ex.: álcool, sulfonilureias, insulina, bloqueadores-ß) (Quadro 2).

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial de hipoglicémia na criança não diabética

Hipoglicémia Cetótica Idiopática
    • Hipoglicémia Hiperinsulinémica
      • Hiperinsulinismo congénito
      • Insulinoma
      • Síndroma de Dumping
      • Síndroma de Beckwith-Wiedemann
      • Defeitos da glicosilação (CDG I-a, I-b, I-c)
    • Insuficiência Adrenal
      • Insuficiência adrenal primária
      • Supressão de corticóides exógenos
      • Hipopituitarismo
    • Défice ou Resistência à Hormona do Crescimento
      • Hipopituitarismo
      • Deficiência isolada de hormona do crescimento
      • Resistência à hormona do crescimento
    • Glicogenoses
      • Deficiência da síntese do glicogénio (GSD 0)
      • Doenças do armazenamento do glicogénio (GSD I, III, IV, VI, IX)
      • Síndroma de Fanconi-Bickel (GSD XI)
    • Defeitos da Gliconeogénese
      • Deficiência da piruvato carboxilase
      • Deficiência da fosfoenolpiruvato carboxicinase
      • Deficiência de frutose 1,6-bifosfatase
      • Deficiência de glucose 6-fosfatase (GSD I)
    • Intolerância Hereditária à Frutose
    • Defeitos da Oxidação dos Ácidos Gordos
      • Deficiência primária de carnitina
      • Defeitos do ciclo da carnitina
      • Deficiências das Acil-CoA desidrogenases
    • Defeitos da Cetogénese
      • Deficiências da HMG-CoA sintase ou da HMG-CoA liase
    • Defeitos do Metabolismo dos Aminoácidos ou dos Ácidos Orgânicos
    • Defeitos da Cadeia Respiratória Mitocondrial
    • Doença Hepática
    • Infecções (gastrenterite, septicémia, malária)
    • Tóxicos/Fármacos (álcool, insulina, sulfonilureias, bloqueadores-ß, paracetamol, salicilatos)

Hipoglicémia cetótica idiopática

A hipoglicémia cetótica idiopática é um diagnóstico de exclusão, constituindo a causa mais frequente de hipoglicémia no não diabético. Pensa-se que em tal situação as crianças representem a cauda inferior da distribuição gaussiana da tolerância ao jejum, podendo ter polimorfismos ou deficiências parciais das enzimas envolvidas na homeostasia da glicose. A produção hepática de glicose está diminuída, possivelmente pela diminuição do abastecimento de alanina, um dos principais precursores da gliconeogénese.

Tipicamente, ocorre entre os 18 meses e os 7 anos, sendo precipitada por um jejum prolongado no contexto de um episódio agudo intercorrente, por exemplo gastrenterite. Apesar de algumas crianças terem episódios de hipoglicémia suficientemente graves para desencadearem convulsões, nestes casos as sequelas neurológicas são muito raras e o neurodesenvolvimento habitualmente é normal. A hipoglicémia pode ser evitada por refeições regulares, assegurando que não ocorrem períodos de jejum superiores a 12 horas. Com o passar do tempo, verifica-se resolução espontânea, sendo rara após a puberdade.

Causas endócrinas

Hipoglicémia hiperinsulinémica

No decurso de um episódio de hipoglicémia, uma das primeiras respostas do organismo é a suspensão da produção de insulina, pelo que a sua detecção no plasma, mesmo que em pequena quantidade, é considerada anormal.

O hiperinsulinismo congénito é a causa mais frequente de hiperinsulinismo. A sua apresentação ocorre no período neonatal ou nos primeiros meses de vida, durante uma intercorrência que impõe um aumento da necessidade da glicose a que, por desregulação da produção de insulina, o organismo não consegue responder. A incidência global é de cerca de 1:30.000 a 1:50.000 nados-vivos, aumentando para aproximadamente 1:2.500 nados-vivos na Península Arábica. Na sua origem estão identificadas cinco mutações: no receptor 1 das sulfonilureias (SUR-1), no Kir6.2, na glucocinase, na desidrogenase do glutamato (GDH) e na desidrogenase da 3-hidroxiacil-CoA de cadeia curta (SCHAD). Estas mutações traduzem-se por fenótipos muito variáveis: enquanto uns indivíduos apresentam hipoglicémia ligeira durante o jejum e respondendo bem à medicação, outros apresentam hipoglicémia grave e refractária à terapêutica farmacológica.

Nas células ß pancreáticas, o SUR-1 e o Kir6.2 são essenciais para a actividade dos canais de potássio sensíveis ao ATP (KATP), sendo a perda da sua função a causa mais frequente de hiperinsulinismo congénito. Na sua origem estão mutações dos genes ABCC8 e KCNJ11 presentes no cromossoma 11p15. Geralmente são herdadas de forma autossómica recessiva, com aumento pancreático difuso das células ß. Esta é a forma mais grave da doença, que habitualmente não responde a terapêutica médica, necessitando de pancreatectomia. Estão ainda descritos casos esporádicos provocados por mutação homozigótica paterna, com perda dos alelos maternos. Nestas situações, a tomografia de emissão de positrões (PET) com 18F-fluro-L-di-hidroxifenilalanina (18F-DOPA) revela frequentemente uma lesão focal solitária.

Na mutação da SCHAD (também autossómica recessiva), a hipoglicémia hiperinsulinémica está associada a defeitos da oxidação dos ácidos gordos, pelo que estes doentes apresentam aumento dos níveis de 3-hidroxibutiril-carnitina plasmática e de 3-hidroxiglutarato urinário. A causa exacta desta desregulação ainda não está bem esclarecida, sendo a sua apresentação clínica variável e com boa resposta ao diazóxido.

Outras mutações mais frequentemente associadas a hiperglicémia (nomeadamente a Maturity Onset Diabetes of the Young – MODY) também podem provocar hiperinsulinismo transitório, como é o caso dos factores hepatocitários nucleares 4-alfa (HNF4α) e 1-alfa (HNF1α). Por outro lado, mutações activadoras da desidrogenase do glutamato provocam não só aumento da produção de insulina, mas também hiperamoniémia, cuja apresentação é mais tardia e com clínica ligeira.

 Necessidades de glicose intravenosas superiores a 8 mg/kg/minuto são muito sugestivas de hiperinsulinismo, podendo mesmo ser necessárias perfusões superiores a 20 mg/kg/min. Concomitantemente, deverá tirar-se partido da alimentação entérica, rica em hidratos de carbono. Uma vez estabilizada a glicémia, o tratamento farmacológico de primeira linha é o diazóxido oral (5 mg/kg/dia, em 3 doses; se necessário, com incrementos de 5 mg/kg/dia a cada 4 dias, até um máximo de 20 mg/kg/dia) em combinação com hidroclorotiazida oral (7-10 mg/kg/dia, em 2 doses). Doses de diazóxido mais elevadas, além da demonstração de não eficácia, provocam efeitos colaterais significativos, nomeadamente hipertensão arterial e hipertricose. Se este regime não for suficiente para manter a glicémia acima de 70 mg/dL, será necessário iniciar tratamento com octreótido (5 µg/Kg/dia em perfusão sc contínua; se necessário, com incrementos de 5 µg/Kg/dia a cada 3-4 dias, até um máximo de 35 µg/Kg/dia) e/ou glucagom (1-10 µg/Kg/h em perfusão iv contínua, ou 0,02 mg/kg/dose iv em SOS). Nos casos refractários à terapêutica farmacológica, a intervenção cirúrgica é inevitável, sendo curativa na remoção das situações focais. Porém, no hiperinsulinismo difuso a abordagem é mais complexa, podendo requerer uma pancreatectomia de cerca de 95% do órgão com subsequentes défices enzimáticos e desenvolvimento de diabetes mellitus insulinodependente.

Na criança mais velha com hipoglicémia hiperinsulinémica, deve ser considerada a possibilidade da presença de insulinoma. Este pode ser uma entidade isolada, ou parte integrante da síndroma neoplásica endócrina múltipla tipo I (MEN I).

A síndroma de dumping ocorre após gastrectomia que, ao condicionar uma rápida entrada de hidratos de carbono no intestino delgado, provoca uma secreção excessiva de insulina, quer directamente, quer de forma indirecta através da activação de incretinas. Nos doentes com resistência à insulina, antes do desenvolvimento de hiperglicémia franca, podem ser segregadas grandes quantidades desta hormona após refeições ricas em hidratos de carbono, condicionando também episódios de hipoglicémia pós-prandial.

Até 50% dos doentes com síndroma de Beckwith-Wiedemann, assim como alguns defeitos da glicosilação (I-a, I-b e I-c), apresentam excesso de produção de insulina. A fisiopatologia do hiperinsulinismo ainda não está bem esclarecida, sendo o grau de hipoglicémia muito variável. Esta pode responder ao tratamento conservador, mas nalguns casos pode ser necessária pancreatectomia.

A hipoglicémica hiperinsulinémica também pode ser provocada pela administração de insulina. Esta situação distingue-se do aumento da produção endógena através da determinação do péptido-C plasmático, o qual se encontra anormalmente baixo perante insulinémia elevada.

Insuficiência adrenal

Como explicado previamente, o cortisol tem um papel importante na normalização glicémica, em situações de jejum e de estresse, através da estimulação da gliconeogénese e da libertação de adrenalina pela medula suprarrenal. Por outro lado, a sua deficiência amplifica a sensibilidade à insulina, com risco acrescido de hipoglicémia. A insuficiência adrenal pode ocorrer em qualquer idade, podendo ser originada por uma patologia que condicione disfunção primária da suprarrenal, por supressão da glândula secundária a corticóides, ou por insuficiência pituitária.

A doença de Addison é um processo auto-imune no qual o córtex suprarrenal é destruído por autoanticorpos, conduzindo à deficiência de gluco e mineralocorticóides, pelo que os doentes afectados podem apresentar hipoglicémia no contexto de doenças agudas intercorrentes. Tal afecção caracteriza-se por hiperpigmentação cutânea secundária à hiperestimulação dos melanócitos pelos elevados níveis de hormona adrenocorticotrópica (ACTH), que é produzida pela hipófise numa tentativa de estimular a produção de cortisol. Frequentemente, existe também hiponatrémia associada a hipercaliémia, apesar de a primeira poder surgir de forma isolada numa fase inicial da doença. Pode ainda haver associação a outras doenças auto-imunes como a diabetes mellitus tipo 1, o hipotiroidismo auto-imune, a doença celíaca ou a síndroma de poliendocrinopatia – candidíase – distrofia ectodérmica auto-imune (APECED). Esta última, herdada de forma autossómica recessiva, deve ser suspeitada na presença de dois dos três componentes cardinais: insuficiência adrenal auto-imune, hipoparatiroidismo auto-imune e candidíase. O diagnóstico é confirmado pela mutação do gene AIRE.

Outra causa de insuficiência adrenal é a síndroma de Allgrove ou síndroma dos três “a”: alacrimia, acalásia e insuficiência adrenal. Esta entidade é secundária a resistência à ACTH, apresentando disfunção autonómica e clínica neurológica progressivas. Com origem na mutação do gene ALADIN localizado no cromossoma 12q, é transmitida de forma autossómica dominante.

Em rapazes com insuficiência adrenal torna-se obrigatório excluir adrenoleucodistrofia, uma condição recessiva ligada ao cromossoma X, associada a níveis elevados de ácidos gordos de cadeia muito longa na urina. A insuficiência adrenal pode ser a primeira manifestação desta patologia, seguida de leucodistrofia do SNC, com deterioração neurológica progressiva.

Existe ainda uma forma muito mais rara, autossómica recessiva, que surge em idade mais precoce e com apresentação mais grave. A adrenomieloneuropatia é outra variação desta condição, com insuficiência adrenal na segunda infância e adolescência, seguida de alterações neurológicas 10 a 15 anos mais tarde. O óleo de Lorenzo não se mostrou eficaz na alteração do curso da doença, sendo o transplante de medula óssea o único tratamento capaz de prevenir a progressão da deterioração neurológica.

Outras causas raras de insuficiência adrenal congénita, com apresentação após o período neonatal, incluem a deficiência familiar de glucocorticóides (por resistência à ACTH) e a síndroma de Wolman (por deficiência da lípase ácida lisossómica). A hipoplasia congénita da suprarrenal habitualmente tem apresentação no recém-nascido, apesar de em alguns casos se tornar aparente apenas alguns meses mais tarde.

A disrupção do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal é também causa de insuficiência adrenal. Este défice de ACTH pode ser secundário a hipopituitarismo congénito, ou adquirido após tumores (como o craniofaringeoma), irradiação, traumatismos, ou infecções do SNC. O uso continuado de corticóides (incluindo os inalados) pode estar também na origem da supressão da ACTH hipofisária.

Défice de hormona do crescimento

À semelhança do cortisol, também a acção da hormona do crescimento (HC ou GH) tem maior importância durante o período de jejum prolongado, diminuindo a sensibilidade à insulina e a utilização da glicose, e estimulando a lipólise.

Recém-nascidos e pequenos lactentes com défice de HC podem apresentar hipoglicémia recorrente, com predomínio no início da manhã. Porém, o crescimento não é afectado antes do 1 ano de vida. Características importantes a ter em consideração na história clínica incluem a presença de: defeitos da linha média, micropénis e icterícia neonatal. Paralelamente ao que acontece com o défice de ACTH, o défice de HC pode ser isolado ou em contexto de hipopituitarismo, bem como congénito ou decorrente de agressão do SNC. Os doentes apresentam níveis séricos de IGF-1 inferiores ao normal para a idade e, por vezes, alterações evidenciadas através de ressonância magnética da sela turca. O diagnóstico deve ser confirmado através de provas de estimulação da HC.

Doenças hereditárias do metabolismo
Glicogenoses

As glicogenoses (GSD) são um conjunto de afecções caracterizadas essencialmente por defeitos enzimáticos que comprometem a síntese ou a degradação do glicogénio, com subsequente incapacidade de fornecimento de glicose em caso de necessidade.

Algumas atingem o fígado, o músculo e o coração, enquanto outras são específicas de órgão. A hipoglicémia ocorre na maioria das glicogenoses hepáticas, frequentemente acompanhada de hepatomegália. O diagnóstico é confirmado por estudo genético ou por estudo enzimático através de biópsias. Na maioria dos casos, o tratamento consiste na prevenção da hipoglicémia através de alimentação entérica contínua/cíclica e de amido de milho cru. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Glicogenoses associadas a hipoglicémia

(Adaptado de Langdon DR et al, Pediatric Endocrinology 2014)
GSD TIPOSEnzimasGeneHerançaFrequência
da hipoglicémia
Gravidade da
hipoglicémia em jejum
0Glicogénio sintetaseGYS2 (12p12.2)

AR

Pouco frequenteLigeira
IaGlicose 6-fosfataseG6PC (17q21)FrequenteGrave
IbGlicose 6-fosfatase translocaseSLC37A4 (11q23)RaraGrave
IIIaAmilo-1,6-glucosidase hepática e muscular

AGL (1p21)

FrequenteLigeira a moderada
IIIbAmilo-1,6-glucosidase hepáticaRaraLigeira a moderada
IVEnzima ramificadoraGBE (3p12.2)Pouco frequenteNa insuficiência hepática avançada
VIGlicogénio fosforilasePYGL (14q22.2)Pouco frequenteLigeira
IXaSubunidade α da cinase da fosforilasePHKA2 (Xp22.13)Ligada ao XFrequenteLigeira a moderada
IXbSubunidade ß da cinase da fosforilasePHKB (16q12.1)

AR

RaraLigeira a moderada
IXcSubunidade γ da cinase da fosforilasePHKG2 (16p11.2)RaraLigeira
XITransportador 2 da glicoseGLUT2 (3q26.2)RaraLigeira

A GSD mais grave e com maior associação a hipoglicémia é a do tipo I ou doença de von Gierke. Sendo causada pela deficiência de glicose-6-fosfatase, impede a transformação da glicose-6-fosfato em glicose, a qual não pode ser libertada para a corrente sanguínea. Assim, o glicogénio acumula-se de forma contínua provocando hepatomegália maciça. Apesar de ser classificada como glicogenose, esta entidade é, primariamente, um defeito da gliconeogénese. Por este motivo, para além de hipoglicémia, estes doentes apresentam acidose láctica, hipertrigliceridémia e hiperuricémia.

A deficiência da amilo-1,6-glicosidase é responsável pela GSD tipo III ou doença de Cori-Forbes, com atingimento hepático e muscular secundariamente à incapacidade de desramificação do glicogénio. A sintomatologia traduz-se por hepatomegália franca (com aumento das transaminases) e baixa estatura, por vezes associadas a miopatia e cardiomiopatia graves. Contrariamente à GSD I, a hipoglicémia é menos frequente e menos grave, melhorando substancialmente após a puberdade. Por outro lado, uma vez que a gliconeogénese não é afectada, a acidose láctica, a hiperuricémia e a hipertrigliceridémia estão ausentes.

A GSD tipo IV ou doença de Andersen deve-se a uma deficiência da enzima ramificadora do glicogénio. Neste caso, a glicogenólise e a gliconeogénese não são afectadas, pelo que a hipoglicémia é rara na infância. Contudo, uma vez que ocorre lesão hepática progressiva, ela passa a ser mais frequente nos estádios avançados da doença.

A fosforilase é a enzima-chave da glicogenólise, necessitando de ser activada pela sua cinase, que é constituída por 4 subunidades. A deficiência da primeira enzima causa GSD tipo VI ou doença de Hers, enquanto a da segunda é responsável pela GSD tipo IX ou doença de Hug-Huijing. Ambas as condições têm manifestações semelhantes, com hepatomegália e aumento das transaminases secundárias à deposição de glicogénio. Existe ainda algum grau de restrição de crescimento, hipotonia e fraqueza muscular. A hipoglicémia é ligeira a moderada e associada a hipertrigliceridémia. A acidose láctica e a hiperuricémia estão ausentes. Em grande parte dos doentes, a clínica melhora após a puberdade, mas nalguns casos pode persistir miopatia, cardiomiopatia e acidose tubular renal.

A GSD tipo 0 é provocada pela deficiência de glicogénio-sintetase, pelo que não origina hepatomegália. Nestes casos, enquanto o jejum provoca hipoglicémia cetótica, após as refeições ocorre hiperglicémia com lactacidémia.

A síndroma de Fanconi-Bieckel ou GSD tipo XI é causada por mutações do gene GLUT2, que codifica o principal transportador de glicose da membrana celular do hepatócito. O movimento da glicose é essencial à sua homeostasia, pelo que defeitos do GLUT2 originam acumulação hepática de glicogénio com hepatomegália, bem como hiperglicémia pós-prandial e hipoglicémia de jejum. Esta última, acompanhada de cetose, resulta não só da diminuição do transporte do fígado para o sangue, mas também do excesso de perda urinária por diminuição da reabsorção no túbulo renal proximal. A fosfatúria que acompanha esta glicosúria pode ser suficientemente grave para provocar raquitismo hipofosfatémico, com subsequente hipocrescimento.

Defeitos da gliconeogénese

Com o prolongamento do jejum por mais de 12 a 16 horas, e já sem reservas de glicogénio hepático, a glicémia é reposta recorrendo à gliconeogénese. A alanina, o lactato e o glicerol são os principais substratos utilizados. A hipoglicémia recorrente e a acidose láctica são elementos comuns à deficiência das quatro enzimas da gliconeogénese, podendo ou não ser acompanhadas de cetose. Apenas o fígado e o rim possuem todas estas enzimas: o miocárdio e o tecido adiposo não apresentam frutose 1,6-bifosfatase, enquanto a glicose 6-fosfatase está ausente no músculo esquelético. A hipoglicémia grave e a hepatomegália são mais frequentes nos defeitos enzimáticos mais próximos da regeneração da glicose (frutose 1,6-bifosfatase e glicose 6-fosfatase), enquanto os que se encontram adjacentes ao ciclo de Krebs (piruvato carboxilase e fosfoenolpiruvato carboxicinase) estão mais associados a acidose láctica e a um processo neurodegenerativo progressivo. A apresentação, em regra, decorre no período neonatal.

Intolerância hereditária à frutose

Crianças com intolerância hereditária à frutose são assintomáticas até que esta seja introduzida na dieta. A deficiência de frutose-1,6 bifosfatase aldolase é herdada de forma autossómica recessiva, desencadeando hipoglicémia e dor abdominal sempre que é ingerida frutose. A sua evicção reverte automaticamente a situação, enquanto a sua persistência pode originar lesão hepática e renal, associadas a má evolução estaturoponderal.

Defeitos da oxidação dos ácidos gordos

A deficiência primária de carnitina é herdada de forma autossómica recessiva, provocando primariamente, como todos os defeitos da oxidação dos ácidos gordos e da cetogénese, hipoglicémia hipocetótica. Clinicamente, os doentes apresentam miopatia esquelética e/ou cardiomiopatia. A diminuição dos níveis plasmáticos de carnitina, particularmente durante episódios de hipoglicémia, deve levantar suspeita desta condição. Esta pode ser confirmada pela medição do transporte de carnitina nos fibroblastos (habitualmente inferior a 5% do normal).

O transporte da carnitina para a mitocôndria é realizado pelas carnitina palmitoiltransferase 1 (CPT1) e 2 (CPT2). A deficiência da primeira origina, não só hipoglicémia hipocetótica, mas também hepatomegália com aumento das transaminases, acidose tubular renal e miopatia, com elevação da creatinina-cinase. Existe ainda uma forma de apresentação mais grave, nos primeiros dias de vida, associada a convulsões e cardiomiopatia. O diagnóstico é confirmado pelo aumento dos ácidos dicarboxílicos de cadeia entre C6 e C10. A deficiência da CPT2 origina dois fenótipos:

– a forma benigna, na idade adulta, com início de rabdomiólise após exercício prolongado; – a forma grave, nos primeiros meses de vida, com envolvimento cardíaco e morte súbita antes do ano de idade. Tanto no défice primário como nas alterações do transporte, o tratamento consiste na evicção do jejum prolongado, tendo por base uma dieta pobre em gordura e enriquecida com triglicéridos de cadeia média e carnitina.

A deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia média, herdada de forma autossómica recessiva, é o defeito mais frequente da oxidação mitocondrial dos ácidos gordos. A clínica surge habitualmente entre os 3 meses e os 3 anos, com hipoglicémia hipocetótica durante episódios de doença. Em caso de hipoglicémia grave, podem ocorrer convulsões com morbilidade a longo-prazo ou mesmo morte súbita. Com o avançar da idade e o aumento da tolerância ao jejum, os episódios de hipoglicémia tendem a melhorar. O diagnóstico é feito pela detecção urinária de octanoilcarnitina, fenilpropionilglicina e haxanoilglicina.

A acumulação de acilcarnitinas secundária à deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia muito longa pode desencadear acidose láctica neonatal grave, cardiomiopatia e hepatopatia, de forma similar ao que acontece nos defeitos da cadeia respiratória mitocondrial. Variantes menos graves têm apresentação na adolescência, com atingimento dos músculos cardíaco e esquelético (com rabdomiólise, dor e fraqueza crónica).

Defeitos do metabolismo dos aminoácidos

A maioria das acidémias orgânicas que cursam com hipoglicémia (nomeadamente, a acidémia propiónica, e a doença urinária do xarope de ácer ou a acidúria 3-hidroxi-3-metilglutárica) tem apresentação no período neonatal. Contudo, nalgumas crianças com fenótipo menos grave, a clínica surge mais tarde, já com vários meses de vida. Ao contrário dos defeitos da oxidação dos ácidos gordos, estas alterações cursam com hipoglicémia hipercetótica, a qual se associa a outras manifestações como odores característicos, atraso de neurodesenvolvimento, hipotonia e acidose metabólica.

Exames complementares

Dada a enorme variedade de situações que podem desencadear hipoglicémia, tal circunstância gera habitualmente um verdadeiro desafio diagnóstico. Na verdade, em muitas crianças, mesmo após investigação clínica e laboratorial exaustiva, a etiologia não é identificada.

Uma necessidade de glicose superior a 8 mg/kg/min para manter a normoglicémia é, como foi referido antes, muito sugestiva de hiperinsulinismo. Outra informação valiosa a ter em consideração na anamnese é o tempo de jejum decorrido. Um episódio de hipoglicémia poucas horas após uma refeição aponta para excesso de insulina, apesar de tal facto também poder ocorrer em defeitos mitocondriais, ou após ingestão de frutose no doente com intolerância a esta pentose. Na glicogenose tipo I os episódios ocorrem após um breve período de jejum (1,5-4h), quando a glicose proveniente da dieta já foi consumida. Noutras doenças hereditárias do metabolismo, a hipoglicémia habitualmente tem lugar mais tardiamente: 4 a 12h noutras glicogenoses, 8 a 16h nos distúrbios da gliconeogénese, e após 10h nos defeitos da oxidação dos ácidos gordos.

Nalguns casos o exame objetivo leva à suspeita do diagnóstico: a hiperpigmentação pode ser sinal de insuficiência adrenal, enquanto a hepatomegália pode indicar glicogenose. Nos defeitos da oxidação dos ácidos gordos ou da gliconeogénese, o fígado está aumentado no episódio agudo, retornando ao normal posteriormente. A miopatia e a cardiomiopatia estão também presentes nalgumas DHM.

Todavia, na grande maioria dos doentes, o diagnóstico depende da investigação laboratorial (Quadro 4). As amostras de sangue, se possível, devem ser colhidas durante o episódio e antes da correcção da hipoglicémia (amostra crítica), mas sem atrasarem o tratamento. No caso de o volume de sangue ser limitado, deverão ser privilegiadas as determinações da glicose e da insulina. Por outro lado, os corpos cetónicos e os ácidos orgânicos deverão ser medidos na primeira urina após a correcção.

QUADRO 4 – Investigação laboratorial dos episódios de hipoglicémia

Se possível, deverá ser congelada parte da amostra de sangue e de urina para eventual investigação futura.
(Adaptado de Ghosh A et al, Arch Dis Child 2016)
    • Plasma (antes da correcção da hipoglicémia)
      • Glicose
      • Insulina e péptido-C
      • Gasometria com lactato
      • ß-hidroxibutirato
      • Ácidos gordos livres
      • Cortisol
      • Hormona de crescimento
    • Plasma (antes ou após correção da hipoglicémia)
      • Acilcarnitinas (plasma ou cartão)
      • Aminoácidos
      • Amónia
      • Ureia e electrólitos
      • Provas de função hepática
    • Urina (primeira amostra após o episódio de hipoglicémia)
      • Corpos cetónicos
      • Ácidos orgânicos

Os glucómetros portáteis, habitualmente utilizados no controlo da diabetes mellitus, servem como método de rastreio para a determinação da glicémia e da cetonémia. Contudo, uma vez que os dispositivos existentes no mercado não são suficientemente precisos no diagnóstico de valores de glicémia inferiores a 60 mg/dL, é sempre necessária confirmação laboratorial. A concentração da glicose no sangue total é 10-15% inferior à do plasma, pelo que, por uma questão de consistência com os valores descritos na literatura, esta deverá ser medida no plasma. Outro factor a ter em consideração é a necessidade de celeridade no processamento da amostra, uma vez que a glicólise levada a cabo pelos eritrócitos poderá induzir um valor falsamente baixo.

 

Como foi explicado anteriormente, a presença de insulina durante um episódio de hipoglicémia é consistente com hiperinsulinismo. Todavia, esta pode não ser detectada numa amostra única, uma vez que sofre rápida depuração (clearance) hepática. Factores adicionais que corroboram este diagnóstico incluem: a diminuição plasmática dos ácidos gordos livres e dos corpos cetónicos (Figura 1); o incremento glicémico (> 25 mg/dL) em resposta à administração de glucagom ou de octreótido. Uma insulinémia elevada sem que haja o aumento correspondente do péptido-C plasmático deve levantar a suspeita de administração exógena. Por outro lado, a redução dos corpos cetónicos acompanhada do aumento dos ácidos gordos livres sugere a presença de um distúrbio da cetogénese ou da oxidação dos ácidos gordos. Esta última deve ser confirmada pelo doseamento da acilcarnitina

FIGURA 1. Diagnóstico diferencial de hipoglicémia

(Adaptado de Langdon DR et al, Pediatric Endocrinology 2014)
Abreviaturas: ß-OHB – ß-Hidroxibutirato; AGL – Ácidos Gordos Livres; GSD – Glicogenoses; HC – Hormona do Crescimento; SR – Suprarrenal; AG – Ácidos Gordos.

A inclusão do doseamento da hormona de crescimento e do cortisol na amostra plasmática inicial é controversa. Frequentemente, nas crianças sujeitas a provas de jejum, os níveis destas hormonas encontram-se abaixo do intervalo considerado normal, além de não se correlacionarem necessariamente com o grau de hipoglicémia. Se a suspeita for de insuficiência adrenal, o diagnóstico deverá ser estabelecido por uma prova de ACTH. Por outro lado, se recair sobre o défice da hormona de crescimento, além da avaliação antropométrica e das provas de estimulação da produção desta hormona, deve proceder-se a ressonância magnética da sela turca para avaliar a possível existência de alterações anatómicas hipotálamo-hipofisárias.

Apesar da importância da colheita da amostra crítica durante o episódio de hipoglicémia, actualmente várias condições metabólicas podem ser diagnosticadas de outra forma. Este avanço diagnóstico, aliado aos riscos inerentes às provas de jejum e à necessidade de uma monitorização muito rigorosa por uma equipa experiente, levou a que estas sejam executadas agora muito mais esporadicamente. A maioria dos defeitos da oxidação dos ácidos gordos pode ser identificada pela análise das acilcarnitinas no sangue, obtidas posteriormente com o doente já estabilizado. Se a clínica for sugestiva de glicogenose ou de alteração da gliconeogénese, o diagnóstico poderá ser confirmado pela sequenciação do painel dos genes mais relevantes. Contudo, os resultados genéticos devem ser interpretados de forma cuidadosa, uma vez que, se por um lado as mutações nem sempre são identificadas, por outro, podem ser encontradas variantes de significado incerto.

Tratamento

O tratamento de emergência da hipoglicémia sintomática consiste na pronta administração intravenosa de 2 a 5 mL/kg/dose de glicose a 10% (Quadro 5). O uso de soluções com concentração superior a 10% deve ser evitado, uma vez que estão descritos relatos de hiperglicémia grave por excesso de correcção. A glicémia deverá ser reavaliada 15 minutos depois, com repetição do bolus caso o valor não seja superior a 70 mg/dL. Deverá ser então iniciada uma perfusão de glicose a 10%, a um ritmo de 5 mL/kg/h (que providencia 8 mg/kg/minuto de glicose). Assim que a criança estiver consciente e com boa tolerância oral, a perfusão intravenosa poderá ser progressivamente descontinuada, mantendo a glicémia entre 70 mg/dL e 110 mg/dL.

QUADRO 5 – Tratamento de emergência da hipoglicémia

(Adaptado de Ghosh A et al, Arch Dis Child 2016)
Doente consciente e com tolerância oral
    1. 10 a 20 g de glicose oral
    2. Merenda com hidratos de carbono de absorção lenta
Doente inconsciente
    1. Bolus iv de 2 mL/kg de Glicose a 10% (repete 15 minutos depois se glicémia < 70 mg/dL)
    2. Perfusão iv de Glicose a 10%, a um ritmo de 5 mL/kg/h (ajustar para um objectivo glicémico de 70-110 mg/dL)
Doente inconsciente e sem acesso iv

Glucagom im: 0,5 mg se < 25 Kg; 1 mg se > 25 Kg

Doentes com glicémia inicial < 50 mg/dL e/ou alteração do estado de consciência deverão ser internados para monitorização (inicialmente horária) e investigação diagnóstica.

A abordagem a médio e longo-prazo, bem como a prevenção de recorrências dependem essencialmente do correcto diagnóstico etiológico e tratamento específico. Antes da alta, é necessário assegurar que a criança consegue manter uma normoglicémia durante um período de jejum seguro, ou seja, durante o tempo habitual de sono adequado à sua idade (cerca de 4-6h no lactente; 12-16h na criança). Deve ainda ser fornecido glucómetro portátil e ser realizado ensino à família no que respeita à periodicidade e composição das refeições.

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CETOACIDOSE DIABÉTICA

Definição e importância do problema

A cetoacidose diabética (CAD), frequentemente, a forma de apresentação inicial da diabetes tipo 1 na criança, é a sua complicação aguda mais grave. Constitui igualmente uma urgência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade da criança diabética, com um risco estimado de morte de 0,2 a 1%, essencialmente por edema cerebral.

Tal situação surge como consequência das alterações metabólicas e hidroelectrolíticas secundárias a diminuição da insulina circulante eficaz e, como consequência, à elevação das hormonas de contrarregulação (glucagom, catecolaminas, cortisol e hormona do crescimento) que, para além de contribuírem para a hiperglicémia, estimulam a cetogénese.

Os critérios bioquímicos para o diagnóstico de CAD são: hiperglicémia, (> 200 mg/dL), acidose metabólica (pH < 7,25 e/ou bicarbonato < 15 mEq/L), cetonúria e cetonémia. Considerando o parâmetro “hiato aniónico” [Na(Cl+HCO3)], indicador indirecto dos níveis de corpos cetónicos, o valor deste > 12  mEq/L é compatível com CAD.

A gravidade da CAD pode ser ordenada pelo grau de acidose, variando de grave (pH < 7,1 e bicarbonato < 5 mEq/L) a moderada (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato 5 a 10) e ligeira (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato > 10).

A terapêutica consiste na correcção das alterações hidroelectrolíticas (desidratação/choque), do equilíbrio ácido-base e da hiperglicémia, através da reposição hídrica e iónica, da correcção da acidose, e dos níveis de insulina (ver capítulo anterior).

De acordo com os peritos e investigadores no âmbito da CAD, no ano de 2019 ainda subsistem controvérsias. Baseando-se as normas de orientação clínica e as recomendações fundamentalmente em considerações teóricas, existe grande variabilidade dos protocolos adoptados, de instituição para instituição, sem diferenças significativas quanto aos resultados. As grandes questões investigadas têm sido as relacionadas com a velocidade de perfusão de solutos e o respectivo conteúdo em sódio (designadamente, utilização de NaCl a 0,9% ou a 0,45%).

Constituindo uma emergência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade na criança diabética, o risco estimado de morte (0,2 a 1%) relaciona-se  essencialmente com o surgimento de edema cerebral, o qual pode originar hipertensão intracraniana e lesão do sistema nervoso central.+

+A patologia de base “diabetes mellitus” é um continuum. Por razões didácticas a CAD foi considerada separadamente como complicação da primeira; por sua vez, o edema cerebral foi considerado uma das complicações da CAD.

ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS

A diabetes mellitus constitui uma das doenças crónicas mais comuns a nível mundial.

Referindo-nos aos EUA, um país com a publicação de estudos epidemiológicos em larga escala, foram apurados os seguintes dados:

  • 192.000 crianças com diagnóstico de diabetes e uma incidência de hospitalizações por CAD em 2014 de 188.965 (correspondendo 11% das admissões por CAD em doentes com menos de 17 anos);
  • cerca de 30% de crianças com novo/recente, anteriormente desconhecido diagnóstico de DM 1 têm como forma de apresentação a CAD;
  • cerca de 10% de crianças com novo/recente diagnóstico de DM 2 têm como forma de apresentação a CAD;
  • em crianças com o diagnóstico conhecido de DM 1, o risco de CAD oscila entre 1% e 10% de CAD/paciente/ano.
  • de acordo com estatísticas hospitalares, com progressos ao longo dos anos, estima-se uma letalidade actual de 0,33%.  

ETIOPATOGÉNESE

Como foi referido no capítulo anterior, a insulina é uma hormona polipeptídica segregada pelas células beta do pâncreas sob acção de estímulos beta-adrenérgicos e parassimpáticos. Tendo uma acção anabolizante, leva a um aumento da captação tecidual de glucose, sua entrada no meio intracelular, e a um estímulo da síntese do glicogénio hepático e muscular.

