Definição e importância do problema

A cetoacidose diabética (CAD), frequentemente, a forma de apresentação inicial da diabetes tipo 1 na criança, é a sua complicação aguda mais grave. Constitui igualmente uma urgência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade da criança diabética, com um risco estimado de morte de 0,2 a 1%, essencialmente por edema cerebral.

Tal situação surge como consequência das alterações metabólicas e hidroelectrolíticas secundárias a diminuição da insulina circulante eficaz e, como consequência, à elevação das hormonas de contrarregulação (glucagom, catecolaminas, cortisol e hormona do crescimento) que, para além de contribuírem para a hiperglicémia, estimulam a cetogénese.

Os critérios bioquímicos para o diagnóstico de CAD são: hiperglicémia, (> 200 mg/dL), acidose metabólica (pH < 7,25 e/ou bicarbonato < 15 mEq/L), cetonúria e cetonémia. Considerando o parâmetro “hiato aniónico” [Na(Cl+HCO3)], indicador indirecto dos níveis de corpos cetónicos, o valor deste > 12  mEq/L é compatível com CAD.

A gravidade da CAD pode ser ordenada pelo grau de acidose, variando de grave (pH < 7,1 e bicarbonato < 5 mEq/L) a moderada (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato 5 a 10) e ligeira (pH 7,2 a 7,1 e bicarbonato > 10).

A terapêutica consiste na correcção das alterações hidroelectrolíticas (desidratação/choque), do equilíbrio ácido-base e da hiperglicémia, através da reposição hídrica e iónica, da correcção da acidose, e dos níveis de insulina (ver capítulo anterior).

De acordo com os peritos e investigadores no âmbito da CAD, no ano de 2019 ainda subsistem controvérsias. Baseando-se as normas de orientação clínica e as recomendações fundamentalmente em considerações teóricas, existe grande variabilidade dos protocolos adoptados, de instituição para instituição, sem diferenças significativas quanto aos resultados. As grandes questões investigadas têm sido as relacionadas com a velocidade de perfusão de solutos e o respectivo conteúdo em sódio (designadamente, utilização de NaCl a 0,9% ou a 0,45%).

Constituindo uma emergência terapêutica e a principal causa de internamento e de mortalidade na criança diabética, o risco estimado de morte (0,2 a 1%) relaciona-se  essencialmente com o surgimento de edema cerebral, o qual pode originar hipertensão intracraniana e lesão do sistema nervoso central.+

+A patologia de base “diabetes mellitus” é um continuum. Por razões didácticas a CAD foi considerada separadamente como complicação da primeira; por sua vez, o edema cerebral foi considerado uma das complicações da CAD.

ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS

A diabetes mellitus constitui uma das doenças crónicas mais comuns a nível mundial.

Referindo-nos aos EUA, um país com a publicação de estudos epidemiológicos em larga escala, foram apurados os seguintes dados:

  • 192.000 crianças com diagnóstico de diabetes e uma incidência de hospitalizações por CAD em 2014 de 188.965 (correspondendo 11% das admissões por CAD em doentes com menos de 17 anos);
  • cerca de 30% de crianças com novo/recente, anteriormente desconhecido diagnóstico de DM 1 têm como forma de apresentação a CAD;
  • cerca de 10% de crianças com novo/recente diagnóstico de DM 2 têm como forma de apresentação a CAD;
  • em crianças com o diagnóstico conhecido de DM 1, o risco de CAD oscila entre 1% e 10% de CAD/paciente/ano.
  • de acordo com estatísticas hospitalares, com progressos ao longo dos anos, estima-se uma letalidade actual de 0,33%.  

ETIOPATOGÉNESE

Como foi referido no capítulo anterior, a insulina é uma hormona polipeptídica segregada pelas células beta do pâncreas sob acção de estímulos beta-adrenérgicos e parassimpáticos. Tendo uma acção anabolizante, leva a um aumento da captação tecidual de glucose, sua entrada no meio intracelular, e a um estímulo da síntese do glicogénio hepático e muscular.

No fígado promove inibição da neoglicógenese e da glicogenólise; no músculo, estimula a síntese proteica e inibe a proteólise; e, no tecido gordo, promove a captação de glucose e lipoproteínas, estimula a lipogénese, e inibe a lipólise.

