Importância do problema

Conforme é tratado no capítulo anterior, a spina bifida (SB) é a forma mais comum de disrafismo espinal.

Tendo em perspectiva a habilitação para a marcha nos casos com esta anomalia, o Quadro 1 discrimina os diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas.

QUADRO 1 – Diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas

Nível da lesãoDéfices muscularesAlterações ortopédicas
L2 e acimaParalisia completa dos membros inferioresAncas – Flexum e luxação
L3Paralisia praticamente completa dos membros inferiores,
excepto parte dos flexores e adutores das ancas
Ancas – Flexum e luxação
Pés – Deformidades várias
L4Ancas – Défice dos abdutores, extensores e recto interno
Joelhos – Défice do quadricípete
Pés – Défice do tricípete e do tibial posterior
Ancas – Flexum e rotação externa Risco de luxação
Joelhos – Recurvatum
Pés – Talus-varus
L5Ancas – Défice dos extensores Joelhos – Défice dos ísquio-tibiais
Pés – Défice do tricípete sural
Ancas – Flexum
Joelhos – Défice de flexão
Pés – Talus
S1Ancas – Défice dos extensores
Pés – Défice do tricípete sural e dos peroneais
Ancas – Flexum redutível
Pés – Talus e talus-valgus
S2Défice dos músculos intrínsecos dos pésPés cavus e dedos em garra

Intervenção

A actuação envolve uma série de intervenções pluridisciplinares escalonadas ao longo do tempo, adaptadas à evolução da criança, e tentando responder às solicitações da família em que ela se insere.

Em qualquer intervenção (re)-habilitadora há que: respeitar e facilitar as diversas etapas do neurodesenvolvimento da criança, nomeadamente a aquisição do controlo cefálico e do tronco, da quadrupedia (quando possível), da verticalização, e da funcionalidade dos membros superiores; e, igualmente estimular o desenvolvimento das funções perceptivas e cognitivas e da aquisição da linguagem e da fala.

Em geral, as crianças com SB são simpáticas e sociáveis, e não levantam problemas de comunicação nem de socialização.

Só uma equipa multi e transdisciplinar que envolva médicos, médicos fisiatras, enfermeiros, terapeutas (fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e terapeutas da fala), psicólogos, técnicos do serviço social, educadores e professores, pode dar resposta aos inúmeros desafios que um doente com spina bifida coloca.

A (re)-habilitação destas crianças visa essencialmente três objectivos: 1 – a preservação da função renal (e a obtenção de continência esfincteriana socialmente aceitável). 2 – a aquisição da marcha ou, na impossibilidade desta, a deambulação autónoma. 3 – a promoção dum desenvolvimento psicomotor adequado.

Neste capítulo é abordada concisamente a intervenção na área da (re)abilitação motora, que visa essencialmente: a) – evitar as deformidades e alterações posturais; b) – a aquisição da deambulação autónoma.

O tratamento preventivo dos desalinhamentos segmentares dos membros inferiores em crianças com esta patologia, uma preocupação presente desde o nascimento, mantém-se ao longo do crescimento.

Desde os primeiros dias de vida avaliam-se as alterações músculo-esqueléticas, motoras, sensitivas e esfincterianas, estabelecendo o nível da lesão medular. Nas situações em que se detectam, ou prevêem, alterações posturais ou contracturas musculares (que podem originar flexum, subluxações, talismo ou equinismo), utilizam-se técnicas de fisioterapia (mobilização, estimulação e posicionamentos) e confeccionam-se pequenas ortóteses; de preferência ligaduras funcionais executadas com adesivo hipoalérgico, ou talas de material termomoldável, necessariamente leves e almofadadas para posicionamento dos joelhos, tíbio-társicas e pés. Um exemplo frequente de contracturas precoces é o dos flexores da anca e do joelho, (flexum) cuja instalação pode ser prevenida colocando o bebé em decúbito ventral várias vezes por dia.

À medida que a criança cresce e se desenvolve vai sendo necessário reavaliá-la periodicamente, estabelecendo de modo definitivo o nível de lesão medular, o que nem sempre se consegue nas primeiras observações. Presta-se especial atenção à detecção precoce de deformidades, não só nos membros inferiores, como na coluna vertebral. A luxação ou subluxação das ancas, os flexa dos joelhos, as alterações posturais dos pés e as escolioses são frequentes e exigem intervenções terapêuticas atempadas.

As luxações e subluxações das ancas têm indicação cirúrgica se forem dolorosas, caso a criança tenha potencialidades para a marcha (lesões abaixo de L3); ou se forem unilaterais (provocando assimetria da bacia e dificuldade em assumir a posição de se sentar).

As alterações dos joelhos e a sua repercussão funcional são habitualmente de menor importância. A prevenção dos seus flexa faz-se pelo posicionamento com talas de extensão.

As deformidades dos pés (talus, equinus, aductus, valgus, equino varus), quando rígidas, requerem correcção cirúrgica em tempos que devem ser discutidos entre especialistas que tratam o doente, como o ortopedista, o neurocirurgião e o fisiatra.