No fígado promove inibição da neoglicógenese e da glicogenólise; no músculo, estimula a síntese proteica e inibe a proteólise; e, no tecido gordo, promove a captação de glucose e lipoproteínas, estimula a lipogénese, e inibe a lipólise.

A CAD ocorre quando as concentrações de insulina sérica são inadequadas face a:

  • deficiência absoluta (tendo como base a falência progressiva das células beta pancreáticas por destruição autoimune na DM 1 não diagnosticada), ou
  • deficiência relativa (por estresse, infecção, administração inadequada de insulina) em relação com níveis elevados de hormonas de contrarregulação (catecolaminas, cortisol, glucagom e hormona de crescimento).

A combinação de:

  • deficiência de insulina e de
  • aumento dos níveis de hormonas de contrarregulação, levam a gluconeogénese e a glicogenólise, com aumento da produção de glucose e à  diminuição de utilização periférica da mesma glucose.

Como consequência, verifica-se hiperglicémia, hiperosmolalidade, hiperlipólise e cetogénese. Ou seja, a diminuição, ou ausência persistente de insulina condiciona a passagem de um estado anabólico a um estado catabólico, com neoglicogénese, glicogenólise, cetogénese e proteólise.

Quando o limiar de excreção renal para a glicose exceder ~9,1-11,1 mmol/L, a glicosúria e a hipercetonémia causam diurese osmótica, poliúria, desidratação, e perda de electrólitos (incluindo sódio, potássio, magnésio, cálcio e fosfato).

Consequentemente surge a estimulação da produção das hormonas de estresse e, no caso de não se verificar resposição de fluidos, electrólitos e insulina, a desidratação/hipovolémia e hipoperfusão agravam-se, originando acidose metabólica e láctica, podendo seguir-se desfecho fatal. (Figura 1 )

A patogénese do edema cerebral, a complicação mais grave da CAD, (sendo mais frequente na criança do que no adulto), não é totalmente compreendida. Têm sido sugeridos múltiplos mecanismos, persistindo ainda controvérsia sobre se terá maior importância a velocidade de administração dos fluidos ou a composição dos mesmos. Os primeiros estudos apontavam para o papel da administração de fluidos hipotónicos determinando desvio dos fluidos pelas diferenças da osmolalidade entre  os compartimentos extravascular e intravascular intracraniano (desvio espaço vascularà parênquima cerebral.)

As novas teorias, apoiadas em imagiologia funcional,  sugerem que o edema resulta de um fenómeno lesivo explicado por hipoperfusão seguida de reperfusão, neuroinflamação (edema vasogénico associado a aumento da permeabilidadede barreira hematoencefálica).

Com efeito, estudos imagiológicos recentes através de ressonância magnética, espectroscopia próxima dos infravermelhos e de ultrassonografia Doppler transcraniana demonstraram que o edema cerebral é de tipo vasogénico.

FIGURA 1. Fisiopatologia da CAD

Manifestações clínicas

Globalmente, o factor etiológico mais comum de CAD é a diabetes mellitus do tipo 1 (DM 1) de início recente. Tal patologia pode igualmente ser observada em crianças com DM 1 e infecção, DM 1 e outra doença intercorrente, ou administração  inadequada de insulina. De referir que a CAD poderá também surgir em crianças  com DM 2).

Determinadas situações – com o significado de factores de risco – tais como, administração de corticóides em altas doses, fármacos antipsicóticos, diazóxido e medicações com efeito imunossupressor, poderão precipitar CAD em pacientes na ausência de  conhecimento prévio do diagnóstico de DM 1.

As manifestações clínicas mais frequentes de CAD são:

  • polidipsia e poliúria por diurese osmótica devida à desidratação hiperosmolar por hiperglicémia;
  • náuseas, vómitos e hálito cetónico (pela cetose);
  • perda de peso e confusão mental/coma (a avaliar pela escala de Glasgow), existindo uma boa relação entre as manifestações neurológicas e o grau de hiperosmolaridade sérica.

Hiperpneia, taquipneia e dor abdominal são frequentes, podendo levar a dificuldades de diagnóstico diferencial com episódios de doença respiratória ou com situações de abodómen agudo.

A cetoacidose, evidenciada pelo hálito cetónico, estimulando os quimiorreceptores centrais e periféricos que regulam a respiração, leva ao tipo de respiração de Kussmaul (excursões respiratórias “rápidas e profundas”).

A dor abdominal e o quadro de íleo paralítico que se pode estabelecer resultam da deplecção de potássio, da acidose e da hipoperfusão esplânquica.

A desidratação é uma constante da CAD, mas a sua característica de hiperosmolaridade e predomínio intracelular, com possível ausência de prega cutânea nas fases iniciais, pode levar à subvalorização do diagnóstico.

Segundo a experiência de alguns centros, foram verificados aumentos dos teores de amilase e triglicéridos, assim como leucocitose.

Apesar da desidratação grave, numa fase inicial os pacientes evidenciam geralmente pressão arterial normal, admitindo-se que tal facto seja explicável pela acção do teor aumentado de catecolaminas e pela libertação de hormona antidiurética estimulada pela elevada osmolalidade sérica.

Assim, no contexto de CAD, a avaliação da pressão arterial não constitui um indicador suficientemente confiável na avaliação do estado cardiovascular. De acordo com diversos estudos, são mais confiáveis a frequência cardíaca e o tempo de recoloração capilar, correspondente ao grau de perfusão periférica.

Por fim, com a falência dos mecanismos compensatórios, surge hipotensão, choque e alteração do estado mental.

EXAMES  COMPLEMENTARES

Os valores laboratoriais que permitem o diagnóstico de CAD foram referidos anteriormente.

Em todos os doentes deve proceder-se à monitorização de diversos parâmetros:

  • electrónica contínua → dos parâmetros vitais clássicos (FC, FR, PA, SpO2, ECG, etc.);
  • bioquímica → da glicémia (hora/ hora); do pH e gasometria capilar (2/2 horas enquanto pH<7,2  e, de 4/4 horas, ulteriormente); da ureia e creatinina, ionograma (Na, K, Cl, Ca, P e Mg) glicosúria,  cetonémia e cetonúria (de 4/4 horas); e, em função do contexto clínico de cada caso: s osmolalidades sérica e urinária, amilasémia, perfil lipídico e beta-hidroxibutirato.

Como avaliação geral, citam-se também o hemograma completo e o doseamento da proteína C reactiva (PCR) ou de outros marcadores de inflamação como a procalcitonina.

Nos casos em que a CAD constitui a forma de apresentação de um novo caso de DM (diagnóstico de DM até então desconhecido) estão indicados determinados exames laboratoriais adicionais para avaliação da fisiopatologia de base: HbA1c, anticorpos antiperoxidase, TSH, tiroxina livre, transglutaminases teciduais, imunoglobulina A, anticorpos anti-células dos ilhéus, anticorpos anti-insulina, e anticorpo anti descarboxilase do  ácido glutâmico.

Sem prejuízo da prioridade estabelecida para a vigilância electrónica contínua e para os exames laboratoriais descritos, citam-se os exames de imagem TAC-CE e RM, com interesse na identificação de edema cerebral.

 O ECG deve ser realizado na data de admissão e, depois, em monitorização contínua para detecção de sinais de discaliémia, arritmias, etc., como foi referido.

Interpretação de alguns resultados laboratoriais

    1. Hiato aniónico: no contexto de DM e de CAD, importa salientar que o seu valor diz respeito `presença de corpos cetónicos e não de outras etiologias cursando com acidose metabólica como acidose láctica e intoxicação com salicilatos;
    2. No contexto de CAD chama-se a atenção para o surgimento de hiponatrémia de diluição devida a hiperglicémia, o que implica cálculo rigoroso do suprimento em sódio: → Natrémia do paciente + 2 ([glicose plasmática em mg/dL -100] /100) mg/dL;
    3. Hiperosmolalidade sérica e creatinina elevada são dados que sugerem CAD;
    4. A acidose hiperclorémica é mais frequente nos casos em que a perfusão endovenosa é mais rápida, o suprimento de cloro veiculado através do NaCl é mais elevado e se utiliza NaCl a 0,9%;
    5. Leucocitose, só por si, poderá não indiciar infecção;
    6. Para além da valorização dos dados clínicos, poderá haver suspeitas de edema cerebral perante a verificação de ureia e creatinina elevadas, acidose grave, hipocápnia acentuada e insucesso ou recidiva na correcção da hiponatrémia;
    7. Em situações de hipoperfusão circulatória periférica e acidose grave, os valores da glucose determinados em sangue capilar poderão não ser confiáveis – podendo ser mais elevados; por isso, haverá que recorrer a colheitas em sangue venoso.

ACTUAÇÃO PRÁTICA

Objectivos gerais

Os objectivos gerais do tratamento são:

  1. corrigir a desidratação e a acidose, restaurando a perfusão tecidual e a filtração glomerular;
  2. interromper a cetogénese, a proteólise e a lipólise (por acção da insulina), contribuindo para a normal captação de glucose ao nível tecidual, revertendo  hiperglicémia  e a hiperosmolalidade;
  3. repor as perdas em electrólitos;
  4. estar alerta para eventuais complicações do tratamento,
  5. a fluidoterapia inicial com soro fisiológico deve preceder sempre (não < 1-2 horas) a terapia com insulina.

As CAD moderadas e graves necessitam, pois, sempre de insulinoterapia e reidratação endovenosas (em vias diferentes). Nos casos de CAD grave, depressão do estado de consciência (Glasgow ≤ 12), vómitos persistentes e idade < 5 anos, está indicado internamento em cuidados intensivos ou em enfermaria pediátrica especializada.

Crianças sem sinais de desidratação significativa (< 3%) e sem cetoacidose toleram bem terapêutica com insulina subcutânea e reidratação oral.

Aspectos gerais da fluidoterapia intravenosa (IV)

a) Protocolo clássico

Verificando-se estado de choque, procede-se a expansão vascular com soro fisiológico (sf) ou lactato de Ringer: 10-20 mL/Kg em 30-60 minutos, a repetir se necessário.

Após correcção do choque, programa-se o cálculo da reposição hídrica para 48 horas, de forma a não gerar gradientes osmóticos intra-extracelulares potenciadores de edema cerebral (não ultrapassar 4 L/m2/dia ou 10-12 mL/kg/hora na primeira hora e 6 mL/kg/hora nas horas seguintes).

O cálculo das necessidades de fluidos pode ser feito pela soma do défice de fluidos (% da perda de peso corporal em kg) + manutenção (idades: < 1 ano, 1-5, 6-9, 10-14 e > 15 anos, necessitam de volumes de manutenção: 80, 70, 60, 50 e 35 mL/kg/dia, respectivamente).

Nos cálculos não devem ser considerados os volumes administrados na fase de expansão vascular, mas deve ter-se em atenção a contabilização de todas as perdas, com especial atenção para as perdas urinárias que poderão corresponder a 30-50% dos fluidos para a manutenção.

Tipo de solutos

Nas primeiras seis horas:

  • utilizar soro fisiológico (NaCl a 0,9%);
  • passar para glucose a 5% e soro fisiológico (2 vias com conexão em Y) quando se iniciar a perfusão de insulina;*
  • poderá ser necessário administrar solutos com maiores concentrações de glucose (7,5%, 10% glucose) para evitar a hipoglicémia.

Após as seis horas:

  • passar para NaCl a 0,45% com glucose a 5% (soluto a 1/2).

A  insulina em perfusão  é iniciada 1-2 horas após o início da reidratação IV.

Não se administra insulina em bolus inicial. Deve usar-se acesso IV exclusivo (conexão em Y) para perfusão de insulina de acção rápida, na dose inicial de 0,1 U/kg/hora (diluir 50 U de insulina em 500 cc de SF, sendo então 1cc <> 0,1 Unidades).**

Eis algumas particularidades:

  • nas crianças < 5 anos ou glicémia inicial > 1000 mg/dL (> 55 mmol/L) é prudente iniciar com 0,05 U/kg/h (0,5 mL/kg/h);
  • manter a perfusão até à melhoria da CAD (pH > 7,3 e bicarbonato > 15 mmol/L);
  • quando glicémia < 250 mg/dL (14 mmol/L), ou antes, se houver descida > 90 mg/dL/h (5 mmol/L/h), ajustar a concentração de glucose, mas não diminuir o ritmo de administração de insulina.

Se ao fim de 4 horas os parâmetros bioquímicos de CAD não melhorarem:

  • reavaliar o doente;
  • rever a insulinoterapia;
  • considerar outras causas de má resposta à terapêutica (infecção!).

Após estabilização*** é habitualmente possível iniciar insulina de acção rápida ou de acção ultra-rápida subcutânea (sc) de acordo com o esquema do Quadro 1.

Após as primeiras 24 horas pode ser possível:

  • interromper soluto IV;
  • iniciar insulina de acção intermédia sc; dose: 0,3 U/kg/dia em 2 injecções: antes do pequeno almoço – 2/3 do total; antes do jantar – 1/3 do total;
  • manter a insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas durante as 4 horas seguintes de acordo com os critérios do Quadro 1;
  • após 4 horas, e se não houver cetonúria, passar a insulina rápida antes das três refeições principais (pequeno almoço, almoço, jantar);
  • se houver cetonúria, manter a administração de insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas até ao seu desaparecimento, passando, depois, para antes das 3 principais refeições.
*Para prevenir o declínio rápido da glicémia e a hipoglicémia deve acrescentar-se glucose ao fluido IV (NaCl a 0,9%). Este objectivo pode ser conseguido na prática (respeitando os cálculos feitos quanto aos fluidos a administrar), utilizando conexão em Y com dois sistemas: um com dextrose e outro sem dextrose. Torna-se fundamental o acerto quanto ao ritmo de administração.
**A solução de insulina só é estável durante 6 horas, pelo que terá de ser novamente preparada se a perfusão se mantiver mais que este tempo.
***pH > 7,3; bicarbonato ≥ 18; hiato iónico 8-11; alimentação oral possível.

QUADRO 1 – Cálculo da dose de insulina na fase de estabilização

Introduzir os líquidos per os após a melhoria franca da CAD e quando o doente manifestar o desejo de comer.
Se houver boa tolerância oral, diminuir os soros IV (subtrair o volume ingerido ao volume calculado para administração IV) e tentar uma pequena refeição com hidratos de carbono de absorção lenta (leite, iogurte, bolachas, pão…).
Programar a passagem para insulina SC (subcutânea) quando a acidose tiver regredido (pH > 7,3 e bicarbonato ≥ 18 mEq/L) e os alimentos forem bem tolerados.
O melhor momento para iniciar insulina SC é antes de uma refeição.

Administrar a 1ª dose sc de insulina de acção rápida/ultra rápida de acordo com o peso, glicémia e alimentação: 

< 160 mg/dL – 0 U
160 – 200 mg/dL – 0,05 U/kg
> 200 – 300 mg/dL – 0,1 U/kg
> 300 mg/dL – 0,15 U/kg
+crianças < 20 kg – 0,5 U/equivalente de HC*
crianças > 20 kg – 1
U/equivalente de HC

*1 equivalente de HC: 1/2 pão, 3 bolachas Maria, 3 bolachas água e sal, 2 iogurtes 

Parar a perfusão de insulina 15 minutos depois de administrar a 1ª dose de insulina SC.
Manter insulina de acção rápida/ultra rápida SC de 2 em 2 horas de modo a manter glicémia ∼ 150 mg/dL.
b) Protocolo FLUID (Fluid Therapies Under Investigation in DKA)

Este esquema de fluidoterapia integra, de facto, 4 protocolos (designados respectivamente A1, A2, B1, B2 – Quadro 2) aplicáveis: – a duas situações de défice ponderal (5 e 10%); e – a duas outras situações utilizando concentração de NaCl 0,9% (soro fisiológico) e 0,45%.

QUADRO 2 – Diferentes protocolos para fluidooterapia na CAD

Componentes

Protocolo A1

Protocolo A2

Protocolo B1

Protocolo B2

Bolus de fluido inicial10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%
Bolus adicional IV10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%Não bolus adicionalNão bolus adicional
Défice ponderal estimado

10%

10%

5%

5%

Reposição do défice

Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h

 

Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h

 

Reposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 hReposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 h
Fluidos usados para reposição do déficeNaCl 0,45%NaCl 0,9%NaCl 0,45%NaCl 0,9%

Notas importantes:

    • O protocolo FLUID refere-se apenas ao suprimento de fluidos e NaCl. Os aspectos realacionados, designadamente com a insulinoterapia, reposição de potássio, correcção da acidose, etc., são descritos no âmbito do protocolo clássico.
    • Bolus inicial de fluidos pressupõe volume de 20 mL/kg.
    • Bolus de fluidos são repetidos em função do estado circulatório (frequência cardíaca e perfusão periférica após bolus inicial).
    • Reposição do défice:
      • tempo estimado entre 24 e 36 horas;
      • fluidos contendo NaCl entre 0,45% e 0,9% são aceitáveis.
    • Monitorização e ajustamento do regime de fluidoterapia:
      • é importante monitorizar a frequência cardíaca, a perfusão periférica, assim como o suprimento e eliminação de fluidos- balanço hídrico;
      • a pressão arterial não constitui um bom indicador do estado circulatório nos casos de CAD;
      • ritmo de perfusão de fluidos deve ser aumentado se durante o tratamento não se verificar melhoria, ou se se verificar agravamento.

Correcção da acidose

A correcção da desidratação e da hiperglicémia é habitualmente suficiente para a correcção da acidose. A administração de bicarbonato é cada vez mais contestada, não tendo sido demonstrado efeito benéfico na sua utilização; pelo contrário, pode levar a um agravamento da hiperosmolaridade e potenciar a acidose do SNC e o edema cerebral. Considera-se a administração de bicarbonato apenas quando pH < 7,0 e bicarbonato < 5, ou quando há necessidade de utilização de aminas vasoactivas, e só até pH de 7,1 (1 a 2 mEq/kg em perfusão de 2 horas).

Correcção das alterações iónicas

Os suprimentos em sódio, cloro, fósforo e cálcio são os necessários ao metabolismo basal. A utilização de solutos com níveis de sódio ≥ a 50 mEq/litro (soluto a 1/3) é habitualmente suficiente para manter o sódio em níveis adequados.

Mesmo nas situações de CAD associada a Na+ sérico > 150 mEq/L, há que não utilizar soluções hipotónicas.

Em relação ao potássio há que considerar a sua administração logo nas 2 primeiras horas se potassémia inicial < 4,5 mEq/L (2 a 4 mEq/kg/dia, não excedendo concentrações de 40 mEq/L de soluto em veia periférica).

Salienta-se que no momento do diagnóstico de CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado porque a acidose provoca saída de potássio do meio intracelular. Mesmo nesta eventualidade, há que referir que o potássio corporal total está diminuído.

O sódio sérico inicial, geralmente normal ou baixo, explica-se pelos efeitos de diluição osmolar da hiperglicémia e da fracção hipídica elevada não contendo sódio.

Assim, para o cálculo da correcção da natrémia nos casos de glicémia > 100 mg/dL (5,6 mmol/L) utiliza-se a seguinte fórmula, considerando a glicémia em mg/dL.

 [Na+] + [glucose – 100] x 1,6
100

O sódio deverá aumentar cerca de 1,6 mmol/L por declínio de 100 mg/dL de glicémia em concomitância com a reposição lenta dos fluidos. Se, pelo contrário a natrémia diminuir à medida que se proceder à reidratação, tal poderá significar acumulação de água livre e risco de edema cerebral.

Quando o fósforo for < 2,5 mg/dL (< 0,8 mmol/L), deve substituir-se  50% do KCl por fosfato monopotássico, até às 12 horas de tratamento.

Para a correcção doutras alterações iónicas sugere-se a consulta dos capítulos sobre reidratação IV.

Reitera-se que o início da alimentação é feito logo que a tolerância oral o permita, com preferência por líquidos ricos em potássio (sumos), iogurte e pequenas refeições (Quadro 1).

Tratamento do edema cerebral

Embora raro (0,4 a 1% das CAD) o edema cerebral é responsável por cerca de 50 a 80% de todas as mortes por CAD; comporta mortalidade de 20 a 25% e morbilidade de 10 a 26% nos sobreviventes.

É mais frequente nas primeiras 4 a 12 horas de terapêutica. São considerados sinais de alarme: cefaleias, alterações do estado de consciência, sinais focais, convulsões, hipertensão arterial e bradicardia.

A sua terapêutica é emergente, exigindo recurso a cuidados intensivos e medidas específicas (elevação da cabeceira, cabeça na linha média, sedação/analgesia, ventilação) associados a perfusão de manitol (0,5 a 1 g/kg em 20 minutos) concomitantemente com redução do suprimento dos fluidos programados, a metade e ajuste da dose de insulina. Como alternativa pode utilizar-se na NaCl hipertónico a 3%: 5-10 mL/kg a cada 30 minutos com manutenção de natrémia entre 150 e 160 mEq/L.

Havendo indicação de suporte ventilatório a pCO2 deve ser mantida > 35 mmHg (não hiperventilar). Relativamente a esta norma de “não hiperventilar”, há que acautelar a verificação do pH, evitando valores baixos, de acidose, designadamente de 7 ou < 7.

Complicações

Sucintamente são referidas as seguintes complicações: rabdomiólise, mucormicose, pancreatite aguda, e outras ao nível do SNC (edema cerebral, hemorragia subaracnoideia, trombose arterial basilar, meningoencefalite, etc.).

Em 2019, no estado actual dos conhecimentos e da investigação sobre o tratamento da CAD, e no que respeita ao impacte dos diferentes protocolos de administração de fluidos sobre o prognóstico neurológico, parece não haver grandes diferenças, o que obrigará à continuação de estudos.

AGRADECIMENTOS

À Colega Drª Rosa Pina (da Unidade de Endocrinologia do HDE), pelas sugestões e  revisão inicial do manuscrito em anteriores edições.

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DIABETES MELLITUS

Definição e importância do problema  

A diabetes mellitus (DM) engloba um grupo de afecções do metabolismo caracterizado pela presença de hiperglicémia resultante de defeitos da secreção e/ou da acção da insulina nos tecidos alvo com consequentes alterações do metabolismo dos hidratos de carbono, lípidos e proteínas. A longo prazo, a cronicidade da hiperglicémia complica-se com disfunção e falência de vários órgãos, em especial olhos, rins, nervos, coração e vasos. Trata-se da doença endocrino-metabólica mais comum da infância e adolescência, com consequências importantes no âmbito do desenvolvimento físico e emocional.

Distinguem-se vários tipos de diabetes mellitus, sendo mais frequentes as designadas de tipo 1 e tipo 2 abordadas respectivamente nas alíneas 1. e 2. deste capítulo. Na alínea 3. são analisadas as formas mais raras.

  • Diabetes mellitus tipo 1 (DM 1), anteriormente designada insulino-dependente, a mais frequente na criança, caracterizada por défice total e permanente de secreção de insulina por destruição auto-imune das células beta dos ilhéus de Langerhans pancreáticos em indivíduos geneticamente susceptíveis; as manifestações clínicas surgem quando já cerca de 90% das referidas células se encontram destruídas. Trata-se duma das doenças crónicas mais frequentes na criança (ligeiramente mais frequente que as neoplasias e quatro vezes mais frequente que a fibrose quística).
  • Diabetes mellitus tipo 2 (DM 2), anteriormente designada não insulino-dependente ou de início no adulto, caracterizada por resistência dos tecidos à acção da insulina (insulinorresistência) associada a graus variáveis de disfunção das células beta. Embora seja muito menos frequente que a DM 1, na idade pediátrica verifica-se incidência crescente relacionável com o aumento de prevalência da obesidade à qual está geralmente associada.

1. Diabetes mellitus tipo 1 (DM 1)

Aspectos epidemiológicos

A incidência da diabetes mellitus tipo 1 (DM1) até aos 15 anos de idade apresenta grande variabilidade entre áreas geográficas, e mesmo entre países (cerca de 50/100.000 na Finlândia e na Sardenha e de 20/100.000 nos restantes países da Europa.

Em Portugal, país que conta desde 2009 com um sistema de registo nacional de diabetes aplicado ao grupo etário 0-19 anos designado pelo acrónimo DOCE registou-se no ano de 2014 uma incidência no grupo etário dos 0-14 anos de 17,5/100.000 e no grupo etário dos 0-19 anos, 14,8/100.000.

De acordo com diversos estudos multicêntricos realizados na última década, existe uma franca tendência para o aumento da incidência (cerca de 90.000 novos casos por ano), mais acentuadamente no grupo etário abaixo dos 5 anos.

Classicamente descrevem-se dois picos de maior incidência de DM1 na criança: um entre os 5-7 anos, possivelmente relacionado com maior exposição a infecções víricas com a entrada para a escola; e um segundo pico na puberdade, possivelmente desencadeado pelas alterações hormonais que caracterizam esta fase de desenvolvimento.

O aumento de incidência no grupo dos 0-5 anos e o facto de neste período se verificar uma resposta autoimune mais agressiva levantam questões em relação à própria etiopatogénese da diabetes, admitindo-se a forte influência de factores ambientais.

Nesta perspectiva cabe salientar a realização dum estudo multicêntrico em curso a nível mundial – The Environment Determinants of Diabetes in the Young – (TEDDY) incidindo sobre cerca de 8.000 crianças identificadas como geneticamente susceptíveis para a DM1 que tem precisamente como um dos seus objectivos identificar possíveis determinantes ambientais, podendo exercer influência desde o período perinatal, o que tem implicações práticas na prevenção.

O diagnóstico em idades precoces coloca efectivamente desafios especiais no âmbito da organização dos serviços de saúde de modo a garantir cuidados de qualidade.

Etiopatogénese

A etiopatogénese da DM1 é multifactorial, sendo reconhecida a contribuição em grau variável, e ainda não completamente determinada, da susceptibilidade genética, e de factores ambientais e imunológicos.

Está comprovada a predisposição genética para a DM1 (por exemplo genes relacionados com susceptibilidade para DM1 no cromossoma 6 e no cromossoma 11), sendo de referir que o tipo de hereditariedade é complexo e provavelmente poligénico. A identificação de combinações específicas de alelos HLA –DR e DQ confere cerca de 50% do risco.

Como exemplo de haplótipo considerado de alto risco inclui-se genericamente o DR3/4-DQ2/8 e, dentro deste grupo, como exemplos de haplótipos específicos:
DRB1*0401-DQA1* 0301-DQB1*0302
DRB1*0401-DQA1* 0301-DQB1*0301

Citam-se como exemplos de outros haplótipos DR-DQ que, pelo contrário, conferem protecção:
DRB1*1501- DQA1*0102-DQB1*0602
DRB1*0701- DQA1*0201-DQB1*0303
DRB 1*1401- DQA1*0101-DQB1*0503

A ocorrência em familiares pode estar presente em cerca de 10% dos casos, não sendo, no entanto, possível estabelecer um padrão de transmissão hereditária.

Numa população geral com risco de DM1 de 0,5%, o risco num gémeo idêntico será de cerca de 36% e, num irmão, de 4-9%. O risco é cerca de 3 vezes maior quando é o pai (3,6-8,5%) a apresentar DM1 relativamente à mãe (1,3-3,6%).

O risco parece ser também maior quando o caso index é diagnosticado em idade mais jovem.

Alguns factores ambientais parecem estar implicados, tais como: alimentação com leite de vaca em natureza antes dos 2 anos de idade e infecções por vírus (rubéola, sarampo, coxsackie B, citomegalovírus, etc.).

Estes factores poderão actuar como desencadeantes do processo de destruição autoimune das células beta, mas também modificando a patogénese, actuando como agravantes (infecções perinatais, défice de vitamina D) ou como atenuantes (infecções durante o 1º ano de vida). Não está provada a relação entre vacinas antivíricas e DM1.

A DM1 é uma doença autoimune mediada por células T. Um processo inflamatório dos ilhéus ou “insulite”, com infiltração de macrófagos, células B e células T (CD8 +) precede o início dos sinais clínicos.

Reconhecem-se vários autoanticorpos e antigénios associados a DM1, os quais constituem marcadores serológicos da autoimunidade da célula beta:

  1. Anti-células beta dos ilhéus de Langerhans (ICA);
  2. Anti-descarboxilase do ácido glutâmico (GAD);
  3. Anti-insulina (IAA);
  4. Antigénio associado a insulinoma IA2, IA2 β;
  5. Antigénio transportador do zinco (ZnT8A). Em mais de 90% dos indivíduos recém-diagnosticados podem ser identificados um ou vários destes autoanticorpos.

A existência destes marcadores imunológicos, podendo ser detectados por vezes vários anos antes das manifestações clínicas, permite que nalguns indivíduos seja possível o diagnóstico na fase pré-clínica. Quanto maior a diversidade de anticorpos, maior o risco de progressão para DM1.

Num estudo recente englobando cerca de 600 crianças concluiu-se que nos casos com identificação de mais de dois autoanticorpos ocorreu progressão em 10 anos para DM1 em cerca de 70%, e em 15 anos para 84% em 15 anos.

Na história natural da DM1 podem descrever-se quatro fases:

  1. Fase pré-clínica de destruição autoimune com progressiva diminuição da secreção de insulina;
  2. Diabetes clínica;
  3. Fase de remissão transitória (“lua-de-mel”);
  4. Diabetes estabelecida com défice total e permanente de insulina associado a complicações agudas e crónicas.

A fase pré-clínica tende a ser de menor duração nas crianças mais jovens.

Estão em curso estudos prospectivos em parentes próximos de doentes com DM1 com autoanticorpos e genótipos no sistema HLA considerados predisponentes. O objectivo destes estudos é conceber o modo de prevenir ou atrasar o início das manifestações clínicas da doença.

A presença de anticorpos contra certos órgãos pode associar-se a DM1; os exemplos mais frequentes são:

  • Os anticorpos antitiroideia relacionados com a tiroidite autoimune;
  • Os anticorpos antitransglutaminase relacionados com a doença celíaca; e
  • Os anticorpos anti-suprarrenal (anti-CYP17 e CYP21A2) relacionados com a doença de Addison.

Critérios de diagnóstico

O diagnóstico de diabetes mellitus pode ser estabelecido de acordo com critérios baseados em valores no plasma:

  • Na glicose plasmática em jejum (pelos menos de 8 horas) ” = ou > 126 mg/dL; ou
  • Na glicose plasmática 2 horas após administração de glucose oral – prova de tolerância à glicose oral (PTGO) ” = ou > 200 mg/dL; ou
  • Na glicose plasmática determinada casual ou aleatoriamente (independentemente do tempo decorrido desde a última refeição) associada a quadro clínico sugestivo de diabetes (poliúria, polidipsia, perda de peso inexplicada, glicosúria e cetonúria); ou
  • No valor de hemoglobina glicada (HbA1c) = ou > 6,5% (a confirmar no pressuposto de repetição se na ausência de hiperglicémia inequívoca).

O diagnóstico de anomalia da glicémia em jejum/AGJ baseia-se no seguinte critério:

  • Glicose plasmática em jejum de 100-125 mg/dL (5,6-6,9 mmol/L).

O diagnóstico de tolerância diminuída à glucose/TDG baseia-se no seguinte critério:

  • Glicose plasmática 2 horas após administração de glucose oral – prova de tolerância à glicose oral (PTGO) ” 140 mg/dL – 199 mg/dL (7,8-11,1 mmol/L). (PTGO a realizar de acordo com as normas da OMS: – glicose anidra dissolvida em água na dose de 1,75 g/Kg de peso corporal; máximo = 75 g).

Assim, a realização de PTGO só está indicada para estabelecer, em casos assintomáticos, o diagnóstico de pré-diabetes (hiperglicémia intermédia) que inclui anomalia da glicémia de jejum (AGJ) e tolerância diminuída à glicose (TDG) representando um estádio intermédio entre a homeostase normal da glucose e a diabetes.

Notas importantes:
Hemoglobina glicada (HbA1c)

Não se valoriza como diagnóstico na presença de sintomas; no entanto a sua determinação inicial pode permitir ter uma noção sobre o tempo decorrido até à fase de apresentação aguda.
Este parâmetro reflecte o valor médio da glicémia nos 3 meses anteriores tendo em conta a vida média dos eritrócitos e o fenómeno de transferência da glucose para o eritrócito em função dos níveis glicémicos. Nalguns casos de hemoglobinopatias, e dependendo também dos métodos de determinação utilizados, não poderá ser valorizada.
Pode estabelecer-se a seguinte relação da HbA1c com valores de glicémia média:

  • > 10%: glicémia anterior média > 240 mg/dL;
  • 8-10%: glicémia anterior média 180-240 mg/dL;
  • 6-8%: glicémia anterior média 120-180 mg/dL.

Salienta-se, no entanto, que existem dificuldades com a padronização e a variação individual na relação entre HbA1c e glicémia, o que limita a conveniência deste exame laboratorial.

Marcadores de autoimunidade

Na avaliação inicial podem ser utilizados marcadores da autoimunidade da DM1:

→ anticorpos anti-célula beta e anti-insulina: GAD (GAD65), tirosino fosfatase IA
 2 e IA2 β e ZnT8.

  • Tipagem HLA
    Podem ser determinados os haplótipos de risco anteriormente descritos.
  • Péptido C
    A determinação do péptido C, a realizar apenas em centros especializados, poderá estar indicada perante situações duvidosas de classificação definitiva do tipo de diabetes com a seguinte fundamentação:
    → a biossíntese do polipéptido insulina (a partir das células beta dos ilhéus de Langerhans), ocorre com a libertação na corrente sanguínea de quantidades equimolares de insulina e de péptido C.
    O péptido C constitui um bom marcador da função das células beta e, por isso, da reserva e da produção endógena de insulina. Tem uma vida média cinco a dez vezes superior à da insulina endógena e a grande vantagem de não ser influenciado pela administração exógena de insulina, nem pela existência de anticorpos anti-insulina.

Na DM1 estabelecida os seus valores são baixos (< 0,6 ng/mL), não aumentando após refeição ou administração de glucose, contudo, em fases iniciais pode evidenciar valores dentro dos limites da normalidade.

Manifestações clínicas, laboratoriais e relação com a fisiopatologia

O modo de apresentação clínica clássica da DM1 – em regra de modo súbito e inesperado – é constituído por poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso.

A manifestação inicial resultante do défice de insulina é a hiperglicémia pós-prandial; à medida que o referido défice se vai acentuando, surgem sucessivamente as fases de hiperglicémia em jejum e, finalmente, hiperglicémia mantida e formação de corpos cetónicos (beta-hidroxibutirato, acetoacetato e acetona) revelando um défice grave de insulina associado ao aumento de hormonas contrarreguladoras, em particular glucagom. A hiperglicémia e a cetogénese resultam da não supressão, quer da glicogenólise, quer da neoglucogénese e da oxidação de ácidos gordos quando o défice de insulina se agrava.

Consequentemente, os depósitos de proteínas no músculo, e de lípidos no tecido adiposo, são metabolizados como substractos para a neoglucogénese e oxidação de ácidos gordos.

Se a glicémia ultrapassar o valor de 180 mg/dL, que corresponde ao limiar de reabsorção tubular renal da glucose, verifica-se glicosúria que, por sua vez, origina diurese osmótica a qual pode levar a desidratação; refira-se que a perda renal de água “arrasta” electrólitos tais como sódio e potássio. Para compensar as perdas de líquidos em excesso por via urinária, verifica-se polidipsia.

O estado catabólico conduz a perda de peso face à perda calórica relacionada com a glicosúria e cetose.

A cetoacidose diabética (abordada no capítulo seguinte), apesar de precedida por sintomas de hiperglicémia nas 2-3 semanas anteriores, surge como reveladora de DM1 numa proporção ainda importante de casos, a qual pode ser minorada com a valorização dos sintomas de hiperglicémia, a confirmação imediata do diagnóstico e o início precoce de tratamento com insulina.