A CAD ocorre quando as concentrações de insulina sérica são inadequadas face a:

  • deficiência absoluta (tendo como base a falência progressiva das células beta pancreáticas por destruição autoimune na DM 1 não diagnosticada), ou
  • deficiência relativa (por estresse, infecção, administração inadequada de insulina) em relação com níveis elevados de hormonas de contrarregulação (catecolaminas, cortisol, glucagom e hormona de crescimento).

A combinação de:

  • deficiência de insulina e de
  • aumento dos níveis de hormonas de contrarregulação, levam a gluconeogénese e a glicogenólise, com aumento da produção de glucose e à  diminuição de utilização periférica da mesma glucose.

Como consequência, verifica-se hiperglicémia, hiperosmolalidade, hiperlipólise e cetogénese. Ou seja, a diminuição, ou ausência persistente de insulina condiciona a passagem de um estado anabólico a um estado catabólico, com neoglicogénese, glicogenólise, cetogénese e proteólise.

Quando o limiar de excreção renal para a glicose exceder ~9,1-11,1 mmol/L, a glicosúria e a hipercetonémia causam diurese osmótica, poliúria, desidratação, e perda de electrólitos (incluindo sódio, potássio, magnésio, cálcio e fosfato).

Consequentemente surge a estimulação da produção das hormonas de estresse e, no caso de não se verificar resposição de fluidos, electrólitos e insulina, a desidratação/hipovolémia e hipoperfusão agravam-se, originando acidose metabólica e láctica, podendo seguir-se desfecho fatal. (Figura 1 )

A patogénese do edema cerebral, a complicação mais grave da CAD, (sendo mais frequente na criança do que no adulto), não é totalmente compreendida. Têm sido sugeridos múltiplos mecanismos, persistindo ainda controvérsia sobre se terá maior importância a velocidade de administração dos fluidos ou a composição dos mesmos. Os primeiros estudos apontavam para o papel da administração de fluidos hipotónicos determinando desvio dos fluidos pelas diferenças da osmolalidade entre  os compartimentos extravascular e intravascular intracraniano (desvio espaço vascularà parênquima cerebral.)

As novas teorias, apoiadas em imagiologia funcional,  sugerem que o edema resulta de um fenómeno lesivo explicado por hipoperfusão seguida de reperfusão, neuroinflamação (edema vasogénico associado a aumento da permeabilidadede barreira hematoencefálica).

Com efeito, estudos imagiológicos recentes através de ressonância magnética, espectroscopia próxima dos infravermelhos e de ultrassonografia Doppler transcraniana demonstraram que o edema cerebral é de tipo vasogénico.

FIGURA 1. Fisiopatologia da CAD

Manifestações clínicas

Globalmente, o factor etiológico mais comum de CAD é a diabetes mellitus do tipo 1 (DM 1) de início recente. Tal patologia pode igualmente ser observada em crianças com DM 1 e infecção, DM 1 e outra doença intercorrente, ou administração  inadequada de insulina. De referir que a CAD poderá também surgir em crianças  com DM 2).

Determinadas situações – com o significado de factores de risco – tais como, administração de corticóides em altas doses, fármacos antipsicóticos, diazóxido e medicações com efeito imunossupressor, poderão precipitar CAD em pacientes na ausência de  conhecimento prévio do diagnóstico de DM 1.

As manifestações clínicas mais frequentes de CAD são:

  • polidipsia e poliúria por diurese osmótica devida à desidratação hiperosmolar por hiperglicémia;
  • náuseas, vómitos e hálito cetónico (pela cetose);
  • perda de peso e confusão mental/coma (a avaliar pela escala de Glasgow), existindo uma boa relação entre as manifestações neurológicas e o grau de hiperosmolaridade sérica.

Hiperpneia, taquipneia e dor abdominal são frequentes, podendo levar a dificuldades de diagnóstico diferencial com episódios de doença respiratória ou com situações de abodómen agudo.

A cetoacidose, evidenciada pelo hálito cetónico, estimulando os quimiorreceptores centrais e periféricos que regulam a respiração, leva ao tipo de respiração de Kussmaul (excursões respiratórias “rápidas e profundas”).

A dor abdominal e o quadro de íleo paralítico que se pode estabelecer resultam da deplecção de potássio, da acidose e da hipoperfusão esplânquica.

A desidratação é uma constante da CAD, mas a sua característica de hiperosmolaridade e predomínio intracelular, com possível ausência de prega cutânea nas fases iniciais, pode levar à subvalorização do diagnóstico.

Segundo a experiência de alguns centros, foram verificados aumentos dos teores de amilase e triglicéridos, assim como leucocitose.

