INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA AGUDA

Definição e importância do problema

A insuficiência hepática aguda (IHA) ou insuficiência hepática fulminante é uma síndroma complexa, multissistémica, que se caracteriza por alteração hepática aguda grave (necrose maciça de hepatócitos e ou alteração grave da sua função de destoxificação, síntese e excreção), subentendendo-se duração da sintomatologia inferior a 8 semanas (ver adiante).

Dum modo geral ocorre como primeira manifestação de doença em crianças previamente saudáveis, sem hepatopatia conhecida, embora também possa ocorrer naquelas com doença hepática crónica estabelecida.

Anteriormente considerava-se essencial a presença de deterioração neurológica (encefalopatia hepática) para o diagnóstico de falência hepática aguda. Actualmente, sabe-se que em idade pediátrica o compromisso neurológico, difícil de detectar em crianças pequenas, é também uma manifestação tardia no decurso da doença, não constituindo consequentemente um critério fundamental para o diagnóstico.

A prevalência da doença em idade pediátrica é desconhecida. Sabe-se que nos Estados Unidos da América (EUA) afecta até 17/100.000 pessoas/ano de todos os grupos etários e que cerca de 10 a 15% dos transplantes pediátricos são efectuados por falência hepática aguda.

Apesar de rara em pediatria, a mortalidade é elevada (até 80% em crianças não submetidas a transplante hepático). A evolução galopante da patologia implica uma minuciosa e rápida abordagem diagnóstica e terapêutica.

Etiopatogénese

Os factores etiológicos são diversos, dependendo da idade, área geográfica e nível socioeconómico. De acordo com o Quadro 1 são descritos vários grupos, salientando-se que em cerca de 40-50% dos casos não é possível identificar etiologia definida (formas ditas idiopáticas). As situações mais frequentes são a hepatite vírica, as de origem tóxico-medicamentosa e as do foro metabólico.

QUADRO 1 – Causas de insuficiência hepática aguda

Período neonatal
    • *Infecciosa
      • Herpes vírus
      • Echovírus
      • Adenovírus
    • *Metabólica
      • Hemocromatose neonatal
      • Galactosémia
      • Doenças mitocrondriais
    • *Isquémia
      • Doença cardíaca congénita
      • Miocardite
      • Asfixia grave
Período pós-neonatal
    • *Infecciosa
      • Hepatites víricas (A, B, D, E, B+D associadas); outros vírus
    • *Fármacos
      • Paracetamol
      • Valproato
      • Isoniazida
    • *Tóxicos
      • Amanita phalloides
    • *Metabólica
      • Doença de Wilson
    • *Autoimune
      • Hepatite
    • *Isquémia
      • Doença cardíaca congénita
      • Miocardite
      • Síndroma de Budd-Chiari

O mecanismo fisiopatológico inerente ao estabelecimento da afecção não está completamente esclarecido, nomeadamente o facto de, perante o mesmo potencial factor etiológico, somente nalgumas crianças se desenvolver o quadro clínico grave.

O quadro clínico decorre tipicamente da destruição maciça dos hepatócitos por lesão citotóxica directa ou por resposta imunogénica. Existem dois tipos de lesão principal: 1) – necrose hepática extensa com colapso da arquitectura lobular (mais comum na doença provocada por vírus hepatotrópicos, intoxicação por paracetamol ou intoxicação por cogumelos); 2) – degenerescência hepatocelular com esteatose maciça e necrose hepática pouco extensa (situação mais frequentemente associada a doenças metabólicas).

Outros factores associados à lesão do hepatócito incluem: alteração do processo de regeneração, hipoperfusão sanguínea do parênquima, endotoxémia, e depressão da função do SRE.

É frequente surgir coagulopatia, a qual ocorre por diminuição da síntese hepática de factores de coagulação, associada a um aumento do consumo dos mesmos assim como de plaquetas.

A hipoglicemia, presente em 40% dos doentes, surge associada sobretudo a diminuição da neoglicogénese e das reservas de glicogénio, paralelamente a um aumento das necessidades em glucose, e a hiperinsulinémia por diminuição da depuração hepática.

O mecanismo da encefalopatia pode relacionar-se com a hiperamoniémia, incremento da actividade dos receptores de GABA e incremento de níveis circulantes de compostos endógenos formados, semelhantes a benzodiazepinas; todos estes produtos têm o seu processo de depuração hepática comprometida, num círculo vicioso.

Reportando-nos ao Quadro 1, são abordados os principais factores etiológicos:

Infecções

As infecções são a causa mais frequente de insuficiência hepática aguda, variando o agente etiológico consoante o grupo etário e a área geográfica. Em regra, aponta-se a proporção de 1-2% de hepatites víricas em geral evoluindo para IHA.

É consensual que agentes como os vírus da hepatite A, da hepatite B, vírus herpes simplex, parvovírus B16, enterovírus e adenovírus podem provocar IHA.

Existem outros microrganismos que poderão originar lesão hepática mas, isoladamente, raramente provocam falência hepática aguda, nomeadamente: vírus da hepatite C/VHC, vírus de Epstein Barr/VEB, citomegalovírus/CMV, herpes vírus 6 e vírus da imunodeficiência humana/VIH.

Nos países ditos desenvolvidos, 80% dos casos de IHA são provocados por hepatite, sintomática em menos de 1% das crianças; esta baixa proporção tem tendência a diminuir tendo em conta a imunização levada a cabo nalguns países.

A hepatite B é uma causa importante de falência hepática em países em desenvolvimento nos países em que a doença é endémica e não existe programa de imunização apropriado. A mortalidade é maior em adultos jovens e quando a transmissão ocorre fora do período perinatal. Relativamente à comparticipação da infecção por vírus da hepatite E, rara nos países desenvolvidos, é uma das principais causas de IHA no subcontinente indiano.

A anamnese e o exame objectivo são essenciais, já que poderão fazer suspeitar do agente etiológico causal; da apresentação clínica poderão fazer parte manifestações clínicas e/ou laboratoriais apontando para determinado agente: é o caso da varicela, da infecção por vírus de Epstein Barr ou por Parvovírus B19 (cursando este último frequentemente com anemia aplásica).

Fármacos e tóxicos

Numerosos fármacos e substâncias constituem a segunda causa mais frequente de IHA nas crianças, tendencialmente com melhor prognóstico do que a doença provocada por infecções. A lesão hepática ocorre por mecanismo hepatotóxico directo ou por reacção idiossincrática, conforme a lesão seja dependente da dose ou não.

Pela sua utilização muito frequente em pediatria, o paracetamol é uma das causas mais frequentes de IHA. Esta pode ocorrer associada: – à ingestão aguda de doses superiores a 100mg/kg/dia (tipicamente, ingestão intencional nos adolescentes ou, mais raramente, ingestão acidental em crianças pequenas): – ou à ingestão crónica de doses superiores a 15mg/kg/dose a cada 4 horas durante mais de 24 a 48 horas. Têm maior risco de hepatotoxicidade as crianças mais novas, com período de jejum prolongado ou as que são medicadas concomitantemente com outros fármacos potencialmente hepatotóxicos (anticonvulsantes, isoniazida, entre outros).

A seguir ao paracetamol, os fármacos implicados com mais frequência são a isoniazida, o propiltiouracilo, a fenitoína e o ácido valpróico.

Para além dos fármacos, importa salientar a toxicidade conhecida de longa data provocada pela ingestão de toxinas através do cogumelo Amanita phalloides.

Hepatopatias autoimunes e doenças neoplásicas infiltrativas

As hepatopatias autoimunes são causas raras de IHA, acompanhando-se de autoanticorpos positivos (ANA e antimúsculo liso) e hipergamaglobulinémia.

Quanto às doenças hemato-oncológicas salientam-se a linfo-histiocitose hemofagocítica, as leucemias e os linfomas; trata-se de afecções com prognóstico reservado ou mau, em cuja base etiopatogénica está uma infiltração maciça do fígado.

Doenças metabólicas

De acordo com a literatura, as causas metabólicas comparticipam na proporção de 10% dos casos de insuficiência hepática aguda nos EUA e Europa do Norte.

Geralmente a falência hepática de causa metabólica ocorre em recém-nascidos ou lactentes pequenos em contexto de doença sistémica, muitas vezes sem diagnóstico etiológico prévio. Torna-se óbvio que será da maior importância o diagnóstico etiológico feito em fase precoce, tendo em conta que a doença de base poderá ter tratamento específico, o que poderá conduzir a regressão da hepatopatia.

As afecções do foro metabólico, designadamente as que evoluem para IHA, para além do grave compromisso do estado geral, cursam geralmente com hipoglicemia, acidose e aumento do ácido láctico. Ao contrário da maioria das outras causas de insuficiência hepática, tipicamente existe hepatomegalia.

No período neonatal e no pequeno lactente com insuficiência hepática aguda devem ser ponderadas etiologias como a galactosemia, a tirosinémia, a doença de Niemann-Pick tipo C e ainda doenças mitocondriais. Nas crianças mais velhas e adolescentes a IHA pode estar associada a erros inatos da síntese de ácidos biliares, intolerância hereditária à frutose, doença de Wilson ou doenças da oxidação dos ácidos gordos, entre outras causas.

Outras causas

Por fim, a lesão hepática grave poderá constituir um epifenómeno de hipoperfusão hepática por problema circulatório, como, por exemplo, choque grave como acontece em doentes com quadro de sépsis ou pós-hemorragia aguda.

Também, toda e qualquer situação em que haja obstrução na saída do fluxo venoso hepático (designadamente na doença vasoclusiva e síndroma de Budd-Chiari) poderá conduzir a IHA.

Manifestações clínicas

Como regra geral, pode referir-se que a apresentação clínica depende do factor causal.

Por outro lado, a falência hepática (aguda/fulminante) em idade pediátrica poderá ser:

  1. a primeira manifestação de doença hepática; ou
  2. a complicação de doença hepática previamente conhecida (situação designada “aguda sobre crónica”).

Na segunda condição (2.) poderá verificar-se previamente atraso do neurodesenvolvimento ou disfunção neuromuscular, quadro provavelmente relacionado com doença mitocondrial, ou doença da beta-oxidação.

Os sinais e sintomas associados a IHA surgindo de modo progressivo, de duração inferior a 8 semanas, são: icterícia, fetor hepático, anorexia, febre, náuseas, vómitos, hipoglicemia, dor abdominal, culminando em diátese hemorrágica (epistaxes, gengivorragias, equimoses fáceis, hemorragia abundante nos locais de punção venosa ou, nos casos mais graves, hemorragia digestiva), ascite e, depois, diminuição das dimensões do fígado (sendo este último sinal de muito mau prognóstico).

Esta evolução progressiva poderá ser acompanhada de dificuldade alimentar, e doutra sintomatologia relacionada com quadro de encefalopatia cuja gravidade depende do grau de edema cerebral. É a principal causa de mortalidade.

Sistematizando a gravidade da encefalopatia através de determinados sinais e sintomas, e de alterações do EEG, são descritos 4 graus: I- orientação espacial alterada e alterações mínimas do EEG; II- confusão, letargia ou agitação, associada a EEG lento generalizado; III- Estupor e hiperreflexia, com EEG lento anormal; IV- coma associado a hipertonia inicialmente, seguindo-se fase de hipotonia, arreflexia osteotendinosa, óculo-cefálica e pupilar, com EEG evidenciando ondas delta. Ulteriormente verifica-se postura típica dos estados de descerebração e de descorticação.

A encefalopatia hepática, mais prevalente em crianças abaixo dos três anos de idade, ocorre em fase mais tardia da evolução atrás descrita; pode traduzir-se por convulsões, por alterações subtis, inespecíficas, do comportamento, ou ainda por períodos de desorientação discreta.

Em crianças mais velhas, em certas formas clínicas de IHA idiopática, a encefalopatia poderá manifestar-se cerca de 8-24 semanas após o início da icterícia.

Em suma, tendo em conta a necessidade de elevado nível de suspeição por parte do clínico, haverá que valorizar determinados sinais e sintomas sugestivos de doença hepática que podem sugerir o diagnóstico de IHA, nomeadamente, coagulopatia, hipoglicémia e encefalopatia.

Diagnóstico

Não existem critérios diagnósticos estabelecidos para a IHA na idade pediátrica.

A encefalopatia, habitualmente presente, não constitui, no entanto, um critério obrigatório porque o seu diagnóstico em idade pediátrica é difícil, sobretudo nas crianças mais pequenas; por outro lado, tal problema é mais notório na fase terminal da doença.

Tipicamente, a suspeita de falência hepática recai na criança sem patologia prévia, com um início agudo (menos de 8 semanas) de icterícia, anorexia e mal-estar geral, alterações bioquímicas da função hepática, coagulopatia (com tempo de protrombina superior a 15 segundos ou INR > 1,5 não corrigido com a administração de vitamina K, na presença de encefalopatia; ou > 20 segundos com INR > 2 na situação com ou sem encefalopatia) e com alterações do estado de consciência.

É essencial uma história clínica minuciosa, designadamente, no que diz respeito a: data de início e duração dos sintomas, exposição a contactos com hepatite infecciosa, história de transfusões sanguíneas prévias e de medicação (nomeadamente sem prescrição médica), e a história familiar de hepatite infecciosa, autoimune ou outras doenças sistémicas com envolvimento hepático.

Nos recém-nascidos é importante a revisão de possíveis infecções do grupo TORCH e, nos adolescentes, a exposição a drogas, tatuagens ou piercings.

No Quadro 2 são descritos os exames complementares a realizar numa primeira abordagem da criança com IHA. Deve ser analisada a enzimologia hepática a fim de aferir o grau de infecção, inflamação e lesão hepáticas: como regra, existe elevação da alanina-aminotransferase e aspartato-aminotransferase assim como da bilirrubina sérica. A síntese hepática de albumina, colesterol e ureia encontra-se diminuída, existindo geralmente hiperamoniémia por diminuição da depuração da amónia.

QUADRO 2 – Avaliação da insuficiência hepática aguda

*Diagnóstico de coagulopatia; 1) na presença de encefalopatia hepática: INR > 1,5 e TP = ou > 15 segundos; 2) com ou sem encefalopatia hepática: INR > 2 e TP = ou > 20 segundos

Investigação geral

Exames Laboratoriais (sangue)

    • Hemograma
    • Tempo de protrombina (TP) e INR*
    • Doseamento dos Factores V e VII
    • Bilirrubina total e fraccionada
    • Aminotransferases
    • Fosfatase alcalina
    • Gama-glutamiltranspeptidase
    • Proteínas totais e albumina
    • Amónia
    • Glicose
    • Ureia e creatinina
    • Ionograma

Exames imagiólogicos

    • Radiografia do tórax
    • Ecografia abdominal
    • Tomografia axial computadorizada
    • Ressonância magnética crânio-encefálica

Exame neurofisiológico

    • EEG
Investigação etiológica
    • Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes causas (Quadro 1)

As alterações da coagulação ocorrem em 100% das crianças com IHA, salientando-se que valor de factor V inferior a 17%, de factor VII inferior a 8%, e INR superior a 4 são sinais de mau prognóstico.

Sempre que possível, deve tentar-se identificar a causa da insuficiência hepática, tendo em vista a eventualidade de se dispor de terapêutica específica em função da respectiva etiologia.

A investigação etiológica e os exames complementares a realizar deverão ter em conta o grupo etário e a suspeita diagnóstica, entre outros factores. São exemplos as investigações laboratoriais seguintes:

  1. serologias para vírus (VHA, VHB, RNA VHC, CMV, VIH, parvovírus B19 ou adenovírus);
  2. pesquisa de tóxicos (nomeadamente, pela frequência, o paracetamol); e
  3. pesquisa de marcadores de autoimunidade como os anticorpos antinucleares/ANA e antimúsculo liso/AML ou SMA.

A biópsia hepática, não essencial, não é normalmente efectuada nas crianças com IHA tendo em consideração o risco de hemorragia, e o valor limitado da histologia nas estratégias diagnóstica e terapêutica. Habitualmente, a biópsia fica reservada para: – doentes com suspeita de doença de Wilson, caso os outros critérios diagnósticos sejam inconclusivos, ou; – situações associadas a etiologia indeterminada.

Tratamento

O tratamento da falência hepática aguda compreende: – medidas gerais; – medidas específicas consoante a etiologia; e – outras medidas extraordinárias como o transplante hepático urgente.

Dada a gravidade e a morbimortalidade elevadas, todas as crianças devem ser admitidas em unidades de cuidados intensivos pediátricos com acesso a programa de transplante hepático.

A terapêutica traduz-se essencialmente pelas seguintes medidas: – evitar as complicações; – tratar a encefalopatia hepática; – evitar factores potencialmente desencadeantes ou agravantes (sobrecarga hídrica, sobrecrescimento bacteriano, profilaxia da hemorragia gastrintestinal); e – controlar a coagulopatia (designadamente através da administração de vitamina K e de factores de coagulação).

Importa salientar que na intoxicação por paracetamol deve ser utilizada a N-acetilcisteína como antídoto e, quando a causa da insuficiência hepática é a infecção por herpes vírus ou citomegalovírus, deve ser efectuada terapêutica antivírica específica (aciclovir e ganciclovir, respectivamente).

Existem actualmente sistemas de suporte hepático artificial com depuração extra-hepática dos metabólitos, susceptíveis de substituição temporária da função hepática.

A transplantação hepática é, no entanto, a única medida curativa disponível actualmente nos doentes com IHA. Deverá ser realizada o mais precocemente possível, salientando-se que o dano neurológico irreversível com edema ou herniação cerebral, a falência multiorgânica, e a sépsis são contraindicações formais para a sua realização.

Prognóstico

O prognóstico das crianças com IHA é reservado, com uma mortalidade que atingia, na era pré-transplante, até 80% das crianças. Actualmente, a sobrevivência aumentou, o que se deve aos progressos realizados no campo dos cuidados intensivos pediátricos, e à rápida inserção destas crianças em centros de referência com vasta experiência e programas de transplante hepático.

A sobrevivência espontânea, sem recurso ao transplante hepático, é maior nas crianças com intoxicação por paracetamol (até 94%), e menor nas com doença metabólica associada.

São factores de mau prognóstico: – a etiologia (nomeadamente se insuficiência associada a fármacos ou a hepatite não A); – a idade (crianças com idade inferior a 2 anos); – a presença de encefalopatia grave; – a apresentação clínica subaguda ou fulminante; e – bilirrubina sérica superior a 17,5mg/dL.

É importante referir que, mesmo nas crianças submetidas a transplante hepático por falência hepática aguda, a sobrevivência global é de apenas de 74% no final do primeiro ano, e de 69% após quatro anos. A sobrevivência é maior nas crianças submetidas a transplante por doença hepática crónica, sem falência aguda.

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HIPERTENSÃO PORTAL

Definição

É definida como a elevação persistente da pressão venosa portal > 10-12 mmHg (normal entre 5-10 mmHg). Efectivamente, as complicações de hipertensão portal não ocorrem até que o gradiente de pressão portal (gradiente entre a veia porta e a veia cava inferior) exceda os 12 mmHg. O aumento da resistência ao débito do sangue portal – a anomalia hemodinâmica primária – origina esplenomegália e desenvolvimento de vasos colaterais porta-sistémicos em vários locais (varizes no esófago distal, gástricas, anorrectais, umbilicais e da parede abdominal).

Etiopatogénese

O sistema portal começa e acaba em capilares, tendo origem no mesentério, intestino e baço. O retorno venoso ao baço dá-se pela veia esplénica, onde desembocam as veias gástricas e, posteriormente, se unem as veias mesentéricas inferior, superior e coronárias, formando a veia porta. No hilo hepático, a veia porta divide-se em dois ramos e depois ramifica-se de modo a penetrar nos sinusóides hepáticos. O retorno venoso faz-se para as veias hepáticas que confluem, formando três veias supra-hepáticas que desembocam na veia cava inferior e na aurícula direita. O sistema portal é de baixa pressão, sendo responsável por 75% do fluxo hepático, fornecendo oxigénio, nutrientes e hormonas.

A hipertensão portal inicia-se a partir do aumento da resistência ao fluxo sanguíneo hepático. Há um aumento da resistência vascular sinusoidal resultante de factores mecânicos (deposição de fibrose) e dinâmicos (disfunção endotelial, produção ineficaz de óxido nítrico, aumento dos vasoconstritores e aumento da contractilidade das células estreladas). Esta interacção constante impede que a formação de vasos colaterais seja suficiente para aliviar a pressão portal.

As causas de hipertensão portal podem ser classificadas de acordo com a localização da obstrução ao fluxo sanguíneo portal em:

  • Extra-hepáticas
  • Intra-hepáticas. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Causas de hipertensão portal

Hipertensão portal extra-hepática
    • Trombose, ou transformação cavernosa da veia porta
    • Agenésia, atresia ou estenose da veia porta
    • Trombose da veia esplénica
    • Fluxo venoso portal aumentado
Hipertensão portal intra-hepática
    • Esquistossomíase
    • Fibrose hepática congénita
    • Neoplasias
    • Quistos hepáticos
    • Cirrose/doença hepática crónica
    • Doença venoclusiva / síndroma de obstrução sinusoidal
    • Atrésia das vias biliares extra-hepáticas
    • Quisto do colédoco
    • Hipoplasia ductular intra-hepática
    • Doença de Wilson
    • Défice de alfa-1 antitripsina
    • Fibrose quística
    • Glicogenose tipo IV
    • Colangite esclerosante
    • Síndroma de Budd-Chiari
    • Obstrução pós-sinusoidal
    • Metrotexato
    • Nutrição parentérica
    • Idiopática

A causa mais frequente de hipertensão portal é a intra-hepática, nomeadamente a cirrose, sendo a cirrose pós-necrótica e a cirrose biliar as mais comuns em idade pediátrica.

Relativamente às causas extra-hepáticas, que abrangem as pré e as pós-hepáticas, a trombose da veia porta é a mais prevalente, podendo ser secundária a cateterismo da veia umbilical (30% dos casos) mas também a onfalite, anomalias congénitas, trauma local, peritonite, pancreatite ou a sépsis.

A doença venoclusiva é relativamente rara e ocorre após transplante medular ou em doentes com imunodeficiência. Quando existe uma obstrução extra-hepática da veia porta, dá-se uma vasodilatação arterial compensatória, ocorrendo em poucos dias, a formação de vasos colaterais que ultrapassam a obstrução. Após um período de 4 a 5 semanas forma-se um cavernoma (característica ecográfica deste distúrbio).

A síndroma de Budd-Chiari (trombos desenvolvidos na veia hepática e na veia cava inferior) surge geralmente em adultos jovens e ocorre quando os trombos desenvolvidos na veia hepática entram na veia cava inferior. Está relacionada com síndromas mieloproliferativas ou estados tromboembólicos, nomeadamente na deficiência de antitrombina III, proteína C ou S ou Factor V Leiden, síndroma de anticorpos antifosfolípidos ou mutações no gene da protrombina.

Muitas das complicações da hipertensão portal podem ser explicadas pelo desenvolvimento de circulação colateral relevante em áreas em que o epitélio da absorção se junta ao epitélio estratificado (sobretudo esófago e região anorrectal).

A nível do estômago verifica-se ectasia vascular que origina o quadro designado por gastropatia congestiva.

Manifestações clínicas

Inicialmente, a hipertensão portal é assintomática.

Numa fase mais avançada surgem quatro manifestações clínicas, consideradas principais:

  • Hemorragia gastrintestinal
  • Esplenomegália
  • Ascite
  • Encefalopatia porta-cava.

A hemorragia gastrintestinal, sob a forma de hematemeses e melenas, é a forma de apresentação mais comum (50-90% dos casos). Na maioria dos episódios surge por ruptura de varizes esofágicas, mas o sangramento pode ter origem noutros locais do tubo digestivo; tal implica a necessidade emergente de identificar o local de lesão. As hematemeses são abundantes ou moderadas, surgindo geralmente após um episódio de dor abdominal associada a palidez cutânea. As melenas surgem simultaneamente ou depois. Por vezes constituem a manifestação isolada da hemorragia intestinal.

O risco de hemorragia por ruptura de varizes esofágicas ou gástricas é de cerca de 50%, sendo que é significativamente superior (80%) quando existe obstrução extra-hepática da veia porta.

A esplenomegalia, o sinal físico mais frequente (~90%) e a forma de apresentação em 25% dos casos, é característica da hipertensão portal pré-hepática. O baço tem consistência firme ou dura, dependendo da duração da hipertensão portal. O hiperesplenismo está associado a anemia, trombocitopénia e ou leucopénia.

A ascite, associada em geral à hipertensão de causa sinusoidal ou pós-sinusoidal, é rara na forma pré-sinusoidal.

A encefalopatia porta-cava é rara na idade pediátrica. Os sinais e sintomas são mal definidos e incaracterísticos: perda de capacidades intelectuais; alterações de consciência e sinais neuromusculares como ataxia e tremor. Esta situação ocorre nos doentes com doença hepática grave com derivações porta-sistémicas.

Outra manifestação frequente é a vascularização abdominal proeminente devida ao desenvolvimento de colaterais; denomina-se “cabeça de medusa” quando estes vasos irradiam do umbigo.

Diagnóstico

Na maioria dos casos o diagnóstico é efectuado através da anamnese e exame físico; podem, no entanto, ser realizados vários exames complementares. Sendo a esplenomegália o achado mais comum verificado no exame objectivo, tal facto não dispensa a pesquisa sistemática doutros sinais, nomeadamente hemorragia gastrintestinal, ascite, vascularização colateral, alterações neurológicas e “aranhas vasculares”.

Pode existir anemia, leucopénia ou trombocitopénia, bem como alterações da função hepática e da coagulação.

A ecografia abdominal permite confirmar e caracterizar a esplenomegália, a existência de colaterais vasculares e o seu diâmetro.

A utilização de ecografia doppler dá informação quanto a velocidade e direcção do fluxo sanguíneo na veia porta, veias hepáticas e veia cava.

A endoscopia digestiva é utilizada como meio de diagnóstico e terapêutica de varizes gastresofágicas e anorrectais. É o exame complementar “padrão de ouro” para avaliação de lesões gastrointestinais resultantes de hipertensão portal. Não está bem estabelecida a altura ideal da sua realização em idade pediátrica.

A angiorressonância tem sido utilizada como alternativa não invasiva à angiografia convencional. A angiografia é importante antes da realização da derivação cirúrgica porta-sistémica e de transplante hepático de modo a averiguar sobre a permeabilidade da veia mesentérica superior. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Diagnóstico de hipertensão portal

Exame físico
    • Esplenomegália
    • Vasos na parede abdominal proeminentes
    • Ascite
    • Hemorróidas
    • Sinais de doença hepática crónica
Exames laboratoriais
    • Hemograma
    • Bilirrubina total e fraccionada
    • Fosfatase alcalina
    • Gama-glutamiltranspeptidase
    • Aminotransferases
    • Desidrogenase láctica
    • Albumina
    • Tempo de protombina
    • Ionograma sérico
Outros exames
    • Ecografia e eco doppler abdominal
    • Endoscopia gastrointestinal
    • Angiografia

Complicações

As quatro complicações major, classicamente descritas e indissociáveis das manifestações clínicas, são:

  • Varizes com hemorragia
  • Ascite
  • Encefalopatia
  • Esplenomegália

Tratamento

A actuação terapêutica na hipertensão portal, sintetizada no Quadro 3 (o qual relaciona os procedimentos com as complicações descritas), pode ser dividida em: – tratamento de emergência da hemorragia aguda com risco vital; e em – prevenção de hemorragia inicial ou subsequente.

Nos casos de hemorragia aguda por ruptura de varizes está indicada fluidoterapia (inicialmente cristalóides IV, seguindo-se transfusão de concentrado eritrocitário até valores de hemoglobina de 9g/dL). Igualmente, deve ser corrigida a coagulopatia com administração de vitamina K, transfusão de concentrado de plaquetas e plasma fresco. Em doentes com hemorragia significativa, deve ser colocada uma sonda nasogástrica (ou orogástrica, menos frequentemente) e fazer uma lavagem com água ou soro fisiológico (à temperatura ambiente) para documentar hemorragia activa e remover detritos e coágulos, o que facilitará a visualização durante a endoscopia, diminuindo também o risco de aspiração.

A terapêutica farmacológica inclui supressores da produção de ácido e somastatina (ou análogos).

Em doentes hemodinamicamente instáveis, está recomendado o uso de um inibidor da bomba de protões (IBP) endovenoso (omeprazol 0,5 -2mg/kg) ou de um antagonista do receptor 2 da histamina (ranitidina 2-4mg/kg). Em crianças estáveis, a administração de um inibidor da bomba de protões pode ser feita por via oral (omeprazol ou esomeprazol). O uso de IBP diminui a recidiva, o tempo de internamento e a necessidade de transfusões.

O octreótido (análogo da somatostatina) é eficaz na redução e controlo da hemorragia em casos seleccionados, como terapêutica adjuvante antes da endoscopia, ou quando esta está contraindicada. Actua diminuindo o fluxo venoso portal e a pressão nas varizes, reduzindo a recidiva da hemorragia. É comum a administração de um bolus inicial de 1-2mcg/kg (máximo 100mcg), seguido de uma infusão ev contínua na dose de 1-2mcg/kg/hora.

A duração desta terapêutica não está bem estabelecida, sendo necessário reajustamento da dose de acordo com a resposta. Cessando a hemorragia, as doses são gradualmente reduzidas num período de 24 horas.

Como alternativa, pode utilizar-se vasopressina (análogo do octreótido), fármaco que aumenta o tono vascular esplâncnico e, consequentemente, o débito sanguíneo portal: bolus de 0,33U/Kg em 20 minutos, seguido por administração IV contínua (0,2U/1,73m2/minuto).

A endoscopia digestiva deverá ser realizada assim que o doente estiver estabilizado, idealmente num período de 24-48 horas, de modo a identificar a origem da hemorragia e corrigi-la. A laqueação elástica de varizes é actualmente preferível à escleroterapia; esta última técnica, utilizada de preferência em crianças mais pequenas (peso<10kg), está contudo associada a maior número de complicações que a laqueação elástica (pneumonia, estenose esofágica, dismotilidade, úlceras, mediastinite e perfuração). Excepcionalmente, é necessário proceder à colocação de um tubo com balão para tamponamento (tubo de Sengstaken-Blakemore) para realizar compressão gástrica e esofágica.

Deve ser assegurado o suprimento proteico, limitar a ingestão de sódio e iniciar espirolactona. Na descompensação aguda está indicada a perfusão de albumina (1-2g/kg) juntamente com furosemida (1-2mg/kg). Casos graves associados a hiponatrémia podem beneficiar de terlipressina (20 mcg/kg a cada 4-6h). Crianças que desenvolvam síndroma hepatorrenal, com oligúria/anúria necessitam de diálise ou hemofiltração.

Na ascite refractária sintomática deve ser realizada como medida urgente, paracentese com infusão de albumina. Contudo, verificando-se ascite, a única terapêutica realmente eficaz será o transplante hepático.

A prevenção de complicações da hipertensão portal faz-se com a realização anual de endoscopia digestiva, aplicação de medidas gerais para impedir o aumento da pressão portal (evitar exercício intenso, tratamento sintomático da tosse) e factores lesivos da mucosa (anti-inflamatórios não esteróides). Deve ainda ser iniciada a ranitidina e um beta-bloqueante como um propranolol.

A imunização contra microrganismos capsulados é recomendada em crianças com asplenia funcional resultante da hipertensão portal.

Nos doentes com descompensação, hemorragia, ou ascite refractária, a realização de técnica de derivação porta-sistémica intra-hepática pode ser importante como ponte de ligação para o transplante hepático. Tal procedimento deve ser realizado apenas em crianças com mais de 2 anos, e sempre tendo em atenção que em 60% dos casos se verifica oclusão num período de 6 a 12 meses, o que aumenta para o dobro probabilidade de surgir encefalopatia.

O transplante está indicado em doentes com ascite refractária ao tratamento em nos casos de cirrose progressiva ou com episódios frequentes de descompensação refractária às medidas descritas.

QUADRO 3 – Complicações de hipertensão portal

Complicação

Actuação prática

Hemorragia de varizes esofágicas

      • Fluidoterapia, correcção de coagulopatia.
      • Sonda nasogátrica.
      • Inibidor bomba de protões/Antagonista do receptor 2 da histamina
      • Octreótido ou Vasopressina
      • Endoscopia digestiva alta

Ascite

      • Aumentar o suprimento de Albumina (1-2 g/kg)
      • Limitar ingesta de Na(1-2 mEq/kg/dia)
      • Diuréticos: furosemida (1-2 mg/kg), espironolactona (2-6 mg/kg/dia)
      • Hemodiálise/Hemofiltração
      • Paracentese
      • Derivação porta-sistémica
      • Transplante hepático

Encefalopatia hepática

      • Restrição proteica
      • Lactulose/Neomicina
      • Transplante hepático

Hiperesplenismo

      • Derivação porta-sistémica
      • Transplante hepático

Prognóstico

A hipertensão portal causada por trombose da veia porta ou da veia esplénica cursa com mortalidade mais baixa e tratamento conservador. Em caso de hemorragia recorrente, a medida mais correcta será a técnica de derivação, o uso de beta-bloqueantes e a escleroterapia.

O prognóstico é mais reservado nas situações provocadas por doença intra-hepática, designadamente cirrose. Na maioria dos doentes com atrésia das vias biliares, desenvolve-se ascite e hemorragia antes dos dois anos de idade.

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CIRROSE HEPÁTICA

Definição e importância do problema

A cirrose hepática representa o estádio final da doença hepática progressiva. Caracteriza-se histologicamente pela presença de fibrose com distorção da arquitectura hepática e formação de nódulos parenquimatosos regenerativos. A cirrose é tendencialmente uma doença de evolução progressiva e até há pouco tempo considerada irreversível. Actualmente é aceite como uma patologia dinâmica com potencial de reversibilidade se tratada de forma adequada precocemente.

Segundo a Organização Mundial de Saúde a cirrose é a 18ª causa de morte no mundo, sendo na Europa responsável por 1,8% do total de óbitos (cerca de 170.000/ano). Não existem dados epidemiológicos específicos da cirrose hepática na criança. Sabe-se, no entanto, que as crianças com doença hepática crónica são susceptíveis a várias complicações que afectam a sua qualidade de vida e reduzem a sobrevivência. Os avanços recentes no diagnóstico e no tratamento desta entidade (especialmente no que diz respeito ao transplante hepático) contribuíram de forma significativa para a sobreviência na idade pediátrica.

Etiopatogénese

A cirrose pode ser classificada de diversas formas com base em critérios etiológicos, morfológicos, histológicos e clínicos. A classificação etiológica tem um carácter preditivo da gravidade e evolução da doença, podendo ser dividida em três grupos principais: pós-hepatite (na sequência de hepatite aguda ou crónica), pós-necrótica (secundária a lesão tóxica), e biliar (secundária a obstrução biliar crónica).

Existem várias doenças hepáticas que podem progredir para cirrose, conforme discriminado no Quadro 1.