A poliúria pode ser difícil de detectar no lactente; o reaparecimento de enurese nocturna constitui importante pista diagnóstica e, como tal, deve ser sempre valorizado.

Na criança pequena poderá não ser fácil distinguir entre polidipsia e “hábito de pedir água”, sobretudo na fase de aprendizagem da utilização do copo.

Dada a irregularidade do comportamento da alimentação na criança pequena, a polifagia dificilmente poderá ser valorizada pelos pais.

Importa, por isso, na presença de clínica sugestiva, estar alertado para o diagnóstico e confirmá-lo de imediato. Saliente-se que atrasar desnecessariamente o diagnóstico e, por isso, o início do tratamento, agrava o risco de cetoacidose, situação grave com risco de mortalidade. A presença de hiperglicémia e de cetonémia podem ser imediatamente documentadas com tiras reagente, actualmente já disponíveis em muitos centros.

Comorbilidade

Em consonância com a etiopatogénese da DM1, podem surgir concomitantemente doenças por autoanticorpos, designadamente tiroidite autoimune e doença celíaca (mais frequentemente), assim como outras: doença de Addison, hepatite autoimune, gastrite autoimune, dermatomiosite e miastenia grave. Dando ênfase às mais frequentes, cumpre pormenorizar:

  • A tiroidite autoimune ocorre em 17 a 30% dos casos de DM1. Na fase inicial da DM1, a função tiroideia pode estar alterada devido à hiperglicémia e perda ponderal; pode também verificar-se a existência de anticorpos antitiroideus em 25% dos casos; o hipotiroidismo subclínico pode aumentar o risco de hipoglicémia e o hipertiroidismo pode determinar mau controlo glicémico;
  • A doença celíaca ocorre em 1,6-16,4% dos casos de DM 1; o rastreio sistemático permite detectar a maioria dos casos nos primeiros 5 anos de evolução da doença; em tal circunstância, para além dos sintomas intestinais, a oscilação glicémica e as necessidades de insulina inferiores ao esperado podem alertar para o diagnóstico.

Tratamento

Objectivos

O principal objectivo do tratamento da DM1 na criança consiste em conciliar a prevenção de complicações com a promoção de um crescimento e desenvolvimento psicoafectivo normais, compatíveis com um estilo de vida tanto quanto possível igual ao das outras crianças.

Vários factores contribuem para dificultar a obtenção de um bom controlo metabólico durante a infância, nomeadamente:

  • A influência de alterações hormonais e psicossociais inerentes ao processo de crescimento e desenvolvimento;
  • Padrão irregular da alimentação, do exercício e das actividades escolares;
  • A tendência para infecções frequentes; e ainda
  • A falta de auto-suficiência da criança para o seu tratamento.

Assim, a definição de objectivos de controlo metabólico, para ser realista, deve ser ajustada a cada grupo etário e à realidade de cada caso, o que implica atender a um conjunto de particularidades, a saber:

  • A hipoglicémia tem maior risco de lesão do cérebro em fase de desenvolvimento neuronal;
  • Além das possíveis alterações neurocognitivas atribuídas à hipoglicémia, são reconhecidas, também, repercussões da hiperglicémia, da oscilação entre valores extremos de glicémia e da cetoacidose.

Daí a importância da precocidade da intervenção e da qualidade dos cuidados a prestar ao paciente com diabetes mellitus.

Nesta perspectiva, organismos internacionais prestigiados devotados à diabetes na idade pediátrica (ISPAD, ADA) recomendam os seguintes valores laboratoriais como objectivos de controlo:

” HbA1c: < 7,5%; ” glicémia pré-prandial: 90-130 mg/dL (5,0-7,2 mmol/L); ” glicémia ao deitar/nocturna: 90-150 mg/dL (5,0-8,3 mmol/L).

Insulinoterapia

Actualmente considera-se que o regime de insulinoterapia intensivo é o ideal para o tratamento das crianças com diabetes. O objectivo é simular o mais fielmente possível as variações normais nos níveis plasmáticos de insulina que se produzem nas crianças e jovens não diabéticos, suprindo as necessidades basais ao longo das 24 horas, e as adicionais compensatórias da hiperglicémia prandial.

Em nenhum regime consegue atingir plenamente este objectivo. Contudo, a disponibilidade de insulinas permitindo perfis laboratoriais cada vez mais próximos dos fisiológicos, de sistemas de perfusão subcutânea contínua de insulina permitindo simultaneamente a monitorização da glicémia, assim como o regime de injecções múltiplas, têm contribuído para uma aproximação do referido objectivo. (ver adiante – Tipos de Insulina)

1. Doses

A insulinoterapia deve ser instituída imediatamente após o diagnóstico. Em presença de cetose, o início do tratamento nas primeiras 6 horas pode prevenir a evolução para um quadro de cetoacidose.

Neste último caso, o tratamento deverá ser iniciado em internamento segundo um protocolo específico de insulinoterapia em perfusão endovenosa, hidratação e reposição electrolítica.

Se na data do diagnóstico não se verificar ainda franca descompensação metabólica, sem significativa hiperglicémia, desidratação ou cetose, pode iniciar-se a administração de insulina por via subcutânea, idealmente em regime de múltiplas injecções.

A dose total inicial de insulina depende da idade, do peso corporal, do estádio pubertário e do quadro de apresentação.

Quando o diagnóstico é feito numa fase precoce, sem significativa descompensação metabólica, a dose inicial é 0,3-0,5 Unidades/kg de peso corporal.

Nos casos de cetose, sem acidose e sem desidratação, em geral, a dose inicial será de 0,5-1 Unidade/kg/dia.

Após recuperação de um quadro de cetoacidose, as necessidades diárias de insulina são maiores: 0,6-0,8 Unidade/kg/dia nas crianças pré-púberes, e de 0,8-1,0 Unidade/kg/dia nos adolescentes.

Na data do diagnóstico, a maioria das crianças apresenta ainda alguma secreção residual de insulina, podendo após alguns dias ou semanas, entrar num período de remissão (“lua-de-mel”) durante o qual é possível obter glicémias normais ou quase normais com pequenas doses de insulina (menos de 0,5 Unidade/kg/dia).

Após este período, as necessidades tendem a aumentar:

  • Na pré-puberdade: 0,7-1,0 Unidade/kg/dia;
  • Durante a puberdade: 1-1,5 Unidades/kg/dia; por vezes: 2 Unidades/kg/dia.
2. Regimes de insulinoterapia

Os regimes de insulina são classicamente classificados em dois grupos de acordo com o número diário de injecções: – convencional quando se aplicam < 4/dia; e – intensivo ou basal – bolus quando 4 ou > /dia.

2.1 – Regime convencional

Deve ficar reservado para situações em que barreiras à adesão terapêutica, socioeconómicas ou outras não permitam um regime intensivo.

Sendo objectivo da insulinoterapia suprir as necessidades basais ao longo das 24 horas e as adicionais para compensar a hiperglicémia prandial, os regimes convencionais fora do período de remissão não conseguem aproximar-se deste objectivo sem incorrer num maior risco de hipoglicémia, sobretudo nocturna.

As doses de insulina nestes regimes, fixas ou minimamente ajustadas às variações diárias, condicionam o horário e o teor em hidratos de carbono das refeições.

2.2 – Regime intensivo ou basal-bolus

Pode ser administrado através de múltiplas injecções diárias (MID) ou de sistema perfusão subcutânea contínua de insulina (PSCI) vulgarmente designada por “bomba de insulina”.

MID →
Considerando a dose diária total, 40-60% deverá ser de insulina basal (ver adiante – tipos de insulina), sendo a restante de insulina rápida a administrar pontualmente (bolus) às refeições, de acordo com a glicémia pré-prandial e a quantidade de hidratos de carbono a ingerir.
Para o cálculo inicial da dose de cada bolus podem ser utilizadas fórmulas baseadas na dose total diária de insulina. (Quadro 1)
Ao número de Unidades necessário para a quantidade de hidratos de carbono calculada em gramas (bolus de alimentação), deve adicionar-se o bolus de correcção, ou seja, número de Unidades necessárias para fazer baixar a glicémia medida até à glicémia definida como alvo (em geral 100, 120 ou 140 mg/dL).

QUADRO 1 – Fórmulas para cálculo de bolus

Bolus de alimentação

Quantidade de insulina necessária para os hidratos de carbono
500/Dose Diária Total = Gramas de Hidratos de Carbono que 1 Unidade de Insulina é Capaz de Metabolizar (Relação Insulina/HC)

Bolus de correcção:

Glicémia Medida – Glicémia Desejada (Alvo)
Factor de Sensibilidade à Insulina (FSI)*

*Cálculo do FSI
1800/Dose Diária Total = Glicémia em mg/dL que 1 Unidade de Insulina é Capaz de Baixar (Factor de Sensibilidade à Insulina)

Bolus da refeição = bolus de alimentação + bolus de correcção

Posteriores ajustes irão sendo feitos de acordo com o perfil glicémico diário resultante das determinações de glicémias em jejum, pré- e pós-prandiais e nocturnas ou de valores obtidos através de sistemas de monitorização contínua de glicose.

O bolus de correcção pode ser também utilizado para corrigir hiperglicémia fora do horário de refeições. Deve ter-se em atenção que a descida da glicémia não deve exceder 100 mg/dL/hora.

PSCI →

A administração de insulina através de sistemas de perfusão subcutânea contínua constitui o método que mais se aproxima do perfil fisiológico.

Baseia-se no conceito basal-bolus com semelhante cálculo de percentagem basal e em algoritmos baseados na relação insulina/hidratos de carbono e sensibilidade à insulina.

Os PSCI utilizam apenas insulina de acção rápida que é debitada continuamente a um ritmo programável em função do perfil glicémico previsto durante as 24 horas. A este ritmo basal sobrepõem-se libertações pontuais (bolus) para as refeições ou para correcção de hiperglicémia, em função dos dados obtidos pelo dispositivo (calculador de bolus) de acordo com os algoritmos programados.

Tais sistemas oferecem vantagens únicas:

  • Permitindo atingir melhor controlo com menor risco de hipoglicémias:
  • A possibilidade de administração de doses tão pequenas como 0,01 Unidades torna este método o mais adequado para a idade pediátrica (em Portugal são disponibilizados pelo SNS dispositivos para todas as crianças cujo diagnóstico ocorra antes dos 6 anos);
  • Permitindo ajustar o ritmo basal de acordo com o perfil nocturno de cada criança evitando hipo e hiperglicémia nocturnas;
  • Em relação aos bolus permitem seleccionar perfil de libertação do bolus prandial de acordo com o teor da refeição e o previsto tempo de absorção dos diferentes tipos de alimentos (bolus quadrado, ou bifásico).

Como desvantagem:

  • Podendo aumentar o risco de cetoacidose em caso de interrupção por não haver insulina basal “em depósito subcutâneo”, requer monitorização atenta e conhecimento de normas de actuação imediata em caso de falência do sistema.

Dispositivos mais recentes associam os sistemas integrados de monitorização contínua de glicose (MCG) em tempo real e de PSCI, sendo o mais evoluído um sistema preditivo com algoritmo integrado na própria bomba de insulina: em tal modalidade, a administração de insulina é automaticamente suspensa cerca de 30 minutos antes da ocorrência de hipoglicémia, sendo retomada apenas quando a glicémia atinge níveis seguros.

A tecnologia está a evoluir para sistemas de ansa fechada “padrão de ourocapazes de automaticamente libertar insulina (ou insulina/glucagon) em resposta aos valores verificados ou previstos de glicémia através de sensor de glicose com transmissão de dados à “bomba”; trata-se, pois de um sistema de pâncreas artificial.

Como nota importante importa referir que os sistemas actualmente utilizados não dispensam a intervenção activa e a decisão do clínico e utilizador, o que implica levar a cabo programas de educação estruturados dirigidos ao paciente e família com o apoio intensivo da equipa de saúde.

3. Tipos de insulina

Actualmente em Portugal todas as insulinas comercializadas são obtidas por técnica recombinante, apresentando a mais baixa antigenicidade, o que as torna mais apropriadas para crianças. Utilizam-se, de modo geral, insulinas de acção intermédia e rápida, e associações de ambas por via subcutânea.

Os análogos de acção ultra-rápida podem ser utilizados para evitar hiperglicémia pós-prandial; o seu início de acção mais rápida e a mais curta duração permitem que possam ser administrados no meio da refeição em vez de antes da mesma.

A insulina glargina é um análogo com a particularidade de não apresentar picos, podendo a sua acção prolongar-se por mais de 24 horas, mantendo um nível basal de insulina.

O Quadro 2 e a Figura 1 resumem o perfil de algumas insulinas habitualmente usadas.

As pré-misturas têm a vantagem da possibilidade de administração em “caneta-seringa”.

QUADRO 2 – Tipos de insulina

*1 – Lilly; 2 – Novo Nordisk; 3 – Sanofi (#) NPH = neutra protamina de Hagedorn, insulina de acção intermédia
 Tipos de insulinaLaboratórios*Indicações
BasalHumana
Acção intermédia
1 – Humulin NPH®
2 – Insulatard®
3 – Insuman® Basal
Utilizada nos regimes convencionais associada a insulina de acção curta, pode também ser utilizada como basal ao deitar, nos regimes basal bolus.
Maior variabilidade intra e interindividual e maior risco de hipoglicémia nocturna.
BasalAnálogo
de acção lenta ou prolongada
2 – Levemir®
Insulina detemir
3 – Lantus®
Insulina glargina
Dois análogos basais disponíveis sem diferenças significativas e efeito mais previsível e reprodutível e de menor variação dia-a-dia do que a insulina NPH.
A glargina não está formalmente indicada abaixo dos 2 anos de idade, administra-se uma vez por dia, sempre à mesma hora, mantendo-se o efeito 24 horas.
A detemir pode usar-se após o 1 ano de idade: podem ser necessárias doses maiores e em 2 injecções diárias. Efeito de redução ou de menor ganho ponderal.
BolusHumana
de acção curta
1 – Humulin® Regular
2 – Insulina Actrapid®
3 – Insuman® Rapid
Pode ser utilizada em regimes de 2 injecções diárias com insulina intermédia ou como bolus prandial em regimes basal-bolus utilizando como basal insulina intermédia ou análogo de açcão longa: dado o perfil de acção devem ser administradas 30 minutos antes da refeição.
BolusAnálogo
Acção ultra-rápida
1 – Humalog®
Insulina lispro
2 – Novorapid®
Insulina aspártico
3 – Apidra®
Insulina glulisina
Os três análogos têm perfis equivalentes.
Início de acção mais rápida e duração mais curta que as insulinas de acção curta. Melhor controlo da hiperglicémia prandial (menor risco de hiperglicémia inicial e de hipoglicémia tardia). Maior eficácia na correcção de hiperglicémia.
Administram-se 5-15 minutos antes da refeição (dependendo da glicémia pré-prandial).
Como excepção, em crianças pequenas, com apetite irregular ou doença, podem ser administradas imediatamente após a refeição.
Usam-se nos regimes basal-bolus (com análogos de acção lenta) e em perfusão contínua de insulina.
Pré-misturas Análogos
bifásicos
1 – Humalog® Mix 25 e Humalog® Mix 50 Humulin® M3
2 – Novomix® 30 e Mixtard® 30
3 – Insuman Comb 25
Em geral, não indicadas na idade pediátrica.
Misturas, em proporção fixa, de insulina basal e rápida.
As insulinas bifásicas combinam uma percentagem de análogo de acção rápida com análogo de acção rápida ligado a NPH. Podem ser administradas às 3 refeições principais, com NPH ao deitar. Podem ser úteis em adolescentes com má adesão a um regime basal-bolus, mas em regra com pior controlo metabólico, maior risco de hipoglicémia e sem possível flexibilidade de horário e de teor das refeições.(#)

FIGURA 1. Esquema insulinoterapia basal-bolus

Autovigilância e monitorização

Determinação da glicémia

Com o moderno equipamento portátil e prático e os métodos actualmente disponíveis, a autovigilância da glicémia tornou-se parte indispensável da rotina diária do tratamento.

A frequência da sua determinação traduz-se em qualidade do controlo metabólico. Deve ser adaptada à idade da criança, à motivação e capacidades da criança e família, bem como às condições especiais durante a evolução da diabetes.

Todos os dados relacionados com a autovigilância devem ser registados, sabendo-se que os adolescentes mostram resistência em manter registos detalhados em papel.

Actualmente estão disponíveis glucómetros que permitem a introdução, o registo e “descarga” dos dados para o computador ou telemóvel, o que facilita a respectiva análise.

Existem também glucómetros com calculador de bolus que propicia o aconselhamento de acordo com os algoritmos inseridos.

Após estabilização metabólica relativa, na maioria dos casos podem ser realizadas em média seis determinações diárias da glicémia, excepto durante doença intercorrente, ou sempre que seja necessária maior informação do perfil glicémico para ajuste terapêutico.

A determinação da glicémia nocturna é também necessária.

A análise dos resultados, tendo como objectivo tirar o máximo proveito do controlo, deve ser feita em consultas periódicas, pelo menos 4 vezes por ano, ou sempre que se proceda a qualquer revisão do esquema de tratamento.

A determinação da hemoglobina glicada (HbA1c) deve ser efectuada, no mínimo, quatro vezes por ano.

Monitorização contínua da glicose

Existem atualmente dispositivos minimamente invasivos que permitem a determinação contínua da glicose (MCG), isto é, a medição do teor da glicose no líquido intersticial durante as 24 horas através de um sensor enzimático de glicose inserido no tecido subcutâneo.

Alguns destes sistemas emitem um alarme para hipoglicémia ou quando a glicémia atinge valores abaixo de um valor pré-estabelecido de glicose, ou ainda quando se verifica uma queda rápida deste valor.

Esta monitorização permite de modo retrospectivo:

  • identificar períodos de tempo com tendência para hiperglicémia, ou períodos de maior risco de hipoglicémia; e
  • compreender o efeito das doses de insulina, da alimentação e do exercício físico.

O acesso ao valor de glicose em tempo real permite ainda correcções imediatas melhorando assim muito significativamente o controlo glicémico. Todavia, a utilização individual destes sistemas tem ainda algumas limitações de carácter económico e de adesão.

Muito recentemente foi introduzido no mercado um sistema mais acessível de monitorização de glicose fornecendo informação da glicémia em tempo real e das 8 horas anteriores. Apesar de não se tratar de monitorização contínua, permite, no entanto, reduzir ao mínimo a necessidade de punção capilar.

Determinação da cetonémia

É essencial a determinação de cetonémia quando a glicémia é elevada (> 250 mg/dL), designadamente:

  • quando surgem intercorrências infecciosas; e
  • no contexto de utilização de bombas de perfusão subcutânea de insulina em que qualquer interrupção acidental de débito poderá levar rapidamente a défice de insulina por ausência de insulina de efeito basal em acção.

As tiras reagentes determinam os níveis de beta-hidroxibutirato, que é o primeiro corpo cetónico a ser sintetizado em caso de cetose e também o primeiro a desaparecer de circulação com o início da correcção.

  • Níveis até 0,5 mm/L são considerados normais; superiores a este valor necessitam de medidas de correção.
  • Níveis > 1,5 mm/L correspondem já a um risco elevado de cetoacidose e acima de 3 mmol/l acompanham-se geralmente de acidose.

Regime alimentar

Preconiza-se actualmente que a alimentação da criança com diabetes se baseie nos princípios de alimentação saudável recomendados para todas as crianças com um suprimento energético e de nutrientes semelhante ao das outras crianças da mesma idade, adequado ao crescimento, actividade física e prevenção de excesso ponderal.

O próprio termo “dieta” e a ideia de restrições devem ser banidos sobretudo entre os profissionais de saúde.

Está provado que a aplicação dum plano alimentar individualizado com ajustes adequados de insulina pode melhorar o controlo metabólico. Nesta perspectiva, é desejável que o plano alimentar de cada criança seja elaborado por nutricionista da equipa assistencial e regularmente adaptado e actualizado de acordo com as fases de crescimento e as circunstâncias do quotidiano.

As necessidades calóricas diárias podem estimar-se de acordo com a idade como para qualquer criança. De acordo com recomendações internacionais aceita-se como norma geral que 50-55% do suprimento calórico diário seja feito através de hidratos de carbono, 15 a 20% de proteínas, e < 35% de gorduras (e < 10% de gorduras saturadas e ácidos gordos trans) (Quadro 3).

QUADRO 3 – Regime alimentar*

*De acordo com as normas da ISPAD (International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes), 2014
    • Suprimento energético para garantir crescimento e desenvolvimento óptimos, mantendo peso ideal, prevenindo a obesidade e as complicações agudas e crónicas.
    • Distribuição diária dos nutrientes em % do valor calórico total (VCT)
      • Hidratos de carbono (HC): 50-55%
         Maior consumo de HC complexos, com alto teor em fibras; consumo de sacarose < 10%
      • Gorduras: 25-35%
         < 10% gordura saturada + ácidos gordos trans
        < 10% gordura polinsaturada
        > 10% gordura monoinsaturada (até 20% do valor calórico total)
      • Proteínas: 15-20%

O consumo de fibras deve ser estimulado na criança acima dos 2 anos de idade, porém de forma gradual e cautelosa de modo a evitar distensão abdominal e cólicas.

Os frutos frescos, tal como os vegetais, devem fazer parte da alimentação diária da criança e jovem, suprindo as necessidades em fibras e vitamina C. Não está provada a necessidade de suplementação em vitaminas ou minerais em crianças com diabetes sem outras condições associadas. Em relação à vitamina D, em situação de insuficiência do metabólito monohidroxilado – 25, OH vitamina D3 -, deve proceder-se a suplemento de acordo com as recomendações para a população em geral. (ver capítulo sobre carências vitamínicas e minerais).

No que respeita ao consumo de gorduras, as gorduras saturadas e os ácidos gordos trans, principal determinante dos níveis de colesterol-LDL, não devem exceder 10% do suprimento energético total.

Quanto ao suprimento proteico, é necessário ter em conta que as respectivas necessidades diárias variam de acordo com o grupo etário; são maiores na primeira infância (1-2 g/kg/dia diminuindo progressivamente até 1 g/kg/dia aos 10 anos e 0,8-0,9 g/Kg/dia no final da adolescência).

A contabilização dos hidratos de carbono para o cálculo das doses de insulina nos regimes de múltiplas injecções diárias e de sistemas de perfusão (bombas de insulina) pode ser feita em gramas ou em porções de 10, 12 ou 15 gramas. De modo a obter melhor controlo da glicémia pós-prandial, tal contabilização deve ser rigorosa, com recurso a leitura de rótulos e a pesagem dos alimentos.

A possibilidade de ajustar a insulina à quantidade de hidratos de carbono ingerida nos regimes de múltiplas injeções diárias permite muito maior flexibilidade no suprimento e no horário das refeições. No entanto, é essencial estabelecer um plano de educação alimentar em que seja valorizado o equilíbrio nutricional. Para além da avaliação do risco de suprimento excessivo de gorduras e proteínas, é ainda necessário ter em conta que o teor da refeição em gorduras e proteínas influencia também a glicémia pos-prandial.

Para garantir a glicémia pós-prandial “fisiológica” é também importante ter a noção do chamado índice glicémico dos hidratos de carbono, tentando identificar os que provocam maiores subidas de glicémia. A este propósito, é fundamental que a sacarose, devidamente contabilizada, não ultrapasse 10% do VCT diário.

A regularidade das refeições, a existência de rotinas e as refeições em família são importantes contributos para a melhoria do controlo metabólico.

A composição das pequenas refeições intermédias e a sua distribuição ao longo do dia requerem particular atenção. Com efeito, múltiplos lanches durante o dia, muitas vezes sem prévia administração de insulina, podem ser um factor de mau controlo metabólico.

Em suma, a educação alimentar deve ser dirigida à criança, jovem e família, tendo em atenção que o comportamento alimentar, algo mais do que a simples ingestão de alimentos, é influenciado por factores culturais e psicossociais que devem ser respeitados.

Actividade física

As crianças e adolescentes com diabetes podem praticar todos os tipos de exercício físico, incluindo desportos de competição, necessitando, no entanto, de algumas regras práticas para ajuste do tratamento.

Os regimes de múltiplas injecções diárias e a bomba de insulina facilitam esta adaptação que depende principalmente da insulina em acção durante o exercício e do tipo e duração do mesmo.

Os efeitos do exercício físico sobre a glicémia são complexos e envolvem vários factores.

Em condições fisiológicas ditas normais, o exercício físico acompanha-se de diminuição da secreção de insulina e aumento da libertação de hormonas contrarreguladoras de modo a aumentar a produção hepática de glicose compensadora da sua maior captação pelo músculo.

Na diabetes tipo 1, os níveis de insulina circulante estão condicionados pela sua administração exógena; não sendo naturalmente suprimidos, inibem, no entanto, a produção de glicose pelo fígado. Em situação de normal controlo glicémico o principal risco será a ocorrência de hipoglicémia durante ou após o exercício.

O risco de hipoglicémia pode manter-se até 24 horas depois do exercício, inclusivamente durante a noite, e sobretudo se foi prolongado e intenso. Este facto deve-se ao efeito tardio do aumento de sensibilidade à insulina, acrescido duma reposição mais lenta dos depósitos de glicogénio hepático e muscular.

O aumento de absorção da insulina a partir do local de injecção, possível factor agravante, deve ser tido em consideração.

Quando a glicémia pré-exercício é elevada (> 250 mg/dL), os níveis de insulina circulante poderão não ser suficientes para compensar o efeito da libertação de hormonas contrarreguladoras incorrendo no risco de agravamento de hiperglicémia e formação de corpos cetónicos. De salientar que mesmo em indivíduos com bom controlo se verifica que a hiperglicémia na altura do exercício físico pode afectar a libertação de endorfinas e comprometer o rendimento.

Para ajustar o tratamento à prática do exercício físico, algumas regras práticas individualizadas para cada criança devem ser cumpridas:

  • na presença de glicémia > 250 mg/dL com cetonémia > 0,5 mmol/L, esta deve ser corrigida e o início da actividade adiado;
  • quando o exercício vai ocorrer durante um pico de acção de insulina, a dose desta deve ser significativamente reduzida; o grau de redução deve ser individualizado e estabelecido também de acordo com o tipo de exercício e com o efeito previsto baseado em determinações de glicémia;
  • a bomba de insulina deve ser desconectada ou programada para um ritmo basal temporário, pelo menos 90 minutos antes, de modo a reduzir o nível de insulina em acção durante o exercício;
  • no caso de exercício mais intenso no final da tarde ou noite, a insulina basal da noite (ou a programar na bomba) deve ser reduzida pelo menos em 10-20%;
  • o local de injecção deve ser seleccionado de modo a poupar a zona mais envolvida na actividade muscular;
  • quando o exercício não é programado, ou quando a sua intensidade é superior ao habitual, poderá ser necessário suprimento extra de hidratos de carbono calculado também de acordo com a duração, o tipo de exercício e a insulina em acção;
  • como regra geral recomenda-se ingestão de 10-15 gramas de hidratos de carbono de fácil digestão por cada 30-60 minutos de desporto (existem publicadas regras para este cálculo de acordo com os vários tipos de desporto e o peso corporal da criança);
  • todas as crianças com diabetes devem estar identificadas como tal, com informação pormenorizada ao treinador ou professor de educação física de modo a serem tomadas todas as medidas de prevenção e eventual tratamento da hipoglicémia;
  • a criança deve ser integrada nas classes normais para o seu grupo etário, sem restrições.

Como nota final, importa relevar que tão importante como a prática desportiva é a aquisição de hábitos que promovem uma vida activa; nesta perspectiva, há que estimular a tendência natural da criança e jovem para os jogos e actividades de grupo, tentando reduzir o tempo de passividade e sedentarismo, como o passado em frente do televisor e/ou com jogos electrónicos.

Educação e aspectos psicossociais

A actual prática quase generalizada de esquemas de insulina com múltiplas injecções diárias doseadas de acordo com vários parâmetros (glicémia, quantidade de hidratos de carbono da refeição e grau de actividade física), assim como a disponibilidade de sistemas cada vez mais sofisticados de perfusão subcutânea contínua de insulina e de monitorização da glicose, vieram melhorar o controlo metabólico e as perspectivas de futuro com maior qualidade de vida.

No entanto, o preço desta evolução tem sido o aumento diário das solicitações e exigências para os pais, crianças e adolescentes para tarefas não intuitivas, muitas vezes dificilmente conciliáveis com as suas rotinas anteriores comporta certo risco de não adesão.

De facto, está provado que qualquer regime (no contexto da afeção em causa) só resultará se as crianças/jovens e famílias forem envolvidos, capacitados e motivados para levar a cabo rotinas de vida diferentes.

Para que tal seja conseguido é fundamental a existência de:

  • plano estruturado de educação terapêutica dirigido à criança/jovem e família, adaptado às várias etapas do neurodesenvolvimento;
  • objectivos individualizados e claros de controlo, tentando detectar possíveis obstáculos à sua prossecução.

Assim, a equipa multidisciplinar devotada à prestação de cuidados à criança e jovem com diabetes, deve:

  • estar atenta e ser proactiva em relação às alterações da dinâmica familiar, às exigências das várias etapas do desenvolvimento e às situações de conflito susceptíveis de constituir barreiras à adesão terapêutica;
  • estar disponível para contacto e para providenciar apoio emocional.

Actuação em situações especiais

Criança com diabetes na escola

A informação aos professores e a colaboração destes permitirão alcançar a adequada integração escolar da criança com diabetes, contribuindo para melhorar os cuidados assistenciais quotidianos. O professor de educação física deve ter informação especial contemplando os aspetos relacionados com o exercício físico.

Os cuidados a prestar no âmbito da escola estão previstos numa Orientação da DGS 003/2012, integrando o Programa Nacional de Saúde Escolar e o Programa Nacional para a Diabetes.

Infecções intercorrentes

Durante as infecções intercorrentes é necessário adaptar o tratamento de modo a prevenir hiperglicémia, cetose ou hipoglicémia.

As necessidades de insulina aumentam logo no período de incubação das infecções e mantêm-se elevadas até depois da cura clínica da doença.

A criança pode, em tais situações, apresentar diminuição do apetite ou mesmo recusa alimentar, mas a dose diária nunca deve ser suspensa, necessitando mesmo, na maioria dos casos, ser aumentada. Pelo contrário, nos casos de gastrenterite, em geral a insulina basal necessita de ser diminuída.

A determinação de glicémia e cetonémia deve ser frequente, em cada 1-3 horas, mesmo durante a noite. Devem ser administradas doses suplementares de insulina de acção rápida em função, quer da glicémia capilar, quer do suprimento em hidratos de carbono. Refira-se, a propósito, que a pesquisa sistemática de cetonémia poderá alertar precocemente para a presença de infecção, mesmo antes de detectada febre ou outras manifestações.

Como se compreende, a sacarose eventualmente veiculada em xaropes ou suspensões orais não inviabiliza o controlo metabólico desde que o ajuste de insulina seja adequado.

A verificação de vómitos ou cetonémia persistentes obrigará ao recurso a centro hospitalar especializado para eventual fluidoterapia endovenosa de modo a prevenir a desidratação e a cetoacidose.

Intervenção cirúrgica

A cirurgia, sempre que possível, deve ter lugar em centros com apoio especializado e protocolos de actuação claros. Tratando-se de intervenção programada, a mesma deverá ter lugar no primeiro período matinal. Em presença de mau controlo metabólico, fora de situações emergentes, deverá ser protelada.

As doses habituais de insulina do doente devem ser reavaliadas no dia anterior, sendo necessário manter a insulinoterapia mesmo durante o jejum pré-operatório para evitar cetose e cetoacidose.

Em caso de cirurgia major (duração > 2 horas) é necessário iniciar pré-operatoriamente a perfusão endovenosa de insulina com ritmo ajustável de acordo com determinações muito frequentes de glicémia (em geral, de hora a hora) tendo como objectivo manter valores de glicémia entre 90 e 180 mg /dL.

Complicações agudas
Cetoacidose

A cetoacidose diabética (CAD), a emergência hiperglicémica mais frequente em doentes diabéticos, é mais comum nos casos inaugurais, na proporção estimada variando entre 15-80%; esta heterogeneidade não está completamente esclarecida.

Constituindo a causa mais frequente de morte relacionada com a diabetes (0,7 a 1%), a respectiva patogénese relaciona-se na maioria dos casos com edema cerebral. O maior risco ocorre aquando do primeiro episódio, nas primeiras 24 horas, e na idade inferior a 5 anos.

A CAD resulta de uma cascata de alterações desencadeadas por um défice grave de insulina associado ao excesso de hormonas contrarreguladoras (Figura 2).

Assim:

  1. a hiperglicémia (aumento da produção de glicose e diminuição da sua utilização periférica) leva a diurese osmótica, desidratação, activação do sistema renina-angiotensina e perda de electrólitos. A intensidade e duração deste quadro aumenta o risco de edema cerebral;
  2. aumento de ácidos gordos livres (AGL) em circulação fornece substracto para a produção e acumulação de corpos cetónicos, do que resulta acidose metabólica.

O tratamento deve atender às múltiplas vertentes da descompensação (factor desencadeante, insulinopenia e alterações fisiopatológicas decorrentes).

Durante a fase de correcção são várias as complicações possíveis, constituindo o edema cerebral a mais grave.

Este pode estar relacionado com correcção excessiva ou demasiadamente rápida do desequilíbrio hidro-electrolítico e da acidose, pelo que importa seguir um protocolo de actuação especializado em unidade de cuidados intensivos (ver capítulo seguinte).

FIGURA 2. Fisiopatologia da CAD

Hipoglicémia

Trata-se da complicação aguda mais frequente da DM1, definida como valor de glicémia inferior a 70 mg/dL independentemente de haver ou não sinais e sintomas associados.

A hipoglicémia nos doentes com DM1 pode ocorrer numa proporção significativa mesmo em indivíduos correctamente controlados. A incidência de episódios ligeiros ou moderados é mal conhecida, estando em regra apenas registados os casos de hipoglicémia grave.

Podendo resultar de diversas circunstâncias, de um modo geral surge por excesso relativo de insulina em relação à glicémia (por ex. em presença de:

  • alteração da dose ou do horário de administração;
  • variações na absorção da insulina ou da sensibilidade à mesma;
  • exercício físico;
  • cálculo de dose excessivo para o suprimento de hidratos de carbono).

Dado que, após um primeiro episódio de hipoglicémia, as respostas autonómicas a subsequentes episódios ficam reduzidas, a probabilidade de detecção dos respectivos sinais pelo próprio doente vai-se também reduzindo com o tempo.

Os sintomas clássicos de hipoglicémia são: tremores, taquicárdia, diaforese, dores abdominais, e ansiedade (em relação com libertação de catecolaminas), cefaleia, irritabilidade, estado confusional, alterações do comportamento, “birras”, convulsões focais ou generalizadas, e coma (em relação com neuroglicopénia de grau variável).

A preocupação com as medidas de prevenção deve ser tanto maior quanto menor a idade da criança (sobretudo até aos 6 anos). No caso de episódios ligeiros a moderados, a actuação inclui administração oral de açúcares de absorção rápida (glucose, sacarose) 0,3 g/kg de glucose (9-15 gramas de glucose).

A glicémia deve ser reavaliada após 10-15 minutos, repetindo se necessário a administração oral de glucose. Atingida a melhoria de sintomas ou normoglicémia, a criança deve ingerir hidratos de carbono complexos para prevenir a recorrência de hipoglicémia (refeição ligeira composta por pão, bolachas, fruta ou a refeição prevista no caso de o episódio ocorrer imediatamente antes desta).

 Em situações mais graves que levam ao coma ou a convulsões, a actuação de emergência inclui a administração de glucagom injectável por via subcutânea ou intramuscular na dose de 0,5-1 mg (1/2 ampola a 1 ampola, respectivamente antes e depois dos 12 anos de idade, ou 10-30 mcg/kg de peso corporal). O efeito verifica-se em 10-15 minutos.