Apesar da desidratação grave, numa fase inicial os pacientes evidenciam geralmente pressão arterial normal, admitindo-se que tal facto seja explicável pela acção do teor aumentado de catecolaminas e pela libertação de hormona antidiurética estimulada pela elevada osmolalidade sérica.

Assim, no contexto de CAD, a avaliação da pressão arterial não constitui um indicador suficientemente confiável na avaliação do estado cardiovascular. De acordo com diversos estudos, são mais confiáveis a frequência cardíaca e o tempo de recoloração capilar, correspondente ao grau de perfusão periférica.

Por fim, com a falência dos mecanismos compensatórios, surge hipotensão, choque e alteração do estado mental.

EXAMES  COMPLEMENTARES

Os valores laboratoriais que permitem o diagnóstico de CAD foram referidos anteriormente.

Em todos os doentes deve proceder-se à monitorização de diversos parâmetros:

  • electrónica contínua → dos parâmetros vitais clássicos (FC, FR, PA, SpO2, ECG, etc.);
  • bioquímica → da glicémia (hora/ hora); do pH e gasometria capilar (2/2 horas enquanto pH<7,2  e, de 4/4 horas, ulteriormente); da ureia e creatinina, ionograma (Na, K, Cl, Ca, P e Mg) glicosúria,  cetonémia e cetonúria (de 4/4 horas); e, em função do contexto clínico de cada caso: s osmolalidades sérica e urinária, amilasémia, perfil lipídico e beta-hidroxibutirato.

Como avaliação geral, citam-se também o hemograma completo e o doseamento da proteína C reactiva (PCR) ou de outros marcadores de inflamação como a procalcitonina.

Nos casos em que a CAD constitui a forma de apresentação de um novo caso de DM (diagnóstico de DM até então desconhecido) estão indicados determinados exames laboratoriais adicionais para avaliação da fisiopatologia de base: HbA1c, anticorpos antiperoxidase, TSH, tiroxina livre, transglutaminases teciduais, imunoglobulina A, anticorpos anti-células dos ilhéus, anticorpos anti-insulina, e anticorpo anti descarboxilase do  ácido glutâmico.

Sem prejuízo da prioridade estabelecida para a vigilância electrónica contínua e para os exames laboratoriais descritos, citam-se os exames de imagem TAC-CE e RM, com interesse na identificação de edema cerebral.

 O ECG deve ser realizado na data de admissão e, depois, em monitorização contínua para detecção de sinais de discaliémia, arritmias, etc., como foi referido.

Interpretação de alguns resultados laboratoriais

    1. Hiato aniónico: no contexto de DM e de CAD, importa salientar que o seu valor diz respeito `presença de corpos cetónicos e não de outras etiologias cursando com acidose metabólica como acidose láctica e intoxicação com salicilatos;
    2. No contexto de CAD chama-se a atenção para o surgimento de hiponatrémia de diluição devida a hiperglicémia, o que implica cálculo rigoroso do suprimento em sódio: → Natrémia do paciente + 2 ([glicose plasmática em mg/dL -100] /100) mg/dL;
    3. Hiperosmolalidade sérica e creatinina elevada são dados que sugerem CAD;
    4. A acidose hiperclorémica é mais frequente nos casos em que a perfusão endovenosa é mais rápida, o suprimento de cloro veiculado através do NaCl é mais elevado e se utiliza NaCl a 0,9%;
    5. Leucocitose, só por si, poderá não indiciar infecção;
    6. Para além da valorização dos dados clínicos, poderá haver suspeitas de edema cerebral perante a verificação de ureia e creatinina elevadas, acidose grave, hipocápnia acentuada e insucesso ou recidiva na correcção da hiponatrémia;
    7. Em situações de hipoperfusão circulatória periférica e acidose grave, os valores da glucose determinados em sangue capilar poderão não ser confiáveis – podendo ser mais elevados; por isso, haverá que recorrer a colheitas em sangue venoso.

ACTUAÇÃO PRÁTICA

Objectivos gerais

Os objectivos gerais do tratamento são:

  1. corrigir a desidratação e a acidose, restaurando a perfusão tecidual e a filtração glomerular;
  2. interromper a cetogénese, a proteólise e a lipólise (por acção da insulina), contribuindo para a normal captação de glucose ao nível tecidual, revertendo  hiperglicémia  e a hiperosmolalidade;
  3. repor as perdas em electrólitos;
  4. estar alerta para eventuais complicações do tratamento,
  5. a fluidoterapia inicial com soro fisiológico deve preceder sempre (não < 1-2 horas) a terapia com insulina.