QUADRO 1 – Causas de cirrose hepática

Doenças biliares
    • Atrésia das vias biliares
    • Quisto do colédoco
    • Síndroma de Alagille, hipoplasia biliar
    • Colestase intra-hepática familiar
    • Colangite esclerosante
Doenças hepáticas ou pós-necróticas
    • Hepatite neonatal
    • Hepatite B
    • Hepatite C
    • Hepatite D
    • Hepatite autoimune
    • Drogas e tóxicos
Doenças metabólicas
    • Défice de Alfa-1 antitripsina
    • Doença de Wilson
    • Hemocromatose
    • Galactosémia, frutosémia, doenças de armazenamento de glicogénio
    • Tirosinémia, doenças do ciclo de ureia
    • Doença de Gaucher, Niemann-Pick tipo C, síndroma de Zellweger
Vascular
    • Trombose da veia porta, síndroma de Budd-Chiari
    • Doença veno – oclusiva
    • Doenças cardíacas

A atrésia biliar e as causa hereditárias de colestase intra-hepática são as causas mais comuns de doença hepática crónica na criança. Nos primeiros anos de vida a atrésia biliar e as síndromas genético-metabólicas são as etiologias mais prevalentes, enquanto nas crianças mais velhas são as hepatites víricas e as doenças autoimunes que predominam. Nem sempre é possível identificar a causa da doença hepática, sendo que 5 a 15% dos casos de cirrose na idade pediátrica são considerados de etiologia indeterminada (criptogénica).

A atrésia biliar ocorre nas primeiras semanas de vida, caracterizando-se por obstrução completa dos ductos biliares. A hipertensão portal e a cirrose biliar tendem a ocorrer logo no início da doença. Manifesta-se como icterícia desde o nascimento e, em 15 a 30% dos doentes, pode cursar com outras anomalias extra-hepáticas (defeitos congénitos cardíacos e renais, entre outros). O tratamento é cirúrgico e deve ser o mais precoce possível. Sem tratamento geralmente as crianças a esperança de vida varia entre os 18 e os 24 meses.

A causa mais comum de colestase intra-hepática progressiva familiar é a síndroma de Alagille, situação associada a uma mutação no gene JAG1 localizado no braço curto do cromossoma 20. O diagnóstico pode ser difícil nos primeiros meses de vida apresentando-se com colestase importante, salientando-se que as crianças apresentam outras características como fácies peculiar e malformações dos arcos vertebrais, cardíacas e/ou oculares. Há progressão para cirrose em 20 a 25% dos casos.

No que diz respeito às causas víricas, as hepatites B e D são as causas mais comuns de cirrose na adolescência. Apesar de a transmissão da hepatite C poder ocorrer na infância, tipicamente a progressão para cirrose só ocorre mais tardiamente na idade adulta.

A cirrose pode ser classificada morfologicamente como micronodular (presença de nódulos com menos de 3 mm de diâmetro), macronodular (nódulos de dimensão superior a 3 mm de diâmetro) ou mista (presença de componentes dos dois subtipos anteriores). Esta classificação é pouco utilizada já que a aparência macroscópica do fígado tendencialmente evolui à medida que a doença progride (a cirrose micronodular normalmente progride para macronodular) e, para além disso, é pouco específica no que diz respeito à etiologia. Actualmente os marcadores serológicos disponíveis são mais específicos na determinação da etiologia do que o aspecto morfológico do fígado.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da cirrose depende da etiologia da mesma e da eventualidade de situação clínica de doença compensada ou descompensada. Cerca de 40% dos doentes são assintomáticos previamente ao episódio de descompensação hepática. A primeira suspeita clínica decorre muitas vezes do achado acidental de hepato-esplenomegália ou a documentação analítica de valores alterados de enzimas hepáticas. As manifestações clínicas podem incluir sintomas e sinais inespecíficos como anorexia, fadiga, náuseas ou vómitos.

Na avaliação global da criança assintomática podem estar presentes estigmas típicos de doença hepática que façam suspeitar do diagnóstico, nomeadamente eritema palmar e plantar, presença de telegenctasias, dedos em baqueta de tambor ou dilatação das veias da parede abdominal. A palpação abdominal pode revelar um fígado aumentado ou, nos casos mais avançados, pequeno, nodular e duro. Uma evolução estaturo-ponderal abaixo do expectável pode ser um dos sinais precoces de doença hepática crónica; por isso, é essencial a avaliação antropométrica regular.

Na maioria dos casos a primeira suspeita clínica de doença hepática crónica ocorre quando há descompensação hepática e a criança apresenta icterícia, prurido, distensão abdominal, ascite, hemorragia gastrintestinal alta, ou até, alteração do estado de consciência associado a encefalopatia hepática.

Diagnóstico

Uma história clínica minuciosa é essencial na avaliação da criança com doença hepática crónica. É fundamental ter em atenção certos pormenores relacionados com antecedentes familiares (nomeadamente história de infecção materna por vírus, designadamente das hepatites B, C ou D), do período neonatal (nomeadamente intercorrências como colestase hepática, nutrição parentérica, entre outras), assim como a existência de tatuagens ou piercings nos adolescentes.

O estudo laboratorial é importante para avaliar o grau de lesão e de função celulares. As aminotransferases – aspartato-aminotransferase (AST) e alanina-aminotransferase (ALT) – são indicadores sensíveis, mas não específicos de lesão hepatocelular. Encontram-se de forma geral moderadamente elevadas, referindo-se que na maioria das formas de hepatite crónica existe ratio AST/ALT inferior a 1, que pode reverter à medida que há progressão para cirrose. Quando existe lesão celular provocada por obstrução hepática as enzimas canaliculares como a fosfatase alcalina (FA) e a gama-glutamil transferase (GGT) aumentam, assim como a bilirrubina sérica.

Os marcadores de função hepática (albumina e factores de coagulação) apresentam uma boa correlação com a síntese hepática e, consequentemente, são importantes como indicadores de prognóstico. A hipoalbuminémia e o aumento do tempo de protrombina que se mantêm, apesar da administração de vitamina K, são sugestivos da existência de descompensação hepática importante. Estes marcadores não são, no entanto, específicos uma vez que existem outras causas de hipoalbuminémia, nomeadamente síndroma nefrótica, enteropatia exsudativa e má nutrição.

Deve também fazer parte da investigação laboratorial um hemograma completo e a avaliação da função renal (determinação sérica da ureia e da creatinina). Na doença crónica grave existe geralmente repercurssão no hemograma: inicialmente trombocitopenia e, posteriormente, leucopénia e anemia à medida que a doença progride. A trombocitopenia ocorre essencialmente pelo estabelecimento de hipertensão portal associada à esplenomegalia congestiva, o que pode determinar um quadro de sequestro da massa plaquetária circulante, podendo ser da ordem de 90%.

No decurso da abordagem diagnóstica é fundamental a identificação da etiologia da doença crónica, já que as implicações terapêuticas e prognósticas são distintas. Nesta perspectiva torna-se imperioso efectuar estudo serológico vírico (designadamente dirigido aos vírus das hepatites B, C, VIH e, eventualmente a outros, dependendo da história clínica da criança).

A ecografia abdominal permite identificar a textura, a presença e o tamanho dos nódulos hepáticos, assim como a presença de esplenomegalia associada. A utilização da ecografia Doppler permite avaliar a direção e o fluxo da veia porta. Métodos não invasivos como a elastografia podem ser úteis na identificação do grau de fibrose hepática. Outros exames imagiológicos, nomeadamente TC e RM, não são geralmente utilizados na investigação diagnóstica.

A biópsia hepática prevalece como técnica de excelência / gold standard no diagnóstico de cirrose hepática, permitindo designadamente a análise da arquitectura hepática, a confirmação do grau de actividade da doença e, muitas vezes, a determinação da etiologia; a sua sensibilidade diagnóstica varia entre 80 e 100% dependendo do tamanho e número de amostras. Apesar das vantagens descritas quanto à precisão diagnóstica, a biópsia não é normalmente efectuada quando as manifestações clínicas e os resultados das avaliações laboratoriais e imagiológicas sugerem o diagnóstico e, por outro, os resultados anatomo-patológicos não sejam absolutamente decisivos quanto às opções terapêuticas.

O quadro 2 sintetiza os exames complementares a efectuar na investigação da criança com doença hepática crónica.

QUADRO 2 – Exames complementares

Investigação geral
    • Exames laboratoriais
      • Hemograma
      • Bilirrubina total e conjugada
      • Fosfase alcalina
      • Gama-glutamiltranferase
      • Aminotransferases
      • Desidrogenase láctica
      • Albumina
      • Tempo de protrombina/INR
      • Colesterol total
      • Alfafetoproteína
    • Outros exames
      • Ecografia hepática
      • Endoscopia digestiva alta
      • Biópsia hepática
Investigação etiológica específica
Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes causas (De acordo com as possíveis causas de cirrose hepática – Quadro 1.)

Complicações

Tendencialmente as complicações da cirrose surgem associadas à descompensação da doença de base (geralmente no decurso de infecções, hemorragia, toma medicamentosa, desidratação, entre outros). A má-nutrição é frequente e associa-se a morbimortalidade importante, pelo que a sua rápida identificação é essencial. O quadro 3 descreve as principais complicações associadas a esta entidade.

QUADRO 3 – Complicações de cirrose na idade pediátrica

    • Má-nutrição e restrição de crescimento
    • Hipertensão portal e hemorragia de varizes esofágicas
    • Hiperesplenismo
    • Ascite
    • Encefalopatia
    • Coagulopatia
    • Síndroma hepatopulmonar
    • Infecções bacterianas, peritonite bacteriana
    • Carcinoma hepatocelular

As infecções são relativamente frequentes (respiratórias, do tracto urinário ou a peritonite bacteriana espontânea, mais rara, mas potencialmente mais grave). Pode também surgir ascite, encefalopatia e síndroma hepato-renal.

A ascite, comum na idade pediátrica em situações de doença hepática terminal, está geralmente associada a mau prognóstico. Na maioria dos casos responde à restrição dietética de sódio e ao uso de diuréticos, embora exigindo vigilância rigorosa e contínua do doente. Na ascite refractária ou associada a dificuldade respiratória pode ser necessário proceder a paracentese.

A encefalopatia hepática é, na maioria das vezes, causada por infecções embora também possa ser consequência de hemorragia gastrintestinal, desequílibrio hidro-electrolítico e obstipação. O diagnóstico é muitas vezes dificil já que a apresentação pode variar entre forma subclínica e alterações subtis do estado de consciência, ou mesmo, coma.

O carcinoma hepatocelular nas crianças com doença hepática crónica é decorrente da progressão da doença metabólica, colestática ou vírica, sendo a sua etiopatogénese multifactorial.

Tratamento

O tratamento tem como objectivos principais retardar ou evitar a progressão da doença hepática e prevenir as suas complicações. Assim, os objetivos principais são identificar-se e controlar a causa da doença.

A imunização contra microrganismos capsulados é recomendada sobretudo nas crianças com asplenia funcional devido à hipertensão portal crónica.

Nos doentes com descompensação e ascite refractária, a realização de shunt porta-sistémico intra-hepático pode ser importante tendo em perspectiva ulterior transplante hepático. Este está indicado em doentes com cirrose progressiva ou descompensações frequentes refractárias às medidas levadas a cabo.

Prognóstico

O prognóstico da cirrose hepática é variável já que depende de múltiplos factores como a etiologia, gravidade da doença-base, presença de complicações e co-morbilidades associadas.

O factor preditivo de descompensação hepática mais relevante é o aumento do gradiente de pressão venosa hepática, muitas vezes não avaliado por rotina em pediatria. O risco de mortalidade e a atribuição do grau de prioridade tendo em vista eventual transplante hepático são calculados com base em escalas ou índices de gravidade como os designados pelas siglas MELD (Model for End-Stage Liver Disease) para aplicar em pacientes com idade superior a 12 anos, ou PELD (Pediatric End-Stage Liver Disease) utilizado em pacientes com menos de 12 anos.

Para o cálculo da escala PELD utiliza-se fórmula matemática logarítmica complexa valorizando os seguintes parâmetros: idade em menores de 1 ano, albumina em g/dL, bilirrubina total em mg/dL e restrição do crescimento < 2 desvios–padrão.

No que respeita à classificação prognóstica de Child-Pugh, utilizam-se os parâmetros: – encefalopatia; – ascite; – bilirrubina em mg/dL; – albumina em g/L; -tempo de protrombina/TP (em segundos) ou INR. A cada parâmetro é atribuída pontuação de 1, 2 ou 3. (quadro 4)

 QUADRO 4 – Classificação de Child-Pugh

Pontuação123

Encefalopatia

Ascite

Bilirrubina (mg/dL)

Albumina (g/dL)

TP (em segundos)

INR

não

não

< 3

> 3,5

1-4

 < 1,8

grau 1-2

ligeira

3-4

2,8-3,5

4-6

1,8-2,3

grau 3-4

moderada

> 4

<2,8

>6

>2,3

Pontuação:5-6 <> doença compensada
7-9 <> compromisso funcional significativo
10-15 <> doença descompensada, menor taxa de sobrevivência

BIBLIOGRAFIA

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DOENÇA DE WILSON

Definição e importância do problema

A doença de Wilson (ou degenerescência hepatolenticular) é uma alteração rara do metabolismo do cobre, de transmissão autossómica recessiva, que se caracteriza por acumulação excessiva de cobre no sistema nervoso central, fígado, rins, córnea, esqueleto e outros órgãos. Ocorre com uma prevalência de homozigóticos em 1 a 4 /100.000 indivíduos, predominantemente em populações com elevada taxa de consanguinidade. Pode manifestar-se em qualquer idade, sendo mais frequente entre os 3 e 35 anos.

Etiopatogénese

O gene da doença de Wilson (localizado na região q14.3 do cromossoma 13, de que se conhecem mais de 300 mutações) codifica uma ATP-ase do tipo-P (ATP7B) que se expressa principalmente (mas não exclusivamente) nos hepatócitos e que se admite ter papel crucial na excreção biliar do cobre.

Com efeito, as alterações do funcionamento dos órgãos ocorrem por depósito anormal de cobre nos lisossomas devido a excreção biliar inadequada. Tal resulta de incorporação anormal do cobre em proteínas hepáticas tais como a ceruloplasmina.

Na doença de Wilson, a acumulação de cobre ocorre primariamente no fígado, após a 1ª/2ª década de vida. O cobre é libertado do fígado quando a capacidade de acumulação é excedida, sendo então depositado noutros tecidos.

A peroxidação lipídica das mitocôndrias, como resultado da sobrecarga em cobre, conduz a alterações funcionais de carácter tóxico, inibindo diversos processos enzimáticos.

Como complemento do que foi referido antes, cabe salientar que o cobre é um metal essencial, cofactor de muitas enzimas. O fígado é o órgão com maior concentração tecidual de cobre, seguido do cérebro, miocárdio e rins. A homeostase do cobre corporal depende do consumo dietético diário (2-5 mg/dia), da sua absorção intestinal (~30-50% do consumo diário), das necessidades metabólicas (1 mg/dia), e da capacidade de excreção biliar.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas relacionam-se com o depósito de cobre em órgãos específicos, mais frequentemente no fígado (90% dos casos), e no sistema nervoso central. A forma de apresentação é variável nas crianças, sendo rara antes dos cinco anos. As manifestações hepáticas precedem habitualmente as manifestações neurológicas durante 5 a 10 anos. (Quadro 1)

doença hepática manifesta-se habitualmente por icterícia recorrente, hepatite aguda autolimitada, hepatite autoimune, falência hepática aguda ou doença hepática crónica.

As manifestações neurológicas traduzem-se por alterações do movimento (tremores, incoordenação motora, perda de controlo da motricidade fina, coreia e coreoatetose) ou distonia rígida (rigidez, alterações da marcha e compromisso pseudobulbar).

As alterações psiquiátricas manifestam-se habitualmente por depressão, comportamentos neuróticos, alterações da personalidade e, ocasionalmente, deterioração intelectual.

As alterações do sistema ocular englobam o chamado anel de Kayser-Fleischer, correspondendo a um aspecto de cor de café esverdeado na margem externa da iris, devido a depósito anómalo de cobre na membrana de Descemet da córnea; este sinal clínico, pouco frequente antes dos 8 anos, surge em ~50% dos doentes com início de manifestações hepáticas, em ~90% nos que se manifestam com sintomatologia inicial do foro do SNC.

QUADRO 1 – Manifestações clínicas da doença de Wilson

Fígado
    • Hepatite aguda
    • Hepatite crónica activa
    • Cirrose
    • Insuficiência hepática fulminante
Sistema nervoso central
    • Neurológicas
    • Psiquiátricas
Oftalmológicas
    • Anel de Kayser-Fleischer na córnea (obs. com lâmpada de fenda)
    • Catarata
Outras
    • Renais
    • Esqueléticas
    • Cardíacas
    • Anemia hemolítica
    • Litíase biliar

Diagnóstico

Pode ser difícil, uma vez que não existe um único exame complementar que confirme a doença. Deve-se admitir-se a hipótese diagnóstica de doença de Wilson perante um quadro de doença hepática de etiologia não esclarecida associada a sinal neurológico ou psiquiátrico.

Neste contexto clínico deverá determinar-se o valor da ceruloplasmina que, na maioria dos casos de doença de Wilson, está diminuída. Numa fase precoce o cobre sérico está elevado e a sua excreção urinária (normalmente inferior a 40 mcg/dia), está elevada (100-1000 mcg/dia).

Se estiver presente a tríade clássica de doença hepática, manifestações neurológicas e anel deKayser-Fleischer, o diagnóstico torna-se mais fácil. Contudo, tal raramente ocorre, pelo que se torna necessário um elevado índice de suspeita decorrente da anamnese e do exame objectivo rigorosos.

A suspeita clínica implica o encaminhamento para centros especializados na perspectiva da realização dum conjunto de exames complementares tais como:

  • hemograma, provas da função hepática, doseamentos séricos de acido úrico, fosfato, cobre, ceruloplasmina, e doseamento do cobre em urinade 24 horas;
  • doseamento do cobre no tecido hepático obitido por biópsia; e
  • exame oftalmológico com lâmina de fenda para pesquisa de anel de Kayser Fleischer.

Os dados histológicos obtidos por biópsia hepática são sobreponíveis aos encontrados na hepatite crónica activa: degenerescência gorda, hepatócitos em “balão”, grânulos de glicogénio e células de Küpfer de maiores dimensões.

A microscopia electrónica permite identificar grandes mitocôndrias.

Na doença de Wilson o conteúdo do cobre hepático excede 250 mcg/grama. Nas formas heterozigóticas os valores são inferiores.

Através da biologia molecular, análise da mutação do gene ATP7B é particularmente útil quando as alterações clínicas e bioquímicas não são específicas e em familiares em 1º grau de pacientes com doença de Wilson já diagnosticada.

O diagnóstico diferencial das alterações hepáticas detectadas faz-se com a hepatite autoimune e outras formas de hepatite crónica e cirrose criptogénica.

O exame imagiológico através da ressonância magnética pode ser de grande utilidade perante situações em que são notórias as manifestações neuropsiquiátricas. As alterações do putamen e dos gânglios basais sugerem depósito de metais.

Nota de síntese: o diagnóstico de doença de Wilson pode ser confirmado se, pelo menos, dois dos três parâmetros seguintes evidenciarem resultados anómalos: ceruloplasmina baixa, cobre urinário elevado e cobre hepático elevado.

Tratamento

O tratamento da doença de Wilson tem dois objectivos:

  1. Minorar a deposição de cobre nos tecidos através da utilização de quelantes do cobre tais como a penicilamina e a trientina; com esta estratégia poderá ser prevenido o desenvolvimento das alterações hepáticas, neurológicas e psiquiátricas em indivíduos assintomáticos afectados, e atenuar as manifestações em indivíduos sintomáticos.
    A recuperação das alterações neurológicas ou hepáticas poderá demorar vários meses.
  2. Prevenir a acumulação futura de cobre através de dieta com reduzido teor em cobre (inferior a 0,6 mg/dia) (evitando designadamente, vísceras, cacau, chocolate, marisco, brócolos, cogumelos, frango, nozes) com inibidores da absorção do referido microelemento (sais de zinco e tetratiomolibdato).

No que respeita a fármacos, podem ser utilizados:

  • D-penicilamina, o mais seguro e eficaz, de eleição nas formas hepáticas (associado a suplemento de vitamina B6 por se tratar do antimetabólito desta vitamina); é tomado oralmente, fora das refeições (em regra com intervalo de 2 horas) na dose de 20 mg/kg/dia, sem ultrapassar 1 grama/dia; como nota importante refere-se que, nos doentes com formas clínicas predominantemente neurológicas, poderá haver agravamento dos sintomas, o que implica utilização muito cuidadosa; as doses administradas poderão ser reduzidas em função dos resultados obtidos ao longo dos anos;
  • Trientina (di-hidrocloreto de trietileno tetramida), também por via oral na dose de 20 mg/kg/dia (máximo: 1,5 g/dia) e fora das refeições; pode ser usado em doentes com hipersensibilidade à penicilamina;
  • Zinco por via oral (em geral, acetato de zinco, com melhor absorção) na dose de 75 mg/dia em pacientes com < 50kg, em 3 doses, meia hora antes das refeições; os sais de zinco estão indicados sobretudo nos doentes assintomáticos;
  • Tetratiomolibdato por via oral, não disponível no nosso País.

A transplantação hepática poderá estar indicada se ocorrer insuficiência hepática aguda fulminante ou doença hepática descompensada, sem resposta à terapêutica.

Prognóstico

Sem terapêutica esta doença é fatal. A acumulação de cobre no fígado leva ao desenvolvimento de cirrose e, nos doentes com doença neurológica, a situação pode progredir para distonia grave, acinésia e mutismo. Na maioria dos casos os doentes morrem de doença hepática (cirrose ou insuficiência hepática aguda); em menor proporção, o desfecho traduz-se em complicações da doença neurológica progressiva.

No entanto, com terapêutica médica adequada e regime alimentar com restrições de cobre durante toda a vida, a evolução pode ser considerada favorável. Nos doentes em que se procedeu a transplante hepático a evolução é em geral muito boa.

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COLESTASE DO RECÉM-NASCIDO E LACTENTE

Definição e importância do problema

A colestase do recém-nascido e lactente define-se como a redução do fluxo biliar, com consequente acumulação de pigmentos biliares nos hepatócitos e canais biliares e aumento da concentração sérica dos produtos que são excretados em circunstâncias normais pela bílis como bilirrubina, ácidos biliares, colesterol; tal processo traduz-se essencialmente por hiperbilirrubinémia conjugada desde o período neonatal (primeiras 4 semanas de vida) e prolongando-se nos primeiros meses de vida.

Na prática são adoptados os seguintes critérios laboratoriais no RN e lactente até aos 4 meses: bilirrubinémia conjugada >20% da total, ou >17 umol/L (1 mg/dL).

Como consequência da marcada redução de ácidos biliares no lume intestinal verifica-se, entre outros efeitos, défice de absorção de gorduras (até 50% de ácidos gordos essenciais e de LCPUFA), assim como de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) e de outros micronutrientes como o zinco. Por outro lado, aumentam as necessidades energéticas na ordem de 120-150% do DRI, o que poderá obrigar a estratégias nutricionais específicas.

Factores etiológicos e classificação

O Quadro 1 sintetiza os principais factores etiológicos implicados na colestase do recém-nascido e lactente os quais permitem uma classificação. Dum modo geral podem estar em causa agentes exógenos e condições patológicas congénitas específicas.

QUADRO 1 – Colestase do recém-nascido e lactente: factores etiológicos e classificação

Adaptado de Suchy FJ, 2001

Hepatite neonatal

    • Idiopática
    • Infecções víricas
      • Citomegalovírus
      • Vírus herpes
      • Rubéola
      • Reovírus tipo 3
      • Adenovírus
      • Enterovírus
      • Parvovírus B19
      • Vírus da hepatite B
      • VIH (vírus da imunodeficiência humana)
    • Infecções bacterianas e parasitárias
      • Sépsis bacteriana e endotoxémia (infecção urinária,gastrenterite)
      • Listeriose
      • Sífilis
      • Tuberculose
      • Toxoplasmose
      • Malária

Obstrução das vias biliares

    • Colangiopatias
      • Atrésia das vias biliares
      • Quisto do colédoco
      • Hipoplasia biliar não sindromática
      • Síndroma de Alagille
      • Colangite esclerosante neonatal
      • Perfuração espontânea da via biliar
      • Doença de Caroli
      • Fibrose hepática congénita
      • Estenose da via biliar
    • Outras
      • Bílis espessa
      • Colelitíase
      • Tumores/massas (intrínsecas e extrínsecas)

Síndromas colestáticas

    • Colestase intra-hepática familiar progressiva causada por defeitos de transporte tipo 1 (doença de Byler), tipo 2 e tipo 3
    • Colestase hereditária com linfedema (síndroma de Aagenaes)
    • Colestase dos Índios Norte Americanos
    • Síndroma de Nielsen (Esquimós da Groenlândia)
    • Colestase recorrente benigna (defeito no mesmo gene da colestase familiar progressiva do tipo 1)
    • Síndroma de Dubin-Johnson neonatal
    • Síndroma de Rotor

Doenças metabólicas

    • Deficiência de alfa 1 antitripsina
    • Fibrose quística
    • Hemocromatose neonatal
    • Endocrinopatias
      • Hipopituitarismo (displasia septo-óptica)
      • Hipotiroidismo
    • Alteração do metabolismo dos aminoácidos
      • Tirosinémia
      • Hipermetioninémia
    • Alteração do metabolismo dos lípidos
      • Doença de Nieman-Pick
      • Doença de Gaucher
      • Doença de Wolman
      • Doença do armazenamento do colesterol
    • Doenças do ciclo da ureia (deficiência de arginase)
    • Alteração do metabolismo dos hidratos de carbono
      • Galactosémia
      • Frutosémia
      • Glicogenose do tipo IV
    • Doenças mitocondriais (cadeia respiratória)
    • Doenças dos peroxizomas
      • Sindroma de Zellweger
      • Doença de Refsum infantil
      • Outras enzimopatias
    • Defeitos de síntese dos ácidos biliares
    • Tóxicos
      • Drogas
      • Nutrição parentérica
      • Alumínio
    • Outras
      • Choque/hipoperfusão
      • Histiocitose X
      • Lúpus eritematoso neonatal
      • Cromossomopatias:
    • Trissomia 18,21 (síndroma de Down)
    • Linfo-histiocitose eritrofagocítica
    • Doença venoclusiva
    • Síndroma de Donahue (leprechaunismo)
    • Eritroblastose fetal
    • Défice congénito de glicosilação

Manifestações clínicas

Apesar de serem inúmeras as causas de colestase, a apresentação clínica é semelhante, reflectindo sempre a diminuição do fluxo biliar.

Os lactentes com colestase evidenciam icterícia de intensidade variável, urina escura, fezes claras e hepatomegália, associando-se em geral sinais de disfunção de síntese e de necrose hepatocelular.

No exame objectivo alguns aspectos podem orientar para determinadas etiologias:

  • Lactentes com restrição de crescimento intra-uterino – síndroma de Alagille, doença metabólica, infecção intra-uterina;
  • Sinais dismórficos – síndroma de Alagille, cromossomopatias, síndroma de Zellweger;
  • Hipoglicémia – doença metabólica, hipopituitarismo, insuficiência hepática;
  • Sopro cardíaco ou manifestações neurológicas – sindromas congénitas específicas.

Diagnóstico

A avaliação do recém-nascido e lactente com colestase deve ser feita de modo sistematizado. De tal metodologia vai depender, em grande parte, a sua evolução, pelo que se aconselha o envio destas crianças a centros especializados com experiência neste tipo de patologia. É, de facto, imperativo reconhecer atempadamente situações com indicação de tratamento médico (galactosémia, tirosinémia, sépsis) ou de tratamento cirúrgico que não poderão ser diferidos sob pena de aparecimento complicações e sequelas (por exemplo, atrésia das vias biliares extra-hepáticas, que deverá ser operada até às 6 semanas) pelo risco de cirrose hepática.

Todo o aumento sérico da bilirrubina conjugada, superior a 15-20% da bilirrubina total, é patológico e deve ser sempre investigado. Em todo o recém-nascido com icterícia prolongada (mais de 15 dias) sobretudo se não estiver a ser alimentado ao peito, é fundamental excluir colestase determinando o valor da bilirrubina total e conjugada.

Durante a avaliação as fezes devem ser examinadas diariamente durante pelo menos 10 dias, dejecção a dejecção, para determinar se há acolia contínua ou intermitente. A persistência de acolia durante 10 dias ou mais sugere atrésia das vias biliares.

A avaliação de parâmetros bioquímicos que fundamentam a colestase deve ser feita por etapas. Numa primeira fase avalia-se a função hepática (incluindo o estudo da coagulação), começando por se excluir as situações mais frequentes. Numa segunda fase, há que proceder ao diagnóstico etiológico, (Quadro 2), o que é facilitado pelo algoritmo apresentado (Figura 1).

QUADRO 2 – Fases do estudo da colestase neonatal

1ª fase
Anamnese
Exame objectivo
Avaliação diária do aspecto macroscópico das fezes (dejecção a dejecção)
Sangue: hemograma, estudo da coagulação, bilirrubina total e directa, AST, ALT, GGT, Fosfatase alcalina; LDH, amónia, glicemia, alfa-fetoproteína, colesterol, triglicéridos, siderémia, ferritina, ácidos biliares, fenótipo de alfa-1-antitripsina, serologia TORCHES, vírus da hepatite B, hemoculturas
Urina: cultura, pesquisa de substâncias redutoras, succinil-acetona
Imagem: ecografia, cintigrafia hepatobiliar, radiografia do esqueleto
Histologia: biópsia hepática
Outros: paracentese (se ascite)
LDH: Desidrogenase láctica)
TORCHES: Toxoplasmose e outros rubéola; citomegalovírus; herpes; Epstein-Barr; sífilis
2ª fase
Sangue: proteinograma, cortisol, função tiroideia, aminoácidos, galactose-1-fosfato, uridiltransferase, cariótipo, serologia VIH, lactato, piruvato, estudos genéticos
Urina: aminoácidos, ácidos orgânicos
Imagem: CPRE, colangiorressonância
Outros: prova de suor, estudos enzimáticos nos leucócitos, fibroblastos (biópsia da pele), fígado, músculo, medula óssea.

FIGURA 1 – Algoritmo para o estudo da colestase neonatal

Não há nenhuma análise bioquímica que seja patognomónica. Durante muito tempo usou-se a elevação da GGT para o diagnóstico diferencial de atrésia das vias biliares/hepatite neonatal. A grande variabilidade dos resultados tornou o seu uso controverso. No entanto, se a GGT evidenciar valores normais e a fosfatase alcalina estiver elevada, poderá tratar-se de colestase intracelular.

O estudo genético poderá estar indicado sobretudo em situações em que existem antecedentes familiares de colestase. Citam-se como exemplos, entre outros: – a colestase intra-hepática familiar progressiva do tipo 1 ou doença de Byler em que se verificam mutações no gene ATP8B1, localizado em 18q21-22; – idem , do tipo 2, associada a mutações no gene ABC11, no cromossoma 2; – idem, do tipo 3, associada a mutações no gene MDR3, no cromossoma 2; – síndroma de Alagille (hipoplasia ductular associada a fácies característica (fronte proeminente, hipertelorismo), malformações vasculares (hipoplasia ou estenose da artéria pulmonar), defeitos vertebrais e atraso do neurodesenvolvimento e insuficiência intelectual. Associadas a esta síndroma identificaram-se mutações no gene JAG1, no cromossoma 20.

A ecografia é importante para o diagnóstico de defeitos anatómicos, como o quisto do colédoco. A inexistência de vesícula biliar pode sugerir atrésia das vias biliares sendo de salientar que a importância deste método depende muito da experiência do imagiologista.

A cintigrafia hepatobiliar com tecnécio marcado por análogos do ácido iminodiacético pode dar contributo para estabelecer a destrinça entre a atrésia das vias biliares e colestase não obstrutivas. Para aumentar a excreção biliar do isótopo e aumentar a sensibilidade do exame, procede-se a administração prévia de fenobarbital na dose de 5 mg/kg/dia durante 5 dias.

A biópsia hepática é o exame mais importante na avaliação dum lactente com colestase. Nas crianças com menos de 6 semanas de vida os achados histológicos característicos de atrésia das vias biliares (proliferação ductular, alargamento dos espaço porta com escasso infiltrado inflamatório, fibrose portal, rolhões biliares e estase biliar) poderão ainda não estar presentes, sendo então necessário repetir a biópsia hepática após algumas semanas. A biópsia pode também sugerir doenças metabólicas ou de depósito (tesaurismoses) como causa da colestase (Parte XXXII).

Nos casos em que não é possível estabelecer o diagnóstico de certeza de atrésia das vias biliares, deve ser feita uma laparatomia exploradora com colangiografia intraoperatória. Este procedimento deverá ser feito por cirurgiões pediátricos com experiência deste tipo de patologia. Recentemente tem-se usado a colangiorressonância que, apesar de necessitar de anestesia, é uma técnica menos invasiva que a anterior.

Tratamento

O tratamento das síndromas colestáticas do recém-nascido e lactente depende do diagnóstico etiológico e da data em que o mesmo é realizado.

Os doentes com atrésia das vias biliares extra-hepáticas devem ser operados até às 6 semanas de vida. Depois dos 3 meses de idade há que ponderar a indicação operatória, pois estes doentes necessitarão de transplante hepático precoce.

Algumas doenças metabólicas também têm indicação para transplante hepático (deficiência de alfa-1-antitripsina, doença de Byler, tirosinémia), dependendo da evolução de cada caso.

Os restantes doentes necessitam habitualmente de tratamento médico. Usa-se o ácido ursodesoxicólico nos casos de obstrução incompleta e nas colestases não obstrutivas, na dose de 10-40 mg/kg/dia, além doutras medidas de suporte, tais como nutrição entérica contínua (tendo em consideração o incremento em necessidades energéticas ~120-150% do DRI) e suplementação de vitaminas lipossolúveis nas situações de colestase crónica (A:5.000-25.000 U/dia; D: 800-5.000 U/dia, ou calcidiol: 3-5 mcg/kg/dia; E (D-alfa-tocoferol): 25-200 UI/kg/dia; K: 2,5 mg duas vezes/semana).

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HEPATITE AUTOIMUNE

Definição e importância do problema

A hepatite autoimune (HAI) é uma doença inflamatória crónica grave do fígado, progressiva e rara, poligénica multifactorial.

A lesão hepática decorre de uma resposta autoimune a antigénios teciduais próprios do hospedeiro (resposta imunológica contra os próprios antigénios, neste caso hepáticos), em indivíduos com constituição genética predisponente. Trata-se de um processo de desregulação imune de espectro variável atingindo apenas o fígado ou, concomitantemente, outros órgãos, o qual se traduz por resposta inflamatória mediada por citocinas (produzidas de modo sistémico, ou localmente, ao nível do sistema porta).

O alvo imunogénico varia, podendo incluir o parênquima hepático, o epitélio dos ductos biliares, ou ainda a vasculatura, isoladamente ou em sobreposição; assim, as manifestações clínicas dependem do padrão anatomopatológico que prevalece.

Tratando-se dos ductos biliares, pela similitude da patogénese, gera-se um quadro de colangite esclerosante, podendo estar associado a HAI. (ver adiante)

A HAI acometendo preferencialmente o sexo feminino, e rara antes dos 2 anos, evidencia índice máximo de incidência entre os 10 e 30 anos. É menos frequente do que a hepatite vírica; a incidência na Europa é estimada em 1,9/100.000 habitantes e prevalência em 16,9/100.000 habitantes.

Em diversas séries publicadas, nas formas não tratadas a morbilidade é marcada sobretudo pela cirrose e insuficiência hepáticas, rondando a mortalidade pelos 50% aos 5 anos após o diagnóstico, e pelos 90% ao cabo de 10 anos.

