Definição e importância do problema

As doenças degenerativas são situações hereditárias de baixa incidência (< 1/5.000 crianças) caracterizadas por regressão progressiva do desenvolvimento e sintomas neurológicos progressivos. Como manifestações sistémicas mais marcantes citam-se: perdas da visão, fala, audição, locomoção, muitas vezes em associação a convulsões, dificuldade alimentar e défice cognitivo).

As doenças degenerativas podem ser classificadas pelo defeito subjacente (no lisossoma, no peroxissoma, na mitocôndria, etc.) ou pela localização anatómica predominante (substância branca, substância cinzenta, gânglios da base e cerebelo). O estudo imagiológico por ressonância magnética constitui o exame que proporciona as indicações mais precisas sobre a localização do defeito. A detecção do estado de portador pode ser feita por estudo enzimático.

Perante um doente com suspeita de doença heredodegenerativa é fundamental uma cuidadosa história clínica. A anamnese permite descobrir casos semelhantes na família e perceber o tipo de hereditariedade em questão. Os antecedentes de gravidez, de parto e pós-natais podem orientar para uma etiologia sequelar e não progressiva. No que se refere à doença actual, pode evidenciar-se o carácter subagudo ou crónico da doença, a idade de aparecimento de sinais ou sintomas, o tipo de doença neurológica, a regressão do desenvolvimento e sinais ou sintomas de doença sistémica.

Apesar de não existir terapêutica eficaz, o diagnóstico é fundamental para proporcionar à família o prognóstico e o aconselhamento genético. Na maioria dos casos a transmissão é autossómica recessiva, o que confere uma probabilidade de 25% de recorrência. Pode verificar-se igualmente transmissão hereditária ligada ao cromossoma X e, mais raramente, autossómica dominante.

Estas doenças devem ser acompanhadas em centros especializados, embora os respectivos cuidados gerais possam ser ministrados no âmbito dos cuidados primários.

Manifestações clínicas

Atraso e regressão do neurodesenvolvimento

Nas formas de início neonatal o atraso pode ser grave, não se verificando aquisições.

Nas formas infantis precoces (início entre 4-18 meses) pode haver alguma aquisição de competências e, nas infantis tardias (início entre 18 meses–4 anos) e juvenis (início após os 4 anos), pode haver claramente um período de desenvolvimento normal.

Em crianças com atraso de desenvolvimento, uma lentidão extrema no ritmo de aquisições, ou a sua regressão constituem indicadores de doença progressiva.

Da mesma maneira, o aparecimento de sinais ou sintomas neurológicos, psiquiátricos ou sistémicos, ou uma história familiar informativa, são indicadores de doença progressiva e obrigam a uma investigação etiológica.

Epilepsia

A epilepsia pode surgir em várias doenças degenerativas, sugerindo o envolvimento da substância cinzenta. De facto, nas doenças da substância cinzenta a epilepsia é a manifestação clínica predominante com a particularidade de ser refractária. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Doenças neurodegenerativas e epilepsia

GM 1Doença de Menkes
Doença de SandhoffDoença mitocondrial
Doença de Tay Sachs(MERRF)
Défice de biotinidaseSialidose II
Síndroma de AlpersD. de Unverricht-Lungborg
Defeito de peroxissomasDoença de Lafora

Doença motora

A espasticidade associada à hiperreflexia osteotendinosa indica lesão da via piramidal, o que é relacionável com doença da substância branca (leucodistrofia).

A ataxia manifesta-se nas doenças do cerebelo e das vias cerebelosas, e a discinésia (distonia e coreoatetose) nas que afectam predominantemente os gânglios da base.

A neuropatia periférica pode ser resultante de desmielinização do neurónio motor periférico no estádio avançado das doenças degenerativas do sistema nervoso central. Constitui a manifestação principal em doenças do neurónio motor periférico (Charcot Marie Tooth) e nos casos de doenças com envolvimento do cerebelo (degenerescências espinocerebelosas).