As CAD moderadas e graves necessitam, pois, sempre de insulinoterapia e reidratação endovenosas (em vias diferentes). Nos casos de CAD grave, depressão do estado de consciência (Glasgow ≤ 12), vómitos persistentes e idade < 5 anos, está indicado internamento em cuidados intensivos ou em enfermaria pediátrica especializada.

Crianças sem sinais de desidratação significativa (< 3%) e sem cetoacidose toleram bem terapêutica com insulina subcutânea e reidratação oral.

Aspectos gerais da fluidoterapia intravenosa (IV)

a) Protocolo clássico

Verificando-se estado de choque, procede-se a expansão vascular com soro fisiológico (sf) ou lactato de Ringer: 10-20 mL/Kg em 30-60 minutos, a repetir se necessário.

Após correcção do choque, programa-se o cálculo da reposição hídrica para 48 horas, de forma a não gerar gradientes osmóticos intra-extracelulares potenciadores de edema cerebral (não ultrapassar 4 L/m2/dia ou 10-12 mL/kg/hora na primeira hora e 6 mL/kg/hora nas horas seguintes).

O cálculo das necessidades de fluidos pode ser feito pela soma do défice de fluidos (% da perda de peso corporal em kg) + manutenção (idades: < 1 ano, 1-5, 6-9, 10-14 e > 15 anos, necessitam de volumes de manutenção: 80, 70, 60, 50 e 35 mL/kg/dia, respectivamente).

Nos cálculos não devem ser considerados os volumes administrados na fase de expansão vascular, mas deve ter-se em atenção a contabilização de todas as perdas, com especial atenção para as perdas urinárias que poderão corresponder a 30-50% dos fluidos para a manutenção.

Tipo de solutos

Nas primeiras seis horas:

  • utilizar soro fisiológico (NaCl a 0,9%);
  • passar para glucose a 5% e soro fisiológico (2 vias com conexão em Y) quando se iniciar a perfusão de insulina;*
  • poderá ser necessário administrar solutos com maiores concentrações de glucose (7,5%, 10% glucose) para evitar a hipoglicémia.

Após as seis horas:

  • passar para NaCl a 0,45% com glucose a 5% (soluto a 1/2).

A  insulina em perfusão  é iniciada 1-2 horas após o início da reidratação IV.

Não se administra insulina em bolus inicial. Deve usar-se acesso IV exclusivo (conexão em Y) para perfusão de insulina de acção rápida, na dose inicial de 0,1 U/kg/hora (diluir 50 U de insulina em 500 cc de SF, sendo então 1cc <> 0,1 Unidades).**

Eis algumas particularidades:

  • nas crianças < 5 anos ou glicémia inicial > 1000 mg/dL (> 55 mmol/L) é prudente iniciar com 0,05 U/kg/h (0,5 mL/kg/h);
  • manter a perfusão até à melhoria da CAD (pH > 7,3 e bicarbonato > 15 mmol/L);
  • quando glicémia < 250 mg/dL (14 mmol/L), ou antes, se houver descida > 90 mg/dL/h (5 mmol/L/h), ajustar a concentração de glucose, mas não diminuir o ritmo de administração de insulina.

Se ao fim de 4 horas os parâmetros bioquímicos de CAD não melhorarem:

  • reavaliar o doente;
  • rever a insulinoterapia;
  • considerar outras causas de má resposta à terapêutica (infecção!).

Após estabilização*** é habitualmente possível iniciar insulina de acção rápida ou de acção ultra-rápida subcutânea (sc) de acordo com o esquema do Quadro 1.

Após as primeiras 24 horas pode ser possível:

  • interromper soluto IV;
  • iniciar insulina de acção intermédia sc; dose: 0,3 U/kg/dia em 2 injecções: antes do pequeno almoço – 2/3 do total; antes do jantar – 1/3 do total;
  • manter a insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas durante as 4 horas seguintes de acordo com os critérios do Quadro 1;
  • após 4 horas, e se não houver cetonúria, passar a insulina rápida antes das três refeições principais (pequeno almoço, almoço, jantar);
  • se houver cetonúria, manter a administração de insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas até ao seu desaparecimento, passando, depois, para antes das 3 principais refeições.
*Para prevenir o declínio rápido da glicémia e a hipoglicémia deve acrescentar-se glucose ao fluido IV (NaCl a 0,9%). Este objectivo pode ser conseguido na prática (respeitando os cálculos feitos quanto aos fluidos a administrar), utilizando conexão em Y com dois sistemas: um com dextrose e outro sem dextrose. Torna-se fundamental o acerto quanto ao ritmo de administração.
**A solução de insulina só é estável durante 6 horas, pelo que terá de ser novamente preparada se a perfusão se mantiver mais que este tempo.
***pH > 7,3; bicarbonato ≥ 18; hiato iónico 8-11; alimentação oral possível.