Etiopatogénese e classificação

A predisposição genética é sugerida pelo aumento da frequência dos haplótipos HLA B8/DR3, dos alótipos DR3 e DR4, e pela coexistência de outras manifestações autoimunes.

De acordo com o perfil de autoanticorpos são descritos dois tipos de HAI:

  • Tipo I (~2/3 dos casos), caracterizado pela positividade de anticorpos antinucleares (ANA), anticorpos antimúsculo liso/smooth-muscle-antibody (SMA), (sendo que, entre estes, os anticorpos antiactina F são mais específicos), anticorpos antineutrófilo citoplásmicos de padrão perinuclear atípicos (pANCA), anticorpos contra o antigénio solúvel hepático / soluble liver antigen (SLA), também denominados antigénios hepatopancreáticos /liver-pancreatic antigen (LP) – (SLA/LP); e, por vezes, anticorpos antimitocondriais típicos da cirrose biliar primária (AMA);
  • Tipo II (~1/3 dos casos), caracterizado pela positividade de anticorpos anti-microssoma do tipo 1 [do fígado-rim de rata]/liver-kidney-microsome (LKM-1) e raramente do tipo LKM-3 e/ou anti-citosol do tipo 1 [do fígado]; de salientar que este último tipo II de HAI está associado a doentes mais jovens, a maior incidência de défice de IgA e a maior probabilidade de formas iniciais de apresentação clínica com insuficiência hepática.

Neste tipo II também se podem encontrar anticorpos anti SLA que se pensava constituírem um terceiro tipo de hepatite autoimune (HAI –Tipo III), designação hoje contestada. Este tipo de anticorpos, podendo estar presente isoladamente, parece indiciar uma pior resposta à terapêutica em ambos os tipos de HAI.

Na criança com HAI é frequente encontrarmos formas clínicas de sobreposição (síndromas de sobreposição) com colangite esclosante autoimune (com lesão do epitélio biliar) e raramente, apesar de não se saber se constitui uma entidade clínica autónoma, em situações com hiper IGG4 associada a pancreatite e/ou colangite.

No mecanismo de lesão hepática, muito complexo, entre outras, participam as células T, NK, macrófagos, células B, e NKT.

Manifestações clínicas e laboratoriais

A doença pode manifestar-se de modo muito diversificado, desde a detecção de hepatomegália assintomática numa observação de rotina, ao aparecimento de insuficiência hepática.

Como foi referido antes, em ambos os tipos de HAI (I e II) a doença predomina no sexo feminino, sendo frequentes outras manifestações autoimunes, tanto nos doentes como nos familiares.

Na HAI do tipo I, as doenças autoimunes mais frequentemente associadas são a síndroma nefrótica, a colangite esclerosante, a colite ulcerosa, a trombocitopénia autoimune, a anemia hemolítica autoimune e a doença de Behçet.

A propósito da associação de HAI e colangite esclerosante (com patogénese similar) e das síndromas de sobreposição, importa referir que em certas formas clínicas é estabelecido inicialmente o diagnóstico de HAI, verificando-se mais tarde a ocorrência de colangite esclerosante. A associação HAI com colangite esclerosante cursa tipicamente com elevação de hiperglobulinémia (IgG4).

À HAI do tipo II, associam-se tiroidite, vitíligo, hipoparatiroidismo, doença de Addison e diabetes insulinodependente.

Em cerca de 40% dos casos o quadro não se distingue da hepatite aguda vírica. Um grupo de doentes com HAI, principalmente anti LKM-1 positivos, pode evoluir para um quadro de insuficiência hepática aguda com encefalopatia, em 2-8 semanas após o início dos sintomas.

Em 25-40 % dos doentes o quadro evolui insidiosamente com cansaço progressivo e icterícia recidivante, anorexia, amenorreia e perda de peso. Em 15% dos casos o diagnóstico é feito no âmbito da avaliação duma esplenomegália, ou hepatomegália, ou de situações com função hepática alterada, ou ainda por hemorragia digestiva alta, consequência de hipertensão portal.

Numa minoria de casos a doença hepática não é muito relevante quando é feito o diagnóstico, predominando sinais de compromisso extra-hepático. No entanto, em todos os casos há sempre hepatomegália e transaminases (ALT e AST) elevadas desde o início da doença.

A doença deve ser sempre admitida como hipótese em todos os doentes com sinais e sintomas de doença hepática prolongada ou grave.

Para além da semelhança das manifestações da HAI com hepatite vírica, tal pode acontecer também com situações de hepatite induzida por drogas e de doença de Wilson.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em critérios analíticos e histológicos, com exclusão doutras causas de hepatopatia crónica (vírica, tóxica, medicamentosa, metabólica) as quais podem evoluir com alterações semelhantes.

Observa-se elevação dos níveis de ALT e AST (2 a 3 vezes o valor normal) e hipergamaglobulinémia (> 2g/dL), por vezes com hiperbilirrubinémia conjugada/colestase.

Nos casos de evolução avançada com compromisso da função hepática pode verificar-se hipoalbuminémia e diminuição dos níveis dos factores de coagulação, designadamente alteração do tempo de protrombina.

A suspeita de HAI obriga a investigar os autoanticorpos descritos anteriormente.

O diagnóstico pode inferir-se pela presença de autoanticorpos séricos (mesmo que em titulações baixas de 1/20) e pela concomitância de outras doenças autoimunes, quer no paciente, quer em familiares, o que pode acontecer com uma frequência ~ 40%. A ausência de detecção dos autoanticorpos, não deverá inicialmente excluir o diagnóstico, pois os mesmos poderão surgir somente com a evolução da doença.

Se qualquer dos marcadores evidenciar títulos elevados deve proceder-se à biópsia hepática. O padrão histológico é fundamental para confirmar o diagnóstico (infiltrado intenso de células mononucleares nos espaços porta). No entanto, o estado geral precário muitas vezes não permite a realização da referida biópsia.

Em suma, os critérios de diagnóstico habitualmente aceites são discriminados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Critérios para o diagnóstico de hepatite autoimune

*Bridging: processo de fibrose entre dois espaços porta
(International Autoimmune Hepatitis Group Report: Adaptado de Alvarez e colaboradores, 1999)

Histologia
Hepatite de interface (ou de actividade necroinflamatória periportal com infiltração celular ultrapassando o espaço porta) moderada a grave; hepatite lobular ou necrose “bridging”* portal central sem lesões biliares ou granulomas bem definidos e sem alterações sugerindo outra etiologia
Bioquímica
Alteração das transaminases, especialmente se a fosfatase alcalina estiver pouco elevada. Alfa-1-antitripsina, ferritina, cobre, cobre e ceruloplasmina séricos normais
Imunoglobulinas séricas
Globulinas séricas totais ou gamaglobulinas ou IgG elevadas (por vezes IgG >16 g/L)
Autoanticorpos séricos
Autoanticorpos séricos
Anticorpos antinucleares (ANA), anticorpos anti-músculo liso (SMA), anticorpos anti-Actina F, anticorpos anti-microssoma do tipo 1 [do fígado-rim] (LKM-1) e/ou anti-citosol do tipo 1 [do fígado], com títulos >1:20
Marcadores víricos
Serologia negativa para hepatite A, B, C
Outros factores etiológicos
Consumo de álcool <25 g/dia
Ausência de uso recente de drogas hepatotóxicas

Na avaliação destes doentes é igualmente importante proceder a endoscopia digestiva alta para detecção de sinais hipertensão portal.

Nos casos de suspeita de síndroma de sobreposição/overlap deverá ser realizada colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) ou colangiografia magnética.

São factores de mau prognóstico:

  • baixa idade na data do diagnóstico;
  • valores elevados de bilirrubinémia;
  • forma clínica associada a anti-LKM1;
  • actividade histológica intensa;
  • fenótipo HLA-B8 e HLA-DR3.

Tratamento

Se a HAI se manifestou desde o início por insuficiência hepática aguda/fulminante, o tratamento indicado é o transplante hepático urgente.

Nos outros casos a terapêutica indicada é a imunossupressão. O tratamento deve ser iniciado com prednisolona na dose de 2 mg/kg/dia (dose máxima de 60 mg), que se vai diminuindo progressivamente se houver redução do valor das transaminases. O objectivo é manter uma dose mínima, habitualmente 5 mg/dia, suficiente para manter as transaminases normais. Nas primeiras 8 semanas de tratamento a avaliação das transaminases deve ser semanal, fazendo-se os ajustes necessários da dose de corticóide. Salienta-se que este tratamento deve ser iniciado imediatamente, não se esperando pelos 6 meses, critério habitual nas hepatites víricas.

Se não houver normalização das transaminases ou se a evolução não permitir reduzir a dose de corticóide, acrescenta-se azatioprina na dose de 0,5-2 mg/kg/dia. Começa-se com a dose mais baixa. Em presença de icterícia a introdução da azatioprina deve ser adiada pelo seu potencial hepatotóxico.

Apesar de, na maior parte dos casos, as transaminases começarem a baixar logo que se inicia a terapêutica, a sua completa normalização poderá surgir somente ao cabo de alguns meses.

As recidivas são frequentes obrigando a novos acertos terapêuticos. Se não se conseguir remissão da doença, a cirrose é a evolução. A evolução para cirrose depende também dos achados iniciais da biópsia: se na data do diagnóstico já forem evidentes os quadros morfológicos de bridging e da chamada piecemeal necrosis, é provável que, apesar do tratamento, se verifique tal evolução.

eficácia da terapêutica é determinada pelo valor das transaminases e gamaglobulinas, e não pelo título dos autoanticorpos.

Nos casos em que se verifica resposta à imunossupressão com os fármacos descritos antes, poderão ser tentadas outras drogas (ciclosporina, tacrolimus, microfenolato de mofetil).

A maior parte dos autores recomenda actualmente que o tratamento se mantenha, pelo menos, 5 anos após a normalização das transaminases.

Após suspensão da terapêutica há que manter uma vigilância rigorosa das transaminases pela possibilidade de recidiva. Há autores que recomendam nas hepatites autoimunes LKM positivas, manutenção da terapêutica durante toda a vida.

Está indicada transplantação hepática nas seguintes circunstâncias:

  • insuficiência hepática fulminante;
  • complicações da cirrose hepática;
  • falência da terapêutica médica; ou
  • aparecimento de efeitos secundários intoleráveis da medicação.

Salienta-se que em 40-80% dos casos se verifica recorrência pós-transplante.

Estes doentes devem ser sempre seguidos em centros especializados.

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HEPATITE VÍRICA

Formas de apresentação e agentes etiológicos

Na criança as hepatites víricas apresentam-se sob duas formas:

  • Hepatites agudas em que, após o período de maior ou menor grau de lesão hepática, há uma recuperação funcional completa (excepto quando evoluem para hepatite fulminante, situação que acarreta uma alta morbilidade);
  • Hepatites crónicas a que corresponde processo de inflamação hepática que persiste após a infecção inicial e se mantém por um período superior a 6 meses.

Os agentes víricos hepatotrópicos causadores de hepatite aguda são os designados por vírus A (VHA), B (VHB), C (VHC), D (VHD), E (VHE); de referir que apenas os vírus B,C e D causam hepatite crónica. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Vírus hepatotrópicos: características

NomeTipoTransmissãoPeríodo de incubaçãoImunização activaImunização passiva
VHARNAFecal-oral, raramente transfusional28 dias (15-50 dias)VacinaImunoglobulina “standard”
VHBDNASexual, parentérica, intrafamiliar, vertical40-160 diasVacinaImunoglobulina específica
VHCRNAParentérica, sexual, (menos frequente) vertical20-60 dias
VHDRNASexual, parentérica40-160 diasUtilizada a vacina da Hepatite BImunoglobulina específica anti VHB
VHERNAFecal-oral30-40 dias
VHGRNAVertical, parentéricaRaramente doença hepática; muitas vezes coinfecção

São também agentes de hepatite aguda, no contexto de compromisso multiorgânico, os vírus de Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simplex 1, adenovírus, enterovírus, arbovírus e paramyxovírus.

1. Hepatite A

Epidemiologia

São considerados 3 padrões epidemiológicos de acordo com as condições socioeconómicas e sanitárias de regiões e países:

Endemicidade elevada: países em desenvolvimento (Ásia, África, América do Sul e Central). A exposição ao VHA produz-se na infância, estando a população adulta imune. A infecção é, na maioria dos casos, assintomática e causada por contacto interpessoal. Raramente surgem epidemias dado o elevado grau de protecção da população que atinge 90% das crianças abaixo dos 5 anos em áreas hiperendémicas, ou 90% aos 10 anos noutras;

Endemicidade intermédia: observa-se nos países com melhoria das condições sanitárias nos últmos anos (Europa mediterrânica e de Leste). Nestes casos a exposição produz-se na adolescência ou no adulto jovem, podendo surgir surtos epidémicos relacionados com transmissão pessoal ou águas contaminadas; 90 % dos adultos têm marcadores de seroconversão;

Endemicidade baixa: nos países muito desenvolvidos (Europa Ocidental ou do Norte, Japão, América do Norte) em que há uma baixa taxa de seroconversão mesmo nos adultos, havendo susceptibilidade a surtos epidémicos por águas ou alimentos contaminados, ou por viagens a países menos desenvolvidos.
Portugal passou, nas últimas décadas, de um padrão de endemicidade alta para um de endemicidade intermédia, sendo actualmente considerado como de baixa endemicidade pleo CDC.

Manifestações clínicas

Em crianças com idade inferior a 6 anos verificam-se cerca de 70% formas anictéricas (assintomáticas ou paucissintomáticas com clínica semelhante a gastrenterite aguda).

Nos adolescentes e adultos em 70% dos casos surgem formas sintomáticas. Estas caracterizam-se por dois períodos: pré-ictérico com sintomas gerais tais como mal-estar, fadiga, anorexia, náuseas e vómitos, o qual corresponde à maior excreção do vírus nas fezes e, por isso, à máxima contagiosidade. Subsequentemente surge o período ictérico com colúria em apenas 5 % das crianças e em 30% de adolescentes e adultos. Há, então, melhoria franca da sintomatologia geral e redução da excreção fecal do vírus (1-2 semanas), seguindo-se um período de convalescença com melhoria da icterícia e diminuição das alterações das enzimas hepáticas.

Ocasionalmente podem surgir formas colestáticas em que predominam sintomas como acolia e prurido, ou hepatite de evolução a dois tempos em que, após melhoria clínica e laboratorial, surge novamente agravamento, mas de menor duração.

Cerca de 1 em cada mil casos de hepatite por VHA na criança pode evoluir para um quadro de insuficiência hepatocelular aguda – hepatite fulminante – com alta mortalidade e necessidade frequente de transplante hepático. São sinais indicativos desta evolução a manutenção e agravamento dos sintomas gerais; e, no período ictérico, a intensificação da icterícia, o aparecimento de alterações comportamentais (irritabilidade, sonolência) sugestivas de encefalopatia, e de alterações clínicas da coagulação (discrasia hemorrágica).

Diagnóstico

O diagnóstico de toda e qualquer hepatite aguda faz-se se se verificar elevação das enzimas de citólise hepática : ALT e AST. Os respectivos valores são habitualmente 10 vezes superiores aos valores normais, mas podem ser 100 vezes superiores (geralmente entre a terceira e sexta semana de doença), sem que haja alguma relação com o prognóstico final. A sua normalização costuma indicar o final da doença (pela oitava semana de doença); contudo a sua queda abrupta na presença de icterícia agravada pode ser sugestiva de evolução para hepatite fulminante.

A bilirrubina, usualmente a directa, (mas por vezes a directa e a indirecta) encontra-se moderadamente aumentada na fase ictérica da doença bem como as enzimas de colestase (gama – glutamil – transpeptidase ou GGT e fosfatase alcalina); estas últimas podem, no entanto, estar bastante elevadas nas formas colestáticas da infecção.

A síntese proteica (albumina e factores da coagulação) não está geralmente afectada, podendo, no entanto, haver um ligeiro aumento do tempo de protrombina. O metabolismo dos hidratos de carbono também não está alterado (normoglicémia).

O diagnóstico etiológico faz-se pela demonstração da presença de anticorpos anti VHA da classe IgM. Estes surgem entre 25 a 30 dias após o contacto com o vírus e persistem durante cerca de 2 a 3 meses. Os anticorpos de classe IgG surgem após 40 dias e persistem indefinidamente.

Tratamento

O tratamento é de suporte, incluindo hidratação e nutrição adequadas, nomeadamente com suprimento de hidratos de carbono de absorção rápida (açúcares). Não há necessidade de repouso forçado ou de dietas restritivas.

Prevenção

Para além do cumprimento estrito de medidas relacionadas com higiene individual e colectiva, e com saneamento ambiental, é realizada através de imunoterapia passiva e da vacina:

  • Imunoterapia passiva: para contactos com menos de 40 anos (a partir dessa idade já existem em geral anticorpos) de preferência antes de 2 semanas após a exposição; administra-se imunoglobulina “standard” (polivalente) por via intramuscular: 0,02 ml/Kg em dose única (máximo: 3 ml em lactentes e 5 ml em crianças maiores).
    De acordo com recomendações sobre vacinas extra-PNV da Secção de Infecciologia da SPP (2015-2016) pode proceder-se à vacinação no período de14 dias pós contacto, sendo os resultados sobreponíveis.
  • Vacina: é produzida a partir de vírus inactivados sendo muito eficaz. Induz imunidade prolongada e seroconversão rápida (94,6% após a 1ª toma, 100% após a segunda que deve ser administrada 6 meses depois da primeira). Em Portugal encontram-se comercializada a vacina Havrix® e a VAQTA(R), estando a forma Havrix 720 (Junior) indicada para menores de 15 anos de idade e a VAQTA(R) para menores de 18 anos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a vacinação em larga escala nas crianças que habitam países de endemicidade intermédia. A Associação Espanhola de Pediatria (AEP) recomenda a vacinação a todas as crianças de mais de um ano que frequentem creches ou jardim-escolas. As recomendações devem incluir, na idade pediátrica, crianças que viajem para países de elevada endemicidade ou portadoras de doença hepática crónica ou de patologia hematológica que necessitem de administração repetida de sangue ou derivados.

A Secção de Infecciologia da SPP recomenda a vacinação de crianças e adolescentes que: – viajem para países com endemicidade intermédia ou alta; – tenham patologia hepática crônica; – sejam hemofílicos e recebam hemoderivados; – sejam candidatos a transplante de órgão; – sejam doentes infectados por VIH; – pertençam a comunidade onde seja detectado um surto. (ver Capítulo sobre Viagens e Glossário geral).

2. Hepatite B

Epidemiologia

O VHB pertence à família dos Hepadnavirus (vírus com tropismo hepático). A infecção por este vírus tem enorme relevância a nível mundial, estimando-se que existam 350 milhões de infectados em todo o mundo.

Consideram-se três padrões epidemiológicos:

  • Áreas geográficas de alta endemicidade (prevalência de portadores do VHB superior a 8%) na China, Sudeste Asiático, África negra;
  • Áreas de endemicidade intermédia (2-7% de portadores) na América do Sul, bacia do Mediterrâneo, Europa de Leste e Próximo Oriente;
  • Áreas de baixa endemicidade (prevalência de portadores inferior a 2%) na Europa Ocidental, América do Norte e Austrália.

Globalmente Portugal é considerado um país de endemicidade baixa, mas nos grandes centros urbanos a prevalência corresponde a endemicidade intermédia.

A transmissão vírica na idade pediátrica pode ser: perinatal (vertical através de mãe infectada); intrafamiliar (horizontal), a de maior significado no nosso país; ou na adolescência (parenteral relacionada com a toxicodependência ou sexual).

A infecção pode originar um quadro de hepatite aguda ou crónica (com alteração das provas hepáticas) ou de “portador assintomático” (sem alteração das provas hepáticas e com uma actividade necroinflamatória hepática mínima).

Manifestações clínicas

Descrevem-se essencialmente duas formas clínicas:

  • Hepatite aguda: o quadro clínico da hepatite B aguda é semelhante ao da hepatite A sendo, no entanto, mais frequente o aparecimento de sintomas extra-hepáticos: artralgias, renais (glomerulopatias), cutâneos (acrodermatite papular constituindo a síndroma de Gianotti-Crosti) ou síndroma tipo mononucleose. Por outro lado, o risco de evolução para hepatite fulminante é mais elevado (1%).
  • Hepatite crónica: é, na grande maioria dos casos, clinicamente silenciosa, sendo revelada quando se realizam rastreios analíticos em crianças familiares de doentes ou de portadores do VHB, institucionalizadas ou provenientes de países endémicos.

Diagnóstico

Para o diagnóstico laboratorial da hepatite B (Quadro 2) são utilizados os seguintes marcadores:
Ag = (antigénio)
Ac = (anticorpo)
Ag HBs: Marcador de infecção actual.
Ag HBe: Marcador de replicação vírica elevada e de alta contagiosidade.
Ac HBc: Marcador de infecção passada ou actual (interesse em estudos epidemiológicos)
Ac HBc de classe Ig M: Marcador de infecção recente.
Ac HBe: Marcador do fim da replicação vírica activa.
Ac HBs: Marcador da seroconversão natural ou de resposta vacinal.
DNA VHB: Marcador da replicação vírica e infecciosidade, podendo ser quantificada a carga vírica. (Quadro 2)
A hepatite aguda diagnostica-se por elevação das transaminases, associando-se à presença de Ag HBs e de Ac HBc de classe IgM.

QUADRO 2 – Diagnóstico laboratorial do estádio da infecção por VHB

 TransaminasesMarcadoresReplicação víricaComentários
Hepatite agudaElevadas

AgHBs +
Ac HBc IgM +

Elevada 
Hepatite crónica “activa”Elevadas

AgHBs +
AgHBe +
AcHBc IgM –

ElevadaNa infecção perinatal os RN têm transaminases normais
“Portador” crónicoNormais

AgHBs +
Ac HBe +
AcHBc IgM –

Baixa 
Seroconversão naturalNormais

AgHBs –
AcHBc +
AcHBs +

Nula 
Contacto antigo com o vírusNormais

AcHBc +
Restantes negativos

NulaÚtil em estudos epidemiológicos como indicador de contacto com o VHB
Estado pós-vacinal 

Ac HBs +
Restantes negativos

Nula 

 

A hepatite crónica define-se pela presença de Ag HBs por um período superior a 6 meses. Pode ser acompanhada de inflamação hepática traduzida por elevação das transaminases, habitualmente no contexto de replicação vírica activa, ou pode cursar com transaminases normais, geralmente sem replicação vírica a que corresponde a situação de portador assintomático.

História natural da infecção por VHB

A infecção por vírus da hepatite B (VHB) adquirida no período perinatal (transmissão vertical) evolui para a cronicidade em mais de 90% das crianças. A infecção adquirida nos primeiros 5 anos de vida, habitualmente por transmissão intrafamiliar (horizontal), evolui para a cronicidade em 20-30% dos casos. As crianças infectadas no período perinatal apresentam um padrão de “tolerância imune” ao VHB, com replicação vírica activa, presença de Ag HBe, DNA VHB muito elevado no soro e transaminases normais. Ulteriormente muitas delas , tal como as que foram infectadas mais tardiamente, irão apresentar um padrão diferente com elevação das transaminases, presença de Ag HBe e DNA VHB, e manifestações necroinflamatórias demonstradas na histologia hepática.

Cerca de 80% destas crianças irão apresentar: – seroconversão anti HBe perto da puberdade, com normalização das transaminases; – níveis indetectáveis ou baixos de DNA VHB (excepto se se utilizar a técnica de reacção em cadeia da polimerase ou PCR); e – ausência ou presença mínima de actividade inflamatória demonstrada por histologia hepática. Este perfil define os chamados portadores inactivos.

A taxa de diminuição progressiva ou de depuração do Ag HBe é muito baixa nos primeiros 3 anos de vida (2-10%), aumentando subsequentemente (8-12% por ano). A taxa de depuração espontânea de VHB com seroconversão anti-HBs é muito baixa (0,6-1% por ano).

Apesar da aparente benignidade da evolução da HB na criança, há casos descritos de cirrose precoce com risco acrescido de carcinoma hepatocelular (10-40%) quer na idade pediátrica, quer no adulto. Um subgrupo restrito de crianças evoluindo com depuração do Ag HBe pode apresentar reactivação ou manutenção das alterações hepáticas, comportando risco de evolução na idade adulta para cirrose ou carcinoma hepatocelular.

A experiência portuguesa é semelhante à das séries europeias, predominando as formas adquiridas por via intrafamiliar. Num estudo efectuado no Hospital Dona Estefânia compreendendo 187 crianças infectadas comprovou-se que em 42,7% dos casos a transmissão fôra horizontal, contra 6,4% de transmissão vertical.

O rastreio sistemático do Ag HBs nas grávidas, administrando imunoglobulina e vacinando os seus recém-nascidos, e a introdução da vacinação contra VHB, (inicialmente nos pré-adolescentes e actualmente desde o nascimento), levaram a uma redução dos novos casos (redução de 80% dos casos até aos 14 anos comunicados à Direcção Geral da Saúde – DGS entre 1995-1999). Assim, para além das crianças infectadas antes destas mudanças nas normas de actuação, os novos casos recebidos nos centros pediátricos correspondem fundamentalmente a crianças de famílias oriundas de zonas endémicas, nomeadamente das ex-colónias africanas.

Tratamento

O tratamento de um agente infeccioso deverá ter como objectivo a sua eliminação do organismo. No entanto, a constatada dificuldade de qualquer pauta terapêutica utilizada levar consistentemente à eliminação do VHB com seroconversão anti HBs torna os objectivos terapêuticos mais limitados, assumindo-se não apenas a eliminação vírica, mas a diminuição da actividade necroinflamatória hepática através da eliminação da replicação vírica traduzida pela eliminação do Ag HBe (com ou sem seroconversão anti e), e desaparecimento dos níveis séricos detectáveis do DNA VHB (resposta virológica). Adicionalmente procura-se a normalização das transaminases (resposta bioquímica). Desta forma, obvia-se a progressão da lesão hepática para cirrose e risco de carcinoma hepatocelular (CHC).

Admite-se a benignidade da doença, aquando da sua fase imunotolerante (em que tipicamente ALT atinge valores inferiores a 1,5 a 2 vezes o limite superior normal), conhecendo-se a potencial evolução para estado de portador inactivo. Sabe-se também que, mesmo na ausência de cirrose e de replicação vírica activa, a infecção crónica por VHB pode, a longo prazo, originar o CHC (provavelmente após a integração do genoma do vírus no DNA do hepatócito), obrigando a criteriosa monitorização. Reserva-se a terapêutica, para crianças com doença activa (transaminases elevadas, agHBe positivo, carga vírica elevada).

Assim, o tratamento deve ser reservado a crianças com ALT persistentemente elevada pelo menos durante 6 meses, tendo em vista evitar o procedimento de terapêutica a doentes que estejam em fase de seroconversão Hbe. Dever-se-á ter em conta a carga vírica, não apenas para clarificar o estádio da doença, mas também para se averiguar da necessidade de exclusão de outra patologia.

Os fármacos utilizados no tratamento da HB crónica da criança são o interferão alfa, e análogos dos nucleósidos lamivudina, adefovir, entecavir e tenofivir.

Os efeitos secundários com o interferão são mais acentuados, tais como síndroma simile gripal após a administração, diminuição do número dos neutrófilos (reversível com a diminuição da dose), sintomas depressivos na adolescência, perda do apetite e do cabelo, fenómenos autoimunes (anemia hemolítica, tiroidite), etc..

A lamivudina não induz efeitos adversos significativos; no entanto, a utilização do fármaco não induz resposta virológica ou seroconversão AgHBS superior ao IFN, levando ao surgimento de mutantes resistentes.

O entecavir é um análogo carboxílico que inibe diferentes passos no ciclo de replicação do HBV, sendo mais eficaz que a lamivudina e o adefovir no tratamento de adultos. Destaca-se ainda um bom perfil de segurança, estando o fármaco aprovado após os dois anos de idade.

O adefovir encontra-se aprovado para idades > 12 anos (não se tendo demonstrado resultados positivos em crianças abaixo dos 12 anos). Trata-se de um fármaco seguro mas mais associado à criação de mutações indutoras de resistência.

O tenofovir está autorizado acima dos 12 anos e, à semelhança dos restantes, induz boa resposta virológica e não produz mutantes resistentes.

De acordo com as últimas normas de orientação da European Association for the Study of Liver Disease, o interferão mantém-se como primeira opção terapêutica visto ser o fármaco que parece oferecer maior hipótese de resposta virológica mantida após terapêutica; os análogos de nucleósidos são considerados como de segunda linha, ainda que com o surgimento de novos fármacos menos associados a mutantes resistentes esta última opção passe a ser cada vez mais considerada.

Reportando-nos às normas de orientação norte americanas (American Association for the Study of Liver Disease) emitidas em 2015, não há clara definição de qual o fármaco preferencial.

Os resultados da terapêutica com interferão ou com análogos dos nucleósidos apresentam a curto prazo efeitos positivos em relação ao curso natural da doença, sendo necessários estudos de maior duração para comprovar esses benefícios a longo prazo, assumindo os autores internacionais o benefício da instituição de terapêutica em populações seleccionadas de crinças com HBV crónica.

Face ao conhecimento actual sobre os resultados da terapêutica da HB crónica na criança, mantém-se a a importância de prevenção.

Prevenção

Para além das medidas gerais de prevenção referidas a propósito da hepatite A, há a referir que a profilaxia tem duas componentes fundamentais:

  • Imunoterapia passiva: a gamaglobulina específica hiperimune (HBIG) utiliza-se nos RN filhos de mães portadoras do VHB (em simultâneo com o início da vacina) nas primeiras 8-12 horas de vida, na dose de 0,5 mL.*
    Nos contactos acidentais com material potencialmente contaminado (agulhas com sangue) em crianças não vacinadas, deve ser administrada na dose de 0,06 ml/kg (máximo 5 ml), seguindo-se esquema vacinal rápido (0-1-2-12 meses).
  • Imunoterapia activa: em Portugal já tem lugar a vacinação universal dos RN segundo o esquema 0-1-6 meses. As crianças ainda não abrangidas por este plano são vacinadas entre os 11-13 anos.
    Em qualquer dos casos não são necessárias doses de reforço para além das 3 doses da primovacinação (ver Glossário geral).

*Mesmo com adequada profilaxia, até cerca de 25% das crianças nascidas de mães com carga vírica elevada (>109cópias / mL) podem infectar-se.

3. Hepatite C

Epidemiologia

A infecção por VHC, atingindo mais de 170 milhões de pessoas em todo o mundo, é a causa mais importante de hepatite vírica crónica nos países desenvolvidos.

A transmissão ocorre fundamentalmente por via parentérica (hemoderivados contaminados até ao início dos anos 90, data a partir da qual passou a ser feito o rastreio serológico sistemático dos dadores e dos toxicodependentes). A via sexual é também possível, mas com muito menor frequência do que no caso da hepatite B.

Na idade pediátrica o principal meio de transmissão é o materno-fetal (vertical) com um risco de transmissão que oscila entre 3-5%, podendo atingir 30% quando as mães estão infectadas em simultâneo por VHC e por vírus de imunodeficiência humana na ausência de terapêutica (a virémia por VHC é muito intensa nestes casos).

Num estudo prospectivo que efectuámos no Hospital Fernando Fonseca e que compreendeu 43 pares mãe-filho seguidos desde o nascimento até aos 18-24 meses verificou-se uma baixa taxa de infecção (2,2%).

A excreção do vírus no leite materno não foi demonstrada, pelo que o aleitamento por mães VHC + (desde que VIH -) não está contraindicado.

A estrutura genética do VHC não é uniforme, descrevendo-se 6 genótipos (1-6), sendo o genótipo 1 o mais frequente na Europa.

Manifestações clínicas e história natural

A infecção por VHC na idade pediátrica é geralmente assintomática, havendo uma evolução para a cronicidade em 70-85% dos infectados.

Os estudos em crianças com infecção vertical mostram ausência de sintomas ou sinais (como icterícia ou hepatomegália), com elevação de transaminases em 90% dos casos no 1º ano de vida (dos quais 30% com aumento até 5 vezes o normal); 23% dessas crianças infectadas evidenciaram sinais de cura aos 3 anos de vida evoluindo 77% para a cronicidade. Dos doentes que não evidenciaram cura espontânema, 80 % serão assintomáticos, persistindo em 20 % elevação de transminases e hepatomeglia. Globalmente, a evolução para cirrose é muito baixa ( 1a 2 % ), assumindo-se que a evolução para doença hepática grave e HCC ocorra cerca de 20 a 30 anos após a infecção.

Ao contrário da infecção no adulto, na criança não há associação habitual a outras doenças extra-hepáticas autoimunes podendo, no entanto, em 7% dos doentes haver associação com anticorpo LKM-1.

Diagnóstico

O diagnóstico da infecção por VHC baseia-se na presença do Ac VHC, confirmada por técnicas de 3ª geração (RIBA 3) e na demonstração da virémia (positividade para RNA-VHC por PCR). A virémia pode ser intermitente, pelo que um resultado negativo não exclui o diagnóstico.

As alterações das transaminases ocorrem segundo 3 padrões: disfunção persistente (a mais frequente na data do diagnóstico); alteração flutuante (alternando com períodos de normalidade); normalidade continuada (mesmo na presença de virémia).

O diagnóstico de cronicidade baseia-se na demonstração do RNA-VHC, pelo menos 2 a 3 meses após o contacto conhecido (nomeadamente após o parto). Nestes casos há também presença do Ac VHC no soro, excepto nos imunodeficientes.

No doente com infecção crónica deve ser avaliado o genótipo, o qual permite prever a resposta terapêutica.

Tratamento

A infecção por VHC nas crianças tem um curso habitualmente muito ligeiro ou moderado (75% dos casos com inflamação hepática leve e 22% moderada de acordo com dados da biópsia); a cirrose surge apenas em 2% dos casos (ao contrário dos adultos em que na segunda década da infecção há progressão para cirrose em percentagem dez vezes superior).

Até 2008 a terapêutica utilizada era composta da associação de Interferão alfa em associação com ribavirina, atingindo-se com esta terapêutica respostas virologicas de 85 a 100 % das crianças infectadas com genótipo 2 ou 3 e 35-50 % no caso de genótipo 1. A introdução em 2008 de terapêutica com Peg Interferão alfa 2b (em substituição de interferão) não veio modificar muito a resposta virológica obtida, em particular com o tratamento do genótipo 1 (e em particular se baixa carga vírica). São propostos esquemas com duração de 48 semanas para doentes com genótipo 1e 4 e de 24 semanas para doentes com genótipos 2 e 3.

Face às características da evolução clínica da doença na criança e à existência de novos fámacos em estudo com acção directa antivírica e elevada resposta virológica nos diferentes genótipos (em particular ledispavir e sofosbuvir), grande parte dos peritos internacionais defende protelar o incio de terapêutica até à sua autorização para a população pediátrica.

Nos casos em que se supõe poder haver progressão de doença hepática, poder-se–ão utilizar os esquemas actualmente autorizados pelas agências medicamentosas. Mantém-se no entanto a indicação para início de terapêutica após os 3 a 6 anos de idade (após o que se supõe ser escassa a depuração espontânea).

Prevenção

Reiterando as medidas preventivas atrás explanadas, no que respeita à profilaxia passiva, salienta-se que as imunoglobulinas standard não são eficazes na prevenção da infecção.

Quanto à profilaxia activa, pela variabilidade genómica do vírus, não estão ainda disponíveis vacinas eficazes.