Comportamento e alterações psiquiátricas

As alterações do comportamento e a doença psiquiátrica podem ser a forma de apresentação, especialmente nas formas de início juvenil e no adulto. São exemplos a doença de Wilson, a adrenoleucodistrofia, a leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe, a doença de Nieman Pick e a lipofuscinose.

Alterações do perímetro cefálico

A microcefalia progressiva por atrofia cerebral é frequente nas doenças degenerativas. Mais raramente verifica-se macrocefalia, como por exemplo nas doenças de Tay Sachs, Alexander e Canavan. O Quadro 2 resume, de modo integrado, as principais alterações do exame neurológico em diversas afecções.

QUADRO 2 – Alterações do exame neurológico nas doenças neurodegenerativas

++: alteração predominante; +: alteração associada; *: ataxia dentado rubro pálido luisiano
 EspasticidadeAtaxiaDiscinésiaOutras alterações
Leucodistrofia metacromática+++ Disartria; deterioração cognitiva; neuropatia
Adrenoleucodistrofia++++Alteração do comportamento; disfagia; neuropatia
Doença de Pelizaeus Merzbacher+++Hipotonia inicial; nistagmo
Doença de Krabbe++++Irritabilidade; neuropatia
Doença de Canavan++  Hipotonia inicial; macrocefalia
Doença de Alexander++++Macrocefalia, sinais bulbares
Argininémia++++Epilepsia; regressão
Doença de Refsum + Neuropatia; surdez
Doença de Tay Sachs GM2+++ Epilepsia; macrocefalia
GM1+++Miocardiopatia; epilepsia
Doença de Nieman Pick++++Hepatosplenomegália; epilepsia; hiperesplenismo
Síndroma de Rett+++Estereotipias das mãos; epilepsia; hiperventilação; microcefalia
Lipofuscinoses +++Epilepsia mioclónica; microcefalia
Défice de biotinidase++ Eczema; alopécia; epilepsia
Doença de Hallervorden Spatz+ ++Deterioração cognitiva
Doença de Wilson  ++Rigidez; tremor; disfagia; disartria; doença psiquiátrica
Doença de Huntington +++Disartria; epilepsia; deterioração cognitiva
Ataxia de Friedreich+++ Neuropatia; diabetes; disartria; miocardiopatia; pés cavus
Ataxia telangiectasia +++Neuropatia; apraxia óculo-motora; infecções
DRPLA* ++Epilepsia; regressão

Alterações oculares

A avaliação oftalmológica é importante, podendo orientar para a etiologia. (Quadro 3) (Partes XXVI e XXXII)

QUADRO 3 – Alterações oculares nas doenças neurodegenerativas

Atrofia ópticaDoença de Krabbe
Doença de Canavan
Doença de Pelizaeus-Merzbacher
Leucodistrofia metacromática
Síndroma de Zellweger
Lipofuscinose
Mácula cor de cerejaGM2 (Tay Sachs)
GM1
Doença de Nieman Pick
Leucodistrofia metacromática
Sialidose (tipo I e II)
Doença de Farber
RetinopatiaSíndroma de Zellweger
Mucopolissacaridoses
CDG
Doença de Refsum
Síndroma de Cockayne
Doença de Hallervoden-Spatz
Síndroma de Kearns-Sayre
Lipofuscinose
NistagmoDoença de Pelizaeus
Merzbacher
Síndroma de Leigh 
OftalmoplegiaSíndroma de Kearns-SayreSíndroma de Leigh 
Ectopia do cristalinoHomocistinúriaDéfice de Sulfito – Oxidase 
Opacidade da córneaMucopolissacaridosesOligossacaridosesMucolipidose IV
CataratasSíndroma de Zellweger
Síndroma de Lowe
Doença de CockayneGalactosémia
Anel de Kayser FleischerDoença de Wilson  
TelangiectasiaAtaxia telangiectasia  

Visceromegália

A visceromegália é sugestiva de doença lisossomial de armazenamento ou tesaurismose. Na doença de Gaucher há esplenomegália e nas mucopolissacaridoses e oligossacaridoses há hepatosplenomegália. A função hepática também pode estar alterada. A cirrose hepática na doença de Wilson e a icterícia na doença de Nieman Pick podem ser a primeira manifestação da doença.