Em meio hospitalar, pressupondo-se vigilância rigorosa contínua da glicémia, procede-se a perfusão endovenosa de glucose durante alguns minutos na dose total de 200-500 mg de glicose/kg de peso corporal, sendo que glicose a 10% fornece 100 mg/mL). Salienta-se que a administração demasiadamente rápida ou em concentração excessiva pode levar a alteração brusca de osmolaridade com risco de edema cerebral.

Complicações tardias

As complicações tardias da diabetes incluem retinopatia, nefropatia, neuropatia e doença macrovascular.

Embora um controlo metabólico correcto diminua significativamente as complicações da DM1 e estas sejam raras antes da puberdade, torna-se obrigatório realizar de modo sistemático o respectivo rastreio.

O rastreio de retinopatia deve ter início a partir dos 10 anos de idade e após 2 anos de evolução da diabetes.

O exame oftalmológico inicial permite excluir alterações prévias, nomeadamente congénitas. O rastreio deve ser feito anualmente por fundoscopia.

O rastreio de microalbuminúria indicado a partir dos 10 anos de idade permite detectar disfunção renal e risco de progressão para nefropatia; o tratamento com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) pode prevenir a progressão para proteinúria.

A vigilância frequente da pressão arterial em cada consulta, ou sempre que os sinais clínicos o indiquem, tem como objectivo a detecção da hipertensão arterial e início de tratamento. O tratamento farmacológico com IECA é recomendado sempre que os valores atinjam ou ultrapassem o percentil 95.

O rastreio de dislipoproteinémia é recomendado a partir dos 10 anos de idade, ou dos 2 anos se houver antecedentes de tal alteração ou de doença cardiovascular.

O rastreio da neuropatia periférica e autonómica, rara na idade pediátrica, deve ser realizado a partir dos 10 anos de idade evolução da diabetes.

2. Diabetes mellitus tipo 2 (DM2)

Definição e importância do problema

A diabetes tipo 2 (DM2) é uma perturbação do metabolismo dos hidratos de carbono que cursa com hiperglicémia e secundário a alterações do mecanismo de acção periférica da insulina e da capacidade funcional das células beta. Tratando-se duma forma de diabetes anteriormente considerada como própria do adulto, importa salientar que na actualidade a sua prevalência é crescente na idade pediátrica, manifestando-se em idades cada vez mais baixas designadamente em associação a obesidade cuja incidência tem aumentado.

Etiopatogénese

Esta forma de diabetes é comparticipada pela influência de factores genéticos, epigenéticos e ambientais.

Classicamente considera-se que a perturbação metabólica mais precoce nos indivíduos que desenvolvem DM2 é a resistência à acção da insulina, em geral associada a obesidade como foi referido. Em tal fase evolutiva, a resistência à insulina (IR) implica que, para exercer os mesmos efeitos biológicos, é necessária secreção aumentada de compensação, levando a hiperinsulinémia (sem hiperglicémia) – 1ª fase.

A diabetes aparece mais tarde quando a capacidade funcional do pâncreas se esgota, sendo incapaz de produzir a quantidade de insulina necessária para fazer frente às necessidades aumentadas (deficiência relativa de insulina) – 2ª fase.

Contudo, admite-se na actualidade que ambas as fases (1ª + 2ª) poderão coexistir desde os primeiros estádios da doença. Nos casos de obesidade verifica-se o seguinte fenómeno: para que a DM2 ocorra é necessária a coexistência de IR e de inadequada secreção compensatória de insulina; todos os indivíduos obesos terão IR, mas só naqueles em que não ocorre aumento compensatório da secreção de insulina verificará DM2.

Nos casos de obesidade, concomitantemente com a resistência à insulina, verifica-se aumento de produção de glucose hepática que, secundariamente, leva à diminuição da capacidade de secreção de insulina (em condições normais induzida pela glucose).

Ao longo do tempo verifica-se fenómeno de glucotoxicidade (pela hiperglicémia crónica) e de lipotoxicidade (pela hiperlipémia crónica) sobre as células b dos ilhéus, do qual resulta diminuição da expressão do gene da insulina.

A resistência à insulina faz parte da síndroma metabólica, típica na DM2, a qual inclui também obesidade abdominal, desregulação do metabolismo da glucose, dislipidémia e HTA.

Embora seja admitido que na DM2 não existe destruição autoimune das células b, em certos casos têm sido identificados alguns marcadores autoimunes (autoanticorpos) que também surgem na DM1, tais como GAD 65, ICA 512 e IAA.

Em adultos verifica-se já uma redução de 50% da secreção de insulina na altura do diagnóstico de DM2. Dados do estudo TODAY (Treatment Options for DM2 in Adolescents and Young) sugerem que esta perda é mais rápida nos adolescentes.

Tendo sido referido o papel de factores genéticos, epigenéticos e ambientais na génese e evolução a médio e longo prazo da DM2, importa salientar a comparticipação do baixo peso de nascimento, da RCIU e da obesidade.

O baixo peso de nascimento e a RCIU estão associados a risco elevado de DM2; admite-se um fenómeno de programação in utero (hipótese do fenótipo da poupança): o feto adapta-se à má nutrição, poupando os nutrientes e maximizando o seu armazenamento deficiente. Neste contexto, o risco parece ser maior nas crianças com ganhos de peso mais rápidos nos primeiros meses de vida por suprimento elevado de energia e proteínas.

A obesidade, relacionada com factores etiopatogénicos nutricionais, está associada ao desenvolvimento de DM2, o que se relaciona fundamentalmente com resistência à insulina. A gordura visceral, sendo metabolicamente activa, produz adipocinas que contribuem para a referida IR e igualmente para a disfunção endotelial com consequente risco cardiovascular. Efectivamente, cerca de 90% de indivíduos com DM2 são obesos. No entanto, a dieta hipercalórica pode constituir factor de risco independente.

Admite-se actualmente também a intervenção de factores epigenéticos; com efeito, alguns poluentes ambientais poderão intervir na etiopatogénese e progressão da DM2, encontrando-se ainda a sua identificação em fase de investigação.

Aspectos epidemiológicos

A DM2, anteriormente considerada de baixa prevalência em idade pediátrica, evidencia hoje prevalência crescente em relação com o aumento da obesidade.

O pico de incidência situa-se na segunda década de vida coincidindo com o pico de aumento fisiológico de IR da puberdade. A prevalência é variável com a etnia.

Nos EUA e Europa quase todos os casos se associam a um índice de massa corporal (IMC) acima do percentil 85, registando-se maior frequência em populações com níveis socioeconómicos e educacionais mais baixos.

Outros exames diagnósticos (a realizar apenas em centros especializados de diabetologia pediátrica e perante situações duvidosas ou necessidade de classificação definitiva do tipo de diabetes) são a determinação da insulinémia e do péptido C em jejum.*

Utilizando-se o péptido C na DM1 estabelecida, os seus valores são baixos (< 0,6 ng/mL), não aumentando após refeição ou administração de glucose; contudo, em fases iniciais tal marcador pode evidenciar valores dentro dos limites da normalidade. Com as limitações atrás referidas, podem ser detectados anticorpos ICA, GADA e IAA.

*Recorda-se que a biossíntese do polipéptido designado por insulina (a partir das células beta dos ilhéus de Langerhans), ocorre com a libertação na corrente sanguínea de quantidades equimolares de insulina e do chamado péptido C.

O péptido C constitui um bom marcador da função das células beta e, por isso, da reserva e da produção endógena de insulina; por outro lado, o seu valor sanguíneo (normal ~1,1-5,0 ng/mL), com uma vida média cinco a dez vezes superior à da insulina endógena, não é influenciado pela administração exógena de insulina, nem pela existência de anticorpos anti-insulina. Em determinadas situações o valor de péptido C está elevado; por ex. insuficiência renal, hipopotassémia, síndroma de Cushing e gravidez.

Manifestações clínicas

Apesar de poder descrever-se um quadro clínico típico de DM2 devido à actual prevalência de obesidade a distinção entre DM1 e DM2 poderá ser difícil dado que numa percentagem significativa das crianças e adolescentes com DM1 se verifica obesidade. Por outro lado, a DM2 pode manifestar-se com um quadro de descompensação metabólica com cetose ou mesmo, ainda que mais raramente, com cetoacidose.

Na DM2 aplicam-se idênticos critérios de diagnóstico de DM1, já referidos na alínea 1.; pode ser confirmada pela determinação da insulinémia e do péptido C em jejum.

A HbA1c tende a ser de valor mais elevado.

A pesquisa de autoanticorpos contra células b é negativa (excepção para ICA512 -ver atrás).

Os casos de obesidade, de alterações metabólicas associadas e de antecedentes familiares de DM2 comportam risco de desenvolvimento do mesmo tipo de DM.

A verificação de acanthosis nigricans (manifestação dermatológica de hiperinsulinismo sob a forma de pigmentação com hiperqueratose notória na nuca e nas pregas de flexão, verificada em 90% dos casos), de obesidade (em 80-90% dos casos), de síndroma do ovário poliquístico na rapariga obesa, de história familiar de DM2, e a ausência de anticorpos contra os antigénios das células b dos ilhéus de Langerhans, apontam para a forte possibilidade de DM2 no doente em estudo.

De salientar que a acanthosis nigricans pode ser considerada um marcador (e levar à suspeita) de resistência à insulina, de hiperinsulinémia e, eventualmente, de DM2.

A cetoacidose, embora menos frequente que na DM1, pode ocorrer, sobretudo em situações de estresse ou infecção intercorrente.

Tratamento

Sempre que o diagnóstico seja feito em cetose ou cetoacidose é necessário iniciar de imediato tratamento com insulina.

Os casos duvidosos, sem certeza de diagnóstico diferencial com DM1 ou quando apresentam glicémia ocasional ≥ 250 mg/dL ou HbA1c ≥ 9% têm também indicação para início de insulinoterapia.

Quando em presença de um quadro típico de DM2, sem dúvidas de diagnóstico, confirmando-se que não existe cetose, que a glicémia é inferior a 250 mg/dL e a HbA1c < 9%, é possível a abordagem terapêutica com modificação do estilo de vida (alimentação saudável e actividade física). No entanto, devido à baixa taxa de sucesso destas medidas, deve proceder-se desde o início à terapêutica farmacológica com hipoglicemiantes orais.

Hipoglicemiantes orais

Apesar de estarem disponíveis numerosos hipoglicemiantes orais, para o tratamento da criança e adolescente, apenas se encontra actualmente aprovado em Portugal, como na maioria dos países, a metformina.

A metformina actua a nível do músculo, tecido adiposo e predominantemente a nível hepático. Reduz a libertação de glicose pelo fígado, diminuindo a neoglicogénese e aumenta também a captação de glicose estimulada pela insulina a nível do músculo e do tecido adiposo. Tem ainda um efeito inicial de redução de apetite sem risco de hipoglicémia quando utilizada em monoterapia.

No início de tratamento poderão ocorrer sintomas gastrintestinais, nomeadamente diarreia, náuseas e dor abdominal transitórias, pelo que a dose diária inicial deve ser de 500 mg, aumentando-a gradualmente em 3-4 semanas (dose máxima de 2000 mg).

Em caso de doença gastrintestinal deve ser suspensa a medicação, bem como antes da realização de exame radiológico com contraste. Em situações normais o risco de acidose láctica é residual.

A metformina pode utilizar-se em associação com insulina.

Nos casos de diabetes tipo 2 medicados com metformina, esta medicação deve ser suspensa pelo menos 24 horas antes (em caso de cirurgia major deve também ser iniciada insulina em perfusão endovenosa) e nas 48 horas seguintes até estar confirmada a normalidade da função renal.

Considerando os fármacos com efeito estimulante da secreção de insulina cabe referir ainda o GLP-1 (glucagon like peptide 1) que igualmente suprime a resposta do glucagom, atrasa o esvaziamento gástrico e promove a saciedade. Este péptido é segregado em condições normais pelas células L do intestino delgado.

A sua utilização não está aprovada abaixo dos 18 anos de idade; no entanto, encontram-se actualmente em curso estudos em adolescentes.

Insulina

Excepto na fase de descompensação aguda, uma dose única de insulina basal (NPH ou análogo da acção lenta) na dose de 0,2-0,3 Unidades/kg pode ser suficiente, em associação com metformina. Quando o objectivo de controlo não é deste modo atingido, pode ser indicado acrescentar bolus prandiais de insulina de acção rápida.

3. Outros tipos de diabetes mellitus

De modo sucinto são discriminados outros tipos específicos de DM, mais raros, alguns dos quais partilham características, quer com a DM1, quer com a DM2.

Defeitos genéticos da função das células beta

Compreende as formas:

  • DM monogénica dita anteriormente MODY (sigla do inglês – maturity onset diabetes of youth); e
  • DM por defeitos mitocondriais; estes subtipos estão relacionados com defeitos hereditários de genes mitocondriais das células b dos ilhéus.
Defeitos genéticos influenciando a acção da insulina
  • Trata-se de situações muito raras relacionadas com mutações de genes do receptor da insulina: resistência à insulina tipo A, leprechaunismo, síndroma de Rabson-Mendenhall, diabetes lipoatrófica e síndroma stiff-man/ “homem rígido” (doença autoimune do SNC, caracterizada por espasmos dolorosos e rigidez progressiva, extremamente rara e títulos elevados de anticorpos anti-descarboxilase do ácido glutâmico) (ver Glossário Geral).
DM neonatal         

Inclui:

  1. a diabetes transitória do RN;
  2. a diabetes permanente do RN;
  3. a diabetes transitória do RN com recorrência 7-20 anos mais tarde; (ver adiante)
  4. a síndroma IPEX (sigla de Imunodesregulação, Poliendocrinopatia, Enteropatia e ligada ao cromossoma X) com quadro de diabetes autoimune, em > 90% dos casos desenvolvendo-se na 1ª semana de vida;
  5. defeitos do gene da insulina, situação rara.
Doenças do pâncreas exócrino

São referidas como mais representativas as seguintes situações: pancreatite, lesões traumáticas, pancreatectomia, neoplasia, fibrose quística, hemocromatose, pancreatopatia fibrocalculosa. Especial ênfase deve ser dada à entidade designada por diabetes relacionada com a fibrose quística (DRFC) com características, quer de DM1, quer de DM2 por destruição de ilhéus, substituídos por fibrose e tecido adiposo.

Doenças autoimunes
  • Tiroidite de Hashimoto (tiroidite linfocítica crónica) e a doença celíaca frequentemente associadas a DM1 como foi referido na alínea 1.
Endocrinopatias
  • Citam-se as seguintes: acromegália, síndroma de Cushing, glucagonoma, feocromocitoma, hipertiroidismo, somatostatinoma, etc..
Fármacos e agentes químicos
  • Como exemplos são referidos os seguintes: pentamidina, ácido nicotínico, glucocorticóides, hormona tiroideia, diazóxido, agonistas beta-adrenérgicos, alfa-interferão, etc.; em geral está em causa acção de toxicidade sobre as células beta.
Infecções
  • Já abordadas anteriormente, deste modo sistematizado cabe salientar: rubéola congénita e citomegalovírus.
Síndromas genéticas
  • Síndromas Down, Klinefelter, Turner, Wolfram, Prader-Willi, Laurence-Moon-Biedl, Ataxia de Friedreich, Coreia de Huntigton, Porfíria, Cockaine, Werner, etc.;
  • Muitas destas síndromas, embora raras, são modelos que permitem a compreensão das diversas perturbações do metabolismo dos hidratos de carbono.
Diabetes gestacional
  • Durante a gestação verifica-se intolerância anormal à glucose durante a gravidez (regredindo após o parto), que comporta risco significativo de DM, em geral do tipo MODY.

No âmbito da alínea 3., dois tipos de diabetes monogénica com especial relevância em idade pediátrica – MODY (maturity onset diabetes of the young – diabetes juvenil de início no adulto) e Diabetes neonatal – são referidos mais pormenorizadamente.

Na prática clínica importa fazer referência a certos aspectos semiológicos, traduzindo certas atipias que sugerem a probabilidade de diabetes monogénica, a saber:

  • em casos diagnosticados como DM1 – diagnóstico nos primeiros 6 meses de vida ou antecedentes familiares de diabetes num dos progenitores e noutros parentes em primeiro grau; – ausência de autoanticorpos na data do diagnóstico; – função das células beta relativamente preservada traduzindo-se por baixas necessidades de insulina e péptido C com valores normais;
  • em casos diagnosticados como DM2 – ausência de obesidade, de acantose e de outros marcadores de síndroma metabólica em indivíduos pertencentes a etnias com baixa incidência de DM2 e com história familiar de diabetes, mas não de obesidade.

1. DM monogénica dita anteriormente MODY (sigla do inglês – maturity onset diabetes of youth)
Compreende um grupo de formas relativamente ligeiras de diabetes associadas a defeito primário na secreção de insulina, sem cetose nem acidose, com péptido C baixo, HbA1c ligeiramente elevada, têm em comum a hereditariedade dominante e o início antes dos 25 anos de idade.
Como critérios estritos do diagnóstico de MODY, incluem-se: diabetes em pelo menos três gerações com pelo menos um indivíduo afectado.
Entre as mutações identificadas em pelo menos 10 genes, na sua maioria em heterozigotia, são mais frequentes (90%) as dos seguintes genes: GCK/gene da enzima glucocinase (MODY 2), e de genes de vários factores de transcrição – HNF4-alfa/gene do factor de transcrição (MODY 1), HNF1-alfa/gene do factor de transcrição (MODY 3), e HNF1-beta/gene do factor de transcrição (MODY 5). A forma MODY 1 é mais frequente em adultos.
A importância da realização do diagnóstico molecular radica nas implicações quanto ao tratamento: por ex. o subtipo MODY 2 não requer qualquer tratamento, enquanto nos restantes está indicada a utilização de hipoglicemiantes (sulfonilureias) em doses baixas.

2. Diabetes mellitus neonatal
Esta forma rara tem início nos primeiros 6 meses de vida, em geral associada a RCIU, o que reflecte défice pré-natal de insulina, hormona que promove o crescimento intrauterino.

Distinguem-se duas formas clínicas:

  1. Diabetes neonatal transitória
    Esta forma em geral dura em média 3-4 meses, tendendo a reaparecer na idade escolar ou adolescência numa proporção ~50%.
    A alteração genética mais frequente consiste numa alteração de imprinting dos genes ZAC e HYAM1 [Cr 6q24] que codificam reguladores da apoptose.
    Está indicado o tratamento com insulina regular (1-2 Unidades/kg/dia) em duas doses, com redução progressiva dependendo da evolução.
  2. Diabetes neonatal permanente
    A alteração genética mais frequente é uma mutação nos genes KCNJ11 e ABCC8 que codificam subunidades do canal de K+ ATP-dependente da célula β pancreáticas ou no gene da própria insulina, traduzindo-se em anomalias no processo secretório ao nível das células β.
    De referir que ambos os genes do canal de potássio também se têm relacionado com alguns casos de diabetes neonatal transitória.
    Na maioria dos casos (~90%) com mutações nos genes KCNJ11 e ABCC8 está indicado o tratamento com sulfonilureia, por vezes na sequência de tempo de tratamento com insulina.

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PUBERDADE NORMAL E PATOLÓGICA

Definições

A puberdade é o período de transição entre a infância e a idade adulta, caracterizado pela maturação da gametogénese, secreção de hormonas gonadais, desenvolvimento de características sexuais secundárias, aquisição de capacidade reprodutiva e aumento da massa óssea e da estatura.

Por outro lado, a adolescência, muitas vezes usada erradamente como sinónimo de puberdade, reflecte as alterações cognitivas, psicossociais e emocionais inerentes a este período de mudança e readaptação.

A gonadarca diz respeito ao início da função pubertária gonadal, com a produção da maioria das hormonas subjacentes às alterações sexuais secundárias que caracterizam cada um dos géneros.

No sexo feminino, a telarca traduz o início do desenvolvimento mamário, enquanto a menarca indica o início dos ciclos menstruais.

No sexo masculino, a espermarca refere-se ao aparecimento de espermatozóides no líquido seminal.

A adrenarca consiste no início da produção de androgénios pela suprarrenal.

A pubarca denota o início do crescimento do pelo púbico secundário ao aumento androgénico de origem suprarrenal e/ou gonadal.

1. Desenvolvimento pubertário normal

Gonadarca

A puberdade resulta da maturação da atividade do eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal (HHG). A hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH) é produzida no hipotálamo de forma pulsátil, levando à secreção intermitente, pela hipófise anterior, de duas outras hormonas: a hormona luteinizante (LH) e a hormona folículo-estimulante (FSH).

O aumento gradual da pulsatilidade da GnRH, decorrente da maturação neurológica central que controla a estimulação e a inibição dos neurónios hipotalâmicos, desencadeia o início da puberdade. Na verdade, esta decorre da alteração da sensibilidade do sistema neuroendócrino ao efeito retroactivo negativo produzido pelas hormonas gonadais. Assim, enquanto na infância a inibição central da produção de GnRH acontece apenas com uma quantidade residual de esteróides sexuais, na puberdade são necessárias concentrações sobreponíveis às existentes na idade adulta para que ocorra efeito retroactivo negativo a nível hipotâmico. Os principais inibidores da GnRH são o ácido gama-amino-butírico (GABA) e os opióides, enquanto os estimulantes incluem o glutamato e o kisspeptin, sendo as células da glia facilitadoras desta secreção.

Sabe-se actualmente que grande parte da variabilidade relativa ao momento de início da puberdade é determinada geneticamente, sendo a etnia o principal factor subjacente. O processo pubertário é ainda influenciado pelo estado geral de saúde do indivíduo, pela nutrição, pela hormona de crescimento, pela função tiroideia e por disruptores endócrinos ambientais.

A maturação pubertária e a esquelética têm determinantes somáticos comuns. Na verdade, as crianças geralmente entram na puberdade quando atingem uma determinada idade óssea (IO), estando os estádios pubertários mais correlacionados com esta do que com a cronológica. Assim, por exemplo, a telarca ocorre geralmente aos 10 anos de IO, enquanto a menarca tem lugar, em média, aos 12,5 anos de IO. Por outro lado, é fundamental um estado nutricional adequado para o início e manutenção de uma função reprodutiva normal. Desta forma, a menarca também se correlaciona mais com o peso e a massa gorda do que com a idade cronológica ou a estatura. Esta ligação pode ser a explicação para o atraso pubertário em populações subnutridas e para o aparecimento mais precoce naquelas com excesso ponderal. A leptina, uma hormona produzida pelos adipócitos que sinaliza o armazenamento energético, parece ser o elo de ligação entre o estado nutricional e o início e manutenção da capacidade reprodutiva. Esta hormona actua no hipotálamo, reduzindo o apetite e estimulando a secreção de gonadotrofinas. A sua concentração aumenta ao longo da infância e da puberdade, atingindo níveis mais elevados no sexo feminino.

O eixo HHG encontra-se activo durante os períodos fetal e neonatal, sendo que o padrão de secreção hormonal sexual nesta fase parece ter um papel importante na programação sexual dimórfica adulta a nível neuroendócrino, metabólico e comportamental. O eixo HHG é formado no primeiro trimestre gestacional, passando a contribuir no trimestre seguinte para o crescimento peniano e para a fase de descida inguinoescrotal dos testículos, no rapaz. No final da segunda metade da gravidez, a sua actividade é suprimida pela grande quantidade de estrogénios sintetizados pela unidade fetoplacentar.

No período neonatal, e na ausência dos estrogénios maternos, o eixo funciona a um nível semelhante ao pubertário. Esta “mini-puberdade do recém-nascido”, apesar de subclínica, pode contribuir para o crescimento genital externo, para a presença de acne e para uma telarca transitória. Posteriormente e durante toda a infância, por acção inibitória do sistema nervoso central, o eixo HHG passa a uma fase de latência.

No final do período pré-pubertário, esta inibição diminui progressivamente, com aumento gradual da atividade do eixo, até finalmente ser atingida a fase pubertária.

A primeira alteração hormonal que ocorre na puberdade é o aumento nocturno da libertação pulsátil de LH hipofisária. A FSH é segregada em paralelo, mas com um aumento relativo bastante inferior. No início da puberdade ocorre uma variação hormonal circadiana única, com um aumento pulsátil significativo de LH durante o sono, ao qual se opõe uma secreção mínima durante o período diurno. A resposta gonadal a este padrão de secreção de LH difere entre os dois sexos: o pico de secreção ovárica de estradiol tem lugar por volta do meio-dia, enquanto a testosterona testicular é libertada também durante o sono e com pico cerca de 2 horas após o de LH. Além disso, na rapariga desde o início da puberdade, existe uma secreção hormonal cíclica subclínica.

À medida que a puberdade progride, a secreção de LH prolonga-se pelo período diurno e, depois da menarca, esta variação circadiana desaparece. Contudo, a concentração adulta de esteróides sexuais apresenta uma ligeira variação diurna, sendo mais elevada ao acordar. Cada uma das gonadotrofinas exerce a sua acção em células gonadais específicas: a LH estimula as células intersticiais ováricas (células da teca) a produzir androgénios precursores do estradiol e as células intersticiais testiculares (células de Leydig) a segregar testosterona; a FSH estimula o crescimento gonadal e a gametogénese, actuando nas células da granulosa ováricas promovendo o crescimento folicular, e nas de Sertoli testiculares. Estimulando a espermatogénese na granulosa, a FSH estimula ainda a aromatase, que transforma os androgénios produzidos pela teca, em estradiol.

À medida que as gónadas se tornam mais sensíveis ao efeito estimulante das gonadotrofinas, o seu volume e secreção hormonal aumentam progressivamente. Nos primeiros 3 anos após o início da puberdade, o estradiol aumenta anualmente cerca de 20 pg/mL, enquanto o da testosterona é de aproximadamente 10 ng/dL. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Hormonas pubertárias: intervalos séricos basais normais, no início da manhã

Adaptado de Bordini B, Rosenfield RL. Pediatr Rev, 2011
* Dos 6 aos 9 anos, as crianças pré-púberes podem ter valores de DHEA-S até 70 µg/dL.
# Os valores apresentados são relativos ao início da fase folicular. A meio do ciclo menstrual os valores são mais elevados: LH até 85 UI/L, FSH até 19 UI/L, Estradiol até 350 pg/mL.
Os níveis hormonais do rapaz púbere encontram-se entre os apresentados pelo pré-púbere e o homem adulto.

 LH
(UI/L)
FSH
(UI/L)
Estradiol
(pg/mL)
Testosterona total
(ng/dL)
DHEA-S
(µg/dL)
Pré-púbere (1-5 anos)< 0,2< 4< 10< 205 – 40*
Rapariga PúberePré-menarca≤ 121 – 12< 5013 – 4435 – 130
Pós-menarca#2 – 111 – 1220 – 8515 – 5975 – 255
Homem adulto1,4 – 91 – 9,2< 60300 – 950100 – 460

Na rapariga, este aumento hormonal culmina num efeito retroactivo positivo, levando a que o sistema neuroendócrino passe a ser capaz de segregar o pico de LH a meio do ciclo menstrual, quando o ovário assinala que se encontra preparado para a ovulação, através da secreção de um nível crítico e mantido de estrogénios. Por seu turno, estes vão estimular o desenvolvimento mamário, o crescimento do endométrio e a secreção de muco cervical. Paralelamente, os androgénios vão estimular o pêlo púbico e axilar e as glândulas sebáceas. A função gonadal é responsável por mais de 90% da produção de estradiol na mulher adulta (50% no homem) e por mais de 90% da síntese de testosterona no homem adulto (50% na mulher).

 

As hormonas gonadais desencadeiam o impulso e a função sexual, bem como o surto de crescimento pubertário. Se por um lado ambos os esteróides sexuais estimulam directamente o crescimento e a maturação epifisária, por outro diferem em alguns efeitos sobre o crescimento esquelético: enquanto os androgénios promovem o alargamento ósseo, os estrogénios são necessários à fusão epifisária e os maiores inibidores da reabsorção óssea.

Estas hormonas afectam ainda o crescimento de uma variedade de outros tecidos somáticos: os estrogénios promovem a lipogénese e a distribuição de tecido adiposo caracteristicamente ginóide; pelo contrário, os androgénios são lipolíticos (apesar de favorecerem a adiposidade visceral) e promotores do desenvolvimento muscular. Assim, apesar de ocorrer um aumento do índice de massa corporal, tanto na rapariga como no rapaz, a proporção relativa de massa magra (maior no rapaz) e gorda (superior na rapariga) difere bastante.

O surto de crescimento pubertário também é induzido de forma indirecta pelas hormonas sexuais ao potenciarem a secreção hipofisária de hormona de crescimento (HC), e com isso um aumento acentuado de factor de crescimento semelhante à insulina tipo 1 (IGF-I). Por outro lado, a HC é também essencial para que possa ocorrer o potencial efeito gonadotrófico máximo sobre o crescimento e função gonadais. Desta forma, será fácil compreender que o défice ou a resistência à HC, além de conduzirem à ausência do estirão de crescimento pubertário, sejam acompanhados de hipogonadismo, micropénis e desenvolvimento mamário escasso.

O início do ciclo menstrual provém da maturação cíclica dos folículos ováricos, da qual resulta uma variação periódica nos níveis de estradiol e progesterona que, por sua vez, induzem variações na concentração das gonadotrofinas. O objectivo biológico desta variação mensal é a selecção e maturação de um folículo dominante capaz de ser libertado e potencialmente fecundado.

Um ciclo menstrual (interlúnio) tem em média 28 dias, sendo composto por duas metades: a fase folicular (desde o primeiro dia menstrual até ao pico de LH indutor da ovulação) e a fase lútea (desde a formação do corpo lúteo até à menstruação seguinte). Nesta segunda fase (que tem lugar apenas nos ciclos ovulatórios), o corpo lúteo produz uma grande quantidade de progesterona e uma mais discreta de estradiol, de forma a manter a camada endometrial do útero, em preparação para uma potencial nidação. Se a fecundação (e com ela o aumento da gonadotrofina coriónica humana – hCG) não ocorrer, o corpo lúteo involui, com subsequente decréscimo hormonal seguido de fluxo menstrual (cataménio).

O doseamento sérico das várias hormonas mencionadas anteriormente requer que seja tida em consideração a sensibilidade e especificidade da metodologia utilizada pelo laboratório. Por outro lado, como referido previamente, os níveis estão sujeitos, não só a variações circadianas, mas também, no caso feminino, a alterações cíclicas (Quadro 1). Por estes motivos, é frequentemente necessário realizar uma prova de estimulação com GnRH (ou um agonista da GnRH) para diagnóstico de distúrbios pubertários: um pico de LH superior a 4.0 UI/L é sugestivo de início da puberdade.

Adrenarca

Durante a gestação, a zona fetal do córtex da suprarrenal produz grandes quantidades de sulfato de de-hidroepiandrosterona (DHEA-S), o principal substrato da síntese placentar de estrogénio. No primeiro ano de vida, esta zona vai sofrendo regressão progressiva. A adrenarca tem início na segunda infância, à medida que a zona reticularis do córtex suprarrenal se desenvolve.

O hipotálamo produz hormona libertadora de corticotrofina (CRH) que, ao estimular a hipófise anterior, leva à libertação de hormona adrenocorticotrófica (ACTH). Na infância, em resposta à ACTH, a zona reticularis tem a capacidade de sintetizar DHEA-S, mas não cortisol. Por este motivo, enquanto a cortisolémia não sofre grande alteração até à idade adulta, a concentração sérica de DHEA-S aumenta gradualmente a partir da segunda infância (Quadro 1). Apesar de este período coincidir aproximadamente com a produção de androgénios gonadais, a adrenarca é independente da maturação pubertária do eixo HHG, ou seja, da gonadarca. A suprarrenal produz mais de 90% de DHEA-S na criança e na mulher, e mais de 70% no homem. Por outro lado, esta glândula sintetiza 50% da testosterona na mulher adulta, e menos de 10% no homem adulto. A partir da idade escolar, o aumento da concentração de androgénios é responsável pelo estímulo apócrino e respectivo odor corporal, levando, aproximadamente a partir dos 10 anos, ao crescimento do pêlo púbico.

Estadiamento

Actualmente, na população geral, a idade de início da puberdade considerada normal é entre 8 e 13 anos na rapariga e entre 9 e 14 anos no rapaz. Contudo, nas raparigas de origem africana ou hispânica é habitual que a telarca ocorra um ano antes. Por outro lado, nos dois sexos, quando há excesso de peso e por ação da leptina, a puberdade tende a ter início cerca de 6 meses mais cedo.

Em 1969, Marshall e Tanner, com base numa amostra branca da população britânica e de forma a documentarem a progressão da maturação sexual em cada um dos géneros, desenvolveram uma escala utilizada até aos dias de hoje e mais conhecida como Estádios de Tanner. Através da palpação mamária feminina (M) e genital masculina (G), bem como da avaliação dos pêlos púbicos em ambos os sexos (P), os indivíduos são classificados em 5 estádios: 1- pré-púbere; 2- início da puberdade; 3 e 4- progressão da maturação; 5- morfologia adulta. (Figuras 1 e 2)

FIGURA 1. Desenvolvimento pubertário feminino: critérios de Tanner

FIGURA 2. Desenvolvimento pubertário masculino: critérios de Tanner

A puberdade feminina tem início com a telarca (M2), podendo o desenvolvimento mamário pode ser assimétrico, ou seja, existir 1 estádio de diferença entre as mamas. Tipicamente precede a pubarca em 1 a 1,5 anos, apesar de esta poder ocorrer em simultâneo ou um pouco antes. A menarca tem lugar cerca de 2,5 (0,5 a 3) anos após a telarca, em média aos 12,6 anos na população normoponderal branca e aos 12,1 anos na negra. O surto de crescimento pubertário começa em M2P2, com atingimento do pico de velocidade (8,25 cm/ano) em P3, cerca de um ano antes da menarca. Posteriormente, apesar de ocorrer uma desaceleração, há ainda um ganho de cerca de 7 cm, sendo que 99% do crescimento está concluído quando a idade óssea atinge 15 anos.

A puberdade masculina tem início quando o volume testicular atinge 4 mL (G2). Paralelamente ao que acontece na rapariga, pode ocorrer também assimetria testicular de 1 estádio. O estádio P3 ocorre cerca de 1 a 1,5 anos depois. Habitualmente, a espermarca tem início em G3, enquanto a barba e a alteração vocal ocorrem em G4. O pico de crescimento pubertário tem lugar durante os estádios G3 e G4 (9,5 cm/ano), em média 2 anos mais tarde que nas raparigas. Quando a idade óssea atinge 17 anos, 99% do crescimento está completo. Um período de crescimento mais longo e um pico de velocidade superior explicam a discrepância de estatura final entre os dois sexos.

2. Variantes do desenvolvimento pubertário normal

Adrenarca prematura

A adrenarca prematura diz respeito à presença de pêlo púbico antes dos 8 anos na rapariga e dos 9 anos no rapaz, sendo rara antes dos 6 anos. Pode ser acompanhada de pêlo axilar, odor corporal e acne ligeira. No seguimento do que foi dito, além de ser mais frequente na rapariga e nos indivíduos com excesso ponderal, tem ainda maior incidência quando a origem é africana ou hispânica.

Como explicado previamente, a adrenarca é independente do eixo HHG, ocorrendo como consequência do aumento de DHEA e DHEA-S androgénico produzidas pelo córtex da suprarrenal. O fenótipo da adrenarca prematura varia consideravelmente entre populações, podendo estar associado a baixo peso ao nascer, a resistência à insulina, a síndroma de ovário poliquístico e a risco cardiometabólico. Esta condição é considerada uma variante benigna, na ausência de outros sinais de puberdade, nomeadamente: surto de crescimento linear, clitoromegália, aumento fálico ou acne grave. A sua progressão pode ocorrer, mas associada a uma velocidade de crescimento normal.