4. Hepatite D

A hepatite D resulta dum vírus RNA incompleto que, para se manter infectante, necessita de uma cobertura exterior, assegurada pelo Ag HBs. Como tal, a infecção por este vírus só acontece no contexto de uma coinfecção com o VHB, ou de uma sobreinfecção de um doente com VHB, crónico.

Trata-se duma infecção rara na idade pediátrica. A sobreinfecção nos doentes com hepatite B crónica aumenta a gravidade desta. O tratamento e prevenção são os aplicáveis à hepatite B.

5. Hepatite E

Trata-se duma hepatite por vírus com uma transmissão fecal-oral semelhante ao VHA, sendo frequente a existência de surtos epidémicos em países da América Central, Índia e África do Norte; esta infecção é rara entre nós.

Não apresenta evolução para a cronicidade, sendo a incidência maior entre adolescentes e adultos jovens. Na grávida, principalmente no último trimestre, tem uma alta mortalidade (até 20%). Não há imunoglobulina específica ou vacina disponíveis.

6. Hepatite G

Este vírus pertence à família do VHC com um mecanismo de transmissão fundamentalmente parentérica; no entanto poderá haver transmissão vertical. É factor de coinfecção com outros vírus hepatotrópicos, mas há dúvidas de que, isoladamente, possa causar algum tipo de infecção hepática relevante, aguda, fulminante ou crónica.

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SÍNDROMA DO INTESTINO CURTO

Definição e importância do problema

A síndroma do intestino curto (SIC) é uma situação clínica caracterizada pela perda superior a 50% do comprimento do intestino delgado, com ou sem uma parcela do intestino grosso, do que resultam aceleração do trânsito intestinal, má absorção de macro e de micronutrientes, vitaminas, minerais e, consequentemente, má nutrição.

Esta entidade clínica constitui a causa mais frequente de insuficiência intestinal na idade pediátrica.

Os cirurgiões geralmente consideram uma pequena ressecção se o comprimento do intestino delgado residual (abaixo do ângulo de Treitz, até à válvula íleo-cecal) medir 100-150 cm, uma grande ressecção se medir entre 40-100 cm, e ressecção maciça (intestino ultracurto) se menos de 40 cm.

Até aos anos 70, a grande maioria dos recém-nascidos com SIC não sobrevivia à perda de mais de 15% da área do intestino delgado. Tem-se assistido, no entanto, a uma melhoria significativa do prognóstico desta situação que se deve essencialmente ao desenvolvimento das técnicas de nutrição parentérica, a melhores conhecimentos sobre estratégias de suporte nutricional e fisiologia intestinal e, mais recentemente, à possibilidade de realização de transplantação intestinal.

Efectivamente, hoje em dia existe possibilidade de sobrevivência com 15 cm de intestino delgado com válvula íleo-cecal, e com 20 cm sem a referida válvula havendo suporte nutricional parentérico e normalidade do funcionamento do restante intestino. De referir igualmente que a ressecção intestinal em idade pediátrica (sobretudo nos casos de prematuridade e, dum modo geral até ao 1 ano) tem melhor prognóstico do que no adulto dada a potencialidade do crescimento intestinal no primeiro caso. A este propósito importa realçar a elevada velocidade de crescimento do intestino no último trimestre da gravidez.

Factores etiológicos

Na maioria dos doentes pediátricos com SIC, a situação decorre de problemas que têm a sua génese no período perinatal. As causas mais comuns são: enterocolite necrosante (ECN), atrésia jejunal ou ileal, gastrosquise, doença de Hirschsprung total e anomalias vasculares congénitas. O Quadro 1 resume as causas principais.

Numa das Unidades de Pediatria Médica do Hospital de Dona Estefânia, no ano de 2015, foram assistidos 14 doentes com insuficiência intestinal, em regime de nutrição parentérica (NP) com duração superior a 60 dias; quanto às respectivas nosologias há a referir a seguinte distribuição: ECN → 5; atrésia intestinal → 3; gastrosquise com atrésia intestinal → 2; volvo do intestino médio com pan-necrose intestinal → 2; pseudo-obstrução intestinal crónica → 2.

QUADRO 1 – Causas de síndroma do intestino curto

Enterocolite necrosante (ECN)
Atrésia intestinal
Gastrosquise
Volvo do intestino delgado
Pseudo-obstrução intestinal
Aganglionose intestinal total
Malformações vasculares congénitas
Doença inflamatória intestinal *
Tumores*
Enterite da radiação*
                                                                                                                                                                                                                                                                                                         *Causas raras

Fisiopatologia e manifestações clínicas

A perda de uma quantidade significativa de intestino dá origem a um conjunto de alterações fisiológicas, cujas manifestações clínicas, terapêutica e prognóstico dependem de vários factores: comprimento e segmento do intestino ressecado; presença ou ausência de válvula íleocecal; capacidade funcional e adaptativa do intestino residual, e estado funcional dos órgãos que participam no processo de digestão e absorção.

FIGURA 1. Locais de absorção e secreção/excreção no tracto gastrintestinal

O comprimento do intestino delgado no recém-nascido (RN) é 217 ± 24 cm às 27-35 semanas de idade gestacional, 304 ± 44 cm após as 35 semanas. No RN de termo é 250 a 300 cm, crescendo mais 2 a 3 metros até à idade adulta. O intestino grosso mede 40 a 60 cm no RN de termo, crescendo até 1.5 a 2 metros na idade adulta.

A perda de um segmento intestinal pode limitar a digestão ao diminuir a exposição dos nutrientes às enzimas hidrolíticas da mucosa intestinal, assim como às secreções pancreáticas e biliares.

Cada segmento intestinal tem diferentes funções de absorção:

  • Duodeno: glucose, ferro, folato, cálcio, magnésio e vitaminas hidrossolúveis;
  • Jejuno: lípidos e aminoácidos;
  • Íleo: ácidos biliares, sais biliares conjugados, vitamina B12, factor intrínseco, vitaminas lipossolúveis, zinco, fósforo.

Deste modo, o quadro de má-absorção dependerá do segmento intestinal ressecado e da sua extensão. Será mais importante quando a ressecção envolver o jejuno, uma vez que no indivíduo saudável quase toda a digestão e absorção se completam nos primeiros 100 a 150 cm de intestino. Assim, quanto mais proximal a ressecção, maior a perda de líquidos e sódio.

O íleo, para além das suas funções de absorção únicas – vitamina B12 e sais biliares – tem outras funções, nomeadamente secreção de substâncias hormonais, e maior capacidade de adaptação designadamente para substituir o jejuno nas suas funções essenciais. Ao revés, o jejuno tem baixa capacidade de substituir as especificidades de absorção do íleo terminal.

A válvula íleo-cecal tem duas funções principais: regulação do trânsito intestinal e prevenção do refluxo bacteriano do cólon para o intestino delgado. A sua ausência diminui o tempo do trânsito intestinal (com exacerbação das perdas de líquidos e nutrientes) e aumenta o risco de crescimento bacteriano no intestino delgado. A colonização bacteriana do intestino delgado pode provocar desconjugação dos ácidos biliares alterando a formação de micelas, o que poderá agravar a esteatorreia.

A presença do cólon é importante para a absorção dos ácidos gordos de cadeia curta, água e electrólitos. Este segmento intestinal tem a capacidade de aumentar até 5 vezes a absorção de água e electrólitos; por outro lado, pode fornecer energia suplementar através da absorção de ácidos gordos de cadeia curta que são produzidos pela fermentação dos hidratos de carbono dependente das bactérias no cólon. (Figura 1)

Após ressecção intestinal extensa, o intestino restante tem a capacidade de se adaptar anatómica e funcionalmente, de modo a aumentar as suas funções de digestão e absorção. Estas alterações iniciam-se nas primeiras 24 a 48 horas após a ressecção e podem prolongar-se para além de um ano. Vários factores parecem mediar estes efeitos; o mais importante parece ser a presença de nutrição entérica que leva a um aumento de nutrientes não digeridos a nível distal, provocando um aumento na libertação de hormonas intestinais (péptido YY, substância P, CCK, glucagon-like peptide 2). As alterações de adaptação traduzem-se essencialmente em: aumento do diâmetro, espessura e comprimento intestinais, aumento da altura das vilosidades, da profundidade das criptas, e mais intensa proliferação e migração celulares para a extremidade das vilosidades.

Esta resposta adaptativa, que é mais acentuada nas crianças, verifica-se sobretudo no íleo em relação ao jejuno. Um dos marcadores de massa funcional intestinal na SIC é a citrulina, aminoácido não essencial produzido apenas nos enterócitos. A sua concentração sérica está diminuída em casos de atrofia da mucosa intestinal, podendo aumentar ao longo do processo de adaptação.

Nos doentes com SIC, a colestase e disfunção hepática são complicações frequentes que alteram a capacidade de absorção e utilização de nutrientes. A colestase nestas situações é geralmente multifactorial, sendo a atrofia da mucosa, a alimentação entérica diminuta, a perturbação do ciclo entero-hepático de sais biliares, a sépsis e o hipercrescimento bacteriano os factores predisponentes mais importantes. O tipo de NP pode ter um papel contributivo.

Tratamento

Actualmente, mais de 90% dos doentes com SIC sobrevivem, recorrendo à NP total (NPT). O tratamento é complexo e requer uma abordagem multidisciplinar em centro especializado.

Tal procedimento diz respeito essencialmente ao suporte nutricional, cujo objectivo é manter o crescimento da criança dentro dos parâmetros normais, promover a adaptação intestinal e evitar as complicações resultantes da ressecção intestinal e da referida NPT (soluções preparadas pelo serviço farmacêutico em condições de assépsia em câmara de fluxo laminar).

A primeira etapa inicia-se com a intervenção cirúrgica cujo objectivo é salvar a vida e preservar a maior extensão possível de intestino viável. Geralmente dura 1 a 3 semanas após ressecção cirúrgica, sendo caracterizada pelo início da NPT, com especial atenção ao equilíbrio hidro-electrolítico e à hipergastrinémia.

A hipergastrinémia leva a aumento da secreção ácida gástrica com inibição das enzimas pancreáticas, a agravamento da esteatorreia, assim como a possíveis ulcerações gástricas e duodenais. Tende a ser transitória (durando cerca de 6 -12 meses).

Na segunda fase procede-se ao início da nutrição entérica contínua, a qual permite melhor saturação dos transportadores e enzimas da mucosa intestinal, assim como maior eficácia da absorção, com redução progressiva da NP.

A terceira fase corresponde à adaptação à nutrição entérica e ao início da nutrição oral.

A transição de uma fase para outra é variável de doente para doente, dependendo da evolução clínica e da eficiência e qualidade do crescimento. Pode durar meses ou anos.

Sintetizam-se, a seguir, os procedimentos nas fases de nutrição parentérica /entérica e introdução de alimentos sólidos.

Fase 1: Nutrição parentérica (NP)

A nutrição parentérica é administrada por cateter venoso central e deve ser constituída por uma mistura equilibrada de glúcidos, proteínas, lípidos, electrólitos, vitaminas, minerais e oligoelementos de modo a promover o crescimento adequado. Calculadas as necessidades de fluidos em função do peso e idade, as necessidades calóricas são aumentadas progressivamente, até se atingir 100 kcal/Kg/dia.

A glicose deve ser iniciada ao ritmo de 5-7 mg/kg/min, com incrementos de 1-3 mg/kg/min até se atingir 12-14 mg/kg/min, evitando hiperglicémia e glicosúria.

Os aminoácidos são iniciados na dose de 1 g/kg/dia, e aumentados até 3 mg/kg/dia, em 2-3 dias.

Os lípidos iniciam-se na dose de 1 g/kg/dia com incrementos de 1 g/kg/dia até 3 g/kg/dia, em crianças até ao 1 ano de idade, e até 2 g/kg/dia em crianças acima de 1 ano. Não devem exceder 30-40% do valor calórico total, de modo a prevenir a hiperlipidémia.

Os sais minerais e as vitaminas devem ser fornecidos de acordo com as necessidade diárias e grupo etário.

Na fase inicial (primeiras 3 semanas) deve ter-se em especial atenção os electrólitos, em particular o sódio, sendo por vezes necessário fornecer soluções com sódio (80-100 mEq / litro da solução) dependendo das perdas pelo estoma ou do grau de diarreia. Também nesta fase, por haver hipergastrinémia, inicia-se terapêutica com ranitidina (0,75-1,5 mg/kg/dia, por via endovenosa de 6/6h ou 8/8h). Esta fase prolonga-se por cerca de 1 ano, pelo que se deve manter a terapêutica. Pode também ser administrado o omeprazol.

Durante a fase de nutrição parentérica, após estabilização clínica, é importante a vigilância laboratorial (Quadro 2).

QUADRO 2 – Esquema de monitorização de doentes submetidos a nutrição parentérica total (NPT)

* Eventualmente com maior frequência de acordo com a evolução

ParâmetrosDiárioSemanal*Periódico*
PesoX  
Balanço hídricoX  
Sinais vitaisX  
Glicose/acetona urináriosX  
Cateter (local e funçãoX  
Exames laboratoriais (sangue) X 
Sódio, potássio, cloro X 
Bicarbonato X 
Glicose X 
Ureia e creatinina X 
Triglicéridos X 
Cálcio, fósforo e magnésio X 
Proteínas totais X 
Albumina e pré-albumina X 
ALT X 
Fosfatase alcalina X 
Bilirrubina (total e directa) X 
Selénio  X
Cobre  X
Zinco  X
Ferro  X
Sódio urinário  X

Fase 2: Nutrição entérica (NE)

A segunda fase caracteriza-se pelo início da nutrição entérica, fundamental para estimular a adaptação intestinal uma vez garantida a estabilidade hidroelectrolítica.

É fornecida por sonda nasogástrica em débito contínuo devendo ser iniciada logo que ultrapassado o íleo pós-operatório.

O tipo de alimentação entérica é controverso. O leite materno deverá ser a primeira opção. Este poderá favorecer a adaptação intestinal e deve ser encorajado, sempre que possível. Dietas semi-elementares, se toleradas, são preferíveis a dietas elementares, na medida em que está demonstrado que a absorção pelo enterócito de pequenos péptidos é superior à de aminoácidos, o que é benéfico por estimular a adaptação intestinal. Inicia-se com volume de 10-20 ml/kg/dia e concentração de 0,20 kcal/ml, que se aumentam (conforme a tolerância) até 0,67 kcal/ml, em crianças até um ano, e até 1 kcal/ml acima dessa idade. Quando atingida essa concentração, procede-se ao incremento do volume (10-20 ml/kg/dia, com intervalos de 1-3 dias) até atingir 130-200 ml/Kg/dia com 100-140 kcal/kg/dia, com diminuição isocalórica simultânea do suprimento através da NPT. Quando 20% do valor calórico for fornecido por via entérica, a NP contínua pode passar a cíclica, sendo reduzida progressivamente até 12 horas/dia.

Cerca do 5º dia após o início da nutrição entérica contínua, devem ser fornecidos 3-4 biberões/dia, com volume correspondente ao suprimento em 1 hora da nutrição entérica contínua, a qual é suspensa nesses períodos; tal permite manter as capacidades de sucção e deglutição, assim como o prazer associado à alimentação.

A progressão deste esquema de alimentação deve ser regulada pelo número de dejecções/dia, pelas perdas pelos estomas, pelo pH, identificação de substâncias redutoras fecais, pelo resíduo gástrico e pelos sinais de desidratação (Quadro 3).

QUADRO 3 – Esquema de progressão da nutrição entérica (NE)

*suspender NE durante 8 horas e retomá-la com 3/4 do ritmo anterior

Adaptado de Walker WA, et al, 2004.

A. Dejecções
1. Se < 10 g/Kg/dia ou < 10 dejecções/dia, aumentar ritmo 10-20 ml/Kg/d
2. Se 10-20 g/Kg/dia ou 10-12 dejecções/dia, não alterar
3. Se > 20 g/Kg/dia ou > 12 dejecções/dia, reduzir ou suspender alimentação*
B. Perdas pelos estomas
1. Se < 2 g/Kg/h, aumentar ritmo 10-20 ml/Kg/d
2. Se 2-3 g/Kg/h, não alterar
3. Se > 3 g/Kg/h, reduzir ou suspender NE*
C. Substâncias redutoras nas fezes
1. Se < 1%, aumentar ritmo de acordo com débito das dejecções ou dos estomas
2. Se = 1%, não alterar
3. Se > 1%, reduzir ou suspender NE*
D. Sinais de desidratação
1. Se ausentes, aumentar NE de acordo com débito das dejecções ou estomas
2. Se presentes, reduzir ou suspender NE*, e providenciar reidratação
E. Aspirado gástrico (2x dia)
1. Se < 4x o volume da perfusão/hora, aumentar NE
2. Se > 4x o volume da perfusão/hora, reduzir ou suspender NE*

Fase 3: Introdução de alimentos sólidos

Por volta dos 4-6 meses de idade, se o crescimento se tiver processado com regularidade, podem ser introduzidos os alimentos sólidos. Começa-se com a carne, porque é bem tolerada; os alimentos ricos em hidratos de carbono, como os cereais, vegetais e frutas devem ser evitados uma vez que causam sobrecarga osmótica no intestino delgado, aumentando as perdas, sobretudo nos doentes com ressecção ileal. Geralmente, após 2 anos, fase em que os doentes já toleram fórmulas complexas, estes alimentos podem ser fornecidos em maior quantidade. Nos doentes sem íleo, mas com cólon intacto, devem ser evitados alimentos ricos em oxalatos, tais como chá, colas, chocolate, vegetais de folha verde, aipo, morangos, para prevenir o aparecimento de cálculos renais de oxalato de cálcio. Quando o cálcio é quelado pelo excesso de lípidos que chega ao cólon, não está disponível para se conjugar com os oxalatos livres, permitindo uma absorção excessiva destes.

À medida que a NE vai substituindo a NP, deve ter-se particular atenção aos défices de vitaminas lipossolúveis – A, D, E e K – fornecendo-as sob forma hidrossolúvel: ADEK® 1 ml/dia dos 0-1 ano, 2 ml/dia dos 1-3 anos, 3-4 ml/dia após os 4 anos. Deve também proceder-se aos doseamentos séricos dos oligoelementos e da vitamina B12, tendo em atenção as manifestações clínicas dos respectivos défices para tratamento correcto e atempado. (Quadros 4 e 5)

QUADRO 4 – Monitorização laboratorial (vitaminas e oligoelementos) nos doentes com SIC, após suspensão da NPT

ParâmetrosFrequência
Vitamina B12 e folato3/3 meses, nos primeiros 6 meses; depois, de 6/6 meses
Zinco, crómio, cobre, magnésio, selénio, manganês6/6 meses
Vitaminas A, E, D3 meses após suspensão da NPT; depois de 6/6 meses

 

QUADRO 5 – Clínica e terapêutica das deficiências em micronutrientes

NutrienteSinais/sintomasDoses
Vitamina B12Astenia, anemia megaloblástica0,3-2 mcg/dia oral; ou 1 mg i.m. cada 3-6 meses
ZincoAlopécia, lesões eczematosas, diarreia, anorexia0.5-2 mg/Kg/dia, oral (zinco – elemento)
300 mcg/Kg/dia, via endovenosa (ev) (zinco-elemento)
FerroAnemia1-2 mg/Kg/dia, oral (ferro – elemento)
CálcioDepressão, espasmos musculares, arritmiaDose inicial: Gluconato de cálcio a 10% (9,4 mg de Ca elemento/ml ou 102 mg de gluconato de Ca/ml): 200 mg/kg de gluconato (2 ml/kg) em 10 minutos via endovenosa
Dose de manutenção: 700-800 mg de gluconato de Ca/Kg/dia
MagnésioLetargia, tetaniaDose inicial: MgSO4 a 50% (49,3 mg de Mg elemento/ml ou 500 mg de MgSO4/ml): 5-10 mg/Kg de Mg elemento ou 50-100 mg/Kg de MgSO4 via intra-muscular ou endovenosa em 60 minutos
Dose de manutenção: 0,4-0,8 ml/Kg/dia (4 doses, via oral)

Tratamento das complicações mais comuns

1. Proliferação bacteriana no intestino delgado

Trata-se duma complicação frequente que provoca lesão da mucosa, má-absorção e translocação bacteriana. Define-se pela presença no intestino delgado de bactérias do cólon em número igual ou superior a 105/ml. Clinicamente manifesta-se por anorexia, vómitos, distensão abdominal, hematoquesia, dificuldade em tolerar a NE e perda de peso. Por vezes pode ocorrer um quadro neurológico caracterizado por alteração do estado de consciência (incluindo coma), hiperventilação, acidose metabólica com hiato aniónico elevado, resultante da acumulação de ácido D-láctico, (substância não metabolizável na espécie humana), resultante da fermentação bacteriana dos hidratos de carbono da alimentação. O diagnóstico é sugerido pela determinação sérica do D-lactato, estando o lactato sérico normal.

Deve suspeitar-se de proliferação bacteriana no intestino delgado em doentes sem válvula íleocecal, e ou com dismotilidade, ou com segmentos intestinais dilatados. O diagnóstico é difícil, podendo ser confirmado por cultura de líquido duodenal, coprocultura e pelo teste do hidrogénio expirado.

Dos vários esquemas terapêuticos pode utilizar-se por via oral: metronidazol (15 mg/kg/dia, 8/8h) isolado ou associado ao cotrimoxazol (40-50 mg/kg/dia, 12/12h); ou gentamicina (5 mg/kg/ dia), durante 5 dias; deve, entretanto, reduzir-se a NE, nomeadamente o suprimento em hidratos de carbono, e suspender-se os antiácidos.

Esta situação pode ser prevenida, nos doentes de risco, administrando nos primeiros 5 dias de cada mês um dos antibióticos acima referidos, alternando-os para evitar resistências bacterianas. Em casos de dilatação intestinal acentuada pode ser necessário proceder a intervenção cirúrgica – ressecção, modelagem ou alongamento intestinal – para resolução desta complicação.

2. Doença hepática associada à insuficiência intestinal

A doença hepática associada à insuficiência intestinal pode compreender colestase, esteatose, cirrose, hipertensão portal e insuficiência hepática. Trata-se duma situação frequente nos doentes com SIC que, juntamente com a sépsis, constitui uma das principais causas de morte.

Admite-se que a causa da doença hepática é multifactorial, sendo determinantes a ausência de NE, a presença de endotoxinas bacterianas e a hepatotoxicidade directa associada aos componentes da NPT. Manifesta-se por icterícia e hepatomegália, associadas a elevação das transaminases, fosfatase alcalina e bilirrubina conjugada. A melhor actuação consiste na introdução progressiva de NE, se possível; em geral a colestase resolve-se com a suspensão da NPT. Deve prevenir-se a proliferação bacteriana intestinal e a sépsis, garantir uma mistura adequada de glicose, proteínas, lípidos e oligoelementos na NPT e realizar esta última de modo cíclico. Como terapêutica dirigida utiliza-se o ácido ursodesoxicólico (10-40 mg/kg/dia, 12/12h, por via oral).

O interesse no uso de emulsões lipídicas de NP ricas em óleo de peixe é crescente, logo, em ácidos gordos w-3 com potencial de prevenir ou reverter a colestase secundária à NP em recém-nascidos. Recentemente foi comercializada uma nova formulação, usada entre nós, o SMOFlipid®, composto por 30% de óleo de soja (predomínio de TCL ω-6), 30% TCM, 25% de azeite, contendo quantidade importante de ácidos gordos monoinsaturados e α-tocoferol, e ainda 15% de óleo de peixe (TCL ω-3).

A lama/ litíase biliar é frequente nos casos com ressecção do íleo terminal; em tal circunstância, a diminuição da concentração de sais biliares torna a bilis litogénica.

3. Sépsis

É uma complicação comum que põe em risco a vida dos doentes com SIC. São considerados factores etiológicos importantes a contaminação externa dos cateteres e a migração bacteriana intestinal. Os agentes etiológicos são geralmente Staphylococcus aureus e as enterobactérias. Por vezes são isolados fungos como Candida albicans, que devem ser sempre considerados como hipótese etiológica em doentes que terminaram recentemente antibioticoterapia. Qualquer doente com SIC, com cateter central, em que se inicie febre, letargia ou outros sinais de infecção, deve ser considerado como tendo sépsis, até prova em contrário. Deve proceder-se a culturas de sangue colhido de dois locais simultaneamente (cateter central e veia periférica) e iniciar antibioticoterapia de largo espectro, mantendo-a até conhecimento do resultado das hemoculturas. Se a infecção for fúngica está indicada anfotericina B lipossómica, removendo-se o cateter. Nas infecções bacterianas não há, em princípio, necessidade de remover o cateter, a não ser em situações de recorrência de sépsis, choque séptico ou persistência de hemocultura positiva.

Os probióticos (espécies Gram positivas anaeróbias) com a potencialidade de suprimirem a adesão e translocação de bactérias Gram negativas susceptíveis de originarem septicémia, terão um papel também na SIC; contudo, relativamente à segurança na sua utilização, existe carência de provas científicas inequívocas e conclusivas.

Em determinados centros têm sido utilizados nos cateteres centrais dispositivos/locks de antissépticos à base de taurolidina ou etanol; de acordo com os resultados obtidos foi demonstrada eficácia avaliada pela redução em número de episódios de sépsis.

4. Défice em Vitamina B12 e outras vitaminas lipossolúveis

A consequência desta do défice em vitamina B12 é o surgimento de anemia macrocítica e neuropatia. Este quadro clínico secundário está em geral associado a ressecção de íleo terminal.

5. Hiperoxalúria/cálculos renais

Esta complicação resulta da má absorção de lípidos, ligando-se o cálcio preferencialmente aos ácidos gordos no lume do cólon, deixando os oxalatos livres para absorção e excreção renal.

6. Linfo-histiocitose hemofagocítica

Esta complicação, mais rara, está associada a NP prolongada. Admite-se que seja secundária à activação de macrócitos por “excesso de lípidos”, estando na sua base um processo imune/infeccioso subjacente.

Perspectivas terapêuticas

Factores tróficos: os factores tróficos, promovendo o crescimento da mucosa, maior altura das vilosidades, diminuição da motilidade intestinal e aumento da superfície de absorção (nomeadamente glutamina combinada com hormona de crescimento, ou o factor enteroendócrino trófico teduglutide/ GLP2- glucagon-like peptide 2), associados à NE, evidenciam efeitos positivos na adaptação intestinal, reduzindo a necessidade de nutrição parentérica.

Em fase de investigação, e tendo em conta efeitos acessórios como polipose e hiperplasia gástrica, a utilização dos referidos fármacos e, nomeadamente, do teduglutide (de que há já experiência no Hospital de Dona Estefânia), deverá contudo ser cuidadosa.

Cirurgia: existem várias “técnicas cirúrgicas de aumento” intestinal. Em casos de dilatação de um segmento intestinal (por adaptação ou obstrução crónica) pode ser útil um procedimento cirúrgico que: – resolve a dilatação (a qual comporta risco de estase e sobrecrescimento bacteriano); e – permite um aumento da superfície de absorção.

No chamado LILT (longitudinal intestinal lengthening and tailoring) o intestino delgado dilatado é dividido em dois tubos e suturado justaposto de maneira isoperistáltica.

No chamado STEP (serial transverse enteroplasty) procede-se a secção transversal em direcções opostas, criando um trajecto tipo “zigzag” que aumenta a superfície de absorção.

Transplantação intestinal: a transplantação intestinal tornou-se uma opção terapêutica para os doentes com insuficiência intestinal permanente em que o crescimento fica na dependência da NPT. A decisão de indicar o transplante deve ser extremamente bem ponderada, após esgotar todas as opções terapêuticas, nomeadamente a NPT, o uso de factores tróficos, e as terapêuticas cirúrgicas alternativas, devido aos riscos e à qualidade de vida associada ao transplante intestinal. A Associação Americana de Transplantação considera como indicações para transplantação intestinal na criança: doença hepática irreversível associada à NPT (hiperbilirrubinémia com bilirrubina conjugada superior a 3 mg/dl persistindo para além de 3-4 meses acompanhada de sinais de hipertensão portal tais como esplenomegália, trombocitopénia ou circulação venosa superficial colateral marcada), sépsis recorrente e falta de acessos venosos centrais.

Outra indicação será ainda doença com perda hidro-electrolítica incontrolável, causando desidratação grave, que é frequente.

Na situação de doença hepática irreversível, poderá estar indicada a transplantação hepática e intestinal combinada.

No caso de envolvimento multiorgânico (por ex. pseudo-obstrução intestinal crónica) está indicada a transplantação multivisceral.

Prognóstico

O prognóstico após ressecção intestinal depende da respectiva extensão, da função e capacidade adaptativa do intestino residual, das complicações, nomeadamente da doença hepática associada a NPT, da proliferação bacteriana intestinal, e do número de episódios de sépsis.

Considera-se de bom prognóstico a situação em que se verifica crescimento adequado, não dependente da NPT. Em geral, o melhor prognóstico verifica-se em casos de SIC com 40-80 cm de intestino delgado residual e com válvula íleocecal intacta; nestes, a independência da NPT durante 1 ano é atingida em 80% dos casos; os doentes com menos de 40 cm de intestino residual e sem válvula íleo-cecal permanecem dependentes da NPT para além dos 8 anos. No entanto, há casos descritos de SIC com menos de 15 cm de intestino residual que se tornaram independentes da NPT. Geralmente as doenças graves da motilidade (como por ex. doença de Hirschprung extensa, e enteropatias congénitas) têm maior risco dependência de NP.

O crescimento e o desenvolvimento dos doentes com SIC são adequados na generalidade, embora na sua grande maioria se verifique menor estatura comparativamente à população geral.

De referir ainda: maior número de dejecções diárias (com válvula íleo-cecal, cerca de 2 dejecções/dia; sem vávula, 2-10 dejecções/dia). São comuns a dificuldade de digestão e absorção de hidratos de carbono, bem como a intolerância ao leite e a alimentos condimentados.

Existe risco aumentado de colelitíase, sobretudo nos casos submetidos a ressecção ileal importante. A hiperoxalúria e os cálculos renais são mais frequentes nos adultos.

Em relação ao transplante intestinal, nos últimos 10 anos, em 1351 crianças transplantadas, a sobrevivência do enxerto/doente, aos 5 e 10 anos, foi respectivamente de cerca de 50% e 30%. Estes números obrigam à adopção de todas as estratégias médicas e cirúrgicas mais conservadoras para evitar o transplante até que novos protocolos permitam melhor prognóstico. O prognóstico do transplante é largamente condicionado pelo elevadíssimo risco de rejeição aguda, rejeição crónica e infecções víricas letais.

Em suma, os importantes avanços conseguidos com a terapêutica nutricional, a terapêutica médico-cirúrgica e o transplante intestinal contribuíram decisivamente para melhorar as perspectivas dos doentes com síndroma do intestino curto.

O dia dos tolos de abril está chegando. Aperte seus amigos abrindo um tela de atualização falsa sem fim no seu computador. Sente-se e assista a sua reação.

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DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG

Definição

A doença de Hirschsprung (DH) ou megacólon aganglionar congénito é caracterizada pela ausência de células ganglionares na porção mais distal do cólon e recto, característica anatomopatológica que se pode estender proximalmente de modo variável. Tal afecção é uma causa frequente de obstrução intestinal no recém-nascido (RN) e na primeira infância.

A doença de Hirschsprung é classificada como clássica (envolvimento recto-sigmóide: 75% dos casos); longa (envolvimento até ao cólon transverso: 17% dos casos), e extralonga (envolvimento até à válvula íleocecal com possível compromisso do íleo terminal: 8% dos casos). A aganglionose intestinal total, a forma mais grave de doença, é extremamente rara.

A DH surge com uma incidência de cerca de 1/5.000 nascimentos, sendo mais frequente no sexo masculino (4/1). A taxa de incidência familiar oscila entre 4% e 7%.

Etiopatogénese

As células ganglionares entéricas são originárias da crista neural. Estas células estão presentes no intestino anterior à 4ª semana de gestação e iniciam a sua migração na direcção crânio-caudal entre a 5ª e a 12ª semana.

Após a 12ª semana de gestação é iniciada a migração transmural das células para se formarem os plexos mientéricos e os plexos submucosos, processo que termina cerca da 16ª semana.

A causa da ausência de células neurais na parede intestinal deriva de vários factores, como: interrupção da migração crânio-caudal; falência de diferenciação celular após a migração completa devido a alterações da matriz extracelular onde neuroblastos se fixam e se diferenciam; e mecanismo imunogénico mediado pelo “complexo major de histocompatibilidade”, responsável por formação de anticorpos antineuroblastos.

A migração e diferenciação das células da crista neural são reguladas por uma variedade de factores neuropáticos segregados pelas células mesenquimatosas. A expressão destas moléculas, por sua vez, é regulada por vários genes ou vias genéticas (por ex. gene RET e via do receptor da endotelina tipo B).

O padrão de hereditariedade é variável, relacionando-se com o comprimento do intesino envolvido. Quer na DH isolada, quer na associada a síndromas ou outras doenças, foram descritas todas as formas de hereditariedade mendeliana. Até à actualidade identificaram-se 12 genes em diferentes cromossomas cujas mutações podem estar relacionadas com a afecção; como mais importantes consideram-se as do gene RET, localizado no braço longo do cromossoma 10.

Assim, os factores genéticos têm uma importância fulcral na patogénese da doença de Hirschsprung, nomeadamente após a identificação da variação genética responsável pela supressão da expressão celular das células pluripotenciais da crista neural. A doença de Hirschsprung é, pois, englobada no grupo das neurocristopatias, estando intimamente associada a outras doenças ou síndromas que partilham a mesma natureza genética como síndromas de Waardenburg, de Von Recklinghausen, de Smith-Lemi-Opitz, de Jeune, de Joubert, de Down, etc..

Quer na DH isolada, quer na associada a síndromas ou outras doenças, foram descritas todas as formas de hereditariedade mendeliana. Até à actualidade identificaram-se 12 genes em diferentes cromossomas cujas mutações podem estar relacionadas com a afecção; como mais importantes consideram-se as do gene RET, localizado no braço longo do cromossoma 10.

O aspecto fisiopatólogico básico desta doença é a ausência de coordenação celular da actividade motora das fibras colinérgicas pré-ganglionares, e do efeito inibitório das fibras adrenérgicas pós-ganglionares. Assim, desenvolve-se hiperplasia nervosa colinérgica com aumento de produção não inibida de acetilcolina pelos neurónios colinérgicos, e aumento de sensibilidade do músculo liso a esta substância; tal se explica pela ausência de receptores alfa-2 da mediação noradrenérgica, o que impede a contractilidade do segmento agangliónico.

O aspecto patológico macroscópico característico deste problema é a dilatação e hipertrofia do cólon proximal, com abrupta ou gradual transição (cone de transição), para a porção distal, de dimensão normal ou diminuída.

Anatomia patológica

O aspecto histológico é caracterizado por uma ausência de células ganglionares nos plexos mientérico e subcutâneo, e a presença de troncos nervosos não mielinizados hipertrofiados no espaço normalmente ocupado pelas células ganglionares.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Em cerca de noventa por cento dos doentes com doença de Hirschsprung o diagnóstico é feito durante o período neonatal. O atraso na emissão de mecónio é o sinal clínico neonatal cardinal desta doença.