QUADRO 1 – Cálculo da dose de insulina na fase de estabilização

Introduzir os líquidos per os após a melhoria franca da CAD e quando o doente manifestar o desejo de comer.
Se houver boa tolerância oral, diminuir os soros IV (subtrair o volume ingerido ao volume calculado para administração IV) e tentar uma pequena refeição com hidratos de carbono de absorção lenta (leite, iogurte, bolachas, pão…).
Programar a passagem para insulina SC (subcutânea) quando a acidose tiver regredido (pH > 7,3 e bicarbonato ≥ 18 mEq/L) e os alimentos forem bem tolerados.
O melhor momento para iniciar insulina SC é antes de uma refeição.

Administrar a 1ª dose sc de insulina de acção rápida/ultra rápida de acordo com o peso, glicémia e alimentação: 

< 160 mg/dL – 0 U
160 – 200 mg/dL – 0,05 U/kg
> 200 – 300 mg/dL – 0,1 U/kg
> 300 mg/dL – 0,15 U/kg
+crianças < 20 kg – 0,5 U/equivalente de HC*
crianças > 20 kg – 1
U/equivalente de HC

*1 equivalente de HC: 1/2 pão, 3 bolachas Maria, 3 bolachas água e sal, 2 iogurtes 

Parar a perfusão de insulina 15 minutos depois de administrar a 1ª dose de insulina SC.
Manter insulina de acção rápida/ultra rápida SC de 2 em 2 horas de modo a manter glicémia ∼ 150 mg/dL.
b) Protocolo FLUID (Fluid Therapies Under Investigation in DKA)

Este esquema de fluidoterapia integra, de facto, 4 protocolos (designados respectivamente A1, A2, B1, B2 – Quadro 2) aplicáveis: – a duas situações de défice ponderal (5 e 10%); e – a duas outras situações utilizando concentração de NaCl 0,9% (soro fisiológico) e 0,45%.

QUADRO 2 – Diferentes protocolos para fluidooterapia na CAD

Componentes

Protocolo A1

Protocolo A2

Protocolo B1

Protocolo B2

Bolus de fluido inicial10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%
Bolus adicional IV10 cc/kg de NaCl 0,9%10 cc/kg de NaCl 0,9%Não bolus adicionalNão bolus adicional
Défice ponderal estimado

10%

10%

5%

5%

Reposição do défice

Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h

 

Reposição de ½ do défice + fluidos de manutenção 12 h iniciais, restante défice + fluidos de manutenção nas subsequentes 24 h

 

Reposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 hReposição do défice + fluidos de manutenção durante 48 h
Fluidos usados para reposição do déficeNaCl 0,45%NaCl 0,9%NaCl 0,45%NaCl 0,9%

Notas importantes:

    • O protocolo FLUID refere-se apenas ao suprimento de fluidos e NaCl. Os aspectos realacionados, designadamente com a insulinoterapia, reposição de potássio, correcção da acidose, etc., são descritos no âmbito do protocolo clássico.
    • Bolus inicial de fluidos pressupõe volume de 20 mL/kg.
    • Bolus de fluidos são repetidos em função do estado circulatório (frequência cardíaca e perfusão periférica após bolus inicial).
    • Reposição do défice:
      • tempo estimado entre 24 e 36 horas;
      • fluidos contendo NaCl entre 0,45% e 0,9% são aceitáveis.
    • Monitorização e ajustamento do regime de fluidoterapia:
      • é importante monitorizar a frequência cardíaca, a perfusão periférica, assim como o suprimento e eliminação de fluidos- balanço hídrico;
      • a pressão arterial não constitui um bom indicador do estado circulatório nos casos de CAD;
      • ritmo de perfusão de fluidos deve ser aumentado se durante o tratamento não se verificar melhoria, ou se se verificar agravamento.

