Conceitos fundamentais

Como introdução a este tema é fundamental definir alguns conceitos fundamentais para a compreensão do mesmo: sequência do desenvolvimento cerebral, plasticidade cerebral, detecção precoce e intervenção precoce.

1. Sequência do desenvolvimento cerebral

Os complexos circuitos neuronais existentes no cérebro em desenvolvimento são constituídos durante um período de tempo prolongado, na vida pré e pós-natal.

No período pré-natal ocorrem sequencialmente:

  • neurogénese (1º mês de gestação) – produção de neurónios na matriz germinal;
  • proliferação e migração neuronais (2º trimestre).

No período pós-natal:

  • sinaptogénese – formação axonal e desenvolvimento das conexões dendríticas;
  • desenvolvimento da glia;
  • organização e mielinização (com início pré-natal, mas só finalizada vários anos após o nascimento).

A sinaptogénese é o aspecto mais importante para o desenvolvimento cerebral normal.

As alterações genéticas ou adquiridas em cada uma das fases anteriores podem levar a padrões distintos de patologia cerebral ou disfunção.

Nos 2 primeiros anos de vida há uma superprodução de neurónios com um máximo desenvolvimento das conexões sinápticas nas várias camadas do córtex simultaneamente, correspondendo ao aparecimento das funções. Dos 2 aos 12 anos dá-se uma redução selectiva das sinapses através do processo designado por morte neuronal programada (apoptose) e há um “pico” de mielinização e biossíntese dos neurotransmissores correspondendo ao aperfeiçoamento das funções.

A este propósito, será importante reter as seguintes noções: 1) existem períodos chamados sensíveis ou “críticos” a que corresponde aumento do número de células e conexões sinápticas e aparecimento de aquisições/funções, traduzindo a designação “crítico”, maior susceptibilidade a determinadas noxas (noção de estrutura transitória); 2) existem estruturas específicas que provavelmente favorecem a migração celular e a formação de sinapses; 3) a morte celular e processos regressivos correspondem à especialização das funções; 4) é possível o chamado “rearranjo do sistema”: determinadas áreas silenciosas ou supletivas podem vir a “ser chamadas” a substituir uma função quando determinada zona cerebral é lesada.

2. Plasticidade cerebral

Sendo o sistema nervoso central (SNC) um sistema dinâmico, a “plasticidade cerebral” corresponde à sua capacidade de reorganização após lesão; esta reorganização implica modificação da estrutura e da forma, através de novas conexões sinápticas de modo a preservar a competência.

O desenvolvimento e a maturação cerebrais da criança têm um ritmo muito rápido nos primeiros anos de vida, pelo que tal capacidade de reorganização cerebral é seguramente maior neste período da vida do que no adulto.

A recuperação da função será tanto mais eficaz quanto mais precoce, intensiva, continuada, motivadora e específica for a actuação, sobretudo se decorrer num ambiente estimulante. Depende também da extensão e localização da lesão, sabendo-se que existem idades sensíveis para cada função. Por exemplo, no caso duma criança com uma surdez neuro-sensorial que não foi diagnosticada precocemente, sendo colocada a prótese depois os 6/9 meses, perde-se a capacidade de recuperação da audição por falta de estimulação do córtex auditivo.

Em suma, a plasticidade cerebral constitui a base em que assentam os princípios da intervenção precoce. (ver adiante)

3. Detecção precoce

Algumas deficiências manifestam-se logo ao nascer ou mesmo antes; contudo, na maioria dos casos poderá haver factores de risco susceptíveis de causar deficiência, tornando-se esta evidente apenas no decorrer do desenvolvimento da criança.

Tais crianças em risco de uma perturbação do desenvolvimento deverão ser, por isso, identificadas antes de tal pertubação se manifestar (é a noção de detecção precoce).