Cerca de 90% dos recém-nascidos (RN) com DH eliminam mecónio após as 24 h de vida. Este sinal clínico é seguido por obstipação, vómitos e distensão abdominal nos primeiros dias de vida. O exame rectal revela, classicamente, uma ampola rectal vazia de fezes com uma posterior descarga de fezes líquidas e semi-líquidas de cheiro fétido. A estimulação rectal, o uso de clisteres de limpeza, de laxantes e de emolientes pode fazer regredir o quadro clínico temporariamente. Nesses casos a doença reveste-se de uma forma crónica com períodos de agudização e, manifesta-se clinicamente como um quadro de obstipação crónica com ou sem distensão abdominal apreciável.

Em cerca de um terço destes doentes surge como episódio inaugural um quadro de diarreia aguda profusa. Este sinal clínico é indicativo da possibilidade de desenvolvimento de enterocolite grave que permanece como a principal causa de morte do RN com DH. Nos casos mais graves é caracterizada por distensão súbita, vómito bilioso, febre, sinais de desidratação grave, diarreia sanguinolenta, sépsis e falência multiorgânica.

FIGURA 1. Sinais radiológicos de oclusão intestinal no RN no contexto de DH: distensão abdominal e níveis hidroaéreos. (NIHDE)

O diagnóstico da DH depende da conjugação da clínica com o estudo imagiológico, o estudo manométrico e, por fim, o estudo histológico.

Os sinais radiológicos característicos em radiologia convencional são a presença de distensão gasosa de ansas, níveis hidroaéreos e ausência de conteúdo gasoso na região pélvica (cut-off sign) (Figura 1). Nos casos de enterocolite, a distensão gasosa de ansas é muito volumosa, existindo edema da parede, modelagem e irregularidade mucosa identificável. O pneumoperitoneu pode estar presente por necrose transmural e perfuração da parede de ansa.

O clister opaco é um exame radiológico considerado de excelência para o diagnóstico da doença. Este exame permite identificar a zona de espasmo rectosigmóide ou cólico e também a zona de transição (cone de transição) existente entre a zona de espasmo e a zona de dilatação intestinal. A retenção de contraste endoluminal por mais de vinte e quatro horas é muito sugestiva desta patologia, podendo tornar evidente uma zona de transição não imediatamente identificável no início da realização do exame.

A manometria anorrectal (MAR), baseia-se no princípio da ausência de relaxamento do esfíncter interno após a estimulação por aumento de pressão endoluminal pelo balão da sonda. Este fenómeno é característico do segmento aganglionar e, por isso, pode servir como exame de rastreio da doença.

O exame histológico é imprescindível para o diagnóstico definitivo. A biópsia pode ser realizada por meio de acesso laparoscópico (“mapeamento” cólico) ou, mais simplesmente, por meio de biópsia rectal. A biópsia rectal pode ser bem sucedida utilizando uma pinça de sucção, ou por secção cirúrgica. O estudo histológico permite, por análise imuno-histoquímica, identificar a existência, a natureza e maturidade das células ganglionares, assim como a presença de hipertrofia dos troncos nervosos.

Indicação operatória

A DH tem sempre indicação operatória. O princípio geral da terapêutica cirúrgica da DH é a ressecção segmentar do porção recto-sigmóide-cólica aganglionar e o abaixamento do cólon normal gangliónico até à margem do ânus. Até à realização da cirurgia definitiva o RN é mantido num programa de descompressão cólica por meio de clisteres de limpeza denominado classicamente nursing.

Como nova modalidade terapêutica, considerada ainda em fase de investigação, cita-se a transplantação de células-mãe do sistema nervoso entérico no cólon aganglionar.

Complicações pós-operatórias

As complicações pós-operatórios na DH são decorrentes de dois aspectos fundamentais: por um lado, complicações associadas ao abaixamento cólico e da anastomose colo-rectal: infecção local, deiscência e isquémia do segmento cólico mobilizado e estenose da anastomose colo-rectal; por outro, pode surgir uma complicação funcional – as células ganglionares embora presentes, têm uma disposição anómala e displástica condicionando obstrução funcional cólica distal.

A complicação mais grave é a enterocolite pós-operatória. É caracterizada por distensão abdominal extrema, hipertermia, diarreia paradoxal profusa e hemática, e por síndroma séptica. Esta situação obriga a descompressão intestinal de urgência por sonda de enteroclise e instituição de antibioticoterapia de largo espectro e de pausa alimentar. A enterocolite pós-operatória, que pode ocorrer em cerca de 20% dos casos, constitui a primeira causa de morte pós-operatória nestes doentes.

Seguimento

O seguimento dos doentes com DH deve ter em conta, não só a evolução pós-operatória, como também o status funcional intestinal e o desenvolvimento geral da criança.

Numa situação de boa evolução cirúrgica, com um bom funcionamento do segmento cólico mobilizado, é provável a ausência de obstipação grave pós-operatória e boa evolução estaturo-ponderal associada.

Todas as complicações decorrentes do quadro de retenção fecal, estase fecal, proliferação bacteriana e má-absorção, podem ser ultrapassadas com a resolução cirúrgica da doença.

Prognóstico

Na ausência de complicações mecânicas e funcionais, e de episódio ou episódios de enterocolite pós-operatória, o prognóstico final da DH é bom, com resultados de cerca de 90% de cura.

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OBSTIPAÇÃO

Definição e importância do problema

obstipação pode ser definida por dois critérios:

  1. diminuição da frequência da defecação considerando-se anómalo o caso com menos de duas dejecções por semana (critérios de Roma III); ou
  2. defecação acompanhada de sintomas sugerindo dor ou desconforto, geralmente associada à passagem de fezes duras, mesmo para uma frequência superior à considerada inicialmente.

encoprese define-se pela expulsão de fezes (voluntária ou involuntária) em local não apropriado, a partir dos 4 anos de idade (normalmente após a aquisição dos mecanismos de controlo esfincteriano). À perda involuntária e repetida de fezes, habitualmente pastosas ou semiformadas, sujando continuada ou frequentemente a roupa interior, dá-se também o nome de “soiling” ou encoprese no sentido estrito.

A obstipação é uma situação frequente em idade pediátrica, podendo atingir 3% das queixas que motivam consultas em cuidados primários e até 25% dos doentes enviados às consultas de Gastrenterologia Pediátrica.

O conceito de obstipação funcional refere-se às situações em que não se evidencia nenhuma causa orgânica, o que corresponde a 95% dos doentes.

Segundo os critérios de Roma – IV, a obstipação funcional é subdividida nas seguintes formas:

  1. Disquézia infantil – situação em lactente saudável até aos 6 meses com períodos, no mínimo de dez minutos, de esforço e choro antes de conseguir defecar fezes moles.
  2. Obstipação funcional na criança e adolescente – cumprimento de, pelo menos, dois critérios numa criança com idade mental superior a 4 anos, pelo menos uma vez por semana, por um período superior a dois meses: duas ou menos defecações por semana na sanita; pelo menos, um episódio de incontinência fecal por semana; história de comportamentos de retenção ou de retenção fecal voluntária excessiva; história de dejecções duras ou dolorosas; presença de uma grande massa fecal no recto; história de fezes de grande diâmetro que podem obstruir a sanita.
  3. Obstipação funcional no recém-nascido e criança pequena – os mesmos critérios referidos anteriormente, diferindo no requisito de duração das queixas (neste caso, superior a um mês), podendo ainda acompanhar-se de irritabilidade, diminuição do apetite e/ou saciedade precoce; sintomatologia regredindo imediatamente após a eliminação de fezes grandes.
  4. Incontinência fecal não retencional – incluindo todos os critérios seguintes numa criança com idade mental superior a 4 anos e com duração das queixas superior a 2 meses: defecação em contextos socialmente impróprios, pelo menos uma vez por mês; ausência de processo inflamatório, anatómico, metabólico ou neoplásico que explique a sintomatologia do doente; ausência de retenção fecal evidente.

As causas orgânicas de obstipação em idade pediátrica resultam essencialmente de perturbações da inervação intrínseca do músculo liso intestinal (de que se destaca a doença de Hirschsprung ou a pseudo-obstrução intestinal crónica), de fenómenos inflamatórios ou alérgicos da mucosa (doença celíaca, intolerância ou alergia às proteínas do leite de vaca), ou de alterações endocrinológicas (hipotiroidismo), ou electrolíticas (hipercalcémia, hipocaliémia nos mais novos).

Etiopatogénese

Na obstipação funcional do adulto são descritos dois mecanismos: atonia ou hipomotilidade cólica e aumento da resistência anal à defecação. Na criança está implicado, na maioria dos casos, este segundo mecanismo.

Para perceber as alterações da dinâmica da defecação importa analisar como evolui este processo (simultaneamente maturativo e comportamental) na criança.

A presença duma zona de alta pressão em repouso constituída pela contracção tónica do esfíncter anal interno impede a incontinência fecal. O esfíncter anal externo, constituído por músculo estriado sob controlo voluntário, representa apenas 10-15% dessa pressão em repouso; mas na criança que adquire o controlo da defecação, a sua contracção voluntária, quando aumenta a pressão intrabdominal e o relaxamento reflexo do esfíncter anal interno, permite manter a continência e a possibilidade de evacuação em local socialmente adequado.

O recto funciona como um compartimento de armazenamento de fezes. A sua distensão pelo bolo fecal, ultrapassando certo limite, leva a uma sensação de preenchimento e a vontade de defecar. Em simultâneo (se houver integridade da inervação intrínseca) dá-se o reflexo recto-anal inibidor (RRAI), que leva ao relaxamento do esfíncter anal interno. Assim, evacuação pode ser impedida nessa ocasião pela contracção voluntária de esfíncter externo.

O aumento da pressão intrabdominal pela execução da manobra de Valsalva, o relaxamento reflexo do esfíncter anal interno, e o relaxamento voluntário do esfíncter anal externo ao abolir a zona de alta pressão (resistência) do canal anal, permitem a defecação. Este fenómeno é ainda facilitado pelo simultâneo relaxamento voluntário do músculo puborrectal e pela contracção do levator ani, que rectificam o ângulo recto-anal, anulando essa resistência suplementar à passagem das fezes.

Na disquézia infantil o lactente não consegue coordenar o aumento da pressão intrabdominal com a relaxação pélvica: daí o esforço e o choro utilizado como manobra de Valsalva incompleta para evacuar fezes moles. Trata-se de uma questão simplesmente maturativa.

Os fenómenos de retenção fecal surgem por exacerbação do processo fisiológico ligado aos mecanismos de aquisição da continência fecal, que se iniciam pelos 18 meses, e estando habitualmente presentes pelos 28 meses. Neste período é normal a criança começar a reter fezes através da contracção voluntária do esfíncter anal externo e músculos pélvicos.

A presença de períodos de maior endurecimento fecal (por vezes ligados a episódios de modificação do regime alimentar ou a desidratação) pode levar à constituição de fissuras anais, causando dor à defecação e esforço de retenção para a evitar. Esta retenção leva a um endurecimento ainda maior das fezes, constituindo-se um círculo vicioso, agravado pela acumulação fecal na ampola rectal. Tal circunstância leva a uma menor sensibilidade à distensão rectal, decisiva para iniciar a vontade de defecar.

No limite desta situação constituem-se fecalomas na ampola rectal, grande distensão desta e, também, do cólon a montante (megarrecto e megacólon funcionais).

Salienta-se que a tentativa do treino precoce da continência fecal pode ser o estímulo desencadeante do processo de retenção exagerada, com recusa da criança em defecar no bacio, criando-se uma situação de conflito com pais e educadores.

O aparecimento de encoprese (“soiling”) surge na sequência desta retenção prolongada das fezes na ampola rectal. Tal retenção causa uma irritação da mucosa com secreção que vai erodindo o fecaloma; e, para elevados volumes de distensão, verifica-se relaxamento reflexo de esfíncter anal interno e insensibilidade da criança a pequenas perdas fecais.

Aspectos epidemiológicos

Até aos 4 anos a prevalência da obstipação é igual nos dois sexos; contudo, a partir da idade escolar, o sexo masculino é mais afectado, nomeadamente no que respeita a queixas de encoprese numa razão que pode atingir 6/1.

É frequente encontrar-se na família do doente outros casos de obstipação, nomeadamente nos pais e irmãos. No entanto, este facto pode dever-se, para além de características genéticas, a aspectos ambientais partilhados como factores alimentares. Dentro destes destaca-se a importância da ingestão de fibra na dieta. Há estudos que demonstram um suprimento reduzido de fibra no regime alimentar de crianças obstipadas em relação a controlos; em tais casos, também os respectivos pais, igualmente obstipados, tinham um suprimento médio em fibras inferior ao dos pais de crianças não obstipadas. Há, pois, uma ligação entre factores genéticos e dietéticos nestes doentes.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica varia com a idade. O lactente amamentado pode evidenciar longos períodos sem evacuar, melhorando com a diversificação alimentar. Nos primeiros meses de vida, predominam as manifestações ligadas à disquézia infantil: lactentes evidenciando um enorme esforço e chorando muitas vezes para defecar, acabando por evacuar fezes moles espontaneamente ou após estimulação.

Na idade pré-escolar, evidenciam-se os sintomas de dor à defecação, sangue envolvendo as fezes, ou sujando o papel higiénico, traduzindo a presença de fissuras; é muito típica a aversão da criança ao sentar-se no bacio para defecar, chorando ou gritando quando sente vontade, tentando reter as fezes através de manobras variadas (contracção dos músculos das ancas e glúteos, extensão das pernas, apoio da região anal encostando-se às paredes, ou sentando-se sobre os pés).

Num grupo de crianças pequenas encontra-se uma associação entre a presença de obstipação crónica e intolerância ou alergia às proteínas do leite de vaca, o que leva à presença de inflamação rectal, eritema perineal e fissuras anais com retenção fecal secundária. A modificação do regime alimentar com exclusão dos produtos lácteos leva a uma resolução da obstipação neste grupo de doentes.

Na criança em idade escolar, predominam as queixas de dor abdominal ou de encoprese. Muitas vezes os pais não se apercebem de que a criança encoprética é obstipada e atrasam a sua vinda à consulta; por vezes, o motivo desta é a existência de uma falsa diarreia.

Um sinal de retenção fecal importante numa criança encoprética é a existência ocasional de defecação muitíssimo volumosa, podendo levar mesmo à obstrução da sanita.

A anorexia acompanha frequentemente as crianças com obstipação prolongada, melhorando com a aquisição da regularidade da defecação.

Também se pode verificar a coexistência de encoprese com incontinência urinária diurna, enurese nocturna, ou com infecção urinária recorrente, principalmente no sexo feminino.

Diagnóstico

Na recolha da história clínica deve ser averiguado se houve atraso, superior a 24 horas, da eliminação de mecónio. Este achado, bem como uma distensão abdominal significativa no lactente, episódios de enterocolite ou atraso ponderal, devem alertar para a presença de patologia orgânica, nomeadamente doença de Hirschsprung.

Deve ser inquirido sobre se o início dos sintomas se relaciona, ou não, com as seguintes circunstâncias: – alteração na dieta (passagem do leite materno para fórmula láctea ou início da diversificação alimentar); – retirada da fralda; ou – entrada na escola.

Na observação das crianças com obstipação, deve ser avaliada cuidadosamente a presença de massa fecal abdominal, havendo uma boa relação entre a magnitude dessa massa e a magnitude da sintomatologia associada à obstipação.

A observação da região anal deve ser cuidadosa com o objetivo de detecção de eventuais anomalias posicionais (designadamente ânus anterior, que pode condicionar a obstipação pela maior angulação rectoanal) e a presença de fissuras. Há que excluir ainda sinais de disrafismo espinhal.

toque rectal avalia a tonicidade do esfíncter anal e a presença de fecalomas na ampola rectal. Uma ampola vazia, na ausência de emissão recente de fezes, é sugestiva de doença de Hirschsprung.

Importa salientar, a propósito, que numa primeira observação, numa criança anteriormente submetida a muitos enemas ou supositórios para evacuar, nem sempre é fácil efectuar-se o toque rectal em condições adequadas. Nesta circunstância, ou quando a observação abdominal é dificultada, por exemplo, nos obesos, deve proceder-se a radiografia simples do abdómen em decúbito dorsal para avaliar a extensão do fecaloma, e de pé, para avaliar a existência de distensão das ansas ou níveis hidroaéreos, o que sugere causa orgânica.

manometria anorrectal não tem interesse nas formas simples de obstipação, que respondem ao tratamento inicial; no entanto, nas formas resistentes, nomeadamente quando da suspeita de uma forma ultracurta da doença de Hirschsprung, é um exame fundamental e de primeira linha.

Os achados manométricos mais frequentes na obstipação funcional são a presença de RRAI para volumes altos de distensão, diminuição da sensibilidade à distensão rectal traduzindo a presença de uma mega-ampola e, por vezes, contracção paradoxal do esfíncter anal externo durante a tentativa de defecação. Por outro lado, os achados manométricos, nas formas com ou sem encopres, são sobreponíveis.

Tratamento

Na situação de encoprese com retenção fecal é necessário um prévio esvaziamento da matéria fecal acumulada no recto e cólon.

Nos raros casos de “soiling” fecal não retencional não é necessário (ou até é contraproducente) usar terapêutica laxante; por isso, a intervenção deverá ser centrada na reeducação do comportamento relacionado com os hábitos da defecação.

O tratamento da obstipação sem encoprese assenta essencialmente em quatro vertentes: esvaziamento intestinal, medidas dietéticas, medidas farmacológicas e educação.

Esvaziamento intestinal

Esta fase do tratamento tem por finalidade evacuar os fecalomas de modo a permitir recuperar a sensibilidade defecatória à distensão rectal e diminuir as perdas fecais involuntárias.

O uso de enemas de fosfato hipertónico na dose 2,5 mL/kg (máx. 133 mL/dose, ver Quadro 1) uma vez por dia durante um ou dois dias, complementado com o uso de enemas salinos (até ao máximo de 500 ml), a que se pode associar 10-20 ml de óleo mineral (parafina líquida), é habitualmente suficiente para libertar um fecaloma rectal.

No entanto, em casos de grande retenção estercoral, é necessário complementar o uso destes enemas com o de soluções de limpeza intestinal (à base de polietileno glicol e electrólitos) administradas em meio hospitalar, oralmente ou por sonda nasogástrica na dose de 1-1,5 g/kg/dia durante 3-6 dias, com ulterior dose de manutenção ajustada.

Considera-se “limpo” o intestino quando: – há saída pelo ânus de líquido claro, ficando a ampola rectal vazia; e – se verifica presença de sinal de ar pélvico através de radiografia simples do abdómen.

Medidas dietéticas

A dieta deve ser menos rica em alimentos adstringentes (arroz, massas, leguminosos secos) e o consumo de água aumentado, para evitar a dureza excessiva das fezes. O suprimento diário em fibras deve ser incrementado, visto as mesmas promoverem a evacuação por um mecanismo duplo: as fibras não solúveis (celulose e hemicelulose, etc.), aceleram o trânsito cólico por um efeito mecânico e amolecem as fezes por fixarem água, enquanto as fibras solúveis, mais fermentáveis como as pectinas, aumentam o bolo fecal por incrementarem a massa bacteriana das fezes. O uso de produtos naturalmente ricos em fibras deve ser encorajado: (legumes verdes na sopa ou saladas, fruta com casca, pão ou cereais integrais). Somente na impossibilidade de a criança os aceitar, deverão ser adicionados preparados de fibra purificada (farelo, por exemplo) aos alimentos (sopas, iogurtes).

Nos lactentes em que a obstipação pode ser considerada secundária a intolerância às proteínas do leite de vaca, há que substituir esses alimentos por fórmulas com hidrolisado extenso ou de soja, seguindo os procedimentos habituais de exclusão, provocação e reintrodução dos produtos lácteos.

Medidas farmacológicas

O uso de laxantes tem por finalidade amolecer as fezes e aumentar a motilidade intestinal. O uso de laxantes osmóticos contribui para aumentar a hidratação das fezes. Dividem-se em 2 grupos: hidratos de carbono não absorvíveis como a lactulose ou o lactitol, fermentáveis pelas bactérias do cólon; ou moléculas inertes como o polietileno glicol com ou sem electrólitos.

O uso de óleo mineral (parafina líquida) tem uma acção emoliente sobre as fezes e pode induzir secreção hidro-electrolítica no cólon ao ser convertido pela flora bacteriana em ácidos gordos hidroxilados. Não deve ser administrado em crianças com distúrbios da deglutição para evitar fenómenos aspirativos; se se utilizar, deve ser dado fora das refeições para obviar a possível má absorção de vitaminas lipossolúveis.

Aos agentes osmóticos pode ser necessário adicionar fármacos que promovam a motilidade do cólon, principalmente nas situações em que uma grande distensão leva à hipomotilidade cólica. O sene tem sido dos agentes mais usados em idade pediátrica com bons resultados, devendo ser evitado por períodos muito prolongados.

As fissuras anais devem ser tratadas com anti-inflamatórios e cicatrizantes tópicos.

O tratamento da obstipação deve ser ajustado individualmente com aumento ou redução das doses, mas sempre por um período inicial nunca inferior a 2-3 meses. Posteriormente, deve ser feito o desmame lento e progressivo do(s) laxante(s), sempre com o objectivo de obter defecações sem esforço e ausência de perdas fecais. (Quadros 1 e 2).

Educação

Após o estabelecimento de um diagnóstico de obstipação funcional, deve ser explicado aos pais e doentes, de acordo com a idade, que a situação clínica não é grave, mas necessita de um acompanhamento cuidadoso, com o cumprimento estrito de medidas dietéticas e terapêuticas para promover a evacuação intestinal. Também deverá ser explicado que a encoprese é consequência da obstipação, que a criança não é propositadamente preguiçosa ou desmazelada, e que a melhoria da situação de base levará ao desaparecimento daquela.

Quanto mais cedo a encoprese for tratada, maior a taxa de sucesso da terapêutica. Por outro lado, junto dos pais, deve ser reforçada a necessidade de não se estabelecer um treino coercivo nas crianças que até aos 3 anos se recusam a evacuar no bacio; pelo contrário, dever-se-á deixar manter as fraldas.

O treino da defecação deve ser estimulado na criança mais velha, aconselhando-a a frequentar regularmente a casa de banho, nomeadamente após as refeições. A posição ideal da defecação, sentada nos sanitários com os pés bem apoiados para aumentar a pressão intrabdominal, deve ser explicada a crianças e pais.

A presença de frequentes recaídas nestas situações deve também ser abordada, pelo que o cumprimento do plano deve ser rigoroso e prolongado, sem abandonos causados pela euforia de melhorias rápidas, ou pelo desânimo da persistência dos sintomas.

Outras medidas

Pode haver necessidade de acompanhamento psicológico das crianças com encoprese quando esta se acompanha de baixa auto-estima, dada a probabilidade de desenvolvimento de estigmas depressivos e afastamento social.

QUADRO 1 – Fármacos usados na obstipação funcional

Tratamento de desimpactaçãoEspecificações
Tratamento oral (1ª linha) 

PEG = polietilenoglicol ou macrogol
Adaptado de MM Tabbers, et al. Evaluation and Treatment of Functional Constipation in Infants and Children: Evidence-Based Recommendations from ESPGHAN and NASPGHAN, JPGN 2014;58: 258–274

PEG oral com ou sem electrólitos
1-1,5 g/kg/dia
3-6 dias
Enema (2ª linha)1x dia, 3-6 dias

Docusato sódio (Clyss-go®, com sorbitol)

<6 anos: 60 mL
>6 anos: 120 mL

 
Fosfato de sódio
1–18 anos: 2,5 mL/kg
máx 133 mL/dose
 
Cloreto sódio
Recém-nascidos: <1 kg: 5 mL, >1 kg: 10 mL
>1 ano: 6 mL/kg
Máx 500 mL
1-2x dia
Parafinina
2–11 anos: 30–60 mL
>11 anos: 60–150 mL
1x dia
Bisacodilo
2–10 anos: 5 mg
>10 anos: 5–10 mg
 
Solução de lavagem intestinal
14-40 ml/kg/hora
até saída de líquido pelo ânus
Tratamento de manutenção 
Laxantes osmóticos 
PEG (1º linha)
3350 (Movicol®) com electrólitos
4000 (Casenlax®) sem electrólitos
0,2-0,8 g/kg/dia
1-3x dia
idade > 1 ano
idade > 6 meses
duração tratamento > 2 meses

Lactulose

1-3 ml/kg/dia

2x dia

Todas as idades

Lactitol

1-3 ml/kg/dia

1-2x dia

Leite de magnésia (hidróxido de magnésio)

1-3 ml/kg/dia

1-2x dia

idade > 6 meses

Parafinina líquida

1-3 ml/kg/dia

máx 90 ml/ dia

1-2xdia

idade > 12 meses

Laxantes estimulantes 

Sene

2–6 anos: 2,5–5 mg
6–12 anos: 7,5–10 mg
>12 anos: 15–20 mg

1-2x dia
evitar uso prolongado

Bisacodilo

3–10 anos: 5 mg
>10 anos: 5–10 mg

1x dia

Picossulfato de Sódio

1 mês–4 anos: 2,5–10 mg
4–18 anos: 2,5–20 mg

1x dia

QUADRO 2 – Esquema de tratamento da obstipação funcional

Obstipação ligeira
Medidas dietéticas
Lactulose ou Lactitol 
Obstipação moderada
Medidas dietéticas
Lactitol + Parafina líquida + SeneEvitar uso prolongado de Sene
Obstipação grave
Medidas dietéticas
PEG + Parafina líquida + SeneEvitar uso prolongado de Sene
Obstipação + encoprese
Limpeza intestinal: (enemas de fosfato e salinos) e/ou solução de lavagem intestinal
PEG + Parafina líquida + SeneEvitar uso prolongado de Sene

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DOENÇA INFLAMATÓRIA DO INTESTINO

Definição e importância do problema

A designação “doença inflamatória do intestino” (DII) inclui duas doenças crónicas em que se verifica inflamação do aparelho digestivo: colite ulcerosa (CU) e doença de Crohn (DC).

Apesar de haver alguns factores comuns a estas doenças, existem características específicas de cada uma delas, o que permite distingui-las. Iniciam-se cedo na vida adulta, com apresentação na idade pediátrica em cerca de 20 – 30% dos casos. Caracterizam-se por haver, em alternância, períodos de remissão e de recaída, sendo a gravidade muito variável. Em comparação com as formas clínicas no adulto, a DII pediátrica é mais extensa no que respeita a localização e de evolução mais grave.

Nas últimas décadas tem havido aumento da incidência da DII em idade pediátrica, em especial da DC. Relativamente a esta última afecção, estima-se na idade pediátrica uma incidência de 4,5/100.000 nos EUA, e de 2,1-3,7 /100.000 no Canadá; quanto a incidência de CU aponta-se o valor de 2/100.000 (10-19 anos) nos EUA. Considerando globalmente a DII, com pico de incidência entre os 15 -30 anos, dados provenientes da Europa (França e Reino Unido) apontam o valor de 5-6 casos por 100.000 habitantes (3-5 para DC e 0,8-2 para CU).

Etiopatogénese

A etiopatogénese da DII é complexa e não está totalmente definida. Produz-se por interacção variável de factores ambientais e genéticos que modificam a tolerância à microbiota intestinal e produzem resposta imunológica anómala (desregulação), que desencadeia uma resposta inflamatória da parede intestinal.

A DC e a CU são doenças complexas cujo componente genético é do tipo poligénico e de penetrância variável. Existem formas monogénicas de começo infantil, relacionadas com mutações do gene da interleucina 10 (IL 10) ou do seu receptor (IL 10R). A favor da base genética da DII está o facto de se ter demonstrado agregação familiar nalguns casos.

A maioria dos genes relacionados com DII (designadamente genes nos cromossomas 12 e 16) associa-se a DC. Estudos recentes revelaram que variações em genes especificos, ATG16L1, IL23R, IRGM e NOD2 aumentam o risco de desenvolvimento de DC.

De acordo com diversos estudos, não se observam diferenças genéticas significativas entre DII pediátrica e do adulto, excepto no que diz respeito a certas formas de início pediátrico muito precoce.

A inflamação crónica no intestino leva a várias alterações fisiopatológicas que resultam essencialmente em diarreia, enteropatia exsudativa, hemorragia, dor abdominal e estenoses. É importante o papel das citocinas e dos eicosanóides pró-inflamatórios os quais aumentam a permeabilidade vascular e originam vasodilatação, provocando secreção de electrólitos e aumento da contractilidade do músculo liso. O epitélio inflamado leva a perda de proteínas. As citocinas promovem o recrutamento e a actividade de células formadoras de colagénio, levando à proliferação de tecido fibroso com consequente espessamento da parede e formação de estenoses.

………*……..

1. DOENÇA de CROHN

Particularidades

Classicamente, o íleo terminal é o segmento atingido com maior frequência (50%), embora qualquer área do tracto gastrintestinal desde a boca ao ânus [incluindo, claro está, o colon (~20%), o esófago, o estômago, e o duodeno ] possa estar envolvida. Pode ocorrer envolvimento isolado do cólon nalguns doentes.Os termos sinónimos são ileíte terminal ou regional, ileocolite ou enterocolite granulomatosa.

O intestino apresenta-se espessado, nodular, muitas vezes com franca ulceração. Os granulomas sem caseificação são muito característicos. Quando a inflamação, que é transmural, se estende para além da serosa, podem existir fístulas para estruturas adjacentes, como o intestino, bexiga, vagina ou períneo.

Esta doença tem características de descontinuidade quanto às áreas afectadas, manifestando-se pela alternância de zonas sãs com zonas afectadas.

Manifestações clínicas

Discriminam-se as manifestações clínicas mais típicas por ordem decrescente de frequência:

  • Dor abdominal
  • Perda de peso
  • Diarreia
  • Sangue nas fezes
  • Lesões perianais
  • Febre
  • Restrição do crescimento
  • Úlceras orais
  • Artralgia / artrite
  • Lesões cutâneas

QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da DII

Cutâneas
• Eritema nodoso
• Piodermite gangrenosa
• Doença perianal
Hepáticas
• Colangite esclerosante
• Hepatite crónica
• Litíase
• Cirrose
Articulares
• Artralgia
• Artrite
• Espondilite anquilosante
• Sacroileíte
Oftalmológicas
• Uveíte
• Episclerite
• Cataratas
Renais
• Litíase
• Hidronefrose
• Fístula enterovesical
Hematológicas
• Défice de ferro, folatos e vitamina B12
• Anemia
• Trombocitose
• Neutropénia
Vasculares
• Tromboflebite
• Vasculite

2. COLITE ULCEROSA

Particularidades

Ao contrário da doença de Crohn em que a inflamação é transmural, o processo inflamatório na colite ulcerosa localiza-se apenas na mucosa. Inicia-se quase sempre no recto, em continuidade (isto é, sem zonas afectadas intercaladas com zonas não afectadas), atingindo extensões variáveis e diminuindo de gravidade em direcção ao cego.

São frequentes os abcessos das criptas, as alterações da arquitectura e a depleção das células caliciais.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas por ordem decrescente de frequência são:

  • Rectorragia
  • Diarreia
  • Dor abdominal
  • Perda de peso
  • Artralgia / artrite
  • Febre
  • Restrição do crescimento

Existem várias manifestações extraintestinais da DII que podem, quer preceder os sintomas gastrintestinais, quer coexistir ou aparecer meses ou anos após o diagnóstico (Quadro 1).

………*………

Diagnóstico da DII

A DII deverá ser sempre admitida como hipótese de diagnóstico nas seguintes situações: dor abdominal crónica, diarreia crónica com ou sem sangue, atraso de crescimento e pubertário, perda de peso, rectorragias, anemia inexplicada, abcessos perianais, fístulas, fissuras, história familiar de DII e sintomas extra-intestinais como úlceras orais, artrite, lesões cutâneas (eritema nodoso e pioderma gangrenoso), alterações oculares e hepaticas.

O diagnóstico da DII é sugerido pela combinação de manifestações clínicas, e confirmado por exames laboratoriais, imagiológicos, endoscópicos e histológicos.

Em crianças com apresentação de colite abaixo dos 3 anos, deve ser considerada a colite causada por imunodeficiência, nomeadamente doença granulomatosa e deficiência de receptor da IL10.

Os exames laboratoriais habitualmente requeridos para a avaliação inicial são essencialmente: hemograma, doseamento de proteína C reactiva, velocidade de sedimentação, ferritina, plaquetas, albumina, ANCA e ASCA, pesquisa de sangue oculto nas fezes, calprotectina fecal, e coproculturas.

Os exames imagiológicos habitualmente realizados são ecografia abdominal e enterografia por ressonância magnética (permitindo avaliar com rigor: estenoses, extensão do processo inflamatório, envolvimento transmural, doença penetrante e abcessos).

A endoscopia (esófago-gastro-duodenoscopia e ileocolonoscopia) deve ser sempre realizada em doentes com suspeita de DII, dado que poderá sugerir de imediato o diagnóstico pelas alterações visíveis; por outro lado, importa proceder a biópsias para confirmação histológica. Mesmo em zonas de aparência normal, devem ser realizadas biópsias dos vários segmentos pela possibilidade de existência de sinais de inflamação detectáveis apenas por exame microscópico.

A cápsula endoscópica do intestino delgado tem vindo a ser utilizada cada vez mais frequentemente em pediatria, principalmente em crianças com idade superior a 10 anos. Com tal técnica é possível avaliar o atingimento do intestino delgado em zonas não acessiveis à endoscopia, o que poderá ser importante para as decisões terapêuticas; igualmente muito sensível para avaliar lesões da mucosa, contudo, não detecta processos extraluminais e não permite fazer biópsias. Poderá também haver o risco de retenção.

A enteroscopia de duplo-balão permitindo visualizar o intestino de delgado, é, contudo, um procedimento demorado, com alguns riscos e necessita de especialização.

Actualmente em determinados centros especializados está a utilizar-se (em casos seleccionados e não como rotina) um marcador serológico (macro- CK ou macrocreatinaquinase de tipo 1/complexo CK-Ig) associado a doença crónica e a doença autoimune; valores elevados e persistentes verificam-se na colite ulcerosa, e não na doença de Crohn.

A macro-CK de tipo 2 (oligómero de CK) está associada a doença maligna.

Quanto a diagnóstico diferencial, de referir que diversos agentes infecciosos podem provocar quadro clinico semelhante à DII (por ex. Campylobacter, Yersinia, Clostridium difficile, E coli 0157:H7, BK, Entamoeba histolytica, CMV, Criptosporidium, etc.).

Igualmente estão descritas situações clínicas simile DII (DII like, segundo os anglófonos) associadas a alterações vasculares isquémicas (LED,PSH,SHU), a doenças inflamatórias de causa imune (como doença de Behçet, gastrenterite eosinofílica,etc.), imunodeficiências primárias, alterações alérgicas, a abuso de laxantes e a linfoma intestinal.

Tratamento

Medidas gerais

Os objectivos do tratamento da DII na criança são induzir e manter a remissão prolongada, minorando as complicações e os efeitos secundários da terapêutica. Deve prevenir recaídas, promover o crescimento e o desenvolvimento pubertário e melhorar da qualidade de vida. A adesão à terapêutica deve ser avaliada com frequência, uma vez que as interrupções da medicação são causa frequente de falência de resultados, principalmente em adolescentes.