A avaliação inclui a determinação da idade óssea que, podendo estar ligeiramente avançada, não deverá exceder 2 desvios-padrão relativamente à idade cronológica. Na presença de sinais sugestivos de excesso de androgénios, e para exclusão de hiperplasia congénita da suprarrenal e de tumor produtor de androgénios, deverá ser feito o doseamento de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP), DHEA-S e testosterona. Na adrenarca prematura a DHEA-S geralmente está elevada, sendo, contudo, consistente com o estádio de Tanner púbico. (Quadro 1)

Telarca prematura

A telarca prematura é definida como o desenvolvimento mamário na rapariga com menos de 8 anos e na ausência de outros sinais pubertários. Podendo estar presente desde o nascimento, é frequente nos primeiros dois anos de vida, após os quais tende a regredir. A causa exacta do aparecimento prematuro isolado da telarca continua desconhecida; admite-se que possa ser provocada pelo aumento da sensibilidade do tecido glandular, apesar da existência de níveis muito baixos de estrogénios. Paralelamente, há estudos que sugerem a associação a disruptores endócrinos, nomeadamente, a soja.

Uma vez que o desenvolvimento mamário é a primeira manifestação pubertária na rapariga, é essencial distinguir a telarca prematura da puberdade precoce de causa central. Assim, se a velocidade de crescimento for normal e o desenvolvimento mamário for mínimo, não é necessário proceder a qualquer investigação, devendo ser realizada apenas vigilância rigorosa da evolução. Contrariamente, se ocorrer aceleração do crescimento linear ou progressão do desenvolvimento pubertário, a exclusão de puberdade precoce torna-se obrigatória, e mais ainda pelo facto de numa pequena percentagem de raparigas com telarca prematura se poder vir a desenvolver ulteriormente puberdade precoce central.

Atraso constitucional do crescimento e da puberdade

O atraso constitucional do crescimento e da puberdade traduz uma demora exagerada no início do surto pubertário e da maturação em crianças saudáveis: ambos ocorrem de forma normal, mas numa idade mais tardia. Em 50-70% dos casos existe uma história familiar sobreponível. Nestes indivíduos, a estatura e o estádio pubertário são concordantes com a idade óssea, também ela atrasada. A estatura adulta final está de acordo com a estatura-alvo familiar.

O atraso constitucional do crescimento e da puberdade é um diagnóstico de exclusão, sendo por vezes difícil de distinguir do hipogonadismo hipogonadotrófico.

Actualmente, não são recomendados exames de rotina para distinguir estas duas entidades, pelo que os indivíduos deverão ser seguidos de perto até ao aparecimento de características pubertárias ou, na sua ausência, até ao limite superior do intervalo de normalidade para o início da puberdade, data em que se deverá proceder a investigação. (ver adiante)

Ginecomastia

A ginecomastia pubertária pode ocorrer em 50-60% dos rapazes, de forma fisiológica e geralmente entre os estádios 3 e 4 de Tanner, devendo-se essencialmente ao desequilíbrio entre as concentrações séricas de estrogénios e androgénios. Com duração de cerca de um ano, tem autorresolução no final da puberdade, não requerendo tratamento.

A ginecomastia pode ser uni ou bilateral, sendo frequentemente assimétrica. O diagnóstico é clínico, através da palpação mamária, sendo perceptível tecido glandular sob a região areolar. Esta entidade deve ser distinguida da pseudoginecomastia, provocada pelo aumento do tecido adipocitário (adipomastia). Por outro lado, no adolescente, as causas patológicas de ginecomastia são raras e incluem o hipogonadismo, o uso de drogas recreativas, a doença hepática crónica, a doença renal crónica e tumores secretores de hCG.

3. Puberdade precoce

Como explicado previamente, a puberdade é definida como precoce quando as características sexuais secundárias ocorrem antes dos 8 anos na rapariga ou dos 9 anos no rapaz. A sua causa pode ser dependente das gonadotrofinas (central) ou independente (periférica). (Quadro 2)

QUADRO 2 – Causas de puberdade precoce

Adaptado de Williams Textbook of Endocrinology, 13th Ed. 2016

Central ou Dependente de Gonadotrofinas

    • Idiopática
    • Tumores do SNC
      • Hamartoma hipotalâmico
      • Glioma óptico associado a neurofibromatose tipo 1
      • Astrocitoma hipotalâmico
    • Outras alterações do SNC
      • Hidrocefalia, mielomeningocele, quisto aracnoideu
      • Encefalite, encefalopatia
      • Abcesso, granuloma
      • Lesão vascular
      • Traumatismo craniano
      • Irradiação craniana
    • Mutações com ganho de função (KISS1R/GRP54)

Periférica ou Independente de Gonadotrofinas

    • Isossexual
      • No Rapaz
        • Tumores secretores de gonadotropinas
          • Germinoma, teratoma, coriocarcinoma, hepatoblastoma, etc.
        • Aumento da secreção de androgénios
          • Hiperplasia congénita da suprarrenal, neoplasia adrenal virilizante, adenoma das células de Leydig, testotoxicose familiar, síndroma de resistência ao cortisol
      • Na Rapariga
        • Quisto ovárico
        • Neoplasia ovárica secretora de estrogénios
        • Síndroma de Peutz-Jaghers
      • Em ambos os sexos
        • Síndroma de McCune-Albright
        • Hipotiroidismo
        • Exposição a disruptores endócrinos
    • Contrassexual
      • Feminização no Rapaz
        • Neoplasia adrenal
        • Corioepitelioma
        • Deficiência de CYP11B1
        • Hiperplasia adrenal tardia
        • Síndroma de Peutz-Jaghers
        • Aumento da conversão dos androgénios adrenais circulantes em estrogénios
        • Exposição a estrogénios
      • Virilização na Rapariga
        • Hiperplasia adrenal congénita (deficiências de: YP21, CYP11B1, 3ß-HSD)
        • Síndroma de Cushing
        • Síndroma de resistência ao cortisol
        • Deficiência de aromatase
        • Neoplasia ovárica virilizante
        • Exposição a androgénios

A história clínica deverá ser detalhada, precisando o momento e a ordem de aparecimento das várias alterações pubertárias e do surto de crescimento. Deverá ainda ser questionada a presença de cefaleia ou outros sintomas neurológicos centrais, bem como de antecedentes de traumatismo craniano, infecção do SNC e corticoterapia.

No rapaz, deverá proceder-se à medição do volume testicular com o auxílio do orquidómetro de Prader e ao estadiamento do pêlo púbico. Quando a causa for central haverá aumento do tamanho testicular, contrariamente à origem periférica em que este permanece pré-púbico (< 4 mL).

Na rapariga, deverá ser determinado o estádio de Tanner da mama e do pêlo púbico. O aumento mamário é indicador de puberdade precoce de origem central. O exame vaginal externo permitirá verificar se existe estrogenização da mucosa (baça e rosa), ou não (luzidia).

A estrogenização é também sugestiva de causa central. Uma vez que os esteroides sexuais estimulam o crescimento linear e a maturação epifisária, as crianças com puberdade precoce apesar de poderem ser mais altas que os seus pares durante esta fase, sofrerão encerramento precoce das epífises e, por conseguinte, no caso de não serem tratadas, serão mais baixas na idade adulta. Uma idade óssea superior a 2 anos em relação à cronológica ou de +2 desvios-padrão para a idade é sugestiva deste processo.

Puberdade precoce central

A puberdade precoce central (PPC) deve-se a uma activação prematura do eixo HHG, com secreção de gonadotrofinas hipofisárias, motivo pelo qual também é designada por puberdade precoce dependente de gonadotrofinas. A mesma ocorre mais frequentemente nas raparigas, sendo na maioria das vezes idiopática. Pelo contrário, nos rapazes, além de mais rara, geralmente identifica-se factor etiológico, nomeadamente massas ou lesões do SNC, sendo o hamartoma hipotalâmico o mais frequente.

O diagnóstico de PPC deve ser considerado quando há desenvolvimento prematuro do botão mamário ou aumento simétrico dos testículos, acompanhados por surto de crescimento. Nestes casos, o exame objectivo deverá incluir também a fundoscopia.

A investigação laboratorial pode revelar valores pubertários de gonadotrofinas e de esteróides sexuais (Quadro 1). Uma razão LH/FSH < 1, com um predomínio de FSH, é indicativa de um estado pré-pubertário, com um eixo HHG inactivo. Quando são utilizados métodos ultrassensíveis, um valor basal de LH ≥ 0,2 UI/L é suficiente para estabelecer o diagnóstico de PPC. Contudo, uma vez que as gonadotrofinas são segregadas de forma pulsátil, inicialmente os níveis basais podem ser baixos. Por este motivo, nos casos em que o índice de suspeita é elevado, deverá ser realizado um teste de estimulação com GnRH, o que confirmará a presença de PPC quando a LH ≥ 8,0 UI/L. Nestas situações, é obrigatório proceder a estudo imagiológico através de ressonância magnética para avaliação hipotálamo-hipofisária.

O tratamento tem por objectivo suprimir a produção de gonadotrofinas e, consequentemente, de esteróides sexuais. Nos casos com identificação de patologia subjacente, deverá ser tratada a condição de base, tendo, porém em consideração que na maioria dos casos de hamartomas hipotalâmicos não está indicada intervenção cirúrgica.

Por outro lado, o tratamento da PPC idiopática inclui a utilização de análogos da GnRH de longa ação: leuprorrelina e triptorrelina (injecção intramuscular ou subcutânea; 3,75 mg/mês ou 11,25 mg trimestrais); goserrelina e buserrelina (implante subcutâneo; 3,6 mg/mês ou 10,8 mg trimestrais); histrelina (implante subcutâneo; 50 mg/ano).

Estes fármacos, quando administrados de forma contínua, suprimem de forma paradoxal a libertação de gonadotrofinas e de esteróides sexuais, levando à frenação do aparecimento das características sexuais secundárias, do surto de crescimento pubertário e da maturação óssea, bem como da menarca na rapariga. A duração do tratamento, não sendo inferior a 2 anos, é determinada, caso a caso, tendo em mente os objectivos enumerados.

No que concerne à estatura final, existe maior benefício terapêutico se o tratamento for iniciado mal a PPC seja detectada (geralmente antes dos 6 anos), sendo menos eficaz quando introduzido mais tardiamente. O tratamento com análogos da GnRH é seguro e sem efeitos nefastos na futura função reprodutora, permitindo uma progressão pubertária normal após a sua interrupção. A menarca ocorre tipicamente 12 a 18 meses após a suspensão. Esta é baseada na idade cronológica (aproximadamente 11 anos), na idade óssea (cerca de 12 anos) e na velocidade de crescimento, tendo ainda em consideração os aspetos psicológicos do jovem e a vontade dos pais.

Puberdade precoce periférica

A puberdade precoce periférica (PPP), relativamente rara e contrariamente à central, independente do eixo HHG, é causada pela exposição exógena ou pela secreção endógena de hormonas gonadais e suprarrenais. Caracteriza-se pelo aparecimento prematuro de características sexuais secundárias juntamente com aumento da velocidade de crescimento na presença de valores normais ou baixos de LH e FSH, os quais não aumentam após teste de estimulação com GnRH.

Crianças com virilização isolada e rapidamente progressiva, acompanhada de surto pubertário, devem ser avaliadas para patologias que resultam em excesso de androgénios, nomeadamente: hiperplasia congénita da suprarrenal (HCSR), tumores adrenais produtores de androgénios, tumores ováricos produtores de androgénios (rapariga), tumores das células de Leydig (rapaz).

A HCSR tardia frequentemente é provocada pela deficiência da enzima 21-hidroxilase, levando ao aumento de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) a montante. Raparigas com excesso de androgénios circulantes podem apresentar clitoromegália.

Paralelamente, os rapazes terão crescimento peniano que, contudo, não é acompanhado de aumento do volume testicular; este facto permite distinguir o excesso de androgénios circulante da PPC. Uma assimetria testicular marcada associada a sinais de androgenização e a surto de crescimento é sugestiva de tumor das células de Leydig produtor de testosterona.

Raramente, a síndroma de Cushing pode também apresentar-se como virilização isolada, embora na ausência de surto de crescimento pubertário acompanhante. A avaliação dos casos em que existe virilização inclui a determinação da idade óssea e da velocidade de crescimento, bem como de 17-OHP, DHEA-S e testosterona. A determinação dos esteróides adrenais antes e depois da prova de estimulação com ACTH permite identificar os casos de HCSR.

A testitoxicose é uma forma de PPP familiar masculina, autossómica dominante, que geralmente surge aos 2-3 anos de idade, com valores de testosterona semelhantes aos do adulto, e gonadotrofinas suprimidas. Os doentes apresentam virilização excessiva, com aumento fálico, acne e comportamento mais agressivo, mas com testículos desproporcionalmente pequenos para o grau de virilização. Esta alteração genética rara é causada pela activação do receptor de LH, com hiperplasia das células de Leydig.

Também no sexo masculino, a produção ectópica de hCG por tumores de células germinativas ou por hepatoblastoma pode também estimular a produção de testosterona pelas células de Leydig testiculares. Nestes casos, os testículos podem estar aumentados de forma simétrica, apesar de também desproporcionalmente pequenos face ao grau de virilização. O diagnóstico é confirmado pela determinação da hCG sérica.

Nas raparigas, o desenvolvimento mamário rapidamente progressivo, quando associado a aceleração da estatura e a níveis significativamente elevados de estradiol com gonadotrofinas suprimidas, deve alertar para a possibilidade da existência de um tumor ovárico produtor de estrogénios ou de síndroma de McCune-Albright. Deverá ser realizada ecografia pélvica para avaliar a presença de quistos ou massas ováricas. Os quistos foliculares ováricos benignos podem apresentar-se como episódio isolado de hemorragia vaginal, regredindo espontaneamente. Porém, quistos de dimensões maiores podem predispor a torção ovárica, requerendo intervenção.

A síndroma de McCune-Albright (SMA) é definida pela tríada de: 1- PPP; 2- manchas café-com-leite unilaterais e que não cruzam a linha média; 3- displasia óssea fibrosa. Apesar de também poder ser observada no sexo masculino, é mais frequente nas raparigas. Estas, frequentemente, apresentam episódios recorrentes de hemorragia vaginal associados à formação de quistos foliculares que podem ser identificados ecograficamente.

Por outro lado, os rapazes apresentam sinais de excesso de androgénios, com crescimento peniano. Além da observação minuciosa do tegumento cutâneo, deverão ser realizadas radiografias de todo o esqueleto no intuito de identificar lesões ósseas de displasia fibrosa poliostótica. Esta síndroma é causada pela activação do gene GNAS1, provocando a estimulação continuada desta proteína em vários tecidos endócrinos (tiróide, suprarrenal, gónadas, hipófise), levando ao aumento da sua função.

Também o hipotiroidismo primário grave pode causar PPP em ambos os sexos. Na rapariga, cursa com aumento mamário, hemorragia vaginal e quistos ováricos; no rapaz leva a aumento testicular.

O objectivo do tratamento da PPP sobrepõe-se ao da PPC: retardar o aparecimento de características sexuais secundárias e diminuir o surto pubertário e a maturação óssea de forma a preservar a estatura adulta final. É importante ter em consideração que a PPP, sendo independente do eixo HHG, não responde aos análogos da GnRH, pelo que o tratamento deverá ser dirigido à patologia subjacente.

No caso da HCSR tardia, as crianças são tratadas com glucocorticóides no intuito de suprimir a produção androgénica. Nestes casos, a deficiência de 21-hidroxilase resulta de uma mutação mais ligeira, sem perda de sal, pelo que geralmente não é necessária a substituição com mineralocorticóides.

Nos tumores adrenais ou gonadais o tratamento é cirúrgico, enquanto os tumores produtores de hCG podem requerer ainda radioterapia.

O tratamento das raparigas com SMA inclui anti-estrogénios: anastazol ou letrozol (inibidores da aromatase), e tamoxifeno (modulador do receptor selectivo de estrogénios). Os rapazes com testitoxicose são tratados com uma combinação de espironolactona (bloqueante de receptor de androgénios), testolactona (inibidor da aromatase) e cetoconazol (inibidor da produção de androgénios testiculares e adrenais).

Nas crianças com exposição externa a hormonas, a sua remoção geralmente é suficiente para a regressão do processo.

4. Puberdade tardia

A puberdade tardia é definida pela inexistência de características sexuais secundárias após os 13 anos na rapariga, ou após os 14 anos no rapaz. A ausência de menarca (amenorreia primária) após os 16 anos é também considerada atraso pubertário. A puberdade tardia pode ter causa gonadal ou primária (hipogonadismo hipergonadotrófico), ou causa central ou secundária (hipogonadismo hipogonadotrófico). (Quadro 3)

QUADRO 3 – Causas de puberdade tardia

Hipogonadismo Hipergonadotrófico ou Primário

    • No Rapaz
      • Síndroma de Klinefelter (47XXY, 48 XXXY, etc.)
      • Defeitos na síntese de esteróides testiculares
      • Síndroma de Sertoli
      • Anorquia bilateral congénita
      • Criptorquidia
      • Traumatismo testicular ou remoção cirúrgica
    • Na Rapariga
      • Síndroma de Turner (45 X0)
      • Defeitos na síntese de esteróides ováricos
      • Deficiência de aromatase
      • Insuficiência ovárica autoimune
      • Síndroma de ovário poliquístico
      • Galactosémia
    • Em Ambos os Sexos
      • Síndroma de Noonan
      • Disgenésia gonadal
      • Mutações dos receptores de gonadotrofinas
      • Quimioterapia, radioterapia
      • Infecção (parotidite, varicela, malária, vírus Coxsackie, Shigella)

Hipogonadismo Hipogonadotrófico ou Secundário

    • Alterações do SNC
      • Hipopituitarismo por anomalias estruturais congénitas (ex: displasia septo-óptica)
      • Causas vasculares
      • Tumores: craniofaringeoma, germinoma, glioma hipotalâmico ou óptico, astrocitoma, tumor pituitário (ex: prolactinoma)
      • Doenças infiltrativas (hemocromatose, histiocitose)
      • Traumatismo craniano
      • Infecções
    • Deficiência Isolada de Gonadotrofinas
      • Síndroma de Kallman
      • Mutação do receptor de GnRH
      • Deficiência isolada de LH ou de FSH
    • Outras Causas
      • Síndroma de Prader-Willi
      • Síndroma de Bardet-Biedl
      • Síndroma de Laurence-Moon-Biedl
      • Doença crónica, má-nutrição, anorexia

É muito importante ter em consideração que estas entidades são referentes ao atraso da gonadarca e relativas ao eixo HHG. Assim, o pêlo púbico e axilar, bem como o odor corporal, relacionados com a presença de androgénios suprarrenais (adrenarca), podem estar presentes.

A história clínica deverá ter em consideração, não só a história familiar da idade pubertária, mas também antecedentes pessoais de condições sistémicas (por ex. anorexia, má-absorção, parotidite, malária, autoimunidade, hipopituitarismo) ou gonadais (radio/quimioterapia, traumatismo, cirurgia) que possam estar na origem deste atraso.

Também nesta situação, a avaliação da estatura, da velocidade de crescimento e da idade óssea são muito importantes: em regra, quando a causa é central, ocorre diminuição da velocidade de crescimento e atraso da idade óssea. A investigação laboratorial é a chave etiológica, sendo mandatória a determinação da LH e da FSH, bem como da testosterona total no rapaz ou do estradiol na rapariga.

Nos jovens com baixa estatura, deverá ser excluído hipopituitarismo, com determinação do IGF-1, da TSH e da ACTH. Caso o mesmo se confirme, deverá ser realizada ressonância magnética para avaliação da sela turca.

O tratamento das causas permanentes de hipogonadismo, seja ele primário ou secundário, são as mesmas, ou seja, a substituição hormonal com estrogénio na rapariga ou com testosterona no rapaz.

Em ambos os sexos, a dose inicial deve ser pequena e gradualmente aumentada ao longo dos 2-3 anos seguintes, de forma a mimetizar a puberdade normal. Na rapariga, o 17ß-estradiol é preferível ao etinilestradiol sintético, podendo ser administrado por via oral (inicialmente 5 µg/kg/dia, com incrementos de 5 µg/kg/dia a cada 6-12 meses, até à dose de adulto de 1-2 mg/dia), ou por via transdérmica (3,1-6,2 µg/dia, ou seja, ⅛–¼ do adesivo de 25 µg; incrementos de 3,1-6,2 µg/dia a cada 6-12 meses, até à dose de adulto de 50-100 µg/dia). Ao evitar o efeito de primeira passagem pelo fígado e minorando o risco protrombótico, a segunda via é preferível.

A adição de progesterona 10 dias por mês, geralmente sob a forma de acetato de medroxiprogesterona (5-10 mg/dia), deverá ser iniciada 1-2 anos após o início da terapêutica com estrogénio ou após a menarca. No rapaz, apesar de existirem várias formas de suplementação com testosterona, a mais utilizada é a intramuscular (enantato, cipionato ou propionato de testosterona) administrada a cada 28 dias. A dose inicial é de 50 mg, a qual é aumentada em 50 mg a cada 6-12 meses; após ser alcançada a dose de 100-150 mg/mês, o intervalo entre as administrações deverá ser reduzido para 2 semanas; a dose do adulto é de 200 mg a cada 2 semanas. As formulações em gel ou em penso transdérmico não são tão fáceis de manipular na criança; por outro lado, as orais comportam risco de toxicidade hepática, pelo que não são aconselhadas.

Hipogonadismo hipergonadotrófico ou primário

O hipogonadismo hipergonadotrófico refere-se à falência gonadal primária (ovárica ou testicular) na produção de esteróides sexuais. Esta carência, pela ausência de efeito retroactivo negativo sobre o eixo hipotálamo-hipofisário, leva a um aumento marcado da produção de gonadotrofinas, característica desta entidade.

A síndroma de Turner (45 X0) é a causa mais frequente de falência ovárica primária. As jovens apresentam baixa estatura associada a alterações características, nomeadamente: implantação capilar e auricular baixas, pescoço alado, tórax em escudo com aumento da distância intermamilar, cardiopatia direita.

Em todos os indivíduos do sexo feminino com baixa estatura, atraso do desenvolvimento mamário ou amenorreia primária, deve proceder-se obrigatoriamente a cariótipo. A fertilidade encontra-se comprometida por atrésia gonadal, pelo que as raparigas necessitam de terapia hormonal de substituição com estrogénios, a iniciar por volta dos 12 anos de idade, de forma a permitirem um desenvolvimento adequado das características sexuais secundárias, do útero e da massa mineral óssea.

A síndroma de Klinefelter (47 XXY, 48 XXXY, etc.) é a causa mais frequente de hipogonadismo primário no rapaz. As características clínicas incluem estatura elevada, ginecomastia, testículos pequenos e baixo QI. Em todos os indivíduos com estas características deve ser realizado cariótipo. Apesar de estes rapazes poderem apresentar adrenarca e início espontâneo da virilização, não ocorre desenvolvimento genital adequado e a fertilidade encontra-se comprometida por falência das células de Sertoli.

A terapêutica de substituição com testosterona deve ser iniciada quando a FSH e a LH começam a aumentar, de forma a promover o aparecimento das características sexuais secundárias e o aumento da densidade mineral óssea.

A falência ovárica autoimune é uma causa importante de hipogonadismo primário na rapariga, a qual pode estar associada a outras patologias autoimunes, incluindo: hipotiroidismo, insuficiência adrenal, diabetes mellitus tipo 1 ou hipoparatiroidismo.

A anorquia bilateral congénita (síndroma dos testículos desaparecidos) refere-se à regressão testicular que ocorre ainda in utero. A propósito da causa, ainda não bem estabelecida, admite-se que esta entidade possa resultar de trombose vascular ou de torção testicular, provavelmente após as 20 semanas de gestação, tendo em conta o desenvolvimento sexual dos genitais externos adequado, o que traduz função testicular normal durante o início da gestação.

Os agentes quimioterapêuticos (especialmente os alquilantes), assim como a radioterapia local podem desencadear insuficiência gonadal em ambos os sexos. Por outro lado, infecções como malária, parotidite, varicela, por vírus Coxsackie ou por Shigella podem desencadear ooforite ou orquite, levando a hipogonadismo. Por fim, o traumatismo pode também ser uma causa importante de falência testicular.

Hipogonadismo hipogonadotrófico ou secundário

O hipogonadismo hipogonadotrófico diz respeito à falência do eixo hipotálamo-hipofisário em segregar GnRH e/ou gonadotrofinas, com consequente ausência de estimulação gonadal, o que culmina na ausência de produção de esteróides sexuais. Os adolescentes com esta condição têm níveis basais baixos de LH e de FSH, não apresentando aumento das gonadotrofinas ou dos esteróides sexuais após prova de estimulação com GnRH.

A síndroma de Kallman, condição genética que pode afectar tanto rapazes como raparigas, caracteriza-se por hipogonadismo central associado a infertilidade e a anosmia. A sua origem está na falência da migração para o hipotálamo dos neurónios responsáveis pela produção de GnRH durante o desenvolvimento embrionário.

O hipopituitarismo, como referido anteriormente, está associado a sinais e sintomas relativos a outras deficiências hipofisárias. O exame objectivo pode ainda evidenciar defeitos da linha média associados a displasia septo-óptica ou a agenésia do septo pelúcido.

Doenças crónicas que envolvam o coração, o aparelho gastrintestinal, o fígado, o rim ou outras glândulas endócrinas, assim como neoplasias ou infecções crónicas, podem também estar na origem de atraso pubertário hipogonadotrófico.

Apesar de o tratamento de substituição com esteróides sexuais ser a base da intervenção para aquisição das características sexuais secundárias, no rapaz com hipogonadismo hipogonadotrófico a testosterona não induz crescimento testicular ou espermatogénese, que são dependentes do estímulo da LH nas células de Leydig e da FSH nas de Sertoli. Assim, a indução da fertilidade requer a administração de GnRH de forma pulsátil ou de hCG + FSH exógenas.

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DOENÇAS DAS PARATIROIDEIAS E METABOLISMO FOSFOCÁLCICO

Noções fundamentais sobre o metabolismo do cálcio e fósforo. Importância do problema

As glândulas paratiroideias, em número de quatro, segregando a hormona paratiroideia ou paratormona (PTH), localizam-se na face anterior do pescoço, ao nível da zona média da glândula tiroideia; sob o ponto de vista embriológico, provêm dos 3º e 4º arcos branquiais, estando o seu desenvolvimento associado ao do timo.

As referidas glândulas e o metabolismo fosfocálcico estão intimamente ligados, pelo que não é possível discutir a patologia das paratiroideias e o seu tratamento, sem abordar, ainda que de forma sucinta, o metabolismo fosfocálcico.

Os níveis séricos de cálcio são regulados de forma muito estrita a fim de se obterem valores entre 8,8 e 10,4 mg/dL; se exceptuarmos o período neonatal, estes níveis mantêm-se constantes ao longo da vida. Esta regulação é muito complexa envolvendo o calcium-sensing receptor (CaSR), a hormona paratiroideia (PTH) e a vitamina D na sua forma activa [1,25-di-hidroxi-vitamina D (1,25(OH)2D)]. Importa referir que a PTH e a vitamina D são os principais reguladores da homeostase do cálcio (Ca).

Os níveis de fosfato estão sujeitos a uma regulação menos estrita que a da calcémia; a fosfatémia varia ao longo da vida, sendo mais elevada nas fases de crescimento rápido. Na sua regulação intervém não só a PTH e 1,25(OH)2 D3, mas também outras hormonas e co-reguladores descritos recentemente como o Fibroblast Growth Factor (FGF) 23 e Klotho.

Relativamente à PTH, importa salientar dois aspectos, de grande importância no período fetal:

  • Chamado péptido relacionado com a PTH (PTHrP), segregado por diferentes estirpes celulares e com afinidades estruturais com a PTH partilha com esta idêntica actividade biológica;
  • A sua presença no tecido mamário, paratiroideias e placenta traduz papel importante no metabolismo fosfocálcico durante a gravidez e lactação;
  • A calcitonina, péptido segregado, como resposta à hipercalcémia, pelas células C da tiroideia, tem efeito contrário à PTH.

Este capítulo aborda um tópico algo complexo, mas de grande relevância pela multiplicidade de quadros clínicos que integra, o que por sua vez constitui um exercício para o estudo e revisão da fisiopatologia.

Fisiopatologia

Cerca de 90% do cálcio total do organismo localiza-se no esqueleto ósseo; só 1% do total se encontra nos líquidos extracelulares; deste, 50% circula sob a forma livre ionizada, 40% encontra-se ligado a proteínas (albumina, sobretudo) e 10% a aniões (citrato). É a fracção livre e ionizada que é biologicamente activa.

O fosfato total do organismo reparte-se por 3 compartimentos: 85% encontra-se nos ossos; 14% no interior das células ligado a várias moléculas como fosfato orgânico, e menos de 1% no líquido extracelular principalmente como fosfato inorgânico, em constante equilíbrio com os outros compartimentos.

A mineralização óssea depende de um produto [cálcio]x[fosfato] séricos correcto e quer a diminuição quer o aumento da concentração de um dos iões pode conduzir a deficiente mineralização óssea ou calcificações ectópicas.

O CaSR é um receptor da membrana celular existente nas células das glândulas paratiroideias, tubo renal, osso e cartilagem; funciona como um “sensor” da calcémia: a ligação do cálcio ao CaSR inibe a libertação de PTH e a reabsorção renal de cálcio; quando a calcémia diminui, o CaSR desencadeia a produção de PTH. O magnésio liga-se também ao CaSR influenciando a secreção de PTH. O referido receptor é membro da superfamília de receptores ligados à proteína G. O CaSR é codificado por um gene com 6 exões, localizado no cromossoma 3q21.1.

Estão descritas mutações, quer activadoras associadas a hipocalcémia, quer mutações inactivadoras levando a hipercalcémia.

A PTH é um polipéptido constituído por 84 aminoácidos, dos quais apenas os 34 últimos são necessários para a sua actividade e funções. É codificada por um gene localizado no cromossoma 11. A sua semivida em circulação é muito curta (1-2 minutos). Actua sobre o osso promovendo a sua reabsorção, e sobre o rim aumentando a reabsorção de cálcio, a excreção de fosfato e a síntese renal de 1,25(OH)2D; por sua vez, este metabolito da vitamina D aumenta a absorção intestinal de cálcio. Todos estes mecanismos irão promover o restabelecimento da calcémia.

Estas acções, ao nível de órgãos-alvo implicam:

  • Ligação ao seu receptor;
  • Mecanismos de tradução deste sinal, tendo como segundo mensageiro a proteína G, em particular a subunidade a que estimula depois a adenilciclase com aumento do AMP cíclico intracelular.

A subunidade Gsa é codificada pelo gene GNAS1 que actua como segundo mensageiro de várias hormonas. De salientar que estão descritas mutações activadores e inactivadoras deste gene.

A vitamina D é uma vitamina lipossolúvel, existindo sob 2 formas: colecalciferol ou vitamina D3 produzido na pele por acção da luz ultravioleta sobre o 7-dehidrocolesterol.

Tendo o seu metabolismo sido descrito noutro capítulo, na parte sobre Nutrição, neste capítulo caberá apenas reforçar o papel do FGF23, um polipéptido produzido pelos osteócitos e osteoblastos, o qual regula a concentração sérica de fosfato, diminuindo-a.

Os níveis séricos de FGF23 aumentam em resposta à 1,25(OH)2D3, à ingestão de fósforo e à PTH por mecanismos ainda mal conhecidos e em que parece estar também envolvido o ferro.

O FGF23 actua a 2 níveis: por um lado, no tubo proximal renal, suprimindo a expressão dos cotransportadores sódio-fosfato levando à diminuição da reabsorção tubular do fosfato com aumento das perdas renais de fosfato e, por outro, a nível da 1,25(OH)2D suprimindo a expressão da 1a-hidroxilase e aumentando a expressão da 24-hidroxilase com aumento da degradação da 1,25(OH)2D e diminuição dos seus níveis séricos. Estas acções do FGF23 implicam a sua ligação a um complexo da membrana celular constituído pelo seu receptor e Klotho, uma proteína da membrana.

A absorção intestinal de cálcio acompanha-se de absorção de fósforo, o que poderia causar hiperfosfatémia e calcificações ectópicas. Contudo, a vitamina D parece ter uma dupla acção para evitar esta situação: inibe a produção de PTH com diminuição da reabsorção óssea e estimula a produção de FGF23 com aumento da fosfatúria.

O excesso de FGF23 está associado, directa ou indirectamente, a diversas formas de raquitismo hipofosfatémico; contudo, nalguns casos desconhece-se ainda o mecanismo exacto, admitindo-se que a alteração verificada se relacione com o excesso de FGF23.

 Semiologia clínica e laboratorial

Face à grande diversidade de factores envolvidos, a suspeita de alteração do metabolismo fosfocálcico, na sequência de anamnese e exame objectivo rigorosos, deverá levar à determinação de um painel alargado de exames de sangue e urina e à realização de alguns exames imagiológicos (Quadro 1) de forma a orientar o diagnóstico diferencial (Quadro 2). Salienta-se a importância da recolha e conservação de uma amostra de sangue e de urina para eventual realização de outras determinações.

O Quadro 3 resume os fármacos utilizados no âmbito de determinadas alterações do metabolismo fosfocálcico

QUADRO 1 – Semiologia das alterações do metabolismo fosfocálcico

Sangue (Valores de referência)UrinaImagiologia
Nota: Guardar uma amostra de sangue em EDTA, outra em tubo seco e também uma amostra de urina para outras determinações ou estudos moleculares que venham a ser necessários.
Adaptado de Perry & Allgrove, 2011
    • Cálcio total (8,4-10,6 mg/dL)
    • Cálcio ionizado (1,1-1,3 mmol/L)
    • Fosfato (lactente: 5-8; criança: 4,1-5,9; adulto: 2-4,6 mg/dL)
    • Magnésio (1,7-2,9 mg/dL)
    • Fosfatase alcalina (criança: 200-600; adulto: 60-170 UI/L)
    • Creatinina
    • Albumina
    • pH e gases
    • PTH (10-55 pg/mL)
    • 25 OH-D (20-60 ng/mL)
    • 1,25 (OH)2 D

Fórmula para a correcção da calcémia de acordo com a albuminémia:
Ca corrig = Ca total (mg/dL) + [(41-alb (g/L)x 0,068]

Calcémia:
4 mg/dl = 1 mmol/L

Fosfatémia:
3,1 mg/dl = 1 mmol/L

Magnesiémia:
2,4 mg/dl = 1 mmol/L

    • Creatinina   \
                             |-> Amostra
    • Cálcio          /

Valor normal da relação cálcio/creatinina nas crianças: 0,25 mg/mg

    • Creatinina (Cr)  \
      de Cálcio (Ca)    |-> Urina 24h
    • Fosfato (P)        /

Valor normal da excreção de cálcio:
 4 mg/kg/24h

Taxa de reabsorção de fosfato:
1- Taxa de excreção fraccionada de fosfato x100

Valor normal:
nas crianças: 85-97%
nos adultos: 80-95%

Fórmula de cálculo excreção fraccionada de fosfato:
[P]u x [Cr]p / ([P]p x [Cr]u); todas as determinações nas mesmas unidades

    • Radiografia do punho e joelho para pesquisa de raquitismo
    • Ecografia renal para pesquisa de nefrocalcinose
    • TAC craniana para pesquisa de calcificações intracranianas
    • Cintigrafia de subtracção com sestamibi para detecção de tumores das paratiroideias

QUADRO 2 – Diagnóstico laboratorial simplificado das situações associadas a alterações do metabolismo fosfocálcico

*VDDR2: Raquitismo vitamina D dependente tipo 2 causado por mutação do receptor da vitamina D (VDR) e associado a níveis ­­­ de 1,25(OH)2D3

Abreviaturas:
AIRE: autoimmune regulator type 1; APECED: autoimmune polyendocrinopathy-candidiasis-ectodermal dystrophy; CaSR: Calcium-sensing receptor; CHARGE: Coloboma, Heart anomaly, Choanal Atresia, Retardation, Genital and Ear anomalies; CHD7: Chromodomain helicase DNA binding protein 7; GATA3:Gats binding protein 3; GCMB: glial cells missing B; GNAS1: Guanine nucleotide-binding protein, a-stimulating activity polypeptide 1; HRD: Hypoparathyroidism-retardation- dysmorphism ; HDR: Hypoparathyroidism -deafness-renal dysplasia; MELAS: Mitochondrial encephalopathy, lactic acidosis and stroke- like episodes syndrome ; MTPDS: Mitochondrial trifunctional protein deficiency syndrome; PTH: Parathormona; SEMA3: Semaphorin 3E; SOX3: SRY(sex-determining region of Y)-related HMG (high mobility group)-box gene 3; TBCE: tubulin specific chaperone.