Assim, para uma detecção precoce dos problemas de desenvolvimento da criança é essencial que a avaliação do mesmo faça parte integrante dos cuidados de vigilância da saúde, em particular nas situações de risco biológico ou social; tais cuidados pressupõem o acompanhamento, esclarecimento e participação da família.

Por outro lado, através da avaliação do desenvolvimento, poderão ser detectados sinais de “alerta” nas áreas da motricidade, visão, audição, linguagem, cognição e comportamento, bem como problemas do ambiente social que podem e devem ser adequadamente avaliados e acompanhados através duma intervenção precoce.

4. Intervenção precoce

Intervenção precoce é toda a forma de actividades de estimulação dirigidas à criança, e de orientações dirigidas aos pais, levadas a cabo como consequência directa e imediata da detecção do risco, ou da identificação dum problema de desenvolvimento.

A intervenção precoce diz respeito à criança, aos pais, à família e ao meio ambiente alargado, tendo como objectivo criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento.

Inclui actividades como: estimulação do desenvolvimento, com ensino, e várias terapias (fisioterapia, terapia ocupacional e da fala), estratégias educacionais e a colaboração de diferentes serviços, funcionando em equipas transdisciplinares.

 O apoio cobre o período entre o momento do eventual diagnóstico pré-natal e aquele em que a criança atinge a idade da escolaridade obrigatória.

  1. Qual a sua importância?
    • Desenvolver estratégias que promovam uma adaptação plástica do cérebro aos estímulos do meio (relembrando o conceito plasticidade cerebral) uma vez que a função favorece o desenvolvimento das estruturas neuronais;
    • Experiências mais enriquecedoras podem promover alterações neuronais que favoreçam o controlo da disfunção, tendo em conta as fases de maturação do SNC, tirando partido da plasticidade cerebral.
  2. Quando se deve iniciar?
    • O mais precocemente possível, enquanto o sistema ainda está lábil e com capacidade de reorganização atendendo aos marcos, datas e idades “sensíveis” para cada função (como já atrás foi referido).
  3. Quando poderá ser demasiado tarde?
    • Quando o SNC já está organizado num “mapa” cerebral de modelos e circuitos funcionais estáveis.
  4. Objectivos da intervenção precoce:
    • Assegurar que todas as crianças em situação de risco ou com problemas de desenvolvimento, bem como as suas famílias, recebam os cuidados específicos de que necessitam, sendo necessária uma colaboração estreita dos Serviços de Saúde, Segurança Social e Educação;
    • Criar condições na família, escola e sociedade, de modo que a criança tenha o máximo de autonomia e integração;
    • Ajudar a família a ultrapassar os aspectos negativos da deficiência e a criar um olhar positivo sobre as aptidões da criança;
    • É a noção de resiliência, chamando-se a atenção para a importância dos pontos de viragem (Touch points).

Problemas neurológicos, habilitação e reabilitação

Os problemas neurológicos em que mais frequentemente está indicada a respectiva reabilitação através do SMFR são: sequelas de prematuridade; sequelas de asfixia perinatal; spina bifida; e as doenças neuromusculares.

Debruçar-nos-emos sobre a intervenção, orientações e seguimento levados a cabo pelo SMFR do HDE incidindo sobre crianças com sequelas de prematuridade, visando os recém-nascidos (RN) com um peso ao nascer (PN) inferior a 1.500 g; tais crianças constituem um grupo de risco susceptível de alterações do desenvolvimento, e igualmente um bom modelo para compreender a acção multidisciplinar da reabilitação.

A patologia da prematuridade, neste grupo de muito baixo peso (MBP), é frequentemente multissistémica, de gravidade inversamente proporcional à idade gestacional, pelo que requer o envolvimento duma equipa multidisciplinar.