Nutrição

A nutrição entérica exclusiva (NEE) tem vindo a ser utilizada em doentes com DC aguda para indução de remissão. Consiste na utilização de fórmulas, elementares, semi- elementares e poliméricas como terapêutica primária para induzir e manter a remissão na D. Crohn e como suplemento para recuperar o crescimento e corrigir deficits de micronutrientes. Há estudos que referem que a NEE pode ser tão eficaz no tratamento da DC aguda como os fármacos seguidamente citados e que, como suplemento da alimentação, pode prolongar a remissão da doença. Alguns estudos sugerem também que a NEE pode levar à cicatrização da mucosa. A maior dificuldade da utilização da NEE prende-se com a baixa adesão de pais / família e crianças, uma vez que tem que ser utilizada por períodos não inferiores a 6-8 semanas e muitas crianças não conseguem ingerir a quantidade necessária por boca, sendo necessário recorrer a colocação de sonda nasogástrica

Agentes terapêuticos

Existem vários tipos de agentes terapêuticos:

  • Aminossalicilatos – 5 ASA (ácido 5 – amino-salicílico)
  • Antimicrobianos (mais frequentemente, metronidazol, ciprofloxacina)
  • Corticosteróides (prednisolona, budesonido)
  • Imunomoduladores (azatioprina, 6-mercaptopurina, metotrexato, ciclosporina, etc.)
  • Agentes biológicos- Anticorpos monoclonais anti-factor necrosante tumoral Anti -TNF-alfa,  designadamente, infliximab, adalimumab.

O aparecimento da terapia com agentes biológicos no final do último século tem tido um impacte muito positivo na evolução de grande parte de crianças com doença grave. Os gastrenterologistas pediátricos têm vindo a optar por uma terapêutica inicial mais “intensiva/agressiva”, com o objectivo de alterar o curso natural da doença, evitando assim complicações, nomeadamente estenoses e fistulas, e necessidade de terapêutica cirúrgica.

Estes fármacos deverão ser utilizados de acordo com as características da doença, gravidade e resposta terapêutica.

À terapêutica médica deve sempre associar-se, apoio psicológico.

Cirurgia

A principal indicação da cirurgia é a existência de complicações da doença (estenoses e fístulas), perfuração, hemorragia, falência da terapêutica médica e complicações da terapêutica (por ex. restrição do crescimento). Poderá ser necessária em cerca de 60% dos casos na doença de Crohn e em 25 % – 40% dos casos de colite ulcerosa.

Prognóstico

A DII é um processo inflamatório crónico que não pode ser curado por terapêutica médica ou cirúrgica, mas pode ser controlado, permitindo que a criança tenha uma boa qualidade de vida.

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DIARREIA CRÓNICA NÃO ESPECÍFICA

Definição e importância do problema

A diarreia crónica não específica (diarreia funcional / do andante ou da criança pequena) é um quadro de causa não orgânica o qual se insere na patologia funcional do tubo digestivo, classificando-se na alínea G5 dos chamados critérios de Roma III (Doenças funcionais gastrintestinais da infância).

É a causa mais frequente de diarreia crónica na infância nos países desenvolvidos, tendo início entre os 6 meses e os 3 anos de idade, desaparecendo espontaneamente entre os 2 anos (nos casos de começo mais precoce) e os 4-6 anos.

Etiopatogénese

As causas deste quadro permanecem ainda inexplicadas; admite-se que possa haver uma alteração da motilidade digestiva levando a uma maior rapidez do trânsito intestinal com a chegada ao cólon de uma maior quantidade de líquidos e sais biliares, provocando uma diarreia secretora.

Esta resposta motora inapropriada pode ser desencadeada pela percepção de determinados estímulos, quer a nível do sistema nervoso central, quer a nível periférico, mediados ou não por fenómenos inflamatórios locais.

Os estímulos podem ser de origem luminal, incluindo componentes exógenos da dieta (como o excesso de frutose ou sorbitol em crianças com consumo exagerado de sumos de fruta industriais), ou factores de tensão emocional relacionados com o ambiente psicossocial. O facto de poder surgir após uma gastrenterite aguda, com manutenção por parte dos pais de “líquidos claros” mais ou menos hiperosmolares, para hidratar a criança, poderá manter o círculo vicioso e perpetuar a diarreia.

Manifestações clínicas

A diarreia crónica não específica revela-se muitas vezes após um episódio de diarreia aguda ou de uma infecção respiratória medicada com antibióticos; caracteriza-se por um quadro de diarreia com 3-10 dejecções líquidas ou pastosas, por vezes com muco ou restos alimentares não digeridos (lienteria), com duração superior a 4 semanas e não acompanhadas de dor.

O tipo de dejecções varia ao longo do tempo, com períodos sem diarreia, ou até com obstipação. Habitualmente, ao longo do dia, as primeiras dejecções são mais formadas, seguindo-se fezes mais líquidas. Não se verificando dejecções durante o sono, não se encontra eritema do períneo nem distensão abdominal.

A criança apresenta um bom estado geral e nutricional, com humor e vitalidade conservados, sem perda de peso (se bem que ao fim de algum tempo de uma alimentação muito estrita e com uma dieta “antidiarreica” comece a ter anorexia e a evidenciar ligeira inflexão da curva ponderal). Assim, se o suprimento calórico for adequado, tipicamente não existe má progressão estaturo-ponderal.

Diagnóstico

O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo efectuar-se um mínimo de exames complementares, os quais podem incluir a avaliação do grau de digestão de fezes para excluir esteatorreia ou má absorção de açúcares, e pesquisa de quistos de Giardia ou antigénio de Giardia lamblia nas fezes. Um teste de H2 expirado sob regime com lactose para excluir intolerância a este dissacárido (ou uma prova clínica de evicção da lactose na dieta) podem revestir-se de utilidade.

Tratamento

Em primeiro lugar, importa tranquilizar os pais, explicando-lhes que se trata de uma situação benigna e limitada, a qual não afectará o crescimento da criança.

Em segundo lugar, deve retomar-se uma alimentação normal, sem recurso a dietas de exclusão (ditas adstringentes “anti-diarreicas” que só conduzem, pela monotonia, a anorexia). O suprimento de sumos de fruta deve ser limitado, devendo aumentar-se a ingestão de gorduras (azeite) e de fibras solúveis pelo seu efeito de promoção da diminuição da velocidade do trânsito no intestino delgado, com melhoria sintomática.

Não está aconselhado o uso de produtos antidiarreicos.

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GIARDÍASE

Aspectos epidemiológicos

A infestação intestinal pelo protozoário Giardia lamblia (com a designação actual de G. duodenalis ou G. intestinalis) é a causa mais comum de diarreia de causa parasitária nos países desenvolvidos.

Pode aparecer em qualquer idade, mas é especialmente prevalente nas crianças mais pequenas, sobretudo quando frequentam creche ou jardim de infância.

Após a ingestão de Giardia, 25-50% das crianças tornam-se sintomáticas, 5-15% tornam-se excretoras assintomáticas (por períodos superiores a 6 meses) e as restantes não evidenciam qualquer alteração.

Estatísticas provenientes dos EUA apontam para incidência de ~9 casos/100.000 habitantes.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Giardia apresenta duas formas morfológicas: quistos e trofozoítos. Os quistos são a forma infecciosa: sobrevivem em ambiente húmido, não sendo afectados pela adição de cloro à água de consumo. A ingestão de 15-20 quistos pode provocar doença. A ruptura do quisto verifica-se no intestino delgado proximal, com libertação de trofozoítos que colonizam o duodeno e jejuno proximal. O microrganismo volta a enquistar-se no intestino grosso, sendo eliminado com as fezes.

A transmissão dos quistos estabelece-se através da água, alimentos, e por via fecal-oral entre pessoas infectadas, designadamente em escolas em geral e em infantários.

Giardia lamblia causa uma inflamação focal da mucosa do intestino delgado com atrofia parcial das vilosidades. Estas alterações levam a uma diarreia crónica persistente ou intermitente com anorexia, distensão abdominal, ou dor abdominal na criança mais velha; e, se o diagnóstico se atrasar, perda de peso e anemia.

A diarreia pode ter algum teor de gordura, ser fétida, mas não contém habitualmente sangue ou muco.

A presença de intolerância secundária à lactose (que pode persistir até algum tempo após a erradicação de Giardia) origina fezes mais líquidas e ácidas.

Nas crianças mais velhas pode associar-se a hipogamaglobulinémia, salientando-se o défice imunitário de IgA.

Diagnóstico

O diagnóstico faz-se pela demonstração nas fezes de: – quistos, ou do – antigénio (por método ELISA).

Através de aspirado duodenal ou por biópsia intestinal: – pesquisa de trofozoítos (coloração pelo método de Giemsa).

A detecção de quistos nas fezes é muito difícil pela excreção descontínua do parasita, pelo que se torna necessário proceder a colheitas sucessivas de amostras.

Tratamento

É apenas recomendado para as infestações sintomáticas. Utiliza-se o metronidazol na dose de 15 mg/kg/dia em 2-3 tomas diárias durante 5 dias ou o tinidazol em dose única de 40 mg/kg.

Prevenção

Não existe vacina disponível. As medidas preventivas mais importantes são as higiénicas, a investigação de surtos e o tratamento da água. O tratamento dos portadores assintomáticos não é eficaz, excepto no caso de manipuladores de alimentos ou de casos surgindo em crianças com imunodeficiências associadas.

Outras medidas preventivas:

  • aquecimento da água para consumo a 70ºC, ou fervura durante 10 minutos elimina os quistos;
  • o tratamento da água com iodo é mais eficaz do que adjunção de produto clorado;
  • pacientes com diarreia devem abster-se de frequentar espaços recreativos aquáticos;
  • o leite materno é protector pelo seu teor em IgA secretora.

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DOENÇA CELÍACA

Definição e etiopatogénese

A doença celíaca é definida como uma doença autoimune desencadeada pela exposição ao glúten (mais propriamente à sua fracção gliadina) em indivíduos geneticamente susceptíveis (possuidores de antigénios de histocompatibilidade: HLA de classe II DQ2 e DQ8).

O órgão alvo desta doença é o intestino proximal, constituindo-se uma lesão da respectiva mucosa caracterizada por um infiltrado linfoplasmocitário na lâmina própria, infiltrado linfocitário intraepitelial, hiperplasia das criptas e atrofia das vilosidades.

Aspectos epidemiológicos

Rastreios sistemáticos em populações europeias avaliando a presença de marcadores serológicos de doença celíaca demonstraram uma maior prevalência desta (1/140 a 1/300) em relação a anteriores estudos, baseados unicamente em formas sintomáticas (1/1.000 a 1/2.500). Estudos nacionais apontam, para uma prevalência de 1/134.

Assim, considera-se hoje que a “condição celíaca” constitui como que um iceberg, do qual a doença celíaca sintomática constitui a ponta visível.

Manifestações clínicas

FIGURA 1. Lactente com doença celíaca. Distensão abdominal relacionável com meteorismo. (NIHDE)

forma clássica de apresentação desta doença traduz-se por uma síndroma de má-absorção alguns meses após a introdução do glúten no regime alimentar (presente nas farinhas de trigo, centeio ou cevada), com diarreia crónica e/ou vómitos, inflexão nas curvas ponderais e estaturais (primeiro naquelas, depois nestas), distensão abdominal, atrofia das massas musculares e tecido celular subcutâneo, anorexia e alteração do humor (irritabilidade, apatia) (Figura 1).

Ao casos mais graves podem evidenciar hipoalbuminémia com edema, hipocaliémia e défice de vitamina K determinando aumento do tempo de protrombina.

No entanto, e sobretudo nas crianças mais velhas, as manifestações podem ser mais atípicas (paucissintomáticas) ou mesmo predominantemente extraintestinais (Quadro 1). A anemia por deficiência de ferro é uma forma muito frequente de manifestação extraintestinal.

Num estudo realizado em 161 crianças com a doença e seguidas com regularidade nos últimos três anos na Unidade de Gastrenterologia do Hospital Dona Estefânia, 3,7% apresentavam quadros clínicos predominantemente extraintestinais.

QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da doença celíaca

Dermatológicas
• Dermatite herpetiforme, alopécia, vitíligo
Hematológicas
• Anemia isolada (ferropénica ou macrocítica por défice de ácido fólico)
• Anemia hemolítica autoimune, trombocitopenia autoimune
• Trombocitose (hipoesplenismo)
Endocrinológicas
• Diabetes mellitus tipo I, tiroidite autoimune
• Atraso estatural isolado, atraso pubertário isolado
Neurológicas
• Epilepsia (com calcificações occipitais), ataxia
Hepáticas
• Hipertransaminasemia, hepatite autoimune
Orais
• Aftas recorrentes
• Hipoplasia do esmalte dentário (dentes definitivos)
Osteo-articulares
• Osteoporose, artralgia/artrite
Ginecológicas
• Infertilidade, abortos de repetição
Psiquiátricas
• Ansiedade/depressão

De acordo com a proposta da ESPGHAN de 2012 dever-se-ão privilegiar os termos intestinais e extra intestinais para caracaterização dos sintomas ao invés de classificar a doença como típica ou atípica. Da mesma forma se poderão utilizar os termos:

  • doença celíaca silenciosa ou subclínica (associada a resultados positivos de estudos serológicos, de HLA e histológicos, e a ausência de sinais clínicos);
  • doença celíaca potencial(associada a presença de anticorpos – habitualmente detectados no decorrer de rastreios a grupos de risco /ver adiante – e a ausência de alterações histológicas); e
  • doença celíaca latente (em indivíduos evidenciando em certa fase da doença:
  • critérios de diagnóstico de doença celíaca, e ulteriormente assintomáticos e com histologia normal no contexto de dieta com glúten, ou inversamente,
  • histologia normal com dieta sem restrição e ulteriormente evidenciando os característicos achados histológicos da doença. 

Em suma, abaixo do “limite da visibilidade” encontram-se as chamadas formas de doença celíaca silenciosa e doença celíaca potencial e latente (como no caso de familiares de 1º grau de doentes celíacos, ou em grupos de risco, obrigando a rastreio serológico – Quadro 2). Actuamente existe a tendência geral para abandonar o termo latente.

QUADRO 2 – Grupos de risco de doença celíaca (obrigando a rastreio serológico)

· Familiares de 1º grau
· Dermatite herpetiforme
· Diabetes tipo I
· Tiroidite autoimune
· Síndroma de Sjögren
· Hemossiderose pulmonar
· Síndroma de Down
· Nefropatia IgA
· Artrite reumatóide

Diagnóstico

O índice de suspeita relativamente a doença celíaca deve ser bastante apurado, principalmente para as formas paucissintomáticas ou extraintestinais, bem como para os grupos de risco.

rastreio inicial faz-se através da determinação sanguínea dos marcadores serológicos-anticorpos anti-transglutaminase tecidual de classe IgA (tTG), bem como da determinação de IgA total. (Actualmente nalguns centros europeus procede-se ao rastreio de tTG utilizando a saliva).

De acordo com a ESPGHAN, títulos no sangue de anticorpos tTG > 10 vezes o limite superior do normal, associam-se a alta probabilidade de atrofia das vilosidades intestinais.

De salientar que valor elevado de anticorpos anti-transglutaminase tecidual, nos casos de diabetes tipo 1 recentemente diagnosticada, nem sempre indica doença celíaca.

A prevalência de défice em IgA é cerca de 2-3% entre os celíacos. Esta circunstância podendo, pois, condicionar um resultado de tTG falso negativo, obrigará à análise dos anticorpos anti-transglutaminase da classe IgG. Se o resultado destes for negativo poderá considerar-se válida a serologia negativa.

Outras causas de serologia negativa de tTG são: dietas pobres em glúten, enteropatias com perda de proteínas, imunossupressão e casos de doentes com menos de dois anos.

Actualmente o uso de anticorpos antigliadina para rastreio de doença celíaco não está recomendado.

anticorpo anti-endomísio (AAE), do tipo IgA, não faz parte do estudo inicial. As suas sensibilidade e especificidade variam com a idade. As desvantagens são o elevado custo monetário e o facto de não ser quantificável, estando a aferição da sua positividade dependente do observador.

Níveis 10 vezes superiores ao valor limite da normalidade podem ser considerados altamente específicos da doença celíaca, inclusivamente nos casos de tTG negativos.

O diagnóstico definitivo deve ser feito pela biópsia duodenal por endoscopia alta; no entanto, de acordo com as normas de orientação da ESPGHAN de 2012 a biópsia duodenal poderá ser obviada em doentes sintomáticos:

  • com títulos de anticorpos tTG > 10 vezes o limite superior do normal; ou
  • com anticorpos AAE positivos; ou
  • com determinação positiva de tipagem HLA compatível com a doença.

Tal decisão deve ser individualizada e tomada por gastrenterologista pediátrico.

Após o diagnóstico e a instituição de dieta sem glúten, o desaparecimento de sintomas, assim como a normalização de marcadores serológicos permite confirmar o diagnóstico e avaliar a boa resposta e cumprimento da dieta.

Na ausência de resposta à dieta sem glúten, após certificação da adesão dietética, poderá ser considerada a repetição das análises e de nova bióspia.

prova de sobrecarga com glúten, com indicações escassas e apenas em crianças com mais de 5 anos de idade, deve ser admitida se houver dúvidas quanto ao diagnóstico. A mesma deve ser precedida de nova investigação serológica e de novo estudo da tipagem HLA. A elevação dos títulos dos marcadores serológicos ou o reaparecimento de alterações histológicas após a sobrecarga reforçam o diagnóstico.

Tratamento

O tratamento baseia-se na evicção completa do glúten da dieta para toda a vida (consultar Anexos-volume 3).

Os riscos de abandono da dieta, o que sucede muitas vezes na adolescência, prendem-se com a possibilidade de aparecimento na idade adulta de doenças neoplásicas (adenocarcinoma do delgado, linfoma não Hodgkin do tubo digestivo), ou outras de grande morbilidade (osteoporose, infertilidade ou abortos de repetição, doença neurológica ou psiquiátrica).

Nas formas clássicas com desnutrição grave na data do diagnóstico poderá ser necessário recorrer a técnicas de suporte nutricional:

  • alimentação entérica contínua, ou alimentação fraccionada, empregando sempre fórmulas sem lactose ou semi-elementares numa fase incial;
  • suprimento de minerais (principalmente ferro e ácido fólico) e de vitaminas deficitários.

Em estudo encontram-se novas terapêuticas com enzimas (de origem bacteriana) que hidrolisam péptidos tóxicos da gliadina, ou vacinas peptídicas indutoras de tolerância.

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DIARREIA CRÓNICA

Definição

Define-se como crónica toda situação de diarreia com duração superior a 15 dias. As diarreias crónicas podem acompanhar-se, ou não, de síndroma de má absorção.

Etiopatogénese

O Quadro 1 resume as principais causas de diarreia crónica.

QUADRO 1 – Causas de diarreia crónica

Com má-absorção intestinalSem má-absorção intestinal
Defeito da DigestãoColite

a) Insuficiência pancreática exócrina:

Fibrose quística
Síndroma de Schwachmann: défice isolado de lípase/colipase, tripsinogénio ou enteroquinase

b) Defeito da micelização dos sais biliares:

Colestase
Pseudo-obstrução intestinal crónica ou ansa cega intestinal (por desconjugação dos sais biliares pelo crescimento bacteriano intestinal)

a) Inflamatória

Doença inflamatória do intestino

b) Infecciosa

Salmonella
Shigella
Yersinia
Campylobacter
E. coli patogénicas

Defeito da AbsorçãoMedicamentos / produtos dietéticos

a) Redução da superfície total de absorção:

Síndroma do intestino curto

b) Lesão da parede (enteropatia):

Doença celíaca
Giardíase
Intolerância às proteínas do leite de vaca
Atrofia microvilositária
Enteropatia autoimune
Enteropatia eosinofílica

c) Defeitos selectivos:

1) Absorção de açúcares

Primários:
Défice congénito em lactase
Défice de sucrase isomaltase
Má-absorção de glucose-lactose, défice congénito em lactase

Secundários:
Intolerância à lactose (Síndroma pós gastrenterite)

2) Absorção de gorduras

Abetalipoproteinemia
Doença de Anderson

Abuso de laxantes
Abuso de sorbitol (pastilhas, sumos de fruta)
Antibióticos
Enteropatia exsudativaFuncionais
Linfangiectasia intestinala) Diarreia crónica não específica
b) Síndroma do cólon irritável (com predomínio de diarreia)

A diarreia crónica que se acompanha de síndroma de má absorção pode ser explicada habitualmente por três situações de base:

Má-digestão – Como resultado de insuficiência pancreática exócrina, ou incapacidade de formação de micelas por défice quantitativo de sais biliares no intestino, ou qualitativo (desconjugação por bactérias no intestino contaminado); nesta situação as fezes são moles, abundantes, gordurosas e fétidas caracterizadas por: esteatorreia intensa (20-30 g de gorduras fecais por dia), creatorreia (superior a 3g de azoto por dia, correspondendo a 20-30 % das proteínas ingeridas) e presença de produtos de fermentação de açúcares não absorvidos (cerca de 30 mmol por dia de ácidos voláteis).

Má-absorção – Nestes casos a componente da digestão está preservada, mas há diminuição da capacidade de absorção de nutrientes por redução da superfície de absorção (lesão da mucosa nas enteropatias, ou redução da superfície total intestinal na síndroma do intestino curto). As fezes são moles ou líquidas, raramente gordas, por vezes ácidas (por grande aumento dos ácidos voláteis resultantes da fermentação, dos hidratos de carbono não absorvidos no delgado) e pela flora bacteriana do cólon. A esteatorreia é moderada (< 10g por dia), excepto nas situações de défice selectivo da absorção de gorduras, bem como a creatorreia (1-2 g por dia), excepto quando há um forte componente de enteropatia exsudativa.

Fermentação – Nestas situações predominam os sintomas de má absorção de açúcares, a qual pode ser primária ou secundária (neste caso acompanhando as situações de redução das vilosidades ou na síndroma pós-gastrenterite). Habitualmente as fezes são ácidas (pH < 5) por conterem ácidos voláteis e ácido láctico, podendo ser detectada a presença directa de açúcares fecais pela pesquisa de substâncias redutoras (Clinitest® > 1%). Apenas a sacarose não origina directamente substâncias redutoras nas fezes, necessitando de tratamento prévio destas por ácido clorídrico.

Outra forma de enquadrar a diarreia crónica é distinguir um mecanismo secretor ou osmótico. Por exemplo, as diarreias secundárias a má-digestão ou absorção originam com frequência diarreias osmóticas, que cessam com a prova de jejum. Pelo contrário, a diarreia secretora, sem resposta ao jejum, caracteriza-se por diarreia líquida abundante e muitas vezes mais grave. Muitos casos de defeitos congénitas de diferenciação ou polarização dos enterócitos (ex. displasia epitelial ou doença de inclusão de microvilosidades) fazem parte deste grupo.

O grupo das diarreias crónicas congénitas tem sido recentemente melhor caracterizado e alargado (Quadro 2). Correspondem a enteropatias hereditárias com início precoce na vida. A maioria tem transmissão autossómica recessiva e mutação genética identificada. Algumas têm início pré-natal e podem ser suspeitadas por poli-hidrâminio e distensão fetal das ansas intestinais, como na cloridrorreia congénita. Podem ser globalmente classificadas em:

  1. Defeitos na digestão, absorção e transporte de nutrientes e electrólitos (ex. Défice congénito de lactase);
  2. Defeitos na diferenciação e polarização dos enterócitos (ex. Displasia epitelial congénita);
  3. Defeitos na diferenciação das células enteroendócrinas (ex. Défice neurogenina 3, síndroma de Mitchell Riley);
  4. Desregulação na resposta imune intestinal (ex. síndroma IPEX- immune dysregulation, polyendocrinopathy, enteropathy, X-linked).

QUADRO 2 – Diarreias crónicas congénitas/ de início precoce

DesignaçãoGeneCaracterísticas
Cloridrorreia congénitaSLC26A3Poli-hidrâmnio, diarreia neonatal precoce e grave, Cl fecal > 90 mmol/L
Diarreia com perda de sódioSPINT2 (forma sindromática)Hiponatrémia, acidose metabólica, Na+ fecal > 145 mmol/L
Doença de inclusões microvilositáriasMYO5BDiarreia início 0-4 meses, histologia típica
Displasia epitelial intestinalEpCAMDiarreia grave precoce, queratite punctata, atrésia coanas/ esófago, dismorfias faciais
Síndroma trico-hepato-entéricoTTC37, SKIV2LDiarreia rebelde, RCIU, dismorfias faciais, anomalia do cabelo, alterações hepáticas

Na diarreia crónica não acompanhada por má absorção podem surgir dois tipos de diarreia:

Cólica – Caracterizada por fezes heterogéneas com pequeno volume e frequência aumentada, fétidas, com muco, e ocasionalmente com sangue e/ou pus. A esteatorreia está ausente bem como os ácidos voláteis; mas nas situações de inflamação importante da mucosa (doença inflamatória do intestino) há creatorreia importante por exsudação de proteínas. Estas diarreias são também ricas em sódio por diminuição da sua reabsorção cólica.

Não específica – Caracterizada por fezes de volume e consistência muito variáveis, por vezes líquidas, por vezes pastosas, muito frequentemente com lienteria (restos alimentares); habitualmente as primeiras dejecções do dia são de características normais, piorando ao longo do dia; não há defecação durante o sono.

Manifestações clínicas

A diarreia crónica acompanhada de má absorção traduz-se por restrição do crescimento estaturo-ponderal e, ao contrário do adulto em que o apetite está aumentado, na criança é acompanhada de anorexia, o que agrava a negatividade do balanço energético-proteico.

Há também sintomas e sinais relacionados com a má absorção de micronutrientes como o ferro (anemia ferropénica), o cálcio (raquitismo, hipocalcémia), o ácido fólico e vitamina B12 (anemia macrocítica), as vitaminas lipossolúveis A (baixa da visão nocturna, pele seca), D (raquitismo), E (diminuição dos reflexos osteotendinosos, oftalmoplegia, ataxia), K (alterações da coagulação), e ainda do zinco (alterações cutâneas periorificiais, alterações imunológicas, perda da sensação gustativa).

A má absorção proteica pode levar a situações de hipoalbuminémia e edema, enquanto a má absorção dos açúcares origina fermentação cólica com distensão abdominal e eritema perianal causado pelas fezes ácidas.

Diagnóstico

Perante um quadro de diarreia crónica há que avaliar o impacte sobre o crescimento ponderal e estatural (neste último caso a repercussão é mais tardia). Se se verificar uma desaceleração ou “queda” dos percentis de peso e estatura, há que suspeitar de síndroma de má-absorção; e, para além dos exames destinados a estabelecer um diagnóstico etiológico específico, importa ainda estudar a repercussão funcional que um quadro de má absorção de macro e micronutrientes, pode causar. (Quadro 3)

QUADRO 3 – Exames complementares na diarreia crónica

NB → DD = diagnóstico diferencial

Hiato osmótico fecal = 290 – [2x (Na+K)] (DD entre diarreia secretora de osmótica- Quadro 4)

Fezes

• Grau de digestão
• Gorduras fecais (na suspeita de esteatorreia)
• pH e substâncias redutoras (fezes frescas)
• Ionograma fecal-hiato iónico (ver Quadro 4) – DD diarreia secretória com osmótica
• Alfa 1 antitripsina fecal (enteropatia exsudativa)
• Quimiotripsina e elastase fecais (suspeita de insuficiência pancreática)
• Calprotectina fecal (marcador inflamatório)
• Coprocultura
• Pesquisa de quistos de Giardia lamblia ou de antigénio de Giardia

Sangue

• Anticorpos “marcadores” de doença celíaca
• IgE específica para proteínas do leite de vaca
• Prova da d-xilose (avaliação indirecta da integridade da mucosa)
• Hemoglobina, Ferritina
• Cálcio, Fósforo, Fosfatase Alcalina
• Tempo de Protrombina
• Colesterol, Triglicéridos
• Albumina
• Velocidade de sedimentação (doença inflamatória do intestino)
• Doseamento de vitaminas A, E, D e Zinco (mais raramente)

Outros

• Endoscopia alta com biópsia do intestino proximal (enteropatias)
• Colonoscopia, calprotectina (marcador inflamatório)
• Prova do suor (fibrose quística)
• Prova de hidrogénio expirado (intolerância primária ou secundária aos açúcares)
• Estudos genéticos (enteropatias congénitas autoimunes)

QUADRO 4 – Interpretação do Hiato Iónico Osmótico Fecal

 SecretóriaOsmótica

NB → Hiato Osmótico fecal: 290 – [2x (Na+K)] → distingue diarreia secretora de osmótica

Adaptado de (Pezzella V, et al. Investigation of chronic diarrhoea in infancy. Early Hum Dev 2013; 89: 893-897)

Hiato osmótico< 50 mOsm/kg>50 mOsm/kg (geralmente > 135)
Concentração de Cl-> 40 mEq/L< 35 mEq/L
Concentração de Na+> 70 mEq/L< 70 mEq/L

Tratamento

Está dependente do diagnóstico etiológico, podendo ser de evicção dietética (doença celíaca, IPLV, intolerância aos açúcares) transitória ou permanente, ou farmacológica (giardíase, doença inflamatória do intestino) ou suplementação enzimática pancreática (fibrose quística).

Nas situações em que a diarreia se acompanha de desnutrição acentuada há que, independentemente do tratamento etiológico, promover a reabilitação nutricional através de técnicas de suporte como alimentação parentérica exclusiva ou com alimentação entérica. As técnicas de suporte nutricional usando a alimentação entérica (quer contínua quer nocturna, por bomba de infusão) são muito eficazes, permitindo incrementar a absorção de nutrientes graças ao emprego de fórmulas semi-elementares, ou mesmo fórmulas com aminoácidos livres.

Nos defeitos congénitos dos enterócitos, a nutrição parentérica, complementada ou não com nutrição entérica, é muitas vezes necessária, sendo ainda por vezes indicado o transplante intestinal.

São descritas nos capítulos seguintes, com mais pormenor, três situações clínicas frequentes que cursam com diarreia crónica na criança: a doença celíaca, a giardíase e a diarreia crónica inespecífica.

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GASTRENTERITE AGUDA

Definições e importância do problema

A gastrenterite aguda (GEA) é um quadro clínico resultante da inflamação aguda das mucosas do estômago e do intestino, o qual se traduz por vómito e diarreia.

A diarreia é um aumento da excreção fecal de água e electrólitos reflectindo, dum modo geral, alteração do transporte hidro-electrolítico no intestino delgado e cólon, de causa infecciosa (maioria das vezes), ou em relação com perturbações da motilidade intestinal, menos frequentemente. Trata-se duma patologia muito frequente em idade pediátrica, estimando-se que nos países industrializados ocorram em média 2 a 3 episódios por ano em cada criança com idade inferior a 5 anos. Nos países em vias de desenvolvimento a GEA é responsável anualmente por cerca de 5 milhões de óbitos em crianças com menos de 5 anos.

Fisiopatologia

O transporte de água é um fenómeno passivo e secundário a gradientes osmóticos através da parede intestinal; os referidos gradientes osmóticos podem ser gerados pelo transporte activo de electrólitos, ou pela presença de solutos sem electrólitos, como açúcares e aminoácidos.

Em circunstâncias de normalidade existe uma secreção activa que contribui para manter a fluidez do conteúdo intestinal facilitando, designadamente, a eliminação de subtâncias potencialmente citotóxicas.

Esta secreção ocorre simultaneamente com uma absorção hidro-electrolítica sendo que o balanço entre absorção e secreção depende de mecanismos hormonais “informando” o intestino sobre a necessidade do organismo em sal e água (aldosterona, VIP, HAD, etc.).

Normalmente predomina o processo de absorção; em situações de doença diarreica predomina a secreção.

Neste processo o electrólito mais importante é o sódio (Na+) o qual entra na célula intestinal a partir do lume intestinal como resultado dum gradiente condicionado, por sua vez, pela saída de Na+ da célula para o meio interno (plasma), processo comparticipado por uma bomba de sódio (Na-K-ATP-ase) que se encontra na membrana baso-lateral.

A saída activa de Na+ condiciona a electronegatividade necessária para a entrada de Na+ a partir do lume intestinal. Acompanhando a entrada de sódio, entram na célula a glucose, aminoácidos, di e tripéptidos, vitaminas hidrossolúveis e sais biliares utilizando, para tal, determinados transportadores que existem na membrana das células de “bordadura em escova”.

O Cl- e o K+ também são transportados, entrando para o interior da célula.

No processo de secreção tomam parte o hidrogénio, o bicarbonato e, também, o cloro.

Nos processos de transporte iónico (entrada na célula) participam mediadores intracelulares de regulação: por ex. AMPc, cálcio, etc..

Na prática, são descritos três grandes mecanismos fisiopatológicos da doença diarreica: osmótico, secretório, e alteração da motilidade intestinal, podendo haver associações dos mesmos em função do factor etiológico.

Na diarreia osmótica a lesão da mucosa intestinal provoca uma diminuição da capacidade digestiva de absorção, fazendo com que os nutrientes não absorvidos no intestino delgado e atingindo intactos o cólon, exerçam uma força osmótica induzindo a saída de água e, consequentemente, a diarreia. Esta é tanto mais grave quanto maior a concentração destes solutos. Como na maior parte dos casos o nutriente em questão é um hidrato de carbono, este, ao atingir o cólon, é digerido por microbiota normal produzindo partículas menores exercendo assim uma maior força osmótica, agravando a diarreia. A diarreia, em geral, não é abundante e melhora quando se suspende a ingestão do nutriente considerado agressor.

Exemplos clássicos de diarrreia osmótica são os resultantes de deficiência (congénita ou adquirida) de dissacaridases (lactase e sucrase – isomaltase), de má-absorção de glucose-galactose, da ingestão excessiva de líquidos carbonatados, e de ingestão excessiva de solutos não absorvíveis (sorbitol, lactulose, hidróxido de magnésio).

diarreia secretória é, em geral, provocada por bactéria que pode lesar a mucosa por diversas formas (adesão/invasão do epitélio, produção de enterotoxinas, citocinas), causando um aumento da secreção das células intestinais (por activação do AMP-C e GMP-C).

diarreia também pode ser motivada por alterações da motilidade do tracto gastrintestinal, as quais conduzem secundariamente a alteração no transporte hidro-electrolítico no intestino delgado e no cólon.

Embora sejam descritos separadamente estes diferentes mecanismos, na maioria dos casos eles coexistem; o rotavírus constitui, com efeito, um bom exemplo pois provoca lesão da mucosa, com alteração da absorção e formação de diarreia osmótica; mas, simultaneamente determinada proteína que faz da composição do rotavírus, que actua como enterotoxina, induz aumento de secreção das células intestinais.

Nota: A diarreia por alteração da motilidade sem repercussão no transporte hidro-electrolítico enquadra-se, de facto, em situações agudas, mas recorrrentes: frequentes entre os 6 meses e 3 anos, cessando espontaneamente pelos 2-4 anos (episódios de diarrreia aguda com períodos de normalidade) integrando a entidade designada por “diarreia crónica não específica”, abordada no capítulo 111.

Factores etiológicos

Nos países industrializados a causa mais frequente de GEA é a infecção por rotavírus explicando cerca de 50% dos casos em crianças com menos de 2 anos, sobretudo no Inverno.

Outros vírus como adenovírus, coronavírus, calicivírus e astrovírus têm sido igualmente implicados, embora menos frequentemente.

Os agentes bacterianos são menos frequentes nos países industrializados. Campylobacter jejunii, a causa mais frequente das infecções bacterianas nos países industrializados, está muitas vezes associado a dores abdominais e a fezes com sangue. Yersinia origina quadro semelhante. Shigella e algumas espécies de Salmonella produzem síndroma de tipo disentérico caracterizada por diarreia profusa com sangue, pus, dores abdominais e tenesmo. Pode igualmente existir febre alta e convulsões.