Nota: Guardar uma amostra de sangue em EDTA, outra em tubo seco e também uma amostra de urina para outras determinações ou estudos moleculares que venham a ser necessários.

Adaptado de Perry & Allgrove, 2011.

 CálcioFosfatoFosfatase AlcalinaPTH25OH-D1,25(OH)2D
HIPOCALCÉMIA
HipoparatiroidismoN ou ↓NN
Pseudo- hipoparatiroidismoN ou ↓N
Alterações da Vitamina D↓ ou N↓ ou ­­ ou N↓↓ nos raquitismos nutricionais
N nas outras formas
N ou ↓
excepto VDDR2*
HIPERCALCÉMIA
Hiperparatiroidismo primário N ou ↓N ou ­↑NN ou ­↑
Outras causas de hipercalcémia  N ou ↓

QUADRO 3 – Fármacos utilizados no tratamento de determinadas alterações do metabolismo fosfocálcico

Princípio activoNome comercialDose
CálcioVárias apresentaçõesVárias formulações, algumas com vitamina D associada
FosfatoPhosphore Sandoz® Comprimidos efervescentes750 mg de fósforo elementar/comprimido
CalcitriolRocaltrol® cápsulas0,25 µg
AlfacalcidiolEtalpha® gotas
Cápsulas
2 µg/ml, 0,1 µg/gota
0,25 µg; 0,5 µg; 1 µg
ColecalciferolVigantol® gotas0,5 mg/ml
667 UI (16,7 µg)/gota

No âmbito da patologia em estudo (título deste capítulo), foram sistematizadas as seguintes nosologias*:

  • Hipoparatiroidismo;
  • Pseudo-hipoparatiroidismo
  • Hiperparatiroidismo
  • Raquitismo não carencial
* Abreviaturas
CLCN5: Chloride channel, voltage-sensitive 5; DMP1: Dentin matrix protein; ENPP1: Ectonucleotide pyrophosphatase/phosphodiesterase; FGF23: Fibroblast growth factor 23; FGFR1: Fibroblast growth factor receptor; GNAS1: Guanine nucleotide-binding protein, a-stimulating activity polypeptide 1; PHEX: Phosphate-regulating gene with homologies to endopeptidases on the X chromosome; PTH1R: Parathyroid hormone 1 receptor; OCRL1: Oculocerebrorenal syndrome of Lowe; NPT2: Type II sodium/phosphate cotransporter

1. HIPOPARATIROIDISMO

Definição e importância do problema

O hipoparatiroidismo ou insuficiência paratiroideia é o resultado de uma alteração (congénita ou adquirida) da síntese e secreção da PTH, ou da acção periférica da mesma. Em ambas as circunstâncias, verifica-se hipocalcémia e hiperfosfatémia.

Na idade pediátrica tal estado de hipofunção é mais frequente que o de hiperfunção.

Dados laboratoriais

Independentemente da etiologia, os achados bioquímicos resultantes da diminuição da acção da PTH são:

  • Hipocalcémia (< 8,6 mg/dL);
  • Hiperfosfatémia (7-12 mg/dL);
  • i1,25(OH)2D3;
  • Calciúria relativamente elevada em relação à calcémia.

No pseudo-hipoparatiroidismo ou nas formas de PTH biologicamente inactiva, verifica-se elevação dos níveis plasmáticos de PTH.

Uma vez que a ausência do efeito da PTH conduz a maior reabsorção renal de bicarbonato, poderão ser detectados valores sanguíneos elevados de bicarbonato e pH.

Classificação

A classificação etiológica do hipoparatiroidismo é difícil e complexa, tendo em conta os critérios adoptados para tal. De facto, diversos aspectos poderão ser considerados, por exemplo: etiologia (orgânica ou funcional), forma de apresentação (esporádica ou familiar), início (precoce ou tardio), associação a outras anomalias, e evolução (forma transitória ou permanente).

O Quadro 4 sintetiza as situações caracterizadas por deficiência em PTH (nível sérico de PTH diminuído).

QUADRO 4 – Hipoparatiroidismo por deficiência em PTH (PTH diminuído)

Neonatal

    • Transitória
    • Permanente (síndromas CATCH 22, de DiGeorge, etc.)

Não neonatal

    • Familiar
      • Autossómica dominante (CaSR)
      • Autossómica recessiva (GCM2)
      • Recessiva ligada ao cromossoma X (Xq26-27)
    • Autoimune
      • Isolada
      • Síndroma pluriglandular autoimune (APECED)
    • Adquirida
      • Pós-cirurgia (tiroideia ou paratiroideia)
      • Pós-radioterapia cervical
      • Infecções (sépsis, SIDA)
      • Infiltrativa (tumoral, amiloidose, hemossiderose, depósitos de ferro/terapia nas talassémias, de cobre/doença de Wilson)
    • Hipomagnesiémia
    • Associada a doenças mitocondriais
    • Idiopática

No Quadro 5 são sistematizadas as formas de disfunção paratiroideia em que a PTH é biologicamente inactiva ou se observa resistência periférica à sua acção. Nestas situações, o nível sérico da PTH está aumentado.

QUADRO 5 – Hipoparatiroidismo por PTH biologicamente inactiva ou por resistência periférica à sua acção (PTH aumentada)

    • PTH biologicamente inactiva
    • Resistência periférica à PTH
      • Pseudo-hipoparatiroidismo de tipo Ia
      • Pseudo-hipoparatiroidismo de tipo Ib
      • Pseudo-hipoparatiroidismo de tipo II
      • Pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo de tipo Ib
      • Pseudo-hipoparatiroidismo com osteíte fibroquística

Formas clínicas de hipoparatiroidismo

É dada ênfase às seguintes:

Hipoparatiroidismo neonatal transitório

Esta forma clínica é abordada na Parte “Perinatologia/Neonatologia” sobre alterações do metabolismo do cálcio e fósforo no RN.

Hipoparatiroidismo neonatal permanente

A falta de desenvolvimento das glândulas paratiroideias pode apresentar-se como defeito isolado ou associado a outros defeitos do desenvolvimento, como ocorre na deleção 22q11; esta situação é conhecida como CATCH22, sigla do inglês significando “defeito cardíaco, fácies anormal, hipoplasia do timo, palato ogival e hipocalcémia”.

Inclui várias síndromas:

  • Síndroma de DiGeorge: fácies peculiar (hipertelorismo, implantação anormal das orelhas, micrognatia, boca “de peixe”), cardiopatia congénita afectando em geral o arco aórtico, ausência de timo e imunodeficiência. Apesar de o prognóstico depender mais dos defeitos associados do que da hipocalcémia, em toda a cardiopatia que envolva anomalias do arco aórtico ou perante tetralogia de Fallot atípica deverá avaliar-se o metabolismo fosfocálcico. O gene que parece ser responsável por muitas das alterações fenotípicas, em particular pela cardiopatia congénita, é o gene TBX1 (T-box 1);
  • Síndroma velocardiofacial: fenda palatina, defeito cardíaco, fácies peculiar e dificuldades na aprendizagem;
  • Síndroma cono-troncofacial: defeito cardíaco, anomalias faciais e hipoplasia do timo.

Outras síndromas se associam para além do período neonatal. Destacam-se, sem pormenorizar: síndroma de Kenny-Caffey, síndroma de Sanjad-Sakati, síndroma de Yumita, síndroma de Kallman, síndroma de Barakat e síndroma de Silver-Russell.

Hipoparatiroidismo familiar

Esta forma clínica, surgindo de modo isolado, integra um grupo heterogéneo de situações. Em geral transmite-se do modo autossómico dominante (AD), embora em certas famílias se tenha demonstrado o modo autossómico recessivo (AR) ligado ao cromossoma X.

Acompanhadas por sintomas neuromusculares, tais situações estão associadas a mutações activadoras no gene do CaSR, localizado em 3q13-3q21, com transmissão AD.

Outras formas:

  • Ausência hereditária das paratiroideias secundária a mutação do gene responsável pelo factor de transcrição GCMB (região 6p23, hereditariedade AR, ou ligada a sexo-Xq27);
  • Hipomagnesiémia hereditária com hipocalcémia dependente do magnésio (AR);
  • Raquitismo pseudocarencial hereditário.
Hipoparatiroidismo autoimune

Habitualmente transmite-se de modo AR e apresenta-se associado a outras alterações, constituindo a doença poliglandular do tipo I (PGA1) também chamada síndroma de poliendocrinopatia autoimune-candidíase-displasia ectodérmica (APECED).

Nalguns casos de PGA1 foram identificadas mutações no gene AIRE (gene para a regulação autoimune), em número superior a 60.

A tríade hipoparatiroidismo, doença de Addison e candidíase somente se verifica em 50% dos pacientes.

 Hipoparatiroidismo adquirido

O Quadro 4 é elucidativo.

 Hipoparatiroidismo associado a doenças mitocondriais

Estão descritas mutações no ADN mitocondrial em casos de síndroma de Kearns-Sayre, MELAS (miopatia, encefalopatia, acidose láctica e episódios, acidente vascular cerebral), por sua vez associados a hipoparatiroidismo.

Com efeito, o diagnóstico de citopatia mitocondrial deve ser suspeitado em doentes com sintomas inexplicados como oftalmoplegia, hipoacusia neurossensorial, alterações da condução cardíaca e tetania.

Hipoparatiroidismo idiopático

Esta forma clínica, isolada e tardia ou crónica, cujo mecanismo fisiopatológico na actualidade ainda se desconhece, poderá estar relacionada com mutações do gene da PTH.

Outras situações relacionadas com hipoparatiroidismo

Citam-se resumidamente a síndroma de Fhar, cursando com calcificações nos núcleos basais; a síndroma de Gardner (polipose intestinal com osteomas); e a síndroma de nevus de células basais.

Manifestações clínicas

No hipoparatiroidismo pode existir um largo espectro de manifestações, desde a sua “ausência”, até sinais e sintomas exuberantes. Nas formas mais ligeiras poderá acontecer que a identificação de tal nosologia somente se consiga por exames laboratoriais.

Dum modo geral pode afirmar-se que a sintomatologia depende, não só do grau de défice em PTH e da calcémia absoluta, como também da velocidade da sua instalação; outros factores importantes para o desenvolvimento de sintomas são a existência de hipomagnesiémia, hiponatrémia, hipocaliémia ou acidose associadas.

A hipocalcémia de longa duração e de instalação lenta pode ser assintomática sendo detectada por uma “análise de rotina”. Os sintomas aparecem habitualmente quando a calcémia é inferior a 7,2 mg/dL. Reitera-se que hipocalcémia é, por definição, a calcémia inferior a 8,6 mg/dL.

Os sinais mais precoces de hipocalcémia são a sensação de formigueiro ou “adormecimento” nos dedos das mãos e pés e região perioral. Aparecem depois as dores abdominais e sinais de hiperexcitabilidade nervosa, mialgias, cãibras, especialmente com o exercício, contracção muscular espontânea (tetania e espasmo carpopedal) ou convulsões com frequência variável, laringospasmo, alteração do estado de consciência e, nos recém-nascidos, insuficiência cardíaca. É frequente catalogar os pacientes hipoparatiroideus como epilépticos.

O exame objectivo pode evidenciar, hiperextensão cérvico-cefálica, hiperreflexia, positividade dos sinais de Chvostek (contractura dos músculos faciais desencadeda pela percussão do nervo facial à frente do pavilhão auricular) e de Trousseau (espasmo carpopedal desencadeado pela hipóxia obtida por insuflação da braçadeira do esfigmomanómetro acima da pressão arterial sistólica durante 3 a 5 minutos), cabelo fino, pele seca, unhas friáveis com estrias horizontais, atraso na erupção dentária, fragilidade do esmalte dos dentes e atraso na sua erupção. Nos lactentes, pode ainda existir hipotonia, taquicardia e fontanela procidente.

A hipocalcémia mantida e de longa duração pode levar a calcificações dos gânglios da base, a edema da papila e a cataratas subcapsulares.

As manifestações associadas podem fornecer pistas para o diagnóstico etiológico da hipocalcémia e/ou de hipoparatiroidismo: alteração do crescimento e raquitismo (défice de vitamina D), atraso do neurodesenvolvimento e/ou da linguagem, cardiopatia congénita ou imunodeficiência (síndroma de DiGeorge), candidíase mucocutânea (APECED), etc..

Exames complementares

O cálcio sérico está diminuído (5-7 mg/dL) e o fósforo elevado (7-12 mg/dL). O cálcio ionizado (~45% do total) também está diminuído; a avaliação do cálcio total deverá ter em atenção o valor da albuminémia. A magnesiémia, que deve ser sempre determinada quando existe hipocalcémia, está normal. A fosfatase alcalina está normal ou baixa e o nível do metabolito 1,25(OH)2D3 está geralmente baixo, embora possa estar elevado em situações de hipocalcémia acentuada.

O valor sérico da PTH está diminuído no hipoparatiroidismo, e elevado no pseudo-hipoparatiroidismo.*

A radiografia dos ossos longos evidenciando aumento da densidade nas metáfises sugere intoxicação por metais pesados. A TAC cranioencefálica pode revelar sinais de calcificação dos gânglios basais.

*Por vezes os valores basais de PTH não são esclarecedores quanto a esta destrinça. Por isso, torna-se necessário recorrer ao estímulo com PTH exógena (Prova de Ellsworth -Howard).

O ECG mostra um aumento do intervalo QT e, por vezes, alterações da onda T, do ritmo e da condução.

O EEG evidencia actividade lenta, a qual pode normalizar após tratamento da hipocalcémia.

Salienta-se que quando o hipoparatiroidismo surge associado a doença de Addison, a calcémia poderá estar normal; contudo, com o tratamento da insuficiência adrenal a hipocalcémia aparece.

Diagnóstico diferencial

  1. A deficiência em magnésio deve ser admitida em pacientes com hipocalcémia inexplicada. Concentrações de Mg < 1,5 mg/dL (1,2 mEq/L) são geralmente anormais.
    Não está esclarecido o mecanismo pelo qual baixos níveis de Mg levam a hipocalcémia. Admite-se, contudo, que a hipomagnesiémia impeça a libertação de PTH, induzindo resistência a esta hormona.
  1. A intoxicação com fosfato inorgânico conduz a hipocalcémia e tetania cujo mecanismo também não é claro. Na prática clínica, a administração de laxantes ou enemas baseados em fosfato inorgânico pode ser responsável por tal quadro tóxico.
  2. A hipocalcémia associada a hiperfosfatémia pode ocorrer no contexto de tratamento da leucemia linfoblástica aguda em que se verifica destruição de linfoblastos.

Independentemente do quadro clínico, importa conhecer as entidades clínicas que, para além da disfunção paratiroideia (hipoparatiroidismo e pseudo-hipoparatiroidismo), também cursam com hipocalcémia. (Quadros 6 e 7)

QUADRO 6 – Causas de hipocalcémia (excluindo disfunção paratiroideia)

      1. Carência e alterações do metabolismo da vitamina D – Raquitismos calciopénicos*
      2. Alterações dos órgãos-alvo
        Rim (IRA, acidose tubular renal, hipercalciúria)
        Má-absorção intestinal do cálcio
        Esqueleto
      3. Outras causas
        Sobrecarga de fosfato (síndroma de lise tumoral, leite com concentração elevada de fosfato, rabdomiólise)
        Doenças agudas (pancreatite aguda, acidémias orgânicas, síndroma de choque tóxico)
        Drogas (furosemido, calcitonina, fenobarbital, fenitoína, flúor, pentamidina, cetoconazol, bifosfonatos, antineoplásicos, transfusão-permuta).

      * (ver volume 1 – Quadro 4 e Capítulos sobre Carências vitamínicas e minerais).

QUADRO 7 – Carência e alterações do metabolismo da vitamina D – raquitismos calciopénicos

  Raquitismos calciopénicos

    • Défice de vitamina D
      • Prematuridade
      • Défice nutricional por ingestão insuficiente de nutrientes
      • Exposição solar inadequada
      • Má-absorção intestinal associada a doença celíaca, fibrose quística, pancreatite ou outras causas de esteatorreia
      • Doença hepática levando a alteração da produção de 25-hidroxi-vitamina D
      • Medicamentos (corticóides, anticonvulsantes)
    • Alterações do metabolismo da vitamina D
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1B associado a défice de 25OHD (mutação do gene da 25-hidroxilase)
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1A associado a défice de 1,25(OH)2D (mutação do gene da 1a-hidroxilase)
    • Resistência periférica à vitamina D
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR (mutação do gene VDR)
      • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B com VDR sem alterações
    • Ingestão insuficiente de cálcio
      • Dieta vegetariana
      • Ingestão insuficiente de nutrientes

(ver adiante Quadro 9)

Tratamento

O tratamento de emergência da tetania, nomeadamente no período neonatal, em internamento hospitalar, consiste na injecção IV de gluconato de cálcio a 10% (cálcio elementar <> 9,3 mg/mL) na dose de 5-10 mL ou 1-3 mg/kg ao ritmo de 0,5-1 mL/minuto monitorizando a frequência cardíaca, sem exceder a dose de 20 mg/kg de cálcio elementar. A via IV dose deve ser mantida até calcémia ~8,8 mg/dL e reajustada ulteriormente em função do valor desta, a determinar de 12-12 horas. As situações associadas a calcémia < 8 mg/dL também devem ser tratadas em hospital. A normalização da calcémia poderá surgir entre 2-10 dias após início do tratamento.

O tratamento com cálcio per os deve ser iniciado antes da interrupção IV, e mantido. A dose inicial per os (gluconato ou glucobionato) recomendada é ~500-1.000 mg de cálcio elementar/dia.

Ulteriormente, dada a necessidade de manutenção da terapêutica com cálcio há que reajustar a dose administrada de acordo com a determinação da calcémia 1-3 vezes por semana nos primeiros 3 meses e, depois, de 3-3 meses; para além do objectivo de normalização da calcémia, a calciúria deverá ser mantida entre 4-6 mg/kg/dia.

Poderá haver necessidade de corrigir eventual alcalose e hipomagnesiémia.

Dado que o défice de PTH acarreta uma deficiente produção de 1,25(OH)2D, concomitantemente com o tratamento de emergência, deve ser iniciada a administração de calcitriol oral (1,25- di-hidroxicolecalciferol na dose inicial de 0,25 mcg/24 horas), seguindo-se a dose de manutenção de 0,01-0,10 mcg/24h até o máximo de 1-2 mcg/24h, em duas tomas.

A dose deverá ser reajustada de acordo com a evolução da calcémia. Quando a calcémia for superior a 8,8 mg/dL, dever-se-á reduzir para metade a dose de vitamina D.

Como notas importantes, há que ter em conta as possíveis complicações da terapêutica com vitamina D e metabolitos (hipercalcémia e hipercalciúria, com risco de nefrocalcinose), obrigando a eventuais reajustamentos de doses.

Se surgir hipercalcémia, o tratamento com vitamina D deve ser interrompido durante 3-5 dias, e retomado após normalização daquela.

Nos casos em que se verifiquem valores elevados de fósforo, importa limitar o consumo de alimentos com elevado conteúdo do referido elemento, como o leite, ovos, queijo, amêndoas, etc..

Admite-se que no futuro o tratamento do hipoparatiroidismo seja a administração de PTH biossintética.

2. PSEUDO-HIPOPARATIROIDISMO (OSTEODISTROFIA HEREDITÁRIA de ALBRIGHT)

Definição

No pseudo-hipoparatiroidismo (PHP), ao contrário do hipoparatiroidismo, as glândulas paratiroideias são normais ou hiperplásicas, sintetizando e segregando a PTH. Contudo, verificando-se resistência do túbulo renal à acção da PTH, os níveis séricos desta estão elevados, associando-se hipocalcémia, hiperfosfatémia e défice de calcitriol.#

#De salientar que no conceito lato de PHP se engloba também a situação de PTH biologicamente inactiva. (Quadro 4)

Neste contexto, nem a PTH endógena nem a PTH administrada artificialmente elevam a calcémia ou diminuem a fosforemia.

O termo de PHP surgiu pela primeira vez com Albright ao descrever a osteodistrofia hereditária (caracterizada essencialmente por obesidade, hipocrescimento, anomalias ósseas nas mãos, insuficiência cognitiva), observando que a hipocalcémia e hiperfosfatémia associadas não respondiam à perfusão de PTH.

Aspectos epidemiológicos

Os PHP constituem grupo heterogéneo de doenças caracterizadas pela resistência periférica à acção da PTH (ou pela verificação de PTH inactiva). Tratando-se de afecções muito raras, a fim de se poder avaliar a baixa prevalência, virá a propósito, para comparação, referir a prevalência da doença histórica descrita por Albright (dentro da raridade, a mais frequente): ~0,72 casos/100.000, com inexplicada maior incidência no sexo feminino apesar do modo de transmissão hereditária autossómica. Uma das formas adiante descrita (Ia) ainda é mais rara: incidência de 3,4 casos/milhão/ano, com dupla prevalência no sexo feminino.

 Etiopatogénese

Verificando-se resistência ou insensibilidade do túbulo renal à acção da PTH, surge elevação da PTH.

O receptor da PTH e de outras hormonas necessitam da proteína G estimuladora (Gs) na sua forma heterotrimérica como proteína de ligação intermediária para a transdução transmembranária do sinal, levando à estimulação da produção de cAMP.

O gene GNAS, com 13 exões, localiza-se no cromossoma 20 e codifica a subunidade a da proteína Gs. O referido gene apresenta imprinting nalguns tecidos; nestes, a alteração da proteína Gs conduz a resistência periférica à acção das hormonas que utilizam esta via [PTH, TSH, hormonas hipotalâmicas estimuladoras das gonadotrofinas (GnRH) e da hormona de crescimento (GHRH)]. Noutros casos, e apesar de ser utilizada a mesma via, a resposta hormonal encontra-se mantida (ACTH, CRH, vasopressina).

Existem 2 subtipos principais com características genéticas e clínicas diferentes ainda que com sobreposições entre ambas as formas: pseudo-hipoparatiroidismo Ia e I b.

O pseudo-hipoparatiroidismo tipo Ic é muito semelhante ao Ia.

Os pseudo-hipoparatiroidismos de tipos Ia e Ic devem-se, na maioria dos casos, a mutação inactivadora em heterizigotia no alelo materno do gene GNAS; em 30% dos casos não se detectam mutações. No do tipo Ib não se verifica mutação de gene GNAS; estão em causa, sim, defeitos de metilação ou imprinting bloqueando o alelo materno.

A forma designada por pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo deve-se a mutação do alelo paterno. Na mesma família podem coexistir elementos com pseudo-hipoparatiroidismo Ia e pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo mas não na mesma fratria.

Formas clínicas e exames complementares

Pseudo-hipoparatiroidismos Ia e Ic

Os pseudo-hipoparatiroidismos Ia e Ic associam as alterações fenotípicas características designadas por osteodistrofia hereditária de Albright (OHA) e a resistência a diversas hormonas.

As manifestações clínicas incluem baixa estatura, insuficiência intelectual, alteração do neuro-desenvolvimento de grau variável, obesidade, fácies arredondada, lesões ósseas únicas ou múltiplas, braquidactilia com encurtamento dos 3º, 4º e 5º metacárpicos, 1ª falange distal e/ou 4º e 5º metatársicos, calcificações ectópicas subcutâneas ou na derme, hipoplasia do esmalte dentário, deformações articulares com genu valgum, coxa vara ou cubitus valgus.

A hipocalcémia traduz-se por convulsões ou tetania; ocorre em geral depois dos 3 anos de idade, podendo, no entanto, ser assintomática. O hipotiroidismo concomitante pode preceder a hipocalcémia ou mesmo ser diagnosticado pelo rastreio neonatal. O hipogonadismo é mais frequente no sexo feminino traduzindo-se por atraso pubertário, alterações menstruais ou infertilidade. A velocidade de crescimento deve ser avaliada cuidadosamente a fim de permitir o diagnóstico atempado de défice de GH. A hiperfosfatémia associada à resistência à PTH pode causar alteração da síntese renal de 1,25(OH)2D, com agravamento da hipocalcémia.

Quanto a exames complementares, salientam-se os seguintes resultados: hipocalcémia e hiperfosfatémia associadas a níveis séricos aumentados de PTH e 25(OH)2D normal. Não existe tendência para a hipercalciúria.

A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário e fosfatúria encontra-se abolida, traduzindo a resistência do túbulo proximal à acção da PTH.

Podem existir ainda: hipotiroidismo subclínico (TSH aumentada e FT4 normal) ou franco (TSH aumentada e FT4 diminuída), e sinais laboratoriais de resistência a outras hormonas.

A determinação do cAMP sérico e urinário e da fosfatúria pós-administração subcutânea de PTH permite estabelecer o diagnóstico diferencial das várias formas de pseudo-hipoparatiroidismo.

Por sua vez, o diagnóstico diferencial deste grupo de doenças deve fazer-se com o hiperparatiroidismo secundário, hipomagnesiémia e défice de vitamina D; nestas duas últimas entidades clínicas também se verifica diminuição da capacidade de resposta renal à PTH.

O tratamento é semelhante ao descrito para o hipoparatiroidismo; tendo como objectivo a normalização da calcémia utiliza-se cálcio per os e calcitriol. Nestas formas referidas não existe o risco de nefrocalcinose, pois a resistência renal à PTH limita-se ao túbulo proximal.

Pseudo-hipoparatiroidismo Ib

Nesta forma clínica o aspecto fenotípico é normal, salientando-se apenas braquidactilia moderada. Os níveis séricos de cálcio, fósforo e PTH são sobreponíveis aos verificados no tipo Ia. O nível sérico da proteína G é normal. A resistência periférica está limitada à PTH e TSH, pelo que o quadro clínico é sobreponível ao do hipoparatiroidismo e do hipotiroidismo subclínico. A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário e fosfatúria é nula ou está diminuída.

Pseudo-pseudo-hipoparatiroidismo

Deve-se a mutação inactivadora em heterozigotia do alelo paterno do gene GNAS. Os doentes apresentam alterações fenotípicas semelhantes às verificadas na OHA, mas sem obesidade. Os níveis séricos de cálcio e fósforo são normais (apesar da actividade reduzida da proteína Gs). Os níveis séricos de PTH podem estar ligeiramente elevados. A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário é normal.

Pseudo-hipoparatiroidismo II

Nesta forma clínica verifica-se associação de hipocalcémia a resistência à PTH e a défice de vitamina D. A resposta à administração de PTH com aumento do cAMP urinário encontra-se mantida, não existindo, no entanto, fosfatúria; tais factos sugerem que a resistência à PTH se deve a um defeito a jusante do cAMP. Desconhece-se a causa.

Sobre o tratamento das três últimas formas clínicas, havendo hipocalcémia, aplicam-se as normas definidas para as formas de tipos Ia, Ic e.

3. HIPERPARATIROIDISMO

Definição e importância do problema

O hiperparatiroidismo é uma endocrinopatia em que se verifica excessiva secreção/nível sérico elevado de PTH (valor normal ~14-72 pg/mL), quer por patologia primária das glândulas paratiroideias (adenoma ou hiperplasia <> 50-70% dos casos) – hiperparatiroidismo primário -, quer por mecanismo compensatório para corrigir situações de hipocalcémia crónica – hiperparatiroidismo secundário -, mais frequente.

A verdadeira incidência desta patologia na idade pediátrica é desconhecida, estimando-se na sua forma primária o valor de 1-2 casos/100.000. Considerando-se baixa incidência do hiperparatiroidismo, esta entidade clínica é abordada de modo resumido.

Quando se diagnostica deve admitir-se a hipótese de neoplasia endócrina múltipla (MEN).

Etiopatogénese

O mecanismo pelo qual surge hiperparatiroidismo primário não está completamente esclarecido. Nalguns casos encontram-se alterações genéticas ou moleculares. Em determinadas células paratiroideias foi verificada perda de sensibilidade à concentração normal de cálcio extracelular.

O receptor sensível ao cálcio ligado à proteína G da superfície das ditas células diminui para metade nas células de adenoma em comparação com controlos normais.

A redução do número de receptores pode ser explicada por mutações do gene que faz a codificação. A mutação do gene Ciclin D1/Prad1 leva a uma produção excessiva da proteína ciclina D1, o que determina o surgimento de hiperplasia ou adenoma da paratiroideia. Esta mutação é responsável por 20-40% dos adenomas esporádicos não familiares.

Outras mutações de genes estão implicadas neste processo como as do MEN1, HRPT2, do proto-oncogene RET.

Classificação

O Quadro 8 estabelece uma classificação etiopatogénica das diversas formas clínicas do hiperparatiroidismo na idade pediátrica.

O hiperparatiroidismo secundário surge como resposta a situações caracterizadas inicialmente por hipocalcémia ou hiperfosfatémias de longa duração. (Quadro 8)

QUADRO 8 – Classificação etiopatogénica das formas clínicas do hiperparatiroidismo na idade pediátrica

  Hiperparatiroidismo primário esporádico não familiar

    • Adenoma único
    • Adenomas múltiplos
    • Hiperplasia esporádica
    • Carcinoma
    • Síndromas paraneoplásicos (tumores não paratiroideus secretores de PTH)

Hiperparatiroidismo familiar primário

    • Defeitos funcionais do receptor sensível ao cálcio
      • Hipercalcémia hipocalciúrica familiar
      • Hiperparatiroidismo neonatal grave
    • Anomalias funcionais do receptor da PTH
      • Síndroma de Jansen
    • Mutações de proto-oncogenes
      • Hiperparatiroidismo familiar isolado
      • Hiperparatiroidismo com tumor mandibular
      • Neoplasias endócrinas múltiplas (MEN)

=MEN 1 (Síndroma de Werner)
=MEN 2a (Síndroma de Sipple)

 Hiperparatiroidismo secundário

    • Perda renal de cálcio (tubulopatias, diuréticos)
    • Insuficiência renal
    • Tubulopatias
    • Fármacos (fenobarbital, hidantoínas, tratamento com lítio, furosemida)
    • Défice e alterações do metabolismo da vitamina D
    • Défice de ingestão de cálcio (hepatopatia, celiaquia, má-absorção de cálcio, doença pancreática)
    • Síndroma de má absorção intestinal

Manifestações clínicas e exames complementares

Hiperparatiroidismo primário

A sintomatologia mais comum engloba: fadiga, letargia, cefaleia,

nefrolitíase, poliúria, polidipsia (diabetes insípida nefrogénica), desidratação, hipotonia, anorexia, emagrecimento, má progressão ponderal, náuseas, vómitos, obstipação ou diarreia, dores abdominais (podendo associar-se a pancreatite aguda), dores ósseas, etc..

O diagnóstico estabelece-se habitualmente detectando um nível de PTH elevado num paciente com hipercalcémia assintomática ou intermitente em cerca de 20% dos casos.

Outros achados laboratoriais incluem fosfato sérico baixo, incremento da fosfatase alcalina e do metabolito 1,25-(OH)2 – D3; é frequente uma acidose metabólica hiperclorémica.

Relativamente aos exames radiográficos ósseos convencionais no contexto de hiperparatiroidismo importa referir que se detectam alterações em ~5% dos casos; erosões ósseas subperiósticas nas falanges e quistos na osteíte fibrosa; na abóbada craniana são frequentes focos de rarefação com aspecto granuloso, do tipo “sal e pimenta”.

A absorciometria com raios X/DEXA terá importância para valorizar o grau de compromisso ósseo e a eficácia do tratamento.

A valorização anatómica das glândulas pode ser feita com outros exames imagiológicos: ecografia Doppler e cintigrafia, TAC, RM, PET.

Hiperparatiroidismo secundário

Esta forma clínica encontra-se presente em todas as situações que cursam com hipocalcémia crónica, como insuficiência renal, raquitismos carencial e não carencial, síndromas de má absorção, doenças hepatobiliares, acidose tubular ou síndroma de Fanconi.

Tratamento

A base essencial do tratamento a curto prazo, quer nas formas primárias, quer secundárias, é a correcção efectiva da hipercalcémia.

Nos casos ligeiros, poderá apenas ser necessário diminuir a ingestão de cálcio e vitamina D. Nos casos associados a imobilização, dever-se-á promover, desde que possível, o reinício de mobilização.

Nos casos graves, deverá ser iniciada terapêutica IV com:

Hiper-hidratação com soro fisiológico (expansão do compartimento líquido extracelular com soro fisiológico IV na dose de 10-20 mL/kg, seguindo-se administração de diurético para aumentar a natriurese e a calciúria); em geral está indicada furosemida IV na dose de 1-2 mg/kg cada 6-8 horas, salientando-se que a terapêutica com diurético deverá ser realizada de forma muito cautelosa e em regime de curta duração pelo risco de agravamento da nefrocalcinose.

Em casos seleccionados pode ainda ser necessário administrar:

  • Pamidronato
    Dose: 0,5-1 mg/kg IV em 4-6h.
    O pamidronato pertence ao grupo dos bifosfonatos, fármacos que actuam a nível ósseo inibindo a reabsorção; sendo relativamente recentes, não há ainda grande experiência da sua utilização na idade pediátrica. A diminuição da calcémia ocorre em 12-24h, mantendo-se os seus efeitos durante 2-4 semanas.
  • Corticóides
    Os corticóides inibem a síntese de 1,25(OH)2D3 sendo utilizados nos casos de doença granulomatosa cursando com hipercalcémia. O mais utilizado é a prednisolona.
  • Calcitonina
    A calcitonina na dose de 4-8 UI/kg cada 6-12 horas por via SC ou IM, associada ou não à prednisolona, deverá ser reservada para situações mais graves.
  • Hemodiálise ou diálise peritoneal
    Este procedimento é indicado nos casos extremamente graves com hipercalcémia resistente à terapêutica, condicionando o prognóstico vital.
  • Paratiroidectomia
    Esta intervenção cirúrgica (paratiroidectomia de uma só glândula) está indicada na quase totalidade de casos de hiperparatiroidismo primário. A paratiroidectomia subtotal ou total com autotransplante está indicada nos casos de hiperplasia ou doença glandular múltipla.

4. RAQUITISMO NÃO CARENCIAL

Definições

Classicamente considera-se que a designação de raquitismo resistente à vitamina D inclui um conjunto de afecções observadas na criança que, tendo recebido profilaxia antirraquítica, evidenciam sinais clínicos e radiológicos de raquitismo carencial e não respondem a doses terapêuticas.

Outras designações têm sido adoptadas por diversos autores para caracterizar genericamente tal situação clínica tais como raquitismo primário, raquitismo dependente da vitamina D ou pseudocarencial, utilizados muitas vezes impropriamente como sinónimos.

O termo pseudocarencial compreende os raquitismos que respondem somente ao cálcio ou a altas doses de vitamina D; o termo dependente refere-se às situações clínicas que respondem a doses suprafisiológicas de vitamina D.

Na continuidade do capítulo sobre “Carências vitamínicas e minerais” – Parte XI, integrando os chamados raquitismos carenciais, procede-se neste a uma abordagem sucinta dos raquitismos não carenciais (a maioria).

Etiopatogénese e classificação

O Quadro 9, já explanado na totalidade ou parcialmente em capítulos anteriores, diz respeito a uma classificação dos raquitismos com base etiopatogénica, permitindo de modo integrado a compreensão e a ordenação das formas carenciais (de raquitismo calciopénico associado a défice de vitamina D) e não carenciais (as restantes: calciopénico, associado a alterações do metabolismo da vitamina D, resistência periférica à vitamina D, e ingestão insuficiente de cálcio; e fosfopénico, associado a ingestão insuficiente de fosfato, a perda renal de fosfato associado a aumento de FGF23 e a perda renal de fosfato associado a hipercalciúria).