Doença cardíaca

A doença cardíaca (cardiomiopatia e defeitos de condução) está associada a várias doenças heredodegenerativas e pode ser a causa de morte. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Alterações cardíacas nas doenças neurodegenerativas

Doenças degenerativasAlterações cardíacas
GM 1Miocardiopatia, disritmia
Glicogenose IICardiomegália; ECG típico
Doença de RefsumDefeitos de condução, insuficiência cardíaca
Mucopolissacaridoses e MucolipidosesEspessamento do miocárdio: disfunção valvular
Doença de Kearns-SayreDefeitos de condução
Ataxia de FriedreichCardiomiopatia; defeitos de condução
Doença mitocondrial de início precoceCardiomiopatia; alteração do ritmo
Doença de DuchenneMiocardiopatia

Doença renal

Na doença de Fabry há insuficiência renal por acumulação de glicosfingolípidos nos rins; na síndroma de Lowe (cérebro-óculo-renal) verifica-se disfunção tubular renal; na doença de Leish-Nyham há hiperuricémia, nefrolitíase e nefropatia obstrutiva; e, na síndroma de Zellweger, quistos renais.

Alterações cutâneas

Nalguns casos, são as alterações da pele ou do cabelo que alertam para o diagnóstico. São exemplos a síndroma de Menkes com os “pili torti”; a dermatite seborreica do défice de biotinidase; o exantema tipo pelagra da doença de Hartnup; a distribuição anómala da gordura subcutânea da síndroma CDG; ou os nódulos subcutâneos da doença de Farber. Na adrenoleucodistrofia há hiperpigmentação secundária à doença de Addison.

Diagnóstico

O diagnóstico assenta na evidência de regressão, nos sinais e sintomas neurológicos, e na presença de manifestações sistémicas.

Doenças tratáveis do SNC como tumores, processos inflamatórios (relacionáveis, por exemplo, com infecções pelo vírus da imunodeficiência humana), vasculares ou hidrocefalia devem ser excluídas.

A epilepsia refractária pode acompanhar-se de deterioração cognitiva e regressão, num processo muito semelhante ao que se encontra nas doenças degenerativas, sendo o EEG importante nesta situação.

O estudo imagiológico por ressonância magnética é um exame fundamental na investigação deste grupo de doenças, identificando as estruturas cerebrais mais afectadas. A espectroscopia permite detectar alterações do “pico” de lactato nas doenças mitocondriais, do N-acetil-aspartato na doença de Canavan, e da creatina nas doenças por défice de creatina.

O electroencefalograma (EEG), o electromiograma (EMG), a avaliação dos potenciais evocados visuais e o electrorretinograma estão indicados em casos específicos, assim como o exame do líquido céfalo-raquidiano.

Os estudos bioquímicos e metabólicos do sangue e da urina devem ser realizados, mas sempre orientados pela clínica.

O diagnóstico definitivo obtém-se pela identificação do defeito metabólico ou enzimático no sangue ou nos fibroblastos.

A disfunção neurológica acompanha-se de lesão neuronal, a qual se pode identificar por biopsias periféricas. Nas doenças caracterizadas por grande heterogeneidade genética poderá ser necessário comprovar a existência de alterações histopatológicas nos tecidos para orientar o diagnóstico molecular. Noutros casos, o estudo molecular do gene responsável constitui a via mais directa para estabelecer o diagnóstico.

Tratamento

Não existe tratamento eficaz para a grande maioria das doenças heredodegenerativas.

Em doentes assintomáticos cujo diagnóstico foi feito pela identificação da doença num familiar antes do aparecimento de doença neurológica ou em fases muito precoces da doença, são tentadas certas terapêuticas. Na adrenoleucodistrofia, a administração de gliceril trioleato e trierucato (óleo de Lorenzo) a rapazes assintomáticos, com idade inferior a 6 anos e com RM normal pode atrasar o aparecimento de alterações neurológicas.

O transplante medular também já foi utilizado em casos de adrenoleucodistrofia, na doença de Krabbe e na leucodistrofia metacromática, com algum benefício.

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