Correcção da acidose

A correcção da desidratação e da hiperglicémia é habitualmente suficiente para a correcção da acidose. A administração de bicarbonato é cada vez mais contestada, não tendo sido demonstrado efeito benéfico na sua utilização; pelo contrário, pode levar a um agravamento da hiperosmolaridade e potenciar a acidose do SNC e o edema cerebral. Considera-se a administração de bicarbonato apenas quando pH < 7,0 e bicarbonato < 5, ou quando há necessidade de utilização de aminas vasoactivas, e só até pH de 7,1 (1 a 2 mEq/kg em perfusão de 2 horas).

Correcção das alterações iónicas

Os suprimentos em sódio, cloro, fósforo e cálcio são os necessários ao metabolismo basal. A utilização de solutos com níveis de sódio ≥ a 50 mEq/litro (soluto a 1/3) é habitualmente suficiente para manter o sódio em níveis adequados.

Mesmo nas situações de CAD associada a Na+ sérico > 150 mEq/L, há que não utilizar soluções hipotónicas.

Em relação ao potássio há que considerar a sua administração logo nas 2 primeiras horas se potassémia inicial < 4,5 mEq/L (2 a 4 mEq/kg/dia, não excedendo concentrações de 40 mEq/L de soluto em veia periférica).

Salienta-se que no momento do diagnóstico de CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado porque a acidose provoca saída de potássio do meio intracelular. Mesmo nesta eventualidade, há que referir que o potássio corporal total está diminuído.

O sódio sérico inicial, geralmente normal ou baixo, explica-se pelos efeitos de diluição osmolar da hiperglicémia e da fracção hipídica elevada não contendo sódio.

Assim, para o cálculo da correcção da natrémia nos casos de glicémia > 100 mg/dL (5,6 mmol/L) utiliza-se a seguinte fórmula, considerando a glicémia em mg/dL.

 [Na+] + [glucose – 100] x 1,6
100

O sódio deverá aumentar cerca de 1,6 mmol/L por declínio de 100 mg/dL de glicémia em concomitância com a reposição lenta dos fluidos. Se, pelo contrário a natrémia diminuir à medida que se proceder à reidratação, tal poderá significar acumulação de água livre e risco de edema cerebral.

Quando o fósforo for < 2,5 mg/dL (< 0,8 mmol/L), deve substituir-se  50% do KCl por fosfato monopotássico, até às 12 horas de tratamento.

Para a correcção doutras alterações iónicas sugere-se a consulta dos capítulos sobre reidratação IV.

Reitera-se que o início da alimentação é feito logo que a tolerância oral o permita, com preferência por líquidos ricos em potássio (sumos), iogurte e pequenas refeições (Quadro 1).

Tratamento do edema cerebral

Embora raro (0,4 a 1% das CAD) o edema cerebral é responsável por cerca de 50 a 80% de todas as mortes por CAD; comporta mortalidade de 20 a 25% e morbilidade de 10 a 26% nos sobreviventes.

É mais frequente nas primeiras 4 a 12 horas de terapêutica. São considerados sinais de alarme: cefaleias, alterações do estado de consciência, sinais focais, convulsões, hipertensão arterial e bradicardia.

A sua terapêutica é emergente, exigindo recurso a cuidados intensivos e medidas específicas (elevação da cabeceira, cabeça na linha média, sedação/analgesia, ventilação) associados a perfusão de manitol (0,5 a 1 g/kg em 20 minutos) concomitantemente com redução do suprimento dos fluidos programados, a metade e ajuste da dose de insulina. Como alternativa pode utilizar-se na NaCl hipertónico a 3%: 5-10 mL/kg a cada 30 minutos com manutenção de natrémia entre 150 e 160 mEq/L.

Havendo indicação de suporte ventilatório a pCO2 deve ser mantida > 35 mmHg (não hiperventilar). Relativamente a esta norma de “não hiperventilar”, há que acautelar a verificação do pH, evitando valores baixos, de acidose, designadamente de 7 ou < 7.

Complicações

Sucintamente são referidas as seguintes complicações: rabdomiólise, mucormicose, pancreatite aguda, e outras ao nível do SNC (edema cerebral, hemorragia subaracnoideia, trombose arterial basilar, meningoencefalite, etc.).

Em 2019, no estado actual dos conhecimentos e da investigação sobre o tratamento da CAD, e no que respeita ao impacte dos diferentes protocolos de administração de fluidos sobre o prognóstico neurológico, parece não haver grandes diferenças, o que obrigará à continuação de estudos.

AGRADECIMENTOS

À Colega Drª Rosa Pina (da Unidade de Endocrinologia do HDE), pelas sugestões e  revisão inicial do manuscrito em anteriores edições.

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