QUADRO 9 – Classificação etiopatogénica dos raquitismos

A – Raquitismo calciopénico

Défice de vitamina D

    • Prematuridade
    • Défice nutricional por ingestão insuficiente de nutrientes
    • Exposição solar inadequada
    • Má-absorção intestinal associada a doença celíaca, fibrose quística, pancreatite ou outras causas de esteatorreia
    • Doença hepática levando a alteração da produção de 25-hidroxi-vitamina D
    • Medicamentos (corticóides, anticonvulsantes)

Alterações do metabolismo da vitamina D

    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1B associado a défice de 25OHD (mutação do gene da 25-hidroxilase)
    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 1A associado a défice de 1,25(OH)2D (mutação do gene da 1a-hidroxilase)

Resistência periférica à vitamina D

    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR (mutação do gene VDR)
    • Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B com VDR sem alterações

Ingestão insuficiente de cálcio

    • Dieta vegetariana
    • Ingestão insuficiente de nutrientes

B – Raquitismo fosfopénico

Ingestão insuficiente de fosfato

    • Baixo peso de nascimento
    • Má absorção intestinal
    • Ingestão prolongada de antiácidos

 Perda renal de fosfato associada a aumento de FGF23

    • Raquitismo hipofosfatémico autossómico dominante (mutação do gene FGF23)
    • Raquitismo hipofosfatémico autossómico recessivo 1 (mutação do gene DMP1)
    • Raquitismo hipofosfatémico autossómico recessivo 2 (mutação do gene ENPP1)
    • Raquitismo hipofosfatémico dominante ligado ao X (mutação do gene PHEX)
    • Síndroma de McCune-Albright (mutação do gene GNAS)
    • Displasia osteoglofónica (mutação do gene FGFR1)
    • Condrodisplasia metafisária de Jansen (mutação do gene PTH1R)
    • Raquitismo tumoral
    • Síndroma do nevus sebáceo linear

Perda renal de fosfato associada a hipercalciúria

    • Raquitismo hipofosfatémico hereditário com hipercalciúria (mutação do gene SLC34A3)
    • Acidose tubular renal de tipo distal
    • Doença de Dent (mutação do gene CLCN5)
    • Síndroma oculocerebrorrenal de Lowe (mutação do gene OCRL1)
    • Síndroma de Fanconi primário ou secundário (cistinose, galactosémia, etc.) com perdas renais de glucose, fosfato, aminoácidos

Formas clínicas

Do Quadro 9 foram seleccionadas as seguintes formas clínicas:

Raquitismos calciopénicos
Raquitismo vitamina D dependente tipo 1β associado a défice de 25, OHD3.

É causado por mutação do gene CYP2R1 localizado no cromossoma 11, codificando a 25-hidroxilase hepática. As manifestações clínicas são semelhantes às do raquitismo carencial comum. A calcémia está no limite inferior do normal e a fosfatémia e o 25OHD têm valores séricos baixos. O tratamento consiste em administrar vitamina D em altas doses.

Raquitismo vitamina D dependente tipo 1α associado a défice de 1,25(OH)2D3.

Surge por mutação autossómica recessiva do gene CYP27B1 localizado no cromossoma 12, codificando a 1α-hidroxilase renal.

A gravidade clínica é muito variável; pode manifestar-se muito precocemente em lactentes com hipocalcémia, convulsões, fracturas, hipotonia e miopatia marcadas, hipocrescimento ou dor e deformidades articulares e ósseas.

O padrão laboratorial é: ↓ calcémia e fosfatémia; fosfatase alcalina ↑­; PTH ­­­↑­↑­↑­; 25OHD normal; 1,25(OH)2D3 ↓↓↓.

Se for instituída terapêutica com altas doses de vitamina D, os níveis séricos de 1,25(OH)2D podem ser “normais”, mas desadequados face à hipocalcémia, hipofosfatémia e aumento de PTH. Os sinais radiológicos ósseos são semelhantes aos do raquitismo carencial comum. O tratamento inclui: calcitriol na dose de 1-3 μg/dia ou α-calcidiol 4-6 μg/dia até à correcção das alterações bioquímicas e radiológicas, passando depois a 0,5-1 μg/dia (calcitriol) ou 1-2 μg/dia (1α-calcidiol).

A calcémia normaliza habitualmente em poucos dias e os primeiros sinais de cura radiológica, ao fim de 2-3 semanas, sendo esta completa ao fim de 9-10 meses.

Raquitismo vitamina D dependente tipo 2A associado a alteração do VDR.

De transmissão AR, é causado por mutação autossómica recessiva do gene do receptor da vitamina D (VDR) localizado no cromossoma 12. Esta forma, muito grave durante os primeiros meses de vida, está associada a convulsões por hipocalcémia, hipotonia, diminuição da força muscular, dores ósseas, cárie dentária grave ou hipoplasia do esmalte e hipocrescimento; em muitos casos, associa-se a diminuição da pilosidade, havendo mesmo em alguns doentes alopécia total. Os exames laboratoriais evidenciam: calcémia e fosfatémia baixas; fosfatase alcalina aumentada e PTH muito elevada; 25(OH)D normal e 1,25(OH)2D muito elevada. O tratamento faz-se com doses farmacológicas de vitamina D:

  • vitamina D3: 5.000-40.000 UI/dia;
  • 1α- calcidiol: 6-90 μg/dia;
  • calcitriol: 17-20 μg/dia.

Se não houver resposta, dever-se-á administrar altas doses de cálcio per os a fim de promover a sua absorção passiva (que não necessita de vitamina D), podendo mesmo ser necessária a administração IV de cálcio para se conseguir repor a calcémia.

Com a normalização da calcémia são revertidas todas as alterações associadas ao raquitismo, à excepção da alopécia.

Raquitismo vitamina D dependente tipo 2B sem alterações do gene VDR.       

É causado por ribonucleoproteína nuclear que interfere com a interacção entre o VDR e o DNA nuclear. A sintomatologia e os resultados dos exames complementares são semelhantes aos da forma anterior

Raquitismos hipofosfatémicos

Estes raquitismos englobam um largo espectro de doenças, congénitas ou adquiridas, com um efeito directo sobre a homeostase do metabolismo do fosfato. Estão descritas várias formas de raquitismo hipofosfatémico: AR, AD, ou dominantes ligados ao X; a sua fisiopatologia não se encontra ainda completamente esclarecida. Constitui o grupo etiológico mais frequente depois do raquitismo carencial.

As manifestações clínicas são as do raquitismo por défice nutricional. O diagnóstico pode ser difícil, pois muitas vezes só é sugerido quando a terapêutica com vitamina D é ineficaz.

O quadro laboratorial dos raquitismos hipofosfatémicos associa calcémia normal, hipofosfatémia, PTH normal ou alta, fosfatase alcalina elevada e fosfatúria aumentada com diminuição da taxa de reabsorção renal de fosfato.

Forma dominante ligada ao cromossoma X

É a forma mais frequente de raquitismo hereditário, ocorrendo em 1:20.000 indivíduos.

Causada por mutação inactivadora do gene PHEX (Phosphate-regulating gene with homologies to endopeptidases on the X chromosome) e que causa, por mecanismo ainda desconhecido, aumento de FGF23.

A gravidade da doença não se correlaciona com a gravidade da mutação causadora e é também variável dentro da mesma família. Em 30% dos casos podem existir mutações esporádicas.

O perfil laboratorial inclui:

    • Hipofosfatémia instalada precocemente, na maioria dos casos durante o primeiro mês de vida;
    • Níveis baixos de 1,25(OH)2D3 ou “em discordância” com a hipofosfatémia; e
    • Fosfatase alcalina elevada.

Clinicamente traduz-se por baixa estatura com encurtamento desproporcionado dos membros inferiores e lesões ósseas (genu varum, coxa vara); marcha oscilante, abcessos dentários espontâneos sem cáries e queda de peças dentárias, fusão precoce das suturas cranianas causando alteração da forma do crânio. Não existe habitualmente tetania, hipotonia, miopatia ou diminuição da força muscular.

Nos adultos podem existir entesopatia (calcificação de tendões, ligamentos e cápsulas articulares), pseudofracturas, dores articulares, osteoartrite e hipoacúsia neurossensorial.

O tratamento desta forma dominante ligada ao cromossoma X inclui:

  • Sais de fosfato: início com 30 mg/kg/dia ou 1000 mg/dia de fósforo elementar, em 4 tomas, a última das quais antes de deitar, aumentando progressivamente as doses até 50 mg/kg/dia ou 2000 mg/dia U (doses superiores comportam risco de hiperfosfatémia mantida com risco de hiperparatiroidismo secundário e terciário e hipertensão arterial.

Não se deve ingerir leite simultaneamente pela interferência com a absorção do fosfato.

  • Calcitriol: 30-70 ng/kg/dia ou 0,5-1,0 μg/dia de 1,25(OH)2D em 2 tomas;
  • 1α-calcidiol: início com 0,3 μg/dia em 2 tomas, aumentando progressivamente até se chegar à dose terapêutica de 1 μg/dia; esta dose poderá, se necessário, ser aumentada até 1,5-2,5 μg/dia; na puberdade poderá ser necessário administrar doses ainda maiores (3-4 μg/dia).

O tratamento deverá ser mantido até ao fim do crescimento estatural.

Dado o risco acrescido de nefrocalcinose, a vigilância da terapêutica deverá ser rigorosa, assim:

  • Trimestralmente – determinar os níveis séricos de creatinina, cálcio, fosfato, fosfatase alcalina, e urinários de creatinina e cálcio em urina de 24 horas;
  • Semestralmente – determinar os níveis séricos de PTH e realizar ecografia renal para pesquisa de nefrocalcinose.

Objectivos terapêuticos:

  • Fosfatémia em jejum 1 mmol/L;
  • Calcémia < 2,6 mmol/L;
  • Calciúria < 0,1 mmol/kg/dia;
  • Níveis séricos de fosfatase alcalina no limite superior do normal.

A PTH elevada sugere hipertratamento com fosfato ou dose insuficiente de vitamina D; tal implica aumento da dose de calcitriol e/ou diminuição da dose de fosfato. Se existir hipercalciúria dever-se-á diminuir a dose de calcitriol.

Forma de raquitismo hipofosfatémico associada a aumento do FGF23

O quadro clínico clássico é o de tumor segregando FGF23 levando a raquitismo (e osteomalácia no adulto). O fenótipo clínico e laboratorial é sobreponível ao da forma dominante ligada ao cromossoma X: níveis baixos de 1,25(OH)2D3 ou “em discordância” com a hipofosfatémia e fosfatase alcalina elevada.

O tratamento curativo é a excisão do tumor. Se tal não for possível, procede-se à administração de sais de fosfato aplicando o esquema descrito na forma ligada ao X.

Raquitismo hipofosfatémico hereditário com hipercalciúria

Deve-se a mutação do gene SLC34A3 localizado no cromossoma 9 o qual codifica o cotransportador renal de sódio-fosfato. Os sinais clínicos de raquitismo podem ser graves e precoces.

O perfil laboratorial caracteriza-se por normocalcémia, hipofosfatémia, fosfatase alcalina aumentada, PTH normal, 1,25(OH)2D3 aumentada e hipercalciúria sem quaisquer outras perdas renais.

O tratamento inclui a administração de sais de fosfato, aplicando o esquema descrito na forma ligada ao X. Os análogos da vitamina D não estão indicados dado o risco de nefrolitíase.

Síndroma de McCune-Albright/Displasia fibrosa

Esta síndroma resulta de mutação activadora pós-zigótica com mosaicismo, do gene GNAS1 localizado no cromossoma 20, o qual codifica a subunidade a da Proteína G.

As alterações verificadas em cada caso são muito variáveis dependendo dos tecidos afectados pelo mosaicismo e do grau do seu atingimento. Admite-se que, quanto mais precoce no desenvolvimento embrionário for a mutação, tanto mais grave será o quadro clínico associado.

A displasia fibrosa deve-se à proliferação e diferenciação anormal das células do estroma da medula óssea; estas células pré-osteoblásticas anormais produzem tecido fibroso (tecido ósseo anormal) e interleucina 6 que, por sua vez, estimula os osteoclastos e a reabsorção óssea levando à substituição do osso normal por tecido conjuntivo fibroso. Estas lesões quísticas provenientes da medula expandem-se para o córtex ósseo que se torna esclerótico e circundado de osso cortical fino.

As manifestações clínicas na forma clássica integram a tríade de displasia fibrosa poliostótica, máculas hiperpigmentadas tipo “café com leite” e poliendocrinopatia (hipertiroidismo, síndroma de Cushing, gigantismo/acromegália, etc.). As manifestações iniciais podem ser dores ósseas, deformações ósseas ou fracturas patológicas; são também frequentes as pseudoartroses.

Existe, pois, um largo espectro clínico variando entre formas mais ligeiras, com atingimento de um único osso (displasia fibrosa monostótica, por vezes assintomática), e formas mais graves atingindo, não só vários ossos, em geral ossos longos e tendência para compromisso predominante num dos lados do corpo originando assimetrias (displasia fibrosa poliostótica), mas também estando associadas a puberdade precoce. O atingimento dos ossos do crânio e face pode levar a cegueira ou surdez por compressão nervosa e também a assimetria craniofacial.

As máculas pigmentadas localizam-se, muitas vezes, na face posterior do pescoço, sendo classicamente descritas na literatura norte-americana como “coast of Maine” por apresentarem bordos irregulares, por oposição às da neurofibromatose que apresentam bordos regulares, do tipo “coast of California”.

O perfil laboratorial inclui:

  • Hipofosfatémia instalada precocemente, na maioria dos casos durante o primeiro mês de vida;
  • Níveis baixos de 1,25(OH)2D3 ou “em discordância” com a hipofosfatémia;
  • Fosfatase alcalina elevada.

Em 50% dos casos, há produção de FGF23.

As imagens radiológicas ósseas evidenciam padrão “quístico” e aspecto símile “vidro martelado”.

O tratamento é semelhante ao descrito para a forma ligada ao X (ver atrás). O tratamento com bifosfonato diminui a dor e o risco de fractura.

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DOENÇAS DA TIROIDEIA

Importância do problema

A tiroideia (ou tiróide) e as hormonas tiroideias (HT) têm um papel crucial no metabolismo energético, na mielinização do sistema nervoso central (SNC), na regulação do crescimento e na função de múltiplos órgãos. Importa recordar, a propósito, o papel da hormona segregada pelo lobo anterior da hipófise estimulando a produção de hormonas tiroideias; trata-se da TSH hipofisária (thyroid stimulating hormone/tirotrofina, tirotropina ou tirostimulina).*

As crianças, em especial o recém-nascido (RN) e o lactente, são extremamente vulneráveis às alterações da função tiroideia. O diagnóstico e tratamento precoces são, nestas idades, essenciais para prevenir consequências irreversíveis tais como a lesão permanente do SNC com impacte negativo no neurodesenvolvimento.

As doenças da tiroideia representam, sem dúvida, as afecções endócrinas mais frequentes na idade pediátrica, sendo a sua etiologia e apresentação clínica muito diferentes das do adulto, o que implica idealmente uma abordagem, pelo pediatra com experiência em endocrinologia.

*Para facilitar a compreensão deste processo de interacção bidireccional SNC-tiróide, recorda-se igualmente o significado de certas siglas: GH (growth hormone), hormona de crescimento ou somatotrópica, somatotrofina, ou somatotropina; GH-RIH (growth hormon release inhibiting hormone), hormona inibidora da libertação da GH ou somatostatina; SRH (somatotropin releasing hormone), hormona de estimulação da libertação da somatotropina; SRIF (somatotropin release inhibiting hormone), somatostatina ou factor de inibição da libertação da somatotropina).

Anatomia e histologia

A tiroideia é uma das glândulas endócrinas de maiores dimensões, pesando cerca de 15 gramas no adulto. É constituída por dois lobos com cerca de 2,5 cm de maior diâmetro e 4 cm de comprimento, unidos por uma fina banda, o istmo. Ocasionalmente e especialmente se a glândula se encontrar aumentada de volume, um terceiro lobo piramidal surge, em forma de “dedo” projectado para cima a partir do istmo.

A glândula é constituída por unidades esféricas justapostas, denominadas folículos, envolvidas por uma rede capilar densa. O interior dos folículos está preenchido por um colóide proteico claro que é o maior constituinte da glândula. A tiróide contém também as células parafoliculares ou células C, produtoras de calcitonina que se diferenciam das células foliculares por nunca se situarem no bordo do lume folicular.

Ontogénese e fisiologia

O tecido tiroideu confina-se e está presente em todos os vertebrados. A associação filogenética com o tracto gastrintestinal é evidente numa série de funções, nomeadamente na capacidade de metabolizar o iodo e incorporá-lo em diferentes compostos orgânicos.

No ser humano, o primeiro esboço embrionário da glândula tiroideia surge pelo vigésimo dia de gestação como um espessamento endodérmico da linha média. A partir desta fase, a glândula vai progredindo por migração caudal até à sua posição final, pré-traqueal.

Simultaneamente, enquanto a migração da glândula tiroideia embrionária ocorre, as células foliculares e parafoliculares vão-se diferenciando. A síntese de HT requer a correcta expressão de genes relacionados com proteínas específicas da célula tiroideia. Para além da tiroglobulina (Tg) e tiroperoxidase (TPO), o receptor da TSH (TSHR) é também fundamental para a transdução do efeito extracelular da tirotrofina (TSH), necessário para uma síntese hormonal eficaz. Para além da TSH, existem factores de transcrição, incluindo NKX2-1 (TTF-1), PAX8, FOXE1 (TTF-2) e FOXM1 (HNF-3) essenciais para conseguir a normal diferenciação das células foliculares tiroideias e dar início à hormonogénese. O iodo é um elemento fundamental para a síntese de HT, sendo o sódio utilizado como instrumento para as bombas de sódio geradoras de energia que é necessária para a entrada do iodo. Este processo de importação simultânea de iodo e sódio do meio extracelular (sangue) para o meio intracelular, é realizado por uma proteína de membrana das células foliculares, a natriumiodine symporter – NIS, codificada pelo gene SLC5A5.

Eis algumas etapas fundamentais do desenvolvimento tiroideu:

  • – pela 8ª semana, inicia-se a síntese de Tg;
  • – a captação de iodo e formação de colóide e tiroxina (T4) verifica-se pela 12ª semana de gestação, traduzindo maturação e funcionamento da tiroide fetal a partir 2º trimestre.

A normal morfogénese e migração da glândula tiroideia são TSH-independentes, uma vez que o eixo hipotálamo-hipofisário só inicia a produção de TSH fetal pelas 14 semanas. Provavelmente como resultado da maturação hipotalâmica e aumento da secreção da tyrotropin-releasing hormone (TRH), cerca das 20 semanas, os valores de TSH elevam-se na circulação fetal e mantêm-se superiores aos níveis de TSH materna. Estes níveis mais elevados parecem reflectir um “set-point” mais elevado do feed-back negativo durante a vida fetal.

Devido à elevada actividade da tiroxina-deionidase tipo III (D3) na unidade útero-feto-placentária, a T3 e T4 são inactivadas, levando a níveis de rT3 fetal elevados nos 1º e 2º trimestre, mantendo-se os níveis de T4 e T3 fetais adequados. Por outro lado, durante o 1º trimestre, as HT maternas são transferidas de forma maciça para o feto, assegurando os níveis de HT necessárias ao desenvolvimento fetal, diminuindo progressivamente até ao final da gravidez.

Assim se compreende que na gravidez a síntese de HT maternas aumente entre 20-40%. Este aumento deve-se ao aumento do volume plasmático, ao aumento de thyroxine-binding globulin (TBG) provocado pelo aumento dos estrogénios, com diminuição relativa das fracções livres e à elevada actividade da D3. Como resultado, as necessidades de iodo também aumentam associadas ao facto de surgir uma elevação da taxa de filtração glomerular renal com aumento da depuração urinária de iodo durante este período. Por esta razão, é obrigatório proceder a suplementação de iodo na gravidez. A não suplementação pode induzir hipotiroidismo na grávida e no feto, como se verificou em áreas de défice de iodo endémico ou com suplementação insuficiente.

Após o nascimento, observa-se a seguinte evolução: A TSH sobe 2-4 horas após o parto (resultado do estresse e arrefecimento) até valores de 60-80 mU/mL. Esta elevação de TSH é seguida por um marcado aumento da T3 e T4, as quais atingem valores de hipertiroidismo às 24 horas de vida (T4 : 15-19 mcg/dL) – “Hipertiroidismo fisiológico”. Como consequência, e através de mecanismo de retrocontrolo negativo, a TSH diminui ao fim de aproximadamente 48 horas para valores de 8 mU/mL.

No pré-termo, o eixo hipotálamo-hipófise-tiróide está imaturo, o que se traduz por TSH, T4 e T3 diminuídas. Os níveis de TBG, T4 total e T4 livre correlacionam-se com a idade gestacional. Também no parto, a subida de TSH não é tão evidente como nos RN de termo, e em caso de estresse respiratório ou défice nutricional, a TSH está ainda mais reduzida, podendo a T4 e especialmente a T3 caírem para níveis inferiores ao normal.

É pois fundamental ter em consideração estas variações hormonais perinatais na avaliação da função tiroideia, tanto em RN de termo como pré-termo. Uma interpretação errada dos valores pode induzir falsos diagnósticos de hipertiroidismo ou falha na detecção do hipotiroidismo. Os valores de referência para as HT estabelecidos de acordo com a idade e sexo, são valiosos instrumentos na abordagem clínica da função tiroideia da criança e adolescente.

Neste capítulo são abordadas sucintamente as afecções tiroideias com as quais o pediatra e o clínico geral mais frequentemente se defrontam.

1. HIPOTIROIDISMO

Definição e etiopatogénese

O hipotiroidismo é uma entidade clínica resultante da síntese ou acção inadequadas de HT para as necessidades dos tecidos e sistemas orgânicos.

A síntese de HT requer uma glândula tiroideia com desenvolvimento normal, um eixo hipotálamo-hipofisário funcionante e uma captação de iodo adequada.

A TRH e a somatostatina* hipotalâmicas controlam a libertação de tirotrofina hipofisária (TSH). Esta, ligando-se ao receptor da TSH na glândula tiroideia, estimula a produção e libertação de L-tiroxina (T4) e em menor quantidade de tri-iodotironina (T3). A T4 é convertida perifericamente em T3, sendo esta a forma mais activa e a responsável pela maioria dos efeitos fisiológicos. Níveis séricos elevados de HT, inibem a secreção de TRH e TSH e, consequentemente, de HT através do sistema de retrocontrolo negativo.

Dependendo da localização da lesão, o hipotiroidismo pode ser primário (causa tiroideia) ou secundário (causa central), podendo também ser congénito ou adquirido; e transitório ou permanente (Quadro 1). A causa mais frequente de hipotiroidismo congénito é a agenésia da glândula. A causa mais comum de hipotiroidismo adquirido é a doença auto-imune da tiroideia designada por “tiroidite de Hashimoto”. A resistência periférica às HT é rara, correspondendo, na maior parte das vezes, a mutações nos genes dos receptores periféricos da T3. Neste caso, o eixo está intacto (provas de TRH e TSH estão normais), e os valores de HT estão muitas vezes normais.

* A somatostatina ou SRIF – Somatotropin release inhibiting factor – diminui a concentração plasmática da hormona do crescimento (GH) ou somatotrofina, e suprime a libertação de TSH.

Relativamente ao hipotiroidismo primário, de causa congénita, em 90% dos casos deve-se a disgenésias da tiroide (agenésia, hemiagenésia ou ectopia) que correspondem a situações esporádicas. As restantes causas são raras e incluem: – os erros da síntese hormonal (disormonogénese); – as formas transitórias que ocorrem durante a gravidez, devido a anti-corpos maternos ou a fármacos que atravessam a placenta. Está demonstrado que alguns casos de disgenésia da tiroideia estão associados a mutações em genes envolvidos no desenvolvimento da tiroideia (TTF1, TTF2, PAX 8 e o gene do receptor da TSH). O modo de transmissão pode ser autossómico dominante ou autossómico recessivo; ou ainda tratar-se de haploinsuficiência.

Os defeitos da hormonogénese são situações de transmissão hereditária autossómica recessiva. A causa mais frequente deve-se a uma mutação no gene da tiroide-peroxidase, responsável pela oxidação do iodo necessária para a síntese de HT. A síndroma de Pendred (surdez congénita e bócio por defeito da organificação do iodo), uma das situações associadas a defeito da hormonogénese mais estudadas, está associada a uma mutação do gene SLC26A4, codificador da pendrina, proteína transportadora de aniões.

 O hipotiroidismo primário, de causa adquirida, surge mais tarde ao longo da infância e adolescência. A sua etiologia é variada, sendo as causas mais importantes o défice de ingestão de iodo, e nas regiões do globo em que o iodo na dieta é suficiente, a tiroidite crónica auto-imune ou doença de Hashimoto (Quadro 1). Esta última surge habitualmente durante a adolescência podendo, no entanto, ter início aos 6-9 meses de idade com sintomas mais subtis.

QUADRO 1 – Classificação e alterações bioquímicas do hipotiroidismo em idade pediátrica

HIPOTIROIDISMOT4 LT3 LTSHCAUSAS
Primário congénito
DisgenésiaTotal ou parcial ausência da glândula
DisormonogéneseDefeito na síntese da HT
TransitórioFactores maternos
Primário adquirido
Tiroidite de HashimotoTiroidite crónica auto-imune
Anticorpos receptor TSHAnticorpos receptor da TSH
Défice de iodoDiminuição da síntese de T4 e T3
Drogas/NInibição da libertação/síntese de TRH, TSH, T4 e T3
AblaçãoTiroidectomia, I131
Secundário/central congénito
Hipopituitarismo/NAlterações no desenvolvimento do hipotálamo/hipófise
Défice isolado de TSHMutação da subunidade β da TSH ou do receptor TRH
Secundário/central adquirido
Hipopituitarismo/NLOE, traumatismos, infecção, doenças infiltrativas

É mais frequente no sexo feminino e em crianças com outras doenças auto-imunes, nomeadamente diabetes mellitus, síndroma poliglandular auto-imune, cromossomopatias (síndroma de Down, síndroma de Klinfelter, síndroma de Turner) e doenças metabólicas. Está demonstrado que os indivíduos portadores dos genótipos do human leucocyte antigen (HLA) DR3, 4 e 5 apresentam uma maior susceptibilidade para a doença. A patogénese da tiroidite de Hashimoto está associada à destruição de células da tiroideia mediada por células linfocitárias T citotóxicas e libertação de citocinas inflamatórias. A imunidade humoral, mediada por auto-anticorpos antiroideus tem um papel secundário na patogénese, sendo insuficiente para causar alterações clínicas. Os sintomas de hipotiroidismo só surgem quando 90% da glândula se encontra destruída. O défice de ingestão de iodo é muito frequente nas regiões montanhosas do globo (Alpes, Andes, Himalaias etc.), onde o solo é muito pobre em iodo.

O termo bócio endémico está reservado para o bócio causado por défice de iodo que afecte 10% da população. O défice de ingestão de iodo raramente causa hipotiroidismo, sendo o bócio a única manifestação clínica da doença. Determinadas drogas podem causar hipotiroidismo por inibição da TRH, TSH ou da síntese de HT. Os glucocorticóides e a dopamina inibem a TRH, e o lítio bloqueia a síntese de HT. A amiodarona interefere com a função tiroideia a diferentes níveis: pode actuar como agonista dos receptores da TSH na glândula tiroideia diminuindo a síntese de T3 e T4 e pode ter efeito nos tecidos periféricos inibindo a entrada de T4 e T3.

O hipotiroidismo secundário (ou central) de causa congénita ocorre por défice de TSH ou TRH, na maioria das vezes, num contexto de hipopituitarismo, em que outras hormonas hipofisárias estão deficitárias (ex: hormona do crescimento e gonadotrofinas). O défice isolado de TSH ou TRH é muito raro e resulta de mutações no gene da TRH, do seu receptor, ou no gene codificafor da subunidade β da TSH. As mutações do gene PIT1 e PROP1 levam a defeitos na organogénese da hipófise e consequente pan-hipopituitarismo. O hipotiroidismo central isolado pode observar-se em RN prematuros com hipotiroxinemia transitória por imaturidade do eixo HH-tiroideu.

O hipotiroidismo secundário (ou central) de causa adquirida, resulta habitualmente de doenças hipotalâmicas e/ou hipofisárias. Associam-se a outros défices hormonais causados por tumores cranianos, enfarte, irradiação, trauma, infecção ou inflamação. Uma vez que a glândula tiroideia tem capacidade para sintetizar HT na ausência de TSH, o hipotiroidismo central não é tão grave como o hipotiroidismo de causa primária.

Aspectos epidemiológicos

O hipotiroidismo congénito tem uma incidência variável de acordo com a área geográfica, estimando-se em média 1/3.500, sendo 2 vezes mais frequente no sexo feminino. As causas de hipotiroidismo congénito são na grande maioria primárias: disgenésia da tiroideia na proporção de 1/4.000; disormonogénese ~1/30.000 e hipotiroidismo transitório ~1/40.000. Apenas 5-10% dos casos de hipotiroidismo congénito são secundários a uma causa central. A tiroidite de Hashimoto é mais frequente no sexo feminino, numa proporção de 4/1. Quanto ao défice de iodo, estima-se que esta situação afecte cerca de 200 milhões de pessoas ao nível do globo.

Manifestações clínicas

O hipotiroidismo pode afectar todos os órgãos e sistemas. As manifestações clínicas são independentes da causa subjacente mas dependentes da idade de aparecimento e do grau do défice hormonal. A existência ou não de história familiar de doença tiroideia ou da hipófise é importante para o diagnóstico. Os sinais e sintomas podem ser subtis (estão descritos casos assintomáticos) nos primeiros 2 meses de vida e incluem a má progressão estaturo-ponderal, dificuldades alimentares, icterícia, hipotonia, macroglossia, fácies grosseiro, hernia umbilical e defeitos cardíacos congénitos. Se não tratado nos primeiros 3 anos de vida, o hipotiroidismo deixa marcas irreversíveis no desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC) – com défices cognitivos graves. Por isso o rastreio do hipotiroidismo congénito faz parte dos programas de rastreio no período neonatal em quase todo o mundo, sendo fundamental para o diagnóstico precoce (identificação da doença antes do início de qualquer sintomatologia) desta doença.

Em Portugal, o diagnóstico precoce do hipotiroidismo congénito neonatal, associado ao rastreio da fenilcetonúria e doutras doenças hereditárias metabólicas, é o único programa de rastreio de doenças infantis realmente eficaz. Também conhecido pelo teste do “pézinho”, é realizado entre o 3º e o 6º dia de vida e consiste no doseamento de TSH (análise de sangue capilar feita actualmente no Instituto Nacioinal de Saúde Doutor Ricardo Jorge-Porto). Em caso de dúvida ou suspeita, doseia-se a T4. É importante referir que mesmo em RN com TSH e T4 normais, poderá vir a desenvolver-se hipotiroidismo nas primeiras semanas ou nos primeiros meses de vida. Assim, um segundo teste de diagnóstico precoce deve ser realizado nos seguintes casos: quando a colheita ocorre antes do 3º dia de vida, nos RN pré-termo com < 37 semanas, nos RN de baixo peso, em gémeos, em RN em estado crítico, e nos submetidos a transfusões e/ou medicados com agentes tópicos com iodo ou com fármacos com interferência na função tiroideia (dopamina, glucocorticóides, etc.). A Figura 1 exibe fácies de lactente com quadro clínico hipotiroidismo na era pré-rastreio neonatal no nosso país.

FIGURA 1. Fácies inexpressiva de lactente com hipotiroidismo congénito

Na criança mais velha, os sinais predominantes podem ser atraso do desenvolvimento psicomotor, baixa estatura, atraso na maturação óssea e na dentição, miopatia e hipertrofia muscular, cansaço, hipotonia, pele seca e atraso pubertário. O bócio, é um sinal frequente na tiroidite de Hashimoto.

Em casos raros, o hipotiroidismo primário grave pode levar a aumento da glândula mamária na rapariga e a aumento do volume testicular no rapaz. O mecanismo exacto é ainda desconhecido mas uma das teorias é a de que a TSH em excesso estimula o receptor da follicle stimulating hormone (FSH) a nível das gónadas. Estas crianças, apresentam desaceleração do crescimento e atraso da maturação óssea, contrariamente ao tipicamente encontrado na puberdade precoce. A estimulação das células produtoras de prolactina pela TSH em excesso leva por vezes ao aparecimento de galactorreia. A presença de prolactina em circulação vai inibir por retrocontrolo negativo a LH, mas não a FSH.

No pré-termo é frequente encontrar hipotiroxinémia com valores de TSH normais. Trata-se de uma alteração transitória que desaparece aos 2 meses de vida. O cretinismo é um termo histórico, que se refere à constelação de défices cognitivos e físicos consequentes do hipotiroidismo não tratado na criança. Devem fazer parte do diagnóstico diferencial de hipotiroidismo neonatal com a glândula tiroideia “in situ”, a síndroma de Down, a síndroma de Pendred com ou sem bócio, e o pseudo-hipoparatiroidismo.

Exames complementares

O diagnóstico de hipotiroidismo baseia-se na clínica e, sobretudo, na avaliação laboratorial da função tiroideia: determinação de TSH, T3 e T4 livres (L) ou totais, e detecção de anticorpos antitiroideus.

O doseamento de Tg, a proteína da matriz hormonal tiroideia cuja síntese depende da TSH, reflecte a síntese hormonal intratiroideia e permite avaliar a adequação terapêutica, bem como erros de síntese hormonal.

O hipotiroidismo primário confirma-se pelo aumento de TSH com diminuição de T4L, independentemente da T3. O doseamento de TSH é sem dúvida o parâmetro diagnóstico mais sensível, pelo que o seu doseamento é muitas vezes utilizado para detecção de doença tiroideia.

Quando se observa uma elevação da TSH isolada, sem alterações da T4 ou T3, trata-se de um hipotiroidismo subclínico que não está associado a alterações clínicas habitualmente. A tiroidite de Hashimoto caracteriza-se pela elevação da TSH, diminuição da T4L e anticorpos antitiroideus positivos. Em 90% dos casos, é o anticorpo contra a tireoperoxidase (TPO) que está elevado, associado ou não ao aumento do anticorpo anti-tiroglobulina (anti-Tg). Este último, encontra-se elevado em 15% da população saudável, e isoladamente não é considerado patológico.

O hipotiroidismo secundário, devido a défice de TRH ou de TSH, caracteriza-se pela diminuição de T4L com TSH normal ou diminuída.

Na resistência periférica às HT, todos os valores, HT e TSH encontram-se normais ou elevados.

A síndroma da doença eutiroideia ou síndroma da T3 baixa é uma disfunção transitória da tiroideia que surge em doença grave ou após intervenções cirúrgicas complexas, muito frequente em contexto de cuidados intensivos. O perfil laboratorial assemelha-se ao do hipotiroidismo secundário em que a TSH está normal ou diminuída, e a T3 diminuída; no entanto, a T4 está normal e a rT3 está normal ou elevada.

A ecografia é um exame bastante sensível para a localização e avaliação da glândula, mesmo em lactentes.

A cintigrafia com I123 ou Tc99 é importante para o diagnóstico das disgenésias da tiroideia (agenésia, hemiagenésia, ectopia), mas não deve ser utilizada como exame de rotina no hipotiroidismo congénito.

Tratamento

O tratamento do hipotiroidismo requere a substituição de HT, independentemente da causa. A levotiroxina, forma sintética da tiroxina (T4) é a droga de eleição no tratamento do hipotiroidismo da criança e adolescente.