Do ponto de vista do fisiatra, a maior atenção no futuro destas crianças, será dirigida a eventuais sequelas pulmonares – displasia broncopulmonar (DBP), e neurológicas – motoras, cognitivas e sensoriais (visão e audição), alterações da linguagem, do comportamento e dificuldades de aprendizagem; por isso, é feito um seguimento sistemático do seu desenvolvimento nas idades-chave, para detecção precoce de eventuais desvios/disfunções. A identificação (sinalização) e intervenção iniciar-se-ão durante o internamento na unidade de cuidados intensivos neonatais (UCIN).

Neste âmbito e revisitando os conceitos de reabilitação e habilitação, caberá dizer que no contexto da prematuridade prevalecerá o conceito de habilitação, isto é: usar um conjunto de estratégias que visem estimular e potenciar as capacidades da criança de modo que o seu desenvolvimento possa decorrer da forma mais aproximada da normalidade. Ou seja, a ideia-chave do termo “habilitação” associa-se a proactividade e antecipação.

Se uma criança com antecedentes de prematuridade vier a ter um quadro de paralisia cerebral (PC), e tiver de se submeter a uma cirurgia, por ex. para alongamentos tendinosos, tal intervenção na sequência do pós-operatório caberá no conceito de reabilitação.

Na UCIN, e de acordo com cada situação clínica, a atitude poderá ser apenas expectante e de vigilância activa de modo a detectar eventuais alterações neurológicas e/ou perturbações do neurodesenvolvimento – detecção de eventuais sinais de alarme. Inicialmente, poderá ser possível proceder apenas a cinesiterapia respiratória, se for esse o caso. Eventualmente, poderá nem haver condições para qualquer intervenção que não seja o falar com os pais, ouvi-los, tranquilizá-los, explicar-lhes, ensinando-os a interagir com “aquele ser tão pequeno”, mas que “emite sinais que têm de ter reciprocidade”.

Durante este período de internamento será privilegiado o processo de vinculação: estimulada e reforçada a importância da interacção com a criança (relação mãe/filho), que nestes casos não será tão espontânea como em circunstâncias ditas normais, pelo próprio contexto, (situação clínica, meio hospitalar, especificidade das UCIN) e impactes causados por uma situação inesperada de angústia, medo e insegurança. A envolvência na relação com aquele bebé, que é seu, e que necessitará de alguns cuidados diferentes dos habituais dum mais “maturo”, será de primordial importância. Serão apoiados e ensinados os pais no seu manejo logo que existam condições clínicas para tal.

Será feita uma sensibilização no sentido de proporcionar condições facilitadoras do bem-estar do RN: ritmo sono/vigília, calmantes da dor/diminuindo o estresse, envolvendo equipa médica e de enfermagem (por exemplo, redução da luz, do ruído e do número de intervenções com manipulação do RN).

Alguns exemplos práticos: cobrir as incubadoras de modo a protejer o RN da luz artificial das UCIN; após intervenções mais dolorosas envolver a criança com cobertor confortável em flexão, ou colocá-la sobre a mãe em posição de canguru; se tal for possível, esse contacto pele com pele é muito calmante e relaxante. Vários autores advogam também o uso cuidadoso de soluto de sacarose a 2% aplicado sobre a língua como medida de consolação em casos de dor aparente.

Serão adoptadas estratégias que promovam um neurodesenvolvimento tão harmonioso quanto possível, de acordo com as diferentes fases clínicas e a triagem das necessidades da criança, respeitando sempre o seu ritmo biológico e estabilização hemodinâmica; será melhorado o conforto promovendo uma correcta postura de “descanso”, usando por ex. os “ninhos com panos moles”; demonstrado e explicado o banho.

Será demonstrado e ensinado à mãe o manuseamento do bébé como forma de estimulação táctil, proporcionando um contacto pele com pele, transmissor de afectos, relaxante e calmante da dor, comprovadamente impulsionador de ganho ponderal.

Este é um momento íntimo e privilegiado de dar e receber, de alerta para todos os sinais que o bebé possa transmitir, os quais serão a base da comunicação para que possa crescer e desenvolver-se. Mais uma vez, a importância dos Pontos de viragem.