As escolioses, por serem progressivas, com graves consequências posturais e respiratórias, têm indicação cirúrgica desde que a curvatura torácica tenha angulação superior a 40 graus. Antes, logo que sejam detectados desvios estruturados da coluna vertebral, deve actuar-se através do uso de ortóteses do tronco (coletes). Estes não irão alterar a progressão da curvatura, mas permitem uma postura mais correcta do tronco, facilitando a posição de sentar e a funcionalidade dos membros superiores.

Para conseguir o ortostatismo e a marcha, a criança com SB necessita, regra geral, de algum tipo de ajuda técnica (abordada adiante). Caso não consiga uma marcha autónoma, poderá beneficiar de algum meio de deambulação adaptado, como a cadeira de rodas, de propulsão manual ou eléctrica.

Atendendo ao carácter de multideficiência de que a maioria das crianças com SB padece, são necessárias intervenções terapêuticas que englobem, quer técnicas de estimulação do neurodesenvolvimento, quer fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e outras.

Todas estas terapêuticas, sejam as preventivas e correctivas das alterações músculo-esqueléticas, com os esforços na obtenção da marcha, sejam as estimuladoras do desenvolvimento, utilizam algum tipo de ajudas técnicas, para compensar a deficiência ou incapacidade presentes.

As ajudas técnicas também denominadas apoios tecnológicos (AT), incluem um conjunto de equipamentos, produtos e serviços que têm como objectivo promover a independência das pessoas com deficiência e incapacidade, tendo como finalidade a igualdade de oportunidades e a inclusão social. As mesmas abrangem um vasto leque de aparelhos e mecanismos que vão, de simples talas, até equipamentos sofisticados de controlo remoto, passando por cadeiras de rodas manuais ou motorizadas, próteses para amputados, aparelhos auditivos, óculos e lentes de contacto, ventiladores mecânicos, e equipamentos de apoio às actividades de vida diária.

Em resumo, no conceito de AT é englobado qualquer aparelho ou mecanismo que auxilia o doente com deficiência, promovendo a normalização funcional e melhorando a sua qualidade de vida. Um dos subgrupos das AT é o das ortóteses atrás definidas.

As AT são necessárias à maioria das crianças com SB, não só pela necessidade de alinhamento do tronco e membros, com vista à verticalização e deambulação, mas também para estimular o desenvolvimento e facilitar a sua integração na família, na escola e na sociedade. O seu uso deve ser iniciado precocemente. É comum a indicação de ligaduras funcionais e de talas posteriores logo no período neonatal.

Também nos primeiros 3 meses, após a estabilização clínica, se introduzem as cunhas e os rolos para estimulação do controlo cefálico e do tronco. Posteriormente serão: o banco triangular – que facilita o equilíbrio do tronco e a função dos membros superiores; o plano inclinado com rodas – que promove a verticalização e permite à criança ter uma perspectiva diferente do ambiente que a rodeia e a deambulação assistida; o standing frame – para o ortostatismo, que possibilita actividades numa mesa de trabalho ou de refeições; e o andarilho, na preparação da marcha. Esta, em grande número de casos, só é possível com o uso de ortóteses para os membros inferiores e de auxiliares de marcha, que podem ser canadianas, pirâmides ou andarilhos.

Para conseguir o ortostatismo e eventual marcha, procede-se aos ajustes posturais e correcções de deformidades através do uso de ortóteses do tronco (coletes e assentos moldados) e dos membros inferiores (talas de posicionamento). Todas as ortóteses devem ter protecção das zonas de pressão, devido ao défice sensitivo.

De salientar que é possível estabelecer uma relação entre o nível da lesão, as ortóteses necessárias e o prognóstico de marcha.

Na realidade, devido a múltiplos factores (excesso de peso, deformações adquiridas, medula ancorada, défice cognitivo, alterações emocionais, problemas familiares e outros) nem todas as crianças atingem a capacidade de deambulação prevista para um determinado nível de lesão.

Há AT ligadas às novas tecnologias que podem aplicar-se à (re)-habilitação de crianças com deficiências específicas. O uso de computador na escola justifica-se quando o ritmo de execução da criança é lento, não conseguindo acompanhar os outros alunos. Embora a motricidade fina possa estar afectada, a maioria das crianças com SB consegue ter um grafismo e escrita aceitáveis, sendo o computador apenas um auxiliar e não um substituto destas funções.

Nos casos raros em que existem alterações da linguagem e da fala, recorre-se aos meios aumentativos e alternativos de comunicação que, através de tecnologia informática, com software e acessos adaptados, favorecem o desenvolvimento dos conceitos linguísticos e promovem a comunicação e a socialização das crianças com estas deficiências.

GLOSSÁRIO

Flexum > termo considerado por alguns especialistas como “gíria”, e não completamente correcto, para significar rigidez articular em flexão ou contractura articular em flexão.

Ortóteses > aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de um membro, ou a deficiência de uma função.

Prótese > aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, membro ou parte de um membro destruído ou gravemente afectado.

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