No hipotiroidismo congénito o tratamento deve ser iniciado o mais cedo possível, antes das 2 semanas de vida com 10-15 µg/kg via oral (aprox. 50 µg no RN de termo). Os valores de TSH vão descendo até aos 15 dias, sendo desejável manter os valores de T3 e T4 nos limites superiores do normal para a idade. O comprimido, em toma única e diária, deve ser dado em jejum (30 minutos antes da refeição). No dia do controlo, a colheita de sangue deve ser feita pelo menos 4 horas após a última toma. Em RN com hipotiroidismo grave, deve iniciar-se a terapêutica com dose máxima, uma vez que os efeitos adversos na criança são mínimos e o risco de lesões irreversíveis por hipotiroidismo grave deve ser diminuído o mais rapidamente possível. O seguimento inicial deve ser quinzenal até à normalização da TSH, depois de 3 em 3 meses até aos 3 anos e, a partir daí, semestralmente até terminar o crescimento. Com a idade, a dose de L-tiroxina vai diminuindo, “por kg de peso”, sendo de 1-3 mcg/ kg/dia a partir dos 12 anos ou de 100 mcg/m2.

Nas crianças com hipotiroidismo primário, a dose é ajustada pela TSH. No hipotiroidismo secundário a dose é ajustada pela T4, sendo o objectivo obter valores de T4 inferiores aos valores alvo no hipotiroidismo primário. Nos casos em que não tenha sido possível confirmar o diagnóstico e em que se tenha iniciado a terapêutica, esta deve ser mantida até aos 2 anos de idade, quando a maturação do SNC está praticamente completa. A interrupção terapêutica deve ser feita 4 semanas antes da avaliação da função tiroideia.

No seguimento do hipotiroidismo congénito são aconselháveis testes de audição e avaliação do neurodesenvolvimento. A administração de T3 tem efeitos benéficos em casos de doença não tiroideia grave, designadamente no que respeita à função miocárdica.

2. HIPERTIROIDISMO/TIREOTOXICOSE

Definição e etiopatogénese

Tireotoxicose é o termo que designa o conjunto de manifestações clínicas resultantes do excesso de HT nos tecidos periféricos. O termo hipertiroidismo refere-se ao estado de tireotoxicose em que a causa é a hiperprodução de HT pela glândula tiroideia. A causa mais frequente de hipertiroidismo é a doença de Graves (ou doença de von Basedow) também denominada por hipertiroidismo auto-imune. Na criança, a tireotoxicose é rara, sendo a doença de Graves a causa mais frequente (95% dos casos). (ver Glossário)

A doença de Graves resulta da produção anormal de autoanticorpos estimulantes do receptor da TSH (Thyrotropin Receptor Antibodies ou TRAbs). Os TRAbs ligam-se ao domínio extracelular do receptor da TSH, estimulando a função e crescimento da célula folicular da tiroideia e a secreção excessiva de HT. Para além de anticorpos (Ac) estimulantes (os TRAbs), são detectáveis outros Ac no hipertiroidismo auto-imune, tais como Ac bloqueantes do receptor TSH (TRAbs bloqueadores), Ac antitiroperoxidase (TPO) e antitiroglobulina. A doença de Graves é uma doença com forte componente hereditário, evidenciado pelo aumento de incidência de doenças auto-imunes em familiares tais como, a doença de Hashimoto, diabetes mellitus tipo 1, doença celíaca e doenças reumatológicas.

Em 60% dos doentes com doença de Graves existe história familiar de doença auto-imune da tiroideia. A tendência para anticorpos antitiroideus parece ser um traço autossómico dominante associado ao gene do cytotoxic T-lymphocyte antigen 4 (CTLA4), codificador da modulação do 2º sinal das células T. No entanto, estudos genéticos comprovaram tratar-se de uma doença poligenética, em que a maioria dos genes implicados é ainda desconhecida.

A maior frequência dos haplótipos HLA DR3 e DQA10501 da região do HLA (Human Leucocyte Antigen), contribui apenas para 5% da susceptibilidade genética para a doença de Graves. Para além dos genes do HLA e CTLA4, outros genes relacionados com a imuno-regulação contribuem para a susceptibilidade para esta doença, nomeadamente o gene da lymphoid tyrosine phosphatase (PTPN22), o gene da molécula sinalizadora CD40, e do receptor da IL-2. A doença de Graves é mais prevalente no sexo feminino, após a puberdade. O estresse nos 12 meses precedentes, bem como o contacto com substâncias iodadas ou drogas contendo iodo (ex: amiodarona) podem ser factores precipitantes.

A tireotoxicose neonatal é também de causa auto-imune (doença de Graves neonatal). Surge em 5% dos RN de mães com doença de Graves quando o valor dos TRAbs é muito elevado. Consequência da passagem de TRAbs maternos através da placenta, o hipertiroidismo neonatal regride espontaneamente ao fim de 3 semanas a 5 meses de vida, uma vez que os anticorpos (Ac) maternos têm uma semi-vida de 3 meses.

Outras causas de tireotoxicose por hipertiroidismo são: o nódulo autónomo funcionante da tiroideia que, sendo independente do controlo normal do eixo hipotálamo-hipofisário, leva à produção excessiva de HT circulantes. Na criança pode tratar-se de um adenoma tóxico cuja patogénese tem por base mutações somáticas “com ganho de função” na via de sinalização do receptor da TSH.

A síndroma de McCune Albright pode ocorrer com hipertiroidismo, associado a um ou vários nódulos funcionantes. Na sua base está uma mutação activadora não hereditária do gene GNAS1. O carcinoma folicular ou papilar funcionante é raro. O bócio multinodular tóxico é uma causa de hipertiroidismo mais frequente em adultos.

O hipertiroidismo por excesso de TSH é habitualmente devido a adenoma hipofisário ou, muito raramente, à resistência hipofisária às HT. Surge igualmente no sexo feminino e masculino e em ambos os casos pode ocorrer de forma esporádica ou familiar.

A tireotoxicose pode surgir numa fase inicial da tiroidite de Hashimoto, resultante da inflamação da glândula e da destruição maciça auto-imune de folículos tiroideus, levando à libertação de HT armazenadas. Também os processos de tiroidite subaguda pós-infecção vírica, ou tiroidites infecciosas, podem causar tireotoxicose, devido à inflamação glandular com destruição folicular e consequente libertação de HT. A ingestão de iodo em excesso e de HT iatrogénica, são também causas raras de tireotoxicose transitória.

Pelo facto de a hormona gonadotrópica coriónica humana ou human chorionic gonadotropin (hCG ou gonadotrofina) apresentar também afinidade para o receptor da TSH (estimulando a glândula tiroideia, mas com menor intensidade do que a TSH), em raríssimos casos de tumores do trofoblasto pode surgir hipertiroidismo. São exemplos a mola hidatiforme e o coriocarcinoma que, obviamente, só ocorrem em adolescentes ou jovens em idade fértil (Quadro 2).

QUADRO 2 – Classificação e alterações bioquímicas da tireotoxicose na criança e adolescente

TIREOTOXICOSET4 LT3 LTSHCAUSAS
Hipertiroidismo    
Doença de Graves juvenilAnticorpos estimulantes do receptor de TSH (TRAbs)
Doença de Graves neonatalPassagem transplacentária de TRAbs
Adenoma tóxicoMutação activadora do receptor da TSH
Síndroma de McCune Albright Mutação activadora da proteína Gα
Adenoma hipofisárioAumento da secreção de TSH
Tumores do trofoblasto
(mola hidatiforme; coriocarcinoma)

Tumor placentário produtor de hCG

(agonista do receptor da TSH)

Tiroidite   Inflamação da glândula
HashimotoN ↑/NAuto-imune, exacerbação aguda inicial
Pós-infecção vírica – subaguda (de Quervain)↓/NViral
Infecciosa↓/NBacteriana
Por drogas (lítio, amiodarona e interferão)↓/N/↑Estimulação da libertação/síntese de T4 e T3
Drogas (ex. amiodarona)
Ingestão de iodo
↓/N/↑Estimulação da libertação/síntese de T4 e T3
HT exógenasIngestão de levotiroxina

Aspectos epidemiológicos

Em áreas com abundância de iodo, a doença de Graves, uma das doenças mais frequentes da tiroideia, corresponde a cerca de 50-80% dos casos de tireotoxicose. Na criança, a incidência da doença de Graves é muito inferior à do adulto, mas continua a ser a causa mais frequente de tireotoxicose na criança (96% dos casos). A prevalência desta doença é de 0,02 por cento (1:5000), na maioria entre os 11-15 anos de idade. As raparigas são mais afectadas que os rapazes (5:1), e a prevalência vai aumentando com a idade atingindo um pico na adolescência, sugerindo a existência de uma influência dos estrogénios na ocorrência da doença de Graves.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da tireotoxicose são comuns a todos os estados tireotóxicos, independentemente da etiologia. Os sinais e sintomas estão relacionados com as quatro funções nucleares das HT a nível dos órgãos e sistemas: aumento do metabolismo basal, alterações cardiovasculares, estimulação do sistema nervoso simpático e alteração do crescimento e maturação dos tecidos (Quadro 3).

QUADRO 3 – Clínica de tireotoxicose na criança e adolescente

GERAIS
Ansiedade
Hipersudorese
Intolerância ao calor
Irritabilidade
Insónia
Perda de peso
CARDIOVASCULARES
Taquicárdia
Hipertensão arterial
Arritmias
HEMATOLÓGICA
Anemia normocítica
NEUROLÓGICAS
Hiperreflexia osteotendinosa
Tremores das extremidades
OFTALMOLÓGICAS
Protusão do globo ocular (proptose/exoftalmia)
Atraso no movimento das pálpebras
Olhar extasiado
APARELHO REPRODUTOR
Irregularidades menstruais

Do quadro clínico da doença de Graves, fazem parte os sinais e sintomas clássicos de tireotoxicose e as manifestações específicas da doença. É característico o aumento difuso e simétrico da glândula (2-3 vezes o normal), com consistência firme e elástica que pode ser acompanhada por um sopro arterial ou frémito. Para além do “olhar extasiado” e atraso no movimento das pálpebras, característicos da tireotoxicose, a proptose ou exoftalmia são manifestações oculares únicas da doença de Graves. Resulta do crescimento dos tecidos retro-orbitários secundário a inflamação, deposição de glicosaminoglicanos e fibrose, com deslocamento anterior da órbita. Acompanha-se muitas vezes de edema periorbitário e hiperémia conjuntival, e mais raramente de quemose, diplopia e dor ocular.

A evolução clínica da doença é bastante insidiosa (meses). Na criança, os primeiros sintomas são frequentemente alterações do comportamento e diminuição do rendimento escolar, seguidos de irritabilidade, hiperactividade e insónia. Por outro lado, pode surgir fadiga, letargia e nictúria.

A oftalmopatia surge em apenas 50% das crianças com doença de Graves e é habitualmente uma forma ligeira (Figura 2). A dermopatia ou mixedema pré-tibial é extremamente rara na criança e está associada a oftalmopatia severa.

FIGURA 2. Fácies de hipertiroidismo: protusão dos globos oculares

O RN com tireotoxicose congénita apresenta características específicas salientando-se: prematuridade ou baixo peso, irritabilidade, má progressão ponderal ou excessiva perda de peso (apesar do apetite muitas vezes voraz), e dificuldade em adormecer. Existe também taquicárdia, febrícula, e hipersudorese. O aumento de volume da glândula tiroideia é visível, provocando muitas vezes dificuldade respiratória por compressão traqueal. Se a causa for a doença de Graves neonatal, pode existir protusão ocular. Quando o diagnóstico não é feito atempadamente na primeira infância, pode surgir craniossinostose prematura, situação grave que obriga a intervenção cirúrgica correctiva.

Exames complementares

Na presença de manifestações clínicas de tireotoxicose, tipicamente, a concentração de TSH é < 0,1mU/L (indoseável) e de T4L está elevada. Se a causa da tireotoxicose for o hipertiroidismo de Graves, a T3L está mais elevada do que a T4L. Numa fase inicial, após excluir a ingestão iatrogénica de HT ou de outras substâncias tireomiméticas, é importante distinguir se a tireotoxicose é devida a hipertiroidismo ou tiroidite. Nesta última, observa-se um aumento da velocidade de sedimentação. A associação de TSH elevada, com T3L e T4L também elevadas, é rara e sugere a existência de um adenoma da hipófise, produtor de TSH.

A quantificação de TRAbs, permitindo confirmar o diagnóstico clínico de doença de Graves, é utilizada como indicador prognóstico da doença. Nos doentes tratados com antitiroideus, a persistência de níveis elevados de TRAbs é preditiva de recidivas após ter cessado o tratamento. Por outro lado, a não detecção de TRAbs não exclui a doença de Graves.

 

Os Ac antitiroideus (anti-TPO e anti-Tg) são característicos da tiroidite de Hashimoto, mas podem encontrar-se também na doença de Graves.

Suspeitando-se de doença de Graves neonatal aquando do nascimento, os doseamentos das HT, TSH e Ac devem ser feitos a partir de sangue do cordão umbilical.

No hipertiroidismo, a ecografia revela um aumento difuso da glândula com ecogenecidade não homogénea e sinais de perfusão aumentada na modalidade de Doppler.

A cintigrafia da tiroideia com I123 ou Tc99m deve realizar-se em doentes com nódulos detectados através da ecografia, para detecção de nódulos funcionantes. É também considerada o exame mais fidedigno para o diagnóstico diferencial entre a tireotoxicose devida a hipertiroidismo ou tiroidite. Na primeira, a captação de I123 ou Tc99m encontra-se difusamente aumentada, e na segunda está diminuída.

Tratamento

O tratamento da doença de Graves é obrigatório uma vez que esta doença raramente regride espontaneamente. As opções terapêuticas incluem o tratamento médico com antitiroideus de síntese (AT), a ablação por iodo radioactivo e a excisão cirúrgica. Qualquer destas modalidades não é dirigida à fisiopatologia da doença e acarreta riscos e benefícios que devem ser considerados em qualquer idade, e principalmente no tratamento de crianças.

Os antitiroideus, utilizados na abordagem inicial do hipertiroidismo, incluem 3 tipos de tionamidas- o propiltiuracilo, o carbimazol e o seu metabólito, o metimazol. Todos actuam a nível da síntese de HT, inibindo a enzima tireoperoxidase, responsável pela iodinização da tirosina e tiroglobulina. O propiltiuracilo é o único que actua também perifericamente, inibindo a conversão de T4 em T3, mas é 10-20 vezes menos potente do que o carbimazol ou metimazol, e tem uma semi-vida mais curta. Habitualmente, são necessárias 6-8 semanas para resolver a tireotoxicose e normalizar a função tiroideia. Uma vantagem das tionamidas é a monitorização do seu efeito por simples colheita de sangue. Todos os AT podem provocar efeitos secundários ligeiros, nomeadamente exantema, urticária, artralgias e síndroma simile lúpus.

A granulocitopénia e a hepatite são efeitos mais raros. Actualmente, apenas o metimazol ou carbimazol estão indicados para o tratamento médico do hipertiroidismo abaixo dos 18 anos. Isto deve-se à elevada hepatotoxicidade do propiltiuracilo, revelada por casos de hepatite fulminante com falência hepática irreversível, obrigando em geral a transplante hepático.

A dose de metimazol e carbimazol varia entre 0,5 a 1 mg/kg/dia e pode ser prescrito em toma única.

As soluções contendo iodo (ex. solução de Lugol) inibem a libertação de HT de forma muito rápida, sendo a opção ideal para o tratamento inicial da tirotoxicose grave, frequente na doença de Graves neonatal.

Os beta-bloqueantes – propranolol (1 mg/kg/dia), bem como a dexametasona, podem ser utilizados no início da terapêutica, para alívio dos sintomas do sistema nervoso autónomo e para promover o bloqueio periférico da conversão de T4 em T3, enquanto os antitiroideus ainda não tenham originado efeito.

Nas crianças tratadas com AT ocorre remissão ao fim de 2 anos de tratamento em apenas 25% dos casos, sendo a frequência de recidivas em rapazes e raparigas de 30%. Estudos recentes concluíram que o tratamento mais prolongado (máximo 10 anos), aumenta para 50% a frequência de remissões. A puberdade é um factor que influencia a possibilidade de remissão; crianças pubertárias entram mais facilmente em remissão do que crianças pré-pubertárias. Glândulas de maiores dimensões e níveis de TRAbs mais elevados, são preditivos de taxas de remissão mais reduzidas.

Para um tratamento definitivo, a ablação com iodo radioactivo ou excisão cirúrgica são os procedimentos mais indicados. O tratamento com I131 é largamente utilizado nos Estados Unidos, mesmo em crianças. O seu índice de cura é ~ 90%, sendo o menos dispendioso para o tratamento da doença de Graves. O tecido tiroideu da criança é mais sensível à ablação com o iodo do que o do adulto. No entanto, glândulas de grandes dimensões, apresentam menores taxas de sucesso terapêutico com I131. Cada vez mais utilizada, esta opção terapêutica deve ser evitada em crianças pequenas, e deve ser ponderada em caso de oftalmopatia grave por risco de agravamento desta última. Trata-se de uma boa opção terapêutica em casos de tireotoxicose por nódulo funcionante da tiroideia. Apesar dos conhecidos efeitos adversos a longo prazo do iodo radioactivo, estudos de seguimento prolongados não comprovaram o potencial risco carcinogénico (tiroideu e extratiroideu) em crianças tratadas com doses de I131 > 150 uCi por gm. Por outro lado, não se observou maior número de defeitos genéticos em filhos de indivíduos tratados com I131 durante a infância ou adolescência.

A tiroidectomia total permite níveis de cura de cerca de 90%, levando ao hipotiroidismo na quase totalidade dos casos. Implica um processo cirúrgico complexo que pode resultar em hipoparatiroidismo ou disfonia devido à lesão do nervo recorrente. Está indicada em crianças com menos de 5 anos, sempre que se pretende um tratamento definitivo, em crianças pequenas com recidivas ou complicações importantes do tratamento médico, nódulos funcionantes, e em RN com hipertiroidismo congénito não familiar, grave.

3. BÓCIO

Definição e etiopatogénese

O bócio ou tiromegália define-se como o aumento de volume da glândula tiroideia para além dos limites normais para a idade, independentemente da etiologia e da função tiroideia. Pode ser difuso ou nodular e a síntese de HT estar normal, diminuída ou aumentada.

As causas de bócio na criança e no adulto são semelhantes, variando de forma significativa a suas frequências relativas: nos EUA, a tiroidite crónica auto-imune é a causa de bócio mais frequente na criança, sendo o bócio nodular não tóxico a causa predominante no adulto. A nível mundial, o bócio endémico (por défice de iodo) é o mais frequente, afectando 200 milhões de pessoas, sendo as regiões montanhosas da América do Sul e Ásia Central, as de maior prevalência.

Os factores etiológicos de bócio na infância são múltiplos (Quadro 4). O bócio pode estar presente ao nascer- congénito, ou detectar-se mais tarde, em qualquer idade- adquirido. Os erros genéticos da hormonogénese estão descritos em qualquer passo da síntese de HT, são de transmissão autossómica recessiva e correspondem a 15% dos hipotiroidismos congénitos, podendo ou não causar bócio. A passagem transplacentária de Ac maternos em filhos de mãe com tiroidite auto-imune crónica ou doença de Graves podem alterar a função tiroideia com aparecimento de bócio fetal e neonatal.

O aumento da glândula pode ocorrer como consequência de mecanismos de estimulação, de inflamação ou infiltração.

QUADRO 4 – Causas de bócio

Bócio congénitoBócio adquirido
Passagem transplacentar de Acs maternosTiroidite de Hashimoto (Tiroidite crónica auto-imune)
Ingestão de drogas bociogénicas ou hormonas tiroideias (raramente causa bócio)Bócio colóide
Erros de hormonogéneseBócio por défice de iodo
Mutação activadora do receptor de TSHIngestão de substâncias bociogénicas
Mutação activadora da subunidade alfa da proteína G (S. McCune Albright)

Bócio por tiroidite não auto-imune

    • Infecciosa
    • Subaguda granulomatosa (T de Quervain)
HemiagenésiaDoença infiltrativa
Tumor

Bócios por hipertiroidismo

    • Doença de Graves
    • Adenoma tóxico
 Quisto do canal tireoglosso, quisto tiroideu
 Adenomas e carcinomas da tiroide

A estimulação ocorre no início como resultado do excesso de TSH – por défice de iodo ou hipotiroidismo, ou devida a Ac anti-receptor da TSH, na doença de Graves. Os bociogénicos são substâncias químicas, drogas ou alimentos que ao interferirem com a síntese de HT, aumentam a estimulação da glândula pela TSH, podendo levar ao aparecimento de bócio.

Os bociogénicos mais comuns incluem os antitiroideus, os iodetos e o lítio. Certos alimentos contendo tiocianatos tais como as couves, couve-flor, couves de Bruxelas, batata doce, mandioca e soja, contêm substâncias bociogénicas, mas quando consumidos isoladamente raramente tal acontece. Nas crianças, os bociogénicos mais comummente ingeridos são os expectorantes contendo iodo e o lítio.

Mais raramente, o bócio por excesso de TSH é resultado de secreção hipotalâmica ou hipofisária aumentadas (ex. adenoma da hipófise ou resistência hipofisária às HT).

A inflamação por agentes infecciosos (bactérias, vírus ou fungos) pode causar tiroidite aguda ou subaguda granulomatosa, com bócio. Esta última, causada por vírus é também conhecida por doença dede Quervain”. No entanto, a infecção da glândula tiroideia é uma situação extremamente rara na criança. A causa mais frequente de inflamação é a tiroidite crónica auto-imune, ou tiroidite de Hashimoto. Esta endocrinopatia é considerada a mais frequente causa de bócio na criança fora das regiões de bócio endémico. O aumento de volume da tiroideia é causado pela infiltração linfocítica (que pode ser difusa e posteriormente nodular) levando, neste último caso, a dificuldades no diagnóstico diferencial com tumores da tiroideia.

O bócio por infiltração deve-se a doenças como a histiocitose X ou cistinose, responsáveis por infiltração histiocítica ou deposição de cristais de cistina respectivamente; nas formas mais severas poderá daí resultar hipotiroidismo.

Outros processos que podem ser causa de bócio, são as neoplasias (adenoma ou carcinoma) ou processos não neoplásicos (quisto, adenopatia ou quisto do canal tireoglosso). Na criança e adolescente, a neoplasia da tiroideia surge como nódulo único isolado.

Manifestações clínicas

O bócio cursa habitualmente com eutiroidismo e, raramente, com hipotiroidismo. Em regra, o bócio começa por ser difuso, evoluindo posteriormente para nodular. Pode haver complicações quando comprime estruturas adjacentes, nomeadamente: as vias respiratórias, causando dificuldade respiratória; o nervo recorrente levando a rouquidão; ou o esófago, provocando disfagia.

O bócio colóide simples, é de etiologia desconhecida. Podendo ser familiar, de transmissão autossómica dominante, ocorre sobretudo em raparigas adolescentes. Nestas doentes não há história de ingestão de bociogénicos ou de défice de iodo; verifica-se aumento difuso da tiróide, que muitas vezes se torna nodular e assimétrica. O bócio não é doloroso à palpação e apresenta uma consistência firme, lisa ou discretamente nodular. Por vezes, podem estar presentes gânglios linfáticos regionais, não dolorosos (Figura 3). O bócio colóide é assintomático e não causa alterações da função tiroideia. Pode diminuir de dimensões com a idade (bócio da puberdade), e o tratamento com T4 não altera o curso da doença.

FIGURA 3. Bócio observado de perfil

Sempre que surge bócio doloroso à deglutição ou palpação, deve suspeitar-se de tiroidite infecciosa aguda ou subaguda. Inicialmente pode existir febre e sintomatologia de tireotoxicose por libertação maciça de HT. Segue-se uma fase de eutiroidismo, depois de hipotiroidismo, com posterior recuperação.

A maioria das crianças e adolescentes com tiroidite de Hashimoto apresenta-se com bócio assintomático, referindo por vezes dor ou “sensação de preenchimento” nesta região. Na maioria das vezes, são detectados num exame de rotina ou por existência de um nódulo notado pelos pais. Encontram-se geralmente em eutiroidismo, mas podem apresentar hipotiroidismo subclínico ou hipotiroidismo franco. Neste último caso, manifesta-se por restrição de crescimento, diminuição da velocidade de crescimento e atraso pubertário. Ocasionalmente, ocorre uma fase inicial tireotóxica, como resultado da libertação maciça de HT, devido à inflamação e consequente destruição das células foliculares da tiroideia. Nestes casos, deve fazer-se o diagnóstico diferencial com a doença de Graves; podem raramente coexistir ambas as doenças no mesmo paciente (Hashitoxicose). Nalguns casos de tiroidite de Hashimoto, em vez de bócio, pode surgir atrofia da glândula (tiroidite atrófica).

A tiroidite de Hashimoto, surgindo frequentemente em crianças com síndroma de Turner, trissomia 21 e síndroma de Klinefelter, é parte integrante de síndromas poliglandulares auto-imunes.

Exames complementares

Na suspeita de bócio por carência de iodo, a excreção urinária de iodo (IU) é o exame de eleição para o diagnóstico (que só tem interesse a nível populacional). Valores de excreção de IU < 100 mcg/L revelam deficiência moderada de iodo; IU < 50 mcg/L, uma deficiência acentuada; e IU < 20 mcg/L, uma deficiência severa. No bócio por défice de iodo, a ecografia da tiroideia revela aumento de volume da glândula com ecogenicidade heterogénea.

Na presença de um bócio, o doseamento de Ac (TPO e Tg) para a detecção de doença auto-imune da tiroideia é uma regra. No bócio colóide simples, o doseamento de Ac anti-TPO é negativo. Cerca de 40% a 70% destes pacientes apresentam Ac anti-Tg positivos, cujo significado não está ainda esclarecido.

O diagnóstico de tiroidite crónica auto-imune é feito pela detecção de níveis elevados de Ac anti-tiroglobulina (Tg) e/ou Ac anti-tiroperoxidase (TPO), e pela avaliação funcional da tiroideia. A ecografia da tiroideia revela sinais de glândula aumentada de volume com zonas de ecogenicidade heterogénea. Tem indicação em pacientes com Ac negativos ou com um nódulo palpável, mas raramente é necessária.

Tratamento

As necessidades diárias de iodo são cerca de 100 a 150 µg. O tratamento do défice de iodo faz-se com suplemento de iodo. Nas crianças até aos 5 anos: cerca de 90 µg/dia; nas crianças dos 6-12 anos: cerca de 120 µg/dia; e nos adolescentes: 150 µg/dia. Sempre que o volume da glândula não se reduz com o suplemento em iodo, em bócios pequenos, difusos e recentes, deve iniciar-se o tratamento com L-tiroxina.

O tratamento da tiroidite auto-imune depende da função tiroideia. Na maioria dos casos, crianças e adolescentes encontram-se em eutiroidismo. Em casos de hipotiroidismo franco (TSH > 10 mU/L e T4 e T3 livres diminuídas) deve iniciar-se L-tiroxina, em dose variável (50-100 µg/dia), de modo a que o valor da TSH volte ao normal. Se o hipotiroidismo é severo e prolongado, a correcção com L-tiroxina deve ser gradual para evitar efeitos adversos.

O tratamento do hipotiroidismo subclínico é controverso. No entanto, sempre que as T4 e T3 livres evidenciam valores normais, mas TSH > 10 mU/L, deve iniciar-se L-tiroxina. Se a tiroidite decorrer com elevação de HT, não está indicada a terapêutica com antitiroideus, uma vez que a glândula habitualmente retorna ao estado de eutiroidismo ao fim de 1 a 2 meses, podendo mesmo surgir hipotiroidismo. O propranolol pode aliviar os sintomas na fase de hipertiroidismo por bloqueio do sistema simpático.

Evolução

O seguimento destas crianças faz-se com doseamentos de HT e TSH trimestral ou semestralmente. Nos doentes em tratamento com L-tiroxina, alguns autores preconizam a sua suspensão na puberdade, uma vez que num número significativo de casos se observa remissão completa da tiroidite de Hashimoto. De referir que cerca de 10% dos doentes com tiroidite auto-imune em eutiroidismo evoluem secundariamente para hipotiroidismo, razão pela qual anualmente se deve proceder a uma avaliação funcional da tiroideia. Nestes casos a doença tem um carácter permanente e não transitório.

4. NÓDULOS ISOLADOS DA TIROIDEIA

Importância do problema

Os nódulos isolados da tiroideia são raros na criança. No entanto, são mais frequentemente malignos na criança do que no adulto. Estima-se que em ~25% dos casos de nódulos isolados tiroideus na criança exista malignidade, em comparação com o que se passa no adulto (~ 5%). Portanto, sempre que os mesmos sejam detectados, devem ser cuidadosamente sujeitos a exames que permitam o diagnóstico diferencial entre nódulos do bócio, quistos, tumores benignos ou malignos.

Aspectos epidemiológicos

Os carcinomas da tiroideia na criança são raros, constituindo 0,5-3% de todos os tumores malignos em crianças com idade inferior a quinze anos, com uma frequência ligeiramente superior no sexo feminino. Na população pediátrica, os tumores da tiroideia são geralmente bem diferenciados, sendo os carcinomas papilares os mais frequentes (80-95%), seguindo-se os foliculares, e raramente os medulares. Os tumores benignos correspondem a 10% do total dos tumores da tiroideia, sendo os quistos e o adenoma tóxico (também designado de doença de Plummer), os mais frequentemente encontrados. Doenças benignas, tal como a tiroidite crónica auto-imune, podem também cursar com nódulos (habitualmente benignos).

Factores de risco e patogénese

A incidência e o risco de carcinoma aumentam: – com a exposição a radiações localizadas à cabeça e pescoço, sobretudo antes dos cinco anos de idade; – quando existe história anterior de doença da tiroideia (ex. hipotiroidismo congénito devido a erros de hormonogénese, quistos do canal tireoglosso, ectopias); e – história familiar de carcinoma da tiroideia.

Outros factores considerados de risco são: – o défice marcado de iodo; e – a presença de nódulos de dimensões superiores a 1 cm em contexto de tiroidite crónica auto-imune (tiroidite de Hashimoto). O risco de carcinoma da tiroideia está aumentado até 20 anos após radioterapia em baixas doses (< 30 Gy) utilizada para o tratamento de outras malignidades na criança.

Radiação em doses elevadas, devida à destruição celular, comporta um risco menor. A quimioterapia realizada na infância é actualmente considerada um factor de risco para carcinoma papilar.

Estudos moleculares revelaram que os carcinomas papilares da tiroideia na criança estão associados a alterações genéticas (mutações e rearranjos) no proto-oncogene RET/TRK. As mutações do BRAF são menos frequentes na criança. Os tumores foliculares estão relacionados com translocações no PAX8- PPAR gama ou mutações no gene RAS. Ambos estes carcinomas têm origem nas células foliculares da tiroideia e são secretores de tiroglobulina (Tg).

Os tumores medulares da tiroideia têm origem nas células parafoliculares da tiroideia e são secretores de calcitonina. Apresentam uma ocorrência familiar aumentada (25% dos casos) e podem surgir isoladamente ou fazer parte de síndromas neoplásicas multiendócrinas – multiple endocrine neoplasia (MEN) associadas a feocromocitomas (MEN2). Em 95% dos casos famililares, detecta-se uma mutação activadora do proto-oncogene RET. Outras doenças com maior risco para o aparecimento de neoplasias da tiroideia são as poliposes intestinais, nomeadamente a síndroma de Peutz- Jäghers e a síndroma de Gardner; a síndroma de McCune Albright caracteriza-se por múltiplas neoplasias endócrinas e não endócrinas; deve-se a uma mutação pós-zigótica activadora no gene GNAS.

Manifestações clínicas

Os nódulos tiroideus na criança são mais facilmente palpáveis do que no adulto. Na sua maioria, são assintomáticos e benignos. Sempre que o nódulo é de consistência dura e está fixo, deve suspeitar-se de malignidade. Neste caso, o exame clínico deve ser orientado no sentido de detectar adenomegálias, sinais e sintomas de tireotoxicose, ou sintomas locais de compressão, nomeadamente, disfagia, disfonia, rouquidão ou dispneia. Na criança, a detecção de adenomegálias de consistência dura é fundamental, pois estão presentes em 79% dos casos, mais frequentemente do que em adultos. A avaliação auxológica é importante, bem como a detecção de sinais de dismorfias típicas de síndromas ou de outras doenças associadas a neoplasias da tiroideia, particularmente a síndroma de McCune Albright e MEN2.

Exames complementares

A ecografia confirma a presença de nódulo da tiroideia. Apesar de não permitir distinguir um nódulo benigno de maligno, pode dar indicações valiosas no sentido de suspeição de malignidade: hipoecogenicidade, microcalcificações, zonas de hipervascularização intranodular e características do nódulo linfático alteradas. A elastografia, recentemente introduzida no estudo da tiroideia, tem como objectivo distinguir nódulos malignos, com menor elasticidade, de nódulos benignos. Esta técnica é largamente utilizada no estudo de neoplasias da mama e do fígado.

O doseamento da TSH, T4L e T3L permitem determinar o estado funcional (do nódulo) da tiroide.

A TSH diminuída indica um estado de tireotoxicose. Nestes casos, a cintigrafia com Tc99 ou I123 são o próximo passo diagnóstico, revelando um nódulo quente (hiperfuncionante) que corresponde a um adenoma funcionante (adenoma tóxico). São raros nas crianças e, apenas ~1,5% dos casos são malignos. A situação mais frequentemente encontrada perante um nódulo é o eutiroidismo, com doseamentos de TSH, T4L e T3L normais, e por vezes o hipotiroidismo subclínico (TSH elevada e T4L normal). Ambas obrigam a realização de citologia aspirativa com agulha fina (CAF) sempre que o nódulo apresente dimensões ≥ 1 cm ou apresentar características suspeitas de malignidade, ou existam antecedentes de doença tiroideia ou exposição a rádio ou quimioterapia. Este exame é de importância-chave para determinação do tipo histológico do tumor (adenoma, carcinoma) e da necessidade de excisão cirúrgica. A CAF apresenta uma confiabilidade diagnóstica de 90%.

O doseamento da calcitonina, um marcador dos carcinomas medulares, deve ser realizado antes da tiroidectomia. A Tg plasmática, por sua vez, é um marcador importante dos tumores de origem folicular, e o seu doseamento é utilizado no estudo de seguimento destes tumores após tiroidectomia.

Marcadores histológicos como a galectina-3, HBME-1 e a cytokeratina-19 têm sido utilizados em adultos para discriminação de neoplasias da tiroideia em situações em que a CAF revela apenas uma citologia “suspeita” (20% dos casos). Não existem, no entanto, estudos de confiabilidade destes marcadores em crianças. (Figura 4)

FIGURA 4. Quisto do canal tiroglosso associado a bócio nodular. (NIHDE)

Tratamento

O tratamento dos nódulos é distinto consoante se trate de nódulo quente, ou frio (hipofuncionante). Nos nódulos quentes, principalmente se decorrerem com hipertiroidismo, está indicada a excisão cirúrgica. Quanto aos nódulos frios, a abordagem terapêutica depende da citologia. Se o resultado citológico for o de nódulo de bócio, de tiroidite linfocítica, ou de hiperplasia folicular, deve adoptar-se uma atitude de vigilância. Se o resultado apontar para malignidade, nomeadamente carcinoma, está indicada a tiroidectomia total, eventualmente seguida de administração de I131, no caso de neoplasias de origem folicular (carcinomas papilares ou foliculares), com factores de risco que o justifiquem.

A sobrevivência nos casos de carcinoma diferenciado é superior a 90% aos 20 anos. As metástases, nomeadamente pulmonares, são mais frequentes nas idades mais jovens. Contrariamente à evolução no adulto, a cura é quase invariável com a administração de I131.

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