Far-se-á uma estimulação sensorial melhorando a interacção com a mãe de modo que essa seja uma relação gratificante.

Treinar-se-á a sucção chamada não nutritiva (que estimula a secreção salivar, designadamente) como forma de preparar a futura sucção nutritiva que, conjuntamente com uma boa coordenação com a deglutição, libertará a criança de formas mais dependentes de nutrição (parentérica, entérica, etc.) e lhe proporcionará independência na alimentação oral, nesta fase.

Este tipo de alimentação, quer seja ao peito, quer por biberão, não deverá iniciar-se antes das 34 semanas de idade pós-concepcional, pois a sucção exige um esforço demasiado para bebés muito imaturos, sendo que todo o processo que conduz a uma alimentação eficaz exige uma maturidade de várias estruturas, estabilidade clínica, treino progressivo e boa adaptação. Se, apesar de todos os anteriores pressupostos, não houver uma boa resposta, será feita uma avaliação do tono e motricidade oral para detecção de patologia; e, no caso de esta existir, serão usadas técnicas para a sua normalização.

Na prática são realizados os seguintes procedimentos:

Na data da alta hospitalar

  • Reforçado o apoio e ensino, feita a ponderação psicológica e socioafectiva de cada família;
  • Dadas eventuais orientações para as áreas de saúde respectivas de acordo com as necessidades;
  • Feito encaminhamento para o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação (MFR);
  • Outros destinos.

Após a alta hospitalar

Na Consulta (semanal) de Neonatologia (seguimento):

  • colaboração efectiva do médico reabilitador;
  • triagem das perturbações do desenvolvimento;
  • orientações e encaminhamento.

No Serviço de MFR          

  • Consulta de vigilância (seguimento do RN de MBP e RN com antecedentes de patologia perinatal);
  • Consulta de vigilância e plano terapêutico de re(habilitação);
  • Consulta de vigilância e orientações periódicas (grupo de apoio aos pais).

Na Consulta de MFR

  • Avaliação da criança e da família;
  • A avaliação do desenvolvimento psicomotor nas idades-chave (3M; 6M; 9M; 12M; 18M; 24M, posteriormente semestral ou anualmente de acordo com as necessidades);
  • Rastreio de alterações;
  • Aplicação de testes de avaliação do desenvolvimento. (M= meses)

Plano terapêutico de Re(habilitação)

  • Individualizado;
  • Implicando sempre os pais;
  • Adaptado às necessidades;
  • Reavaliado periodicamente.

A periodicidade e duração será de acordo com os objectivos propostos para:

  • o grupo etário;
  • a patologia em causa;
  • a disponibilidade dos pais;
  • os recursos institucionais.

Outros procedimentos

  • Estudo de ajudas técnicas;
  • Confecção de ortóteses – “casts”, talas-;
  • Aplicação de toxina botulínica (nas situações de espasticidade);
  • Intervenção no planeamento de cirurgia (alongamentos tendinosos, osteotomias, e outras);
  • Planeamento de actividades com componente lúdico-terapêutico: hidroterapia, natação, hipoterapia, outras actividades de grupo, de acordo com os objectivos pré-estabelecidos;
  • Orientação escolar (mantendo a ligação à escola com intercâmbio de informação com os professores, sinalizando os problemas mais relevantes e as áreas mais afectadas de modo a haver um treino mais incisivo, alertar para a necessidade de eventual apoio escolar suplementar – recrutamento de professor de apoio – Apoios Educativos Especiais e Planos Educativos Individuais previstos na lei e regulamentados para alunos portadores de deficiência, em escolas do Ensino Regular. Dec. Lei 319/91 de 23 de Agosto;
  • Integração no ensino regular que deverá ser feita com deslocação da equipa à escola, embora este processo se realize com grande dificuldade, na dinâmica do meio hospitalar;
  • Promover sempre a máxima autonomia para que seja possível uma boa integração e socialização.

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