Vibrião colérico e E. coli com produção de enterotoxinas podem originar diarreia abundante e desidratação grave surgidas de modo agudo.

A giardíase provoca, na sua forma característica, diarreia intermitente e má absorção de gorduras.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da GEA depende de vários factores, nomeadamente a idade, o estado imunitário e nutricional do hospedeiro, assim como as características do agente infeccioso (Quadro 1). Devem ser quantificados os vómitos e a diarreia, assim como as características e duração dos mesmos. No exame objectivo é necessário pesquisar sinais de desidratação: mucosas secas, diminuição do turgor cutâneo (prega cutânea), depressão da fontanela anterior, olhos encovados, ausência de lágrimas, letargia, taquicárdia, pulso fraco e hipotensão.

QUADRO 1 – GEA: Germes microbianos e clínica

GermeTransmissãoIncubaçãoDuraçãoClínicaPredisposiçãoÉpocaIdadeComplicações
RotavírusFecal-oral
Respiratória
2-4d3-8dVómitos, febre baixa, diarreia aquosaHospitalização, infantárioInverno<2ADesidratação; intolerância aos HC; excreção crónica
AdenovírusFecal-oral3-10d5-12dDiarreia  <4AInvaginação intestinal
Norwalk

Água
Crustáceos

1-2d2dVómitos, diarreia    
AstrovírusFecal-oral1-4d5-6dVómitos, febre, dor abdominalHospitalização, infantárioInverno<4A 
Calicivírus
(E. coli)
Fecal-oral; água
Respiratória possível
12-72h4-8dVómitos, dor, febre baixaInfantário <4A 
EHEC
(E. coli)
Carne mal cozida; água1-8d3-6dDor, febre (30%), diarreia sanguinolenta   SHU; colite hemorrágica; convulsões
ETEC
(E. coli)
Água10h-6d1-5dVómitos, dor, febre baixa, diarreia aquosaViagens   
EIEC
(E. coli)
Fecal-oral; água; alimentos10h-6d Febre, diarreia com leucócitos    
EPEC
(E. coli)
IgualIgual Diarreia aquosa gravePaíses em desenvolvimento <2ADesidratação
EAEC
(E. coli)
IgualIgual>14d Idem   
SalmonellaOvos, carne; lacticínios; água6-48h2-7dVómitos, febre, dor, diarreia sanguinolentaAcloridria; má nutrição; anemia de células falciformes <4ABacteriémia; meningite; osteomielite
ShigellaFecal-oral; alimentos1-7d48-72hDor, febre alta, diarreia com muco e sangueInfantário; viagens; piscinasVerão
Outono
<5ABacteriémia; convulsão; SHU; perfuração; síndroma de Reiter
YersiniaFecal-oral; carne porco; água; leite4-6d1-46dVómitos, febre, dor, diarreia com sangue, muco e leucócitos Inverno<1APseudo-apendicite; perfuração; invaginação; exantema; bacteriémia
CampylobacterAves; água; leite1-7d5-7dFebre, dor, diarreia com sangueInfantárioVerão Bacteriémia; meningite; colecistite; pancreatite
Giardia lambliaFecal-oral; água; alimentos1-4sem>1semDor, flatulênciaAgamaglobulinémia; acloridria; piscinas; infantário; pancreatite  Má absorção de gorduras; diarreia crónica ou intermitente
Clostridium
dificille
 variávelvariávelDiarreia com sangue e muco, febre (raro)Hospitalização; antibioticoterapia;  Diarreia crónica; portador crónico
CriptosporidiumFecal-oral; piscinas; água2-14d1-20dVómitos, dor, diarreia aquosaInfantário; piscinas; imunossupressãoVerão
Outono
 

Diarreia crónica no imunossuprimido

Vibrio choleraeMarisco; água0-5d5-7dDiarreia profusaViagensVerão Desidratação rápida
S. aureusAlimentos30m-8h1-2dVómitos, dor   Desidratação

Se a criança apresentar avidez pela água apesar de desidratação aparentemente ligeira, há que considerar a hipótese de se tratar de desidratação hipernatrémica. Esta ocorre quando a diarreia é profusa e a correcção tiver sido feita à custa de soluções hipertónicas. Frequentemente existe dor abdominal do tipo cólica. Quando as fezes são ácidas, pela presença de hidratos de carbono, ou por dejecções muito frequentes, pode surgir eritema perianal. O estado nutricional deverá ser avaliado estando o respectivo compromisso em relação com má absorção de proteínas, gordura ou hidratos de carbono.

Diagnóstico diferencial

No que respeita à destrinça entre GEA de causa vírica e de causa bacteriana apresentam-se as seguintes características como orientação; 1) na GEA de causa vírica: vómitos mais frequentes; sangue, muco e leucócitos nas fezes ausentes; febre mais raramente; 2) na GEA de causa bacteriana: vómitos menos frequentes; sangue, muco e leucócitos nas fezes; febre mais frequente.

Relativamente à destrinça entre diarreia secretória e diarreira osmótica, o Quadro 2 é elucidativo.

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre diarreia osmótica e secretória

Diarreia secretória Diarreia osmótica

*A sucrose não é agente redutor. Antes de realizar a pesquisa com o Clinitest® deve juntar-se à amostra de fezes, 5 gotas de HCl 0,1n.

Substâncias redutoras* (-) (+)
Na+ fecal >70 mEq/L <70 mEq/L
pH fecal >6 <5
Volume fecal >200 ml/dia <200 ml/dia
Resposta ao jejum não melhoria melhoria

Tratamento

A identificação do agente etiológico na maioria das vezes não é necessária porque a doença é autolimitada e o tratamento é idêntico independentemente da causa.

As medidas de suporte consistem em:

  1. Usar soro de hidratação oral para compensar a desidratação estimada (em 3 a 4 horas);
  2. Usar solução hipo-osmolar (Na à 60 mEq/L) ou de osmolaridade reduzida (Na à 75 mEq/L) com glucose (20 a 30 g/L); a glucose promove a reabsorção de sódio e água no intestino delgado. Bebidas com excesso de hidratos de carbono (cuja concentração exceda a de sódio em 2/1) agravam a diarreia pelo efeito osmótico que terão no intestino.
    O chá também não é ideal, pois tem uma baixa concentração de sódio e potássio.
    Sempre que possível deve tentar-se a hidratação oral com um soluto de reidratação oral (SRO), mesmo na criança que não aparente sinais de desidratação. Deve oferecer-se pequenas doses de soluto (5 ml) em cada 5 minutos; e se houver tolerância, pode aumentar-se para 15-30 ml em cada 5-10 minutos. Posteriormente, quando a criança se tornar mais cooperante, deverá ingerir doses crescentes durante cerca de 4 horas;
  3. Não interromper o aleitamento materno oferecendo suplementos com soluto SRO enquanto existir diarreia. O uso de fórmulas especiais ou diluídas não se justifica;
  4. Retomar o regime alimentar habitual após as 4 horas de reidratação.
    Nas crianças com diarreia moderada a grave deve reduzir-se ou eliminar-se a lactose da dieta para minorar os efeitos da deficiência transitória de dissacaridases por lesão das células intestinais, o que por vezes ocorre durante 2 a 4 semanas após a diarreia. A intolerância à lactose pode ser confirmada pela presença de substâncias redutoras nas fezes;
  5. Prevenir nova desidratação com suplementos de soluto enquanto existir diarreia (oferecer 10 ml/kg por cada dejecção) e vómitos (2 ml/kg por episódio);
  6. Evitar medicação desnecessária. Os antimuscarínicos (ex: loperamida) alteram a motilidade intestinal, diminuindo a diarreia e a distensão abdominal; no entanto, na infecção por bactérias invasivas ou produtoras de citotoxinas é favorecido o contacto da bactéria com a mucosa intestinal com agravamento do quadro clínico. Por consequência, não estão recomendados em crianças. Nalgumas instituições, perante quadros de vómitos acentuados, tem sido utilizado o antiemético ondansetrona em dose única com base em estudos que relatam, com esta estratégia, menor necessidade de fluidoterapia endovenosa.

Os antibióticos devem ser usados em casos específicos para diminuir a duração da doença e a excreção do microrganismo, sendo necessária uma coprocultura com antibiograma antes de inciar a terapêutica.

Nas situações com isolamento de Salmonella, a antibioticoterapia pode prolongar o tempo de excreção fecal, gerar doença sistémica e ainda induzir o aparecimento de estirpes resistentes. Está indicada apenas na febre tifóide ou na gastrenterite acompanhada de sinais de doença sistémica, ou no doente em risco (idade inferior a três meses, situações com imunodeficiência, doença crónica, hemoglobinopatia). Nestes casos estão indicados os seguintes antimicrobianos: ampicilina, amoxicilina, TMP-SMX (trimetoprim-sulfametoxazol), cefotaxima ou ceftriaxona.

Situações com desidratação correspondendo a perda de peso superior a 5%, incapacidade para se proceder a reidratação no domicílio, não tolerância a reidratação oral, e agravamento da situação clínica (acentuação dos vómitos e da diarreia), têm indicação para internamento hospitalar, em geral de curta duração na ausência de complicações.

A reidratação e a manutenção da hidratação até que haja resolução da diarreia, assim como o suprimento nutricional adequado, são as pedras fundamentais do tratamento.

A reintrodução da alimentação deve fazer-se atempada e imediatamente uma vez conseguida a hidratação. Crianças alimentadas exclusivamente com leite materno devem manter o aleitamento. As que já tenham iniciado alimentos sólidos devem manter o seu regime habitual. Deve começar-se com alimentos de absorção rápida (arroz, trigo) e banana (suplemento de potássio). A reintrodução da alimentação deve ser fraccionada e em curtos intervalos para garantir melhor absorção.

Os alimentos com elevado teor de açúcar não são aconselhados porque podem causar diarreia osmótica.

Nos países em desenvolvimento, com elevada prevalência de síndromas de má-nutrição, está indicada a suplementação com zinco (20 mg/dia PO por período de 10-14 dias) em crianças com mais de 6 meses com diarreia; o período desta suplementação poderá eventualmente ser prolongado em função do contexto clínico.

Prevenção

Certas medidas gerais são importantes na prevenção da transmissão de infecções em infantários, escolas ou hospitais, nomeadamente, a avaliação periódica do estado de saúde e de imunização das crianças e dos prestadores de cuidados. São fundamentais os seguintes procedimentos: regras de limpeza e desinfecção de instalações sanitárias, lavagem das mãos frequentemente, regras de limpeza das cozinhas e cuidados na confecção dos alimentos, formação em serviço e vigilância do desempenho dos trabalhadores destes locais, lavagem e desinfecção diárias de todos os brinquedos, e comunicação dos surtos de infecção às autoridades de saúde.

A exclusão ou isolamento de crianças nestes locais, na maioria dos casos não é necessária uma vez que a transmissão já ocorreu antes do início dos sintomas. Existem, no entanto, alguns casos em que o isolamento é necessário, o que é determinado pela autoridade de saúde: diarreia com muco ou sangue, infecção por Shigella, E. coli produtora de toxina semelhante à Shigella (incluindo o tipo O157:H7), enquanto não se verificarem duas coproculturas negativas para cada caso.

Quanto a medidas gerais em relação à alimentação: evitar carne mal cozinhada, de leite não pasteurizado, de água não tratada; as pessoas que manuseiam carne crua deverão lavar bem as mãos antes de contactar com uma criança.

Em relação à criança viajante para áreas endémicas: beber água engarrafada, evitar gelo, saladas, alimentos mal cozinhados e fruta com casca. Os lactobacillus (probióticos) produzem ácidos gordos de cadeia curta e diminuem o pH intestinal, o que inibe o crescimento de bactérias das espécies Shigella e Salmonella; por isso têm utilidade no tratamento e prevenção da doença intestinal.

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DOENÇA PÉPTICA E HELICOBACTER PYLORI

Definições e importância do problema

O termo gastrite significa inflamação microscópica da mucosa gástrica, não devendo ser utilizado como um diagnóstico clínico, radiológico ou endoscópico. Úlcera péptica é o termo utilizado para designar lesões profundas da mucosa que ultrapassam a muscularis mucosa da parede gástrica ou duodenal, enquanto as erosões pépticas não a atingem. Úlcera e erosões pépticas englobam a chamada doença péptica ulcerosa. A gastrite do antro está associada a um aumento da estimulação da produção de ácido e predispõe ao aparecimento da úlcera duodenal, enquanto a gastrite predominantemente do corpo ou a pan-gastrite estão associadas a uma produção reduzida de ácido e predispõem à úlcera gástrica e ao adenocarcinoma gástrico.

A gastrite e a doença péptica ulcerosa (DPU) podem ser subdivididas em primárias e secundárias. A maioria das gastrites e das DPUs primárias é provocada pelo Helicobacter pylori (H. pylori). As secundárias estão associadas a um grande estresse fisiológico (como no grande traumatizado e na sépsis), ao uso de medicamentos como os anti-inflamatórios não esteróides e os anti-epilépticos, ou a uma patologia hipersecretória como na síndroma de Zollinger-Ellison. Neste capítulo só se faz referência à gastrite e DPU provocadas por H. pylori.*

Dois argumentos implicam o H. pylori como causa de gastrite crónica na criança: (1) o facto de todas as crianças colonizadas por H. pylori terem gastrite crónica; e (2) o achado de que a erradicação da bactéria da mucosa gástrica conduz à cicatrização da gastrite e da DPU, tanto na criança como no adulto.

Com efeito, o H. pylori encontra-se na mucosa do antro gástrico em quase 90% das crianças com úlcera duodenal e a sua erradicação leva à cicatrização duradoira da doença ulcerosa duodenal tanto na criança como no adulto.

*A propósito da doença péptica ulcerosa gástrica consultar Glossário Geral- Síndroma de Zollinger – Ellison.

Apectos epidemiológicos

A infecção por H. pylori, bacilo Gram-negativo em forma de S, produzindo urease, oxidase e catalase, é considerada, no Homem, a infecção crónica mais prevalente no mundo. Nos países em desenvolvimento, 70 a 90% da população está infectada por H. pylori. Nos países desenvolvidos a prevalência é menor, variando actualmente entre 10 e 60%. De um modo geral, a frequência da infecção é mais elevada nos grupos económicos mais desfavorecidos. Em Portugal é de cerca de 70 a 90% nos adultos, e de 50% nas crianças.

Os dados da literatura sugerem que a taxa de aquisição da infecção é muito baixa na idade adulta e que a maioria das infecções é adquirida na infância (geralmente abaixo dos 5 anos), podendo persistir durante toda a vida se não for tratada. A co-infecção entre os pais (especialmente na mãe), irmãos e outros co-habitantes são factores de risco bem estabelecidos para a aquisição de H. pylori na infância, sendo o maior factor de risco as más condições sócio-económicas. Outros indicadores de pobreza e de precárias condições de higiene, como a partilha de camas e um grande número de irmãos, constituem factores de risco adicionais.

Um estudo da prevalência e da incidência do H. pylori numa população pediátrica saudável na área de Lisboa, com idades compreendidas entre os 0 e 15 anos, revelou que a prevalência global era de 31,6% e que aumentava com a idade, sendo de 51,5% no grupo dos 11 aos 15 anos de idade. A idade média de aquisição da infecção foi de 6,3 anos sendo que 47,5% das crianças a adquiriu antes dos 5 anos de idade.

Etiopatogénese

O estômago do homem e o de alguns primatas parece ser o único reservatório do H. pylori, não sendo conhecido qualquer reservatório ambiental. A fragilidade do H. pylori em condições laboratoriais sugere que a viabilidade da bactéria fora do hospedeiro é limitada, embora haja evidência de que o microrganismo possa sobreviver no ambiente na sua forma cocóide. As unhas com sujidade e a boca são focos importantes de H. pyloriA transmissão faz-se essencialmente por três vias: fecal-oral, oral-oral, gastro-oral. Como tal, a transmissão interfamiliar e institucional adquire um peso muito importante.

A bactéria já foi detectada nas fezes de crianças malnutridas com trânsito intestinal muito rápido e já foi isolada a partir da placa dentária. A forma gastro-oral parece ser uma via de transmissão frequente entre crianças, ocorrendo particularmente em infantários e escolas, sobretudo através da emissão do conteúdo gástrico (vómito).

transmissão por via endoscópica também foi documentada quando não são cumpridas as regras de desinfecção e esterilização dos endoscópios. A água não tratada e a mosca doméstica poderão ser veículos de transmissão. A taxa de reinfecção em crianças tratadas, com idade superior a 5 anos, é de apenas 2%. Alguns estudos sero-epidemiológicos têm sugerido um aumento do risco de cancro gástrico em portadores de H. pylori, em 2 a 6 vezes. O risco de cancro gástrico é mais elevado em doentes com gastrite predominante no corpo gástrico, atrofia gástrica e metaplasia intestinal. Nos doentes com úlcera duodenal (que têm gastrite predominantemente no antro) não se desenvolve cancro gástrico. O H. pylori tem sido implicado como factor etiológico do linfoma MALT. A erradicação do H. pylori conduz à resolução completa de 75% dos linfomas MALT gástricos.

Múltiplos estudos fazem referência à eventual acção dos mediadores inflamatórios circulantes consequentes à infecção pelo H. pylori com responsabilidade variável nas manifestações de algumas doenças extradigestivas (doença isquémica coronária, púrpura de Schönlein Henoch, anemia ferropénica, etc.).

Manifestações clínicas da infecção por Helicobacter pylori

A maioria das crianças infectadas é assintomática. Não existe nenhum quadro clínico específico que indique a necessidade de rastreio do H. pylori. Actualmente não está provada uma ligação entre gastrite por H. pylori e dor abdominal na ausência de úlcera péptica. Considerando que a dor abdominal funcional ocorre em 15% das crianças em idade escolar, não devem estas crianças ser submetidas a testes não invasivos ou a endoscopia para detectar uma infecção por H. pyloriNão há qualquer ligação entre a dor abdominal funcional e a infecção por H. pylori.

Diagnóstico

Para o diagnóstico podem ser utilizados testes invasivos (que requerem endoscopia com biópsias) e testes não invasivos.

  1. Testes invasivos: exame histológico, exame cultural (antibiograma), teste rápido da urease e testes moleculares.
  2. Testes não invasivos: anticorpos no soro e sangue total, anticorpo na saliva, anticorpo na urina, antigénio nas fezes, teste respiratório com ureia marcada com C13.

A biópsia permite não só pôr em evidência as consequências da infecção por H. pylori (classificando a gastrite ao microscópio óptico), como também visualizar a própria bactéria, cultivá-la (o que parece ser fundamental, pois permite obter um teste de sensibilidade aos antibióticos), fazer o teste rápido da urease e testes moleculares.

Os testes moleculares são cada vez mais utilizados, pois podem detectar o H. pylori com maior rapidez, precisão e sensibilidade, e têm ainda a possibilidade de avaliarem a existência de resistência a antibióticos (claritromicina e fluoroquinolonas), de identificar determinantes de virulência e de fazer a quantificação bacteriana, não só na biópsia como também em amostras biológicas como por exemplo as fezes. Seja qual for o tipo de teste utilizado a amplificação de ácidos nucleicos por PCR está quase sempre presente, seja por PCR convencional seja por PCR em tempo real.

Nos casos em que não está disponível o exame cultural e o teste de sensibilidade aos antibióticos, ou no caso de falência terapêutica, é possível a detecção da resistência à claritromicina nas biópsias fixadas em formalina pelo método PNA-FISH (peptide nucleic acidfluorescence in situ hybridization).

Estão disponíveis muitos testes para o sangue total e soro, mas a variabilidade de precisão entre os kits faz com que a sua sensibilidade e especificidade oscile, nos diversos estudos, entre os 60 e os 93%. Por outro lado, a serologia (IgG) não distingue entre infecção actual e infecção prévia, uma vez que o título de anticorpos desce lentamente após a cura. Portanto, a serologia não é adequada para monitorizar a resposta ao tratamento.

Os testes na saliva e urina ainda são menos sensíveis e não podem ser recomendados.

Existem vários testes para a detecção de antigénios nas fezes utilizando anticorpos monoclonais e policlonais e que estão disponíveis como testes ELISA ou imunocromatográficos. O teste Premier Platinum HpSA (Meridian Bioscience) que utiliza anticorpos monoclonais e o método ELISA é o único que tem mais de 90% de fiabilidade. A pesquisa de antigénios nas fezes é um teste muito promissor para estudos de investigação epidemiológica, para o diagnóstico e para a avaliação do sucesso do tratamento.

teste respiratório tem elevada sensibilidade e especificidade (>95%); tanto em adultos como em crianças acima dos 5 anos de idade, pode ser influenciado pelo uso de antibióticos e de agentes supressores da acidez. Os resultados em crianças com idades inferiores a 5 anos podem ser influenciados, tanto positiva como negativamente, pela presença de outros organismos produtores de urease na cavidade oral ou por técnica incorrecta, mas a sua sensibilidade é superior a 90% no grupo dos 2-5 anos.

Em resumo, o diagnóstico da infecção por H. pylori deve basear-se preferencialmente na endoscopia com biópsias para exame cultural e teste de sensibilidade aos antibióticos ou para testes moleculares, reservando-se o teste respiratório para a avaliação da eficácia terapêutica.

Actuação prática – Recomendações

A ESPGHAN / NASPGHAN emitiram recomendações/consensos em 2011 que se poderão resumir nos seguintes pontos:

  1. A investigação clínica de sintomas gastrointestinais deve ter como objectivo determinar a sua causa subjacente e não apenas a presença de infecção por H. pylori;
  2. Não há qualquer indicação para a utilização de testes para o diagnóstico de infecção por H. pylori em crianças com dor abdominal funcional;
  3. Admite-se a utilização destes testes na criança que tenha familiares em primeiro grau com cancro gástrico ou que tenha anemia ferropénica refractária à terapêutica e em que tenham sido excluídas outras causas de ferropénia;
  4. Não há actualmente evidências suficientes para apoiar a realização destes testes nas seguintes condições: otite média, infecções do trato respiratório, doença periodontal, alergia alimentar, púrpura trombocitopénica idiopática ou baixa estatura;
  5. A estratégia utilizada nos adultos de “testar e tratar” não é recomendada em crianças;
  6. O diagnóstico inicial de infecção por H. pylori deve ser baseado num exame cultural de biópsia positivo ou, em alternativa, numa histopatologia positiva (biópsias do antro e corpo gástricos) mais um teste rápido para a urease positivo;
  7. Tanto o teste respiratório com ureia marcada, como o teste para o antigénio fecal por ELISA utilizando anticorpo monoclonal, são testes não-invasivos fiáveis para avaliar a eficácia da erradicação do H. pylori;
  8. Os testes baseados na detecção de anticorpos (IgG, IgA) para o H. pylori no soro, sangue total, urina, saliva não são fiáveis para utilização na prática clínica;
  9. Os testes iniciais para H. pylori devem esperar um mínimo de 2 semanas após a interrupção do tratamento com Inibidor da Bomba de Protões (IBP) e pelo menos 4 semanas após a interrupção de antibióticos;
  10.  Não está recomendada a utilização de testes não-invasivos fiáveis para avaliação da erradicação do H. pylori antes de 4 semanas após a conclusão da terapêutica;
  11.  A erradicação do H. pylori é recomendada nos doentes com úlcera péptica com H. pylori positivo;
  12.  O tratamento para H. pylori pode ser considerado quando houver infecção comprovada na biópsia e ausência de úlcera péptica;
  13.  O tratamento pode ser oferecido às crianças infectadas com familiar de primeiro grau com cancro gástrico.

Tratamento

A instituição de terapêutica deve tomar em consideração as taxas de resistência aos antibióticos nas áreas de residência e, preferencialmente, deve basear-se no exame bacteriológico com antibiograma, sobretudo nas regiões com elevada taxa de resistência à claritromicina.

Em crianças, dos 4 meses aos 18 anos de idade observadas em Consulta de Gastrenterologia Pediátrica de 3 hospitais de Lisboa, foram isoladas 1.115 estirpes de H. pylori durante um período de 10 anos, e verificou-se a existência de taxas de resistências muito altas em relação à claritromicina (34,7%), ao metronidazol (13,9%) e à ciprofloxacina (4,6%), existindo ainda 6,9% de resistências a 2 destes antibióticos simultaneamente, o que tornou o antibiograma fundamental para a instituição da terapêutica.

A ESPGHAN / NASPGHAN nas suas recomendações propõe três regimes terapêuticos: (1) terapêutica tripla com Inibidor da Bomba de Protões (IBP) e amoxicilina associados à claritromicina ou a um imidazol, (2) substituição da claritromicina pelos sais de bismuto coloidal (actualmente não disponível em Portugal) e (3) terapêutica sequencial. Nas regiões com taxas conhecidas de resistência à claritromicina superiores a 20% é recomendado o teste de sensibilidade aos antibióticos antes de se iniciar o tratamento. A terapêutica tripla deve ter uma duração de 7 a 14 dias havendo evidência que o aumento da duração da terapêutica tripla aumenta o sucesso da erradicação em 5%.

A terapêutica sequencial envolve uma terapêutica dupla com IBP e amoxicilina durante 5 dias, seguida sequencialmente por 5 dias de terapêutica tripla (IBP com dois antibióticos alternativos – claritromicina e imidazol habitualmente). Especula-se que a amoxicilina possa reduzir a carga bacteriana e, possivelmente, possa conferir protecção contra a resistência à claritromicina.

Nos casos em que há insucesso da terapêutica e não houve terapêutica guiada por antibiograma deve ser feita endoscopia digestiva alta com biópsias e exame cultural com antibiograma ou exame molecular, mas se houve biópsia e não foi feito exame bacteriológico deve ser feito o teste de FISH nas biópsias embebidas em parafina que foram enviadas para a anatomia patológica. Nestes casos ou (1) se faz segundo tratamento adicionando um novo antibiótico ou (2) utilizam-se antibióticos diferentes ou (3) aumentam-se as doses e/ou (4) aumenta-se a duração do tratamento. Nas duplas resistências à claritromicina e metronidazol poderá ser utilizada uma terapêutica tripla com IBP + amoxicilina + levofloxacina.

Esquemas de tratamento da infecção por Helicobacter pylori (sem incluir bismuto coloidal)

A – Terapêutica tripla ou quádrupla concomitante (tratamentos com duração de 10 ou 14 dias com 3 ou 4 medicamentos utilizados concomitantemente):
  1. IBP + A + C = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia;
  2. IBP + A + M = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Metronidazol (M) 20 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia;
  3. IBP + A + L = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Levofloxacina (L) 10-20 mg/kg/dia até 500 mg 2 X dia;
  4. IBP + A + C + M = IBP 1 – 2 mg/kg/dia, 2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/kg/dia até 1 grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia + Metronidazol (M) 20 mg/kg/dia até 500 mg, 2x/dia.
B – Terapêutica sequencial

tratamento com duração de 10 dias, sendo os 5 primeiros dias com IBP e amoxicilina e os 5 dias subsequentes com IBP associado a 2 antibióticos alternativos, habitualmente claritromicina mais imidazol (melhores resultados com o tinidazol) mas também com tinidazol mais levofloxacina, utilizando as mesmas doses da terapêutica concomitante.

C – Terapêutica híbrida (é um novo regime terapêutico que combina a terapêutica sequencial com a terapêutica concomitante e que tem sido utilizado em adultos)

Consiste na utilização de um IBP mais amoxicilina nos primeiros 7 dias seguido por terapêutica quádrupla que inclui um IBP, amoxicilina, claritromicina e metronidazol (ou tinidazol) nos últimos 7 dias.
A avaliação do resultado da terapêutica deve ser feita, preferencialmente, pelo teste respiratório com ureia marcada com C13, 4 a 8 semanas após se ter completado a terapêutica (antibióticos e inibidor da bomba de protões).

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DOR ABDOMINAL FUNCIONAL

Definição e aspectos epidemiológicos

A dor abdominal (cujas causas nem sempre são de fácil identificação) é um sintoma frequente, ocorrendo em 9-15% de crianças e jovens entre os 5 e 14 anos de idade. De acordo com dados epidemiológicos, na sua grande maioria (cerca de 85%), tal sintoma “dor” é de origem funcional, não orgânica, estando associada a um conjunto de situações designadas por alterações gastrintestinais funcionais, não explicáveis por anomalias estruturais ou bioquímicas. Apenas em cerca 15% dos casos de dor abdominal a causa é orgânica.

A designação de dor “abdominal crónica ou recorrente” na criança tem sido aplicada às situações em que aquela surge pelo menos em três episódios durante os três meses anteriores, com repercussão sobre o estado geral e a qualidade de vida.

Na literatura científica o termo “abdominal crónica” é usado geralmente como sinónimo de “abdominal funcional”. Outros termos, tais como “abdominal recorrente”, abdominal não orgânica”, e “abdominal psicogénica” também considerados sinónimos por muitos autores, originam por vezes alguma confusão. Importa referir contudo que as sociedades científicas AAP e NASPGHAN desaconselham a utilização do termo “abdominal recorrente”.

De acordo com dados epidemiológicos, a dor abdominal funcional motiva 2-4% das consultas de Pediatria e 25% das referenciações a consulta de Gastrenterologia Pediátrica; com dois picos de incidência (aos 4 a 6 anos e aos 7 a 12 anos), é mais frequente no sexo feminino a partir dos 8 anos de idade.

Etiopatogénese

Para compreender o mecanismo fisiopatológico da dor abdominal funcional, importa abordar algumas noções básicas do neurodesenvolvimento da nocicepção.

O tradicional modelo da “dor aguda”, descrita como sinal ou aviso que tem subjacente patologia anatómica ou bioquímica não é adaptável à dor de causa funcional, pois esta, em vez de traduzir aviso, corresponde a uma disfunção dos mecanismos envolvidos na percepção da mesma. Ora acontece que o referido modelo não considera a influência de outros elementos na interpretação e resposta à informação nociceptiva, tais como factores psicossociais, ambientais, predisposição genética e alteração dos sistemas regulatórios da dor.

O desenvolvimento dos sistemas nociceptivos inicia-se precocemente, já no período pré-natal, com o desenvolvimento da inervação cutânea cerca das 8 semanas de idade gestacional, salientando-se que pelas 10-15 semanas se verifica desenvolvimento de sinapses aferentes para a espinhal medula.

Por outro lado, demonstrou-se que as vias tálamo-corticais começam a funcionar por volta das 30 semanas, e que nesta idade o feto já tem percepção da dor.

Importa relevar, entretanto, que: – numa fase precoce da vida, se verifica um limiar mais baixo dos receptores de dor; – este limiar aumenta com a idade; – em combinação com uma diminuição do controlo inibitório de experiências moduladoras da dor, as crianças pequenas podem ser sensíveis a estímulos dolorosos mais intensos do que as crianças de mais idade.

A longo prazo, as experiências da dor em recém-nascidos podem resultar em alterações prolongadas nos mecanismos pelos quais se processa a dor, as quais poderão resultar em hiperalgesia visceral em idades superiores.

Em suma, a dor abdominal funcional resulta de uma interacção complexa de múltiplos factores (nomeadamente psicossociais, ambientais e genéticos) entre o sistema nervoso central e o intestino. Nesta perspectiva, surgiu o conceito de dor abdominal mediada centralmente, ou seja, pela interacção cérebro-intestino.

Dor abdominal e metodologia do exame clínico

O exame clínico de um paciente em idade pediátrica com queixas de dor abdominal implica um procedimento metódico com vista ao diagnóstico diferencial entre alteração gastrintestinal orgânica e funcional.

Assim, ao proceder à anamnese, é fundamental determinar as características da dor:

  • Localização;
  • Duração com a referida localização;
  • Irradiação?
  • Modificação com o vómito ou defecação?
  • Relação com algum alimento em concreto?
  • Relação com estresse ou tensão emocional?

dor abdominal funcional, como foi referido, componente das chamadas alterações gastrintestinais funcionais, é tipicamente periumbilical, mal definida e não está associada a vómitos, perda de peso, sintomas nocturnos ou desaceleração do crescimento.

Os episódios de tal tipo de dor têm geralmente duração inferior a uma hora, regridem espontaneamente e podem estar associados a sintomatologia vaso-vagal (palidez, náuseas, tonturas, cefaleias ou fadiga). Podem ser desencadeados ou exacerbados por estresse, evidenciando a criança bom estado geral entre episódios.

Foi demonstrada associação da referida dor a sintomatologia depressiva e ansiedade e antecedentes familiares de sintomas gastrintestinais, como a obstipação, refluxo gastresofágico e síndroma do intestino irritável.

Em suma, a avaliação de uma criança com dor abdominal deve passar por uma anamnese pormenorizada, com caracterização da dor quanto à localização, carácter, intensidade, duração, período do dia, relação com a defecação e interferência com a vida diária, sendo útil a realização de um registo diário da dor. Deve ser detalhada a história familiar.

No que respeita ao exame objectivo, importa valorizar especialmente a somatometria, o estádio pubertário, assim como o resultado da observação abdominal e perianal.

Por outro lado, o exame clínico da criança com dor abdominal implica a detecção de eventuais sinais de alarme os quais poderão apontar para patologia orgânica, como sejam:

  • Dor em quadrante abdominal que não o periumbilical;
  • Perda de peso involuntária;
  • Febre sem foco aparente;
  • Vómitos persistentes, projectados ou biliosos;
  • Hemorragia gastrintestinal;
  • Diarreia com mais de 3 dejecções por dia e duração superior a 2 semanas;
  • Úlceras orais;
  • Fissuras/fístulas anais;
  • Disfagia ou odinofagia;
  • Organomegalias/massas abdominais;
  • Sintomatologia nocturna;
  • Exantema;
  • Artrite;
  • Sintomatologia do foro urinário (disúria, polaquiúria, hematúria, dor lombar);
  • Alteração menstrual e atraso pubertário;
  • Diminuição da velocidade de crescimento;
  • História familiar de doença inflamatória intestinal, doença péptica ou doença celíaca;
  • Alterações laboratoriais incluindo anemia e alteração dos parâmetros inflamatórios (elevação da proteína C reactiva e de velocidade de sedimentação);
  • Idade inferior a 4 anos.

Nos casos em que são verificados sinais de alarme, está indicada a realização de exames complementares a seleccionar, fundamentados pelos dados colhidos na história clínica e susceptíveis de confirmar ou infirmar alteração orgânica:

  • Hemograma;
  • Proteína C reactiva;
  • Velocidade de sedimentação;
  • Transaminases (AST e ALT);
  • Creatinina;
  • Ionograma;
  • Exame sumário de urina e urocultura;
  • IgA total e anticorpo anti-transglutaminase;
  • TSH e T4 livre;
  • Pesquisa de ovos, quistos e parasitas nas fezes;
  • Pesquisa de sangue oculto nas fezes;
  • Calprotectina fecal (se diarreia persistente);
  • Ecografia abdominal.

Por fim, importa salientar a eventualidade de indicações para referenciação a consulta de Gastrenterologia Pediátrica:

  • Suspeita de doença orgânica grave (como a doença inflamatória intestinal);
  • Persistência de sinais de alarme sem razão aparente;
  • Exclusão de intolerância à lactose (através de teste do hidrogénio expirado);
  • Necessidade de realização de endoscopia digestiva alta (por dispepsia, hemorragia gastrintestinal ou vómitos persistentes) ou colonoscopia (por hemorragia gastrintestinal ou diarreia crónica);
  • Obstipação sem resposta à terapêutica instituída pelo médico assistente.

Critérios de Roma e dor abdominal funcional

Em 1999 um grupo internacional de gastrenterologistas (inicialmente não pediatras) ligados à Rome Foundation, chegou a um consenso para a criação de um sistema de classificação das alterações gastrintestinais funcionais baseado em sintomas.

Tal sistema de classificação, com base num conjunto de critérios, passou a chamar-se Critérios de Roma porque a reunião se realizou nessa cidade; até 2016 foram publicadas quatro versões, chamando-se a atenção para as versões III em 2006, e IV em 2016.

Assim, sem utilizar exames complementares, na maioria das crianças em idade escolar com dor abdominal, será possível tranquilizar os pais e família com um diagnóstico baseado em sintomas, com o estabelecimento de um prognóstico e de um plano de actuação.

Contudo, importa garantir, como segurança, a possibilidade de eventual realização de exames complementares a fim de excluir eventuais processos orgânicos.

Alterações gastrintestinais funcionais utilizando os Critérios de Roma

Utilizando os critérios de Roma III e IV, foram discriminadas as nosologias a seguir abordadas, integrando o conceito de “alterações gastrintestinais funcionais” em que se verifica o sintoma “dor abdominal” (cinco diagnósticos relacionados com dor abdominal). Torna-se óbvio que os critérios de Roma abordam uma grande variedade de outras nosologias.

Para documentar algumas diferenças entre critérios de “Roma III” e de “Roma IV” relativamente ao tema do capítulo, foi dada ênfase às entidades: Dispepsia Funcional e Síndroma do Intestino Irritável.

Dispepsia funcional

Todos os seguintes critérios devem estar presentes pelo menos uma vez por semana, durante pelo menos dois meses antes do diagnóstico:

  1. Dor ou desconforto abdominal persistente ou recorrente supraumbilical;
  2. Dor não aliviada pela defecação ou associada a alteração na forma/frequência das fezes;
  3. Sem evidência de processo inflamatório, anatómico ou metabólico que possa explicar os sintomas.

A prevalência deste quadro na idade pediátrica estima-se entre 4 e 25%.

Na versão Roma IV, pretendeu-se aumentar a especificidade do diagnóstico, em confronto com a descrição “mais genérica e vaga da dor e desconforto abdominal superior. Assim, procedeu-se a uma descrição mais pormenorizada dos sintomas, especificando designadamente dor epigástrica com sensação de “ardor”, saciedade pós-prandial precoce, sensação de “inchaço ou enfartamento”, e levando a considerar subtipos de dispepsia funcional como: síndroma de enfartamento pós-prandial e síndroma de dor epigástrica, tais subtipos poderão manifestar-se em sobreposição.

Síndroma do intestino irritável

Todos os seguintes critérios devem estar presentes pelo menos uma vez por semana, durante pelo menos dois meses antes do diagnóstico:

  1. Desconforto abdominal, sensação de evacuação incompleta ou dor associada com 2 ou mais dos seguintes critérios em pelo menos 25% do tempo:
    • Melhoria com a defecação;
    • Início associado a alteração na frequência das fezes (4 ou mais dejecções diárias ou, pelo contrário, menos de 2 vezes por semana);
    • Início associado a alteração na forma e consistência das fezes, e presença de muco.
  2. Sem evidência de processo inflamatório, anatómico ou metabólico que possa explicar os sintomas.

Na versão de Roma IV, passou a ser requerido apenas 1 dos referidos critérios. E, em vez de se considerar “Melhoria com defecação”, foi alterada a narrativa para “Em relação com a defecação” (isto é, podendo verificar-se melhoria ou agravamento).

Enxaqueca abdominal

Todos os seguintes critérios devem ter ocorrido 2 ou mais vezes nos 12 meses precedentes:

  1. Episódios paroxísticos de dor intensa, aguda, periumbilical, que dura 1 hora ou mais;
  2. Intervalos sem sintomas que duram semanas a meses;
  3. Dor interferindo com a actividade normal;
  4. Dor associada a 2 ou mais dos seguintes critérios: anorexia, náuseas, vómitos, cefaleias, fotofobia, palidez;
  5. Sem evidência de processo inflamatório, anatómico ou metabólico que possa explicar os sintomas.

Esta alteração paroxística afecta cerca de 1 a 4% das crianças, com predomínio no sexo feminino, e maior incidência entre os 10 e 12 anos. Verifica-se forte relação com a síndroma dos vómitos cíclicos, admitindo-se que se trata do mesmo processo fisiopatológico com expressão clínica distinta.

Dor Abdominal funcional da infância

Todos os seguintes critérios devem estar presentes pelo menos uma vez por semana, e durante pelo menos dois meses, antes do diagnóstico:

  1. Dor abdominal episódica ou contínua;
  2. Critérios insuficientes para outras doenças gastrintestinais funcionais;
  3. Sem evidência de processo inflamatório, anatómico ou metabólico que possa explicar os sintomas.

Síndroma de dor abdominal funcional da infância

Todos os seguintes critérios devem estar presentes, pelo menos uma vez por semana, e durante, pelo menos, dois meses antes do diagnóstico:

  1. Dor abdominal contínua (ou episódica em pelo menos 25% do tempo) e um ou mais dos seguintes critérios:
    1. Diminuição (ou alteração respeitante à rotina) da actividade diária;
    2. Sintomas somáticos adicionais: alteração do estado emocional, depressão, ansiedade, cefaleias, dor dos membros ou perturbações do sono;
  2. Critérios insuficientes para incluir o caso em alguns dos grupos nosológicos anteriores (de I. a IV.);
  3. Ausência de processos gerais que possam explicar os sintomas.

No cômputo geral de diferenças entre as versões III e IV, importa salientar os seguintes tópicos:

  • designação de “alterações da interacção cérebro-intestino”, preferível à de alterações funcionais gastrintestinais”;
  • chamada de atenção para o facto de as nosologias atrás descritas constituírem um continuum; ou seja, a expressão clínica diversa de um mesmo processo fisiológico de base, mais do que entidades independentes;
  • inclusão do conceito de “síndroma de dor abdominal mediada pelo sistema nervoso central”, com base na investigação que se seguiu à publicação de Roma III.

Tratamento

O pediatra e o médico de família devem possuir competências para diagnosticar e tratar a maioria das alterações gastrintestinais funcionais. Como muitos destes problemas são habitualmente crónicos e por vezes não respondem à terapêutica inicial, poderá ser necessário pedir uma segunda opinião e prosseguir a avaliação de doenças menos frequentes através do envio da criança a centro especializado.

O tratamento passa por diversas vertentes, nomeadamente o estabelecimento de uma relação terapêutica médico-família, educação do doente, promoção do retorno precoce à escola, modificação do comportamento, adopção de estratégias de gestão da dor e evicção de desencadeantes alimentares/psicogénicos.

É importante tranquilizar os pais e a criança quanto às suas dúvidas sobre a relação dos sintomas com patologia orgânica, deixando claro que a dor é real. A utilização do modelo biopsicossocial facilita este esclarecimento, por transmitir o diagnóstico de dor abdominal funcional como um diagnóstico dito “positivo”, e “não de exclusão”.

A planificação do regresso à escola é crucial e deve ser tão precoce quanto possível.

O reforço positivo de comportamentos de gestão de dor constitui outra estratégia que pode auxiliar na melhoria da tolerância da criança. São utilizadas várias técnicas de gestão de dor, sendo a mais utilizada a terapêutica cognitivo-comportamental.

O benefício da restrição dietética de lactose, glúten ou de oligossacáridos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis (FODMAPs) é incerto.

A evicção de alimentos que provoquem flatulência (como bebidas gaseificadas, feijão, cebola, couve-de-Bruxelas) tem uma eficácia que varia de indivíduo para indivíduo.

A utilização de probióticos poderá ser benéfica. Contudo, as diferenças nas estirpes, a formulação e a dosagem tornam difícil estabelecer uma indicação rigorosa para a sua utilização.

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REFLUXO GASTRESOFÁGICO

Definição e importância do problema

O refluxo gastresofágico (RGE) consiste na passagem retrógrada do conteúdo gástrico para o esófago sem náusea e sem esforço. Esse conteúdo pode ser alimentar, ácido (ou bilioso quando se acompanha de refluxo duodeno-gástrico) ou gasoso.

O material refluído pode atingir a boca e ser expelido (situação muito frequente no lactente pequeno) originando episódios de regurgitação, ou pode ser empurrado de novo para o estômago pelo peristaltismo do esófago (episódios de refluxo não regurgitante). Por vezes o conteúdo refluído pode ser aspirado para a via aérea (principalmente nos recém-nascidos pré-termo, recém-nascidos e lactentes pequenos ou crianças com lesões neurológicas) originando uma série de sintomas que vão do laringospasmo à apneia, passando por recorrência de sibilância ou pneumonia de aspiração.

Se o refluxo for ácido, a permanência desse conteúdo no lume esofágico pode levar a lesão da mucosa (esofagite) ou, através de um mecanismo reflexo (estimulação de receptores vagais), originar também fenómenos de broncospasmo. Se no lactente a quantidade de alimentos regurgitados for muito considerável, poderá surgir insuficiente ganho ponderal e desnutrição. A esofagite pode ainda levar a perda crónica de sangue e anemia ferropénica.

Epidemiologia e história natural

O RGE é um fenómeno muito frequente no lactente pequeno e a principal causa de envio, neste grupo etário, a consultas de Gastrenterologia Pediátrica.

Na idade pediátrica o RGE pode classificar-se em primário ou secundário; o secundário é originado por obstáculo anatómico gástrico (estenose hipertrófica do piloro) ou infragástrico (bridas, má-rotação), ou por uma alteração da motilidade do tubo digestivo superior causada por fenómeno inflamatório crónico de origem infecciosa ou imunológica, mais frequentemente relacionado com intolerância às proteínas do leite de vaca (IPLV). A hérnia do hiato pode ainda favorecer o aparecimento de doença do refluxo gastresofágico (DRGE).

O RGE primário divide-se em: RGE funcional ou não complicado, traduzido apenas por regurgitação; e RGE complicado, também chamado DRGE quando se acompanha de lesão tecidual ou sintomatologia importante que pode ser do foro digestivo, respiratório ou neurocomportamental.

Cinquenta por cento dos lactentes saudáveis apresentam 2 ou mais episódios de regurgitação por dia entre os 2-10 meses de idade, com um máximo no grupo dos 4 meses. Por volta dos 8-9 meses, com a introdução progressiva da alimentação sólida e o adquirir da posição levantada, há uma nítida diminuição dos sintomas com progressivo desaparecimento destes entre os 18 meses (60-80% dos casos) e os 2 anos (98% dos casos). Cerca de 5-9% das crianças apresentam um RGE complicado (contra uma prevalência de DRGE de 4-30% na população adulta). Alguns grupos de doentes apresentam uma incidência superior de DRGE que deve ser sistematicamente investigada: doentes neurológicos, nomeadamente com paralisia cerebral (70-80%), doentes operados a atrésia do esófago (30%) e doentes com fibrose quística (26%).

Fisiopatologia

O principal mecanismo anti-refluxo, na criança como no adulto, é o tono basal do esfíncter esofágico inferior (EEI) que se quantifica entre 14-34 mmHg, valor bem superior ao gradiente de pressão abdominotorácica de cerca de 6 mmHg. Este tono vai sendo progressivamente adquirido nos primeiros 3 meses de vida e essa hipotonia “fisiológica” reveste-se de importância no RGE do pré-termo mais imaturo.

Outro factor importante para a prevenção dos episódios de refluxo é a localização intra-abdominal do EEI em 2/3 do seu comprimento e a competência do diafragma crural que, em conjunto com a normal localização e tonicidade do EEI, formam a junção gatresofágica. Assim, um aumento brusco da pressão intra-abdominal irá também reflectir-se na pressão basal do esfíncter e não causará refluxo. Poder-se-ia, pois, concluir que dois factores, isoladamente ou em conjunto, podem estar na base do RGE: hipotonia do EEI e má-posição esfincteriana (esfíncter intratorácico ou hérnia do hiato). Se é certo que estes factores se encontram frequentemente em crianças com RGE grave e problemas neurológicos, a verdade é que na maioria das crianças com RGE nenhum deles apresenta relevância. Num estudo que efectuámos em 78 crianças com DRGE constatámos, ao analisar o EEI por manometria esofágica, que apenas 12% dos doentes tinham uma incompetência esfincteriana (tono inferior a 5 mmHg) e que só 18% apresentavam um esfíncter totalmente intratorácico, sendo as duas anomalias simultâneas em 6% das crianças.

O mecanismo que assume maior relevância na génese dos episódios de refluxo parece ser a relaxação transitória inapropriada (fora da deglutição) de um EEI de tono normal. Esta relaxação surge mediada por mecanismos reflexos (vago-vagais) ligados à excessiva distensão do fundo gástrico, principalmente por líquidos (mecanismo protector), ou a atraso do esvaziamento gástrico para líquidos ou sólidos. Na posição supina forma-se, mesmo no período pós-prandial de neutralização ácida, uma bolsa de ácido na porção gástrica da junção gastro-esofágica, o que facilita a acidificação do esófago durante os episódios de relaxação transitória do esfíncter que ocorrem naquela posição. O aumento da pressão abdominal nos doentes com obesidade é ainda um factor de risco para RGE.

A segunda linha de defesa do esófago quando surge um episódio de refluxo é o desencadear de uma onda peristáltica que empurra o conteúdo refluído de novo em direcção ao estômago. A neutralização ácida do esófago é completada pela deglutição da saliva. A gravidade (na posição erecta) actua também, facilitando a limpeza do esófago. Na posição supina (frequente no lactente) perde-se a acção da gravidade e, quando do sono, perde-se também a capacidade de deglutição da saliva, pelo que o RGE surgido nessa ocasião pode assumir maior gravidade. No entanto, a presença de dismotilidade esofágica parece ser o factor decisivo para a manutenção do teor em conteúdo ácido do esófago. Esta dismotilidade pode ser primária (nomeadamente nas situações de paralisia cerebral ou atrésia do esófago), ou secundária à existência de esofagite, criando um ciclo vicioso em que o refluxo causa esofagite e esta, através das alterações motoras que condiciona, facilita o aparecimento de mais refluxo com agravamento do processo inflamatório. No estudo anteriormente referido, 58% das crianças com esofagite apresentavam critérios de dismotilidade grave contra 32% de doentes sem esofagite.

Finalmente, como terceira linha de defesa, encontra-se a capacidade de resistência ao ácido da mucosa esofágica, o que depende de factores pré-epiteliais, epiteliais e pós-epiteliais, e que é variável de indivíduo para indivíduo; tal explica que, para o mesmo grau de exposição ácida, haja diferente gravidade de lesão da mucosa.

Manifestações clínicas

A constelação de sintomas e sinais do RGE é muito variada e, nalguns casos, relacionada com a idade do doente. De uma forma geral podem classificar-se em 3 tipos: manifestações digestivas; manifestações respiratórias; manifestações neurocomportamentais.

  1. Manifestações digestivas
    1. Lactentes: regurgitação simples, regurgitação com insuficiente ganho ponderal, vómitos, sintomas /sinais de esofagite; irritabilidade geral ou em torno da alimentação (habitualmente com perda de peso); hematemese ou melena; sintomas relacionados com anemia ferropénica.
    2. Crianças maiores: pirose; vómitos; disfagia; dor epigástrica ou retro-esternal; hematemese /melena ou anemia ferropénica; erosão dentária; disfagia.
  2. Manifestações respiratórias (habitualmente crónicas ou recorrentes)
    1. Via superior: otite média recorrente; laringite recorrente/crónica; laringospasmo com apneia (lactente pequeno); engasgamento (lactente pequeno).
    2. Via inferior: sibilância recorrente (em crianças não atópicas); asma mal controlada principalmente nocturna; pneumonia de aspiração.
  3. Sintomas neurocomportamentais (principalmente no lactente): irritabilidade; perturbação do sono; Apparent Life Threatening Events (ALTE); pseudo convulsões/hipotonia; síndroma de Sandifer (torcicolo secundário ao refluxo).

Diagnóstico

O diagnóstico do refluxo regurgitante é clínico. Na presença de um lactente com regurgitação, em primeiro lugar é necessário saber se o refluxo é primário ou secundário; e, neste último caso, excluir, nomeadamente, a estenose hipertrófica do piloro. Quando houver relação temporal entre os sintomas e a introdução de uma fórmula adaptada, há que admitir possível IPLV.

Na presença de um refluxo primário há que distinguir entre RGE não complicado e DRGE. Para isso é fundamental proceder uma história clínica cuidadosa valorizando os seguintes parâmetros para um diagnóstico afirmativo de RGE funcional (sem necessidade de exames complementares):

  • Regurgitação mais evidente no período pós-prandial imediato, principalmente após refeição abundante;
  • Regurgitação ligada a um estado de agitação do bébé, principalmente quando acordado;
  • Regurgitação mais importante com o leite que com sólidos;
  • Bom ganho ponderal, apesar da regurgitação;
  • Ausência de sintomas ou sinais de esofagite, nomeadamente irritabilidade, recusa alimentar ou anemia;
  • Ausência de sintomas ou sinais respiratórios ou neurocomportamentais passíveis de serem atribuídos ao refluxo.

Quando se suspeita de RGE complicado será necessário recorrer a exames complementares para avaliação de:

  1. Consequências do RGE (nomeadamente esofagite e estenose péptica) sobretudo no doente com sintomas digestivos:
    • A endoscopia digestiva alta com realização de biópsias é o melhor exame perante a suspeita de esofagite. Geralmente a esofagite de refluxo é distal e manifesta-se com erosões ou ulcerações da mucosa do esófago: estabelece definitivamente o diagnóstico, quantifica a esofagite, identifica critérios histológicos implicando maior cuidado (esófago de Barrett) e evidencia a presença de estenose péptica. Permite ainda o diagnóstico diferencial com outras causas de esofagite (ex. esofagite eosinofílica, infecciosa ou do Crohn);
    • A ecografia só tem interesse para exclusão de obstáculo pilórico;
    • O trânsito esófago-gastro-duodenal permite também demonstrar a estenose péptica e malformações anatómicas, como hérnia hiatal sendo particularmente útil para excluir obstáculo infra-pilórico ou má-rotação.
  2. Relação de causalidade entre o refluxo e sintomatologia extradigestiva:
    • A ecografia com pesquisa de RGE pode evidenciar a presença de refluxo associado a patologia respiratória ou neurocomportamental, sobretudo quando não há regurgitações visíveis. É barato e não invasivo, mas a sua sensibilidade é variável (pode atingir 65%) dependendo da experiência do ecografista. No entanto, não quantifica o refluxo, não o relaciona directamente com os sintomas apresentados, e limita-se a um curto período pós-prandial em que muitas vezes o RGE é não ácido e fisiológico. Assim, não é um exame recomendado na avaliação do RGE;
    • A pH metria de 24 horas é o exame de eleição para avaliar crianças com manifestações extradigestivas e suspeita de RGE. Trata-se dum método estandardizado, quer quanto a indicações, quer quanto a procedimentos, por recomendações recentes da ESPGHAN e NASPGAN. Permite quantificar o refluxo ácido através do estabelecimento de um índice de refluxo (tempo total diário de pH < 4) que é variável com a idade, sendo considerado patológico se for superior a 12% no 1º ano de vida, e a 6% a partir dessa idade. Quantifica também o número de episódios de refluxo e número de episódios prolongados (> 5 minutos) e com má clearance esofágica. Permite ainda estabelecer uma relação temporal entre o episódio de refluxo e o aparecimento dos sintomas referidos (tosse, sibilância, apneia, etc.) e avaliar a eficácia se realizada sob terapêutica. Tem, no entanto, limitações já que só avalia episódios de refluxo ácido, não detectando episódios de refluxo alimentar (neutro) que podem estar relacionados com fenómenos de aspiração;
    • O método de impedância esofágica intraluminal, empregando diversos sensores a diversos níveis, incluindo um para correlação com o pH distal, permite documentar o refluxo ácido, o fracamente ácido, e o alcalino. Embora incómodo para o doente, constitui um instrumento importante, sobretudo nos casos associados a sintomatologia respiratória para detecção de refluxo não ácido;
    • A manometria esofágica permite avaliar a pressão dos esfíncteres esofágicos superior e inferior, assim como o peristaltismo esofágico; é importante após os exames de primeira linha em casos suspeitos de dismotilidade esofágica ou acalásia, como responsáveis por sintomas de refluxo resistentes à terapêutica clássica ou atípicos;
    • A cintigrafia de esvaziamenteo esófago-gástrica tem interesse limitado na avaliação de episódios aspirativos.
  3. Estudo pré-operatório
    Nos casos em que se torne necessário recorrer ao tratamento cirúrgico do RGE, o estudo deve ser muito pormenorizado com exames variados para clara documentação de DRGE como causa da sintomatologa do doente, assim como avaliação da sua gravidade: trânsito esofágico, endoscopia digestiva alta, pH metria, manometria esofágica, cintigrafia para avaliação do esvaziamento gástrico e impedância intraluminal.

Tratamento

O RGE não complicado não necessita de tratamento médico. Os pais devem ser tranquilizados, informando-os de que se trata de uma situação de imaturidade fisiológica que irá melhorar ao longo do tempo. Podem ser tomadas algumas medidas como o espessamento do leite que diminui a regurgitação visível por ser mais viscoso, e também por aumentar a saciedade do lactente, ficando mais tranquilo após as refeições. A roupa não deve ser apertada. A posição em que o lactente deve ser colocado é controversa. Estudos provam que os lactentes têm um menor índice de refluxo em decúbito ventral ou lateral esquerdo. No entanto, pela associação entre essas posições e a morte súbita do lactente, os riscos habitualmente ultrapassam os benefícios, pelo que tais posições não devem ser rotineiramente recomendadas. Poderá recorrer-se ao colchão duro com elevação da cabeceira a 30º. A não exposição ao tabaco é ainda recomendada como medida eficaz antirrefluxo.

Se os sintomas persistirem, poderá ser tentada uma modificação da fórmula para um hidrolisado durante 2 a 4 semanas, para excluir IPLV. A criança deve ser vigiada e reavaliada se os sintomas persistirem para além dos 18-24 meses, ou se se agravarem.

O tratamento farmacológico deve estar reservado para o RGE complicado. Neste caso, para além das medidas gerais já descritas (e que na criança maior ou adolescente incluem também a restrição de produtos alimentares como alimentados “condimentados”, o café, o chocolate e as colas ou o tabaco, todos baixando o tono do EEI), há três grupos de fármacos que podem ser usados: os procinéticos, os anti-ácidos e os inibidores da secreção ácida gástrica.

Sendo a DRGE uma anomalia primordial da motilidade do andar superior do tubo digestivo, teria lógica usar principalmente os procinéticos no seu tratamento. Dos vários utilizados (metoclopramida, domperidona, cisapride, eritromicina) só com o cisapride se demonstrou uma acção consistente de redução do número e duração dos episódios de refluxo.

No entanto, a associação (se bem que rara em Pediatria) entre este medicamento e arritmia cardíaca grave por prolongamento do intervalo QT, limitou o seu uso a casos muito restritos, sob um rigoroso protocolo de segurança, apenas aplicado em unidades especializadas.

Os antiácidos como o sucralfato e alginatos, pode sem utilizados para alívio rápido dos sintomas, mas não são recomendados para uso crónico.

Assim, o tratamento do RGE complicado repousa essencialmente nos inibidores da secreção ácida que são de dois tipos: antagonistas dos receptores H2 e inibidores da bomba de protões (PPI). (Quadro 1)

QUADRO 1 – Inibidores da secreção ácida gástrica

TipoDoseTomas
Antagonistas H2
Ranitidina2-4 mg/Kg/dia2 x dia
PPI
Omeprazol0,7-3,3 mg/Kg/dia1 x dia
Lansoprazol0,5-3 mg/Kg/dia1 x dia
Esomeprazol0,5-2 mg/Kg/dia1 x dia

A ranitidina, é mais eficaz que o placebo mas apresenta alguns efeitos secundários nomeadamente taquifilaxia e tolerância.

Os PPI, pela sua acção mais eficaz ao longo das 24 horas, são os preferidos, principalmente nos tratamentos a longo prazo. No tratamento da esofagite ou das manifestações extradigestivas ligadas ao RGE, o seu uso deve ser de 6-8 semanas. Muitas vezes, no entanto, o reaparecimento dos sintomas leva à necessidade de terapêutica mais prolongada.

Nas últimas recomendações da NASPGHAN/ESPGHAN, de 2009, o seu uso não está recomendado antes de 1 ano de idade, apesar de vários estudos realizados em recém-nascidos e lactentes, demonstrarem a mesma eficácia e perfil de segurança. O uso dos PPI de forma prolongada pode aumentar o risco de pneumonia e gastrenterite.

tratamento cirúrgico deve estar reservado aos casos refractários à terapêutica médica bem conduzida, ou no contexto de complicações graves como estenose péptica. Os doentes com patologia neurológica e RGE têm frequentemente necessidade de terapêutica cirúrgica.

A técnica mais eficaz é a fundoplicatura de Nissen, com ou sem piloroplastia associada, que pode ser efectuada por cirurgia laparoscópica em centros com experiência.

Em adultos têm sido realizados procedimentos por via endoscópica, como a gastroplastia endoluminal; contudo, não há ainda experiência suficiente em crianças para avaliar o sucesso a médio prazo desta técnica.

Tratando-se duma intervenção geralmente eficaz, há a referir contudo que poderá levar à ocorrência de efeitos secundários, como síndroma de gas-bloating, incapacidade de eructação, disfagia, síndroma de dumping ou recorrência do RGE.

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VÓMITOS

Definição

Os vómitos, que consistem na expulsão súbita pela boca do conteúdo do estômago, com esforço, são um sintoma muito frequente em idade pediátrica, com múltiplas etiologias. O vómito deve ser distinguido da regurgitação que consiste na expulsão, sem esforço, do conteúdo gástrico pela boca; esta última situação é frequente nos lactentes até aos três meses, não tendo geralmente repercussões importantes.

Fisiopatologia

O vómito resulta da resposta a diversos estímulos, coordenados pelo sistema nervoso central em sincronismo com os músculos abdominais e torácicos.

Durante o vómito há três fases: a primeira define-se como náusea, consistindo na sensação de vómito iminente, em geral associada a outros sinais e sintomas, nomeadamente palidez, sudação, sialorreia, taquicárdia e anorexia; a segunda consiste num movimento espasmódico respiratório contra a epiglote encerrada; e a terceira, (vómito propriamente dito) que consiste na expulsão retrógrada, súbita e com esforço, do conteúdo gástrico através da boca.

Embora seja nítida a existência destas três fases, cada uma delas pode surgir independentemente das outras. Nem sempre a sensação de náusea desencadeia o vómito; por outro lado a estimulação faríngea poderá desencadear o vómito sem ser precedida de náusea.

Durante o vómito o fundo gástrico relaxa-se e recebe o conteúdo intestinal sob a forma de um bolus após contracção do intestino delgado. A contracção do piloro e do antro gástrico mantém este conteúdo no interior do estômago e o esfíncter esofágico inferior relaxa-se, alargando o orifício de passagem. Concomitantemente as contracções sincronizadas dos músculos da parede abdominal, diafragma e intercostais aumentam a pressão intrabdominal e intratorácica com consequente expulsão do conteúdo gástrico contra a faringe e, depois, para o exterior, pela boca.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A avaliação de uma criança que tem vómitos (Quadro 1) deve iniciar-se com a elaboração da anamnese, caracterizando os vómitos (alimentares, hemáticos, biliosos, com muco), a sua forma de apresentação (agudos, crónicos ou cíclicos), e a repercussão no estado geral (nutricional e na hidratação).

QUADRO 1 – Abordagem do doente com vómitos

É importante analisar a existência de outros sinais e sintomas (febre, tosse, dor abdominal, obstipação, diarreia) e a sua apresentação cronológica, considerando sempre as patologias específicas de cada idade e a existência de contexto epidemiológico. Na maioria das vezes estes dados permitem o diagnóstico. Os exames complementares são orientados de acordo com a suspeita clínica: exames laboratoriais (hemocultura, urinocultura, cultural do liquor) quando há suspeita de infecção; imagiológicos e/ou endoscópicos quando há suspeita de anomalia anatómica/gastrintestinal; e doseamentos específicos quando a suspeita é de doença metabólica ou endócrina.

Sendo o vómito um sintoma comum a muitas patologias, o diagnóstico diferencial varia com a idade do doente (Quadro 2). As anomalias congénitas, as doenças genéticas e metabólicas são mais frequentes no período neonatal; as causas pépticas, infecciosas e psicogénicas surgem com maior frequência na criança mais velha.

A estenose hipertrófica do piloro surge em cerca de 1-3/1.000 nascimentos e resulta de uma hipertrofia muscular das fibras circulares do piloro (oliva pilórica). É mais frequente no sexo masculino e manifesta-se nas primeiras semanas de vida.

No caso de estenose hipertrófica do piloro os vómitos surgem após um intervalo livre, em geral 2 a 4 semanas sob a forma de vómitos não biliosos, pós-prandiais, em jacto, sempre cada vez mais frequentes e abundantes. A criança fica agitada com fome, pode ter perda ponderal e ficar desidratada.

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial dos vómitos de acordo com a idade de apresentação

Adaptado de Kliegman RM et al, 2019

CausaRecém-nascidoLactenteCriança maiorAdolescente
InfecciosaSépsis
Meningite
Infecção urinária
Gastrenterite
Meningite
Otite média aguda
Infecção respiratória
Gastrenterite
Otite média aguda
Sinusite
Gastrenterite
Sinusite
Infecção respiratória
AnatómicaAtrésias
Duplicações
Má-rotação/Volvo
Doença de Hirschsprung
Íleo meconial
Estenose pilórica (<Cl; <K+)
Estenose hipertrófica do piloro
Hérnia inguinal
Doença de Hirschsprung
Invaginação intestinal
Invaginação intestinal
Hérnia inguinal
Bezoar
Hérnia inguinal
Bezoar
Síndroma de artéria mesentérica superior
GastrintestinalRefluxo gastresofágico
Erro alimentar
Pseudobstrução intestinal
Refluxo gastresofágico
Esofagite
Alergia às proteínas do leite de vaca
Gastrite
Doença celíaca
Refluxo gastresofágico
Gastrite
Apendicite
Pancreatite
Hepatite
Refluxo gastresofágico
Gastrite
Apendicite
Pancreatite
Hepatite
Discinésia biliar
Acalásia
NeurológicaHidrocefalia
Hematoma subdural
Hematoma subduralEnxaqueca
Tumor
Síndroma de Reye
Enxaqueca
Tumor

Metabólica ou

endócrina

Galactosémia
Defeitos do ciclo da ureia
Hipercalcémia
Intolorância à frutose
Urémia
Hiperplasia congénita da supra-renal (>K+)
Diabetes mellitusDiabetes mellitus
Gravidez
Porfiria intermitente
Outras MedicamentosSíndroma de vómitos ciclícos
Ingestão de tóxicos
Intoxicação alimentar
Psicogénicos
Bulimia

O abdómen fica distendido após as refeições podendo identificar-se pela inspecção do abdómen ondas peristálticas gástricas da esquerda para a direita. Se não existir distensão abdominal acentuada poderá palpar-se a oliva pilórica.

O diagnóstico ecográfico permite a identificação do espessamento e alongamento do canal pilórico; outros exames complementares podem orientar como a radiografia esofagogastroduodenal que demonstra o estômago dilatado com atraso do esvaziamento, e o canal pilórico estreito.

Uma referência a um quadro clínico designado por síndroma dos vómitos cíclicos (Quadro 3). Os vómitos surgem de forma recorrente por períodos variáveis podendo eventualmente conduzir a desidratação e alterações do equílibrio hidroelectrolítico e ácido-base. Podem ser acompanhados de dores abdominais e de febre. Em geral desaparecem ou atenuam-se após período de sono e repouso. Estão em geral associados a história familiar da enxaqueca. Mantendo-se a situação até à 2ª infância, as crianças mais velhas conseguem descrever associação de cefaleias a antecedentes de quadro recorrente de vómitos. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, cerca de 50% dos doentes necessita de reidratação endovenosa. O diagnóstico diferencial deve fazer-se com situações de obstrução intestinal intermitente (volvo, má-rotação) e com certas doenças metabólicas como acidémias orgânicas, galactosémia e alterações do ciclo da ureia.

Complicações

As complicações mais frequentes dos vómitos, mantidos são a perda de electrólitos e fluidos podendo levar a alcalose hipoclorémica, ruptura da pequena curvatura da junção gastroesofágica (ruptura de Mallory-Weiss), aspiração de conteúdo gástrico para a via respiratória com consequentemente pneumonia, exposição da mucosa esofágica ao conteúdo ácido do estômago com risco de esofagite, etc.. As principais complicações metabólicas são discriminadas no Quadro 3.

QUADRO 3 – Síndroma de vómitos cíclicos: critérios de diagnóstico*

 *Verificação de TODOS os critérios

· Pelo menos, 5 episódios com qualquer intervalo de tempo ou mínimo de 3 durante período de 6 meses;
· Episódios de náuseas e vómitos durante período entre 1 hora e 10 dias, pelo menos com uma semana de intervalo;
· Vómitos 4 ou mais vezes/hora durante > 1 hora;
· Período assintomático entre os episódios;
· Exclusão de causas específicas;
· Padrão estereotipado para cada caso;

 

Tratamento

A manutenção do estado de hidratação é fundamental. Quando é identificada a etiologia dos vómitos a terapêutica é específica. A utilização de fármacos anti-eméticos está contra-indicada na maioria dos lactentes e crianças com vómitos secundários a gastrenterite aguda, anomalias estruturais do tracto gastrintestinal, emergências cirúrgicas e lesões expansivas intracraninas.

QUADRO 4 – Complicações metabólicas dos vómitos

Perda de Na, K, e HCl pelos vómitos
Hiponatrémia, hipopotassémia e alcalose hipoclorémica
Consequências da alcalose
[Na+] → entrada para as células
[HCO3] → perda pela urina (pH 7-8)
[K+ e Na+] → perda pela urina (hipercaliúria e hipernatriúria)
[Cl– urinário diminuído] <> conservação pelo rim

Os anti-eméticos estão indicados em situações seleccionadas: pós-operatório, quimioterapia, alguns casos de síndroma de vómitos cíclicos e alterações da motilidade gastrintestinal, etc..

Os mais utilizados são: 1) a Metoclopramida (Primperam®) (antagonista de dopamina) → 0,1-0,2 mg/kg iv ou PO (até 3 vezes/dia); 2) Domperidona [Motilium®] → 0,2-0,6 mg/kg PO (até 3 vezes/dia); 3) Dimen Hidrinato [Dramamina®] → 1 mg/kg antes da viagem nos casos de vómitos com movimento ou em casos de alteração vestibular; 4) Eritromicina (procinétrico agonista da motilina) → 2 – 4 mg/kg iv ou PO até 3 vezes/dia; 5) Propranolol (bloqueante beta-adrenérgico → 0,5 mg – 2 mg/kg até 2-3 vezes/dia para os vómitos ácidos); 6) Cipro-heptadina [Periactin®] → 0,25 – 0,5 mg/kg/dia (para os vómitos cíclicos), etc.; 7) Ondansetrona (em situações especiais em maiores de 4 anos) PO → 4 mg 12-12 h até 5 dias, após 1ª dose IV de 5 mg/m2.

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