Definição e importância do problema

A cirrose hepática representa o estádio final da doença hepática progressiva. Caracteriza-se histologicamente pela presença de fibrose com distorção da arquitectura hepática e formação de nódulos parenquimatosos regenerativos. A cirrose é tendencialmente uma doença de evolução progressiva e até há pouco tempo considerada irreversível. Actualmente é aceite como uma patologia dinâmica com potencial de reversibilidade se tratada de forma adequada precocemente.

Segundo a Organização Mundial de Saúde a cirrose é a 18ª causa de morte no mundo, sendo na Europa responsável por 1,8% do total de óbitos (cerca de 170.000/ano). Não existem dados epidemiológicos específicos da cirrose hepática na criança. Sabe-se, no entanto, que as crianças com doença hepática crónica são susceptíveis a várias complicações que afectam a sua qualidade de vida e reduzem a sobrevivência. Os avanços recentes no diagnóstico e no tratamento desta entidade (especialmente no que diz respeito ao transplante hepático) contribuíram de forma significativa para a sobreviência na idade pediátrica.

Etiopatogénese

A cirrose pode ser classificada de diversas formas com base em critérios etiológicos, morfológicos, histológicos e clínicos. A classificação etiológica tem um carácter preditivo da gravidade e evolução da doença, podendo ser dividida em três grupos principais: pós-hepatite (na sequência de hepatite aguda ou crónica), pós-necrótica (secundária a lesão tóxica), e biliar (secundária a obstrução biliar crónica).

Existem várias doenças hepáticas que podem progredir para cirrose, conforme discriminado no Quadro 1.

QUADRO 1 – Causas de cirrose hepática

Doenças biliares
    • Atrésia das vias biliares
    • Quisto do colédoco
    • Síndroma de Alagille, hipoplasia biliar
    • Colestase intra-hepática familiar
    • Colangite esclerosante
Doenças hepáticas ou pós-necróticas
    • Hepatite neonatal
    • Hepatite B
    • Hepatite C
    • Hepatite D
    • Hepatite autoimune
    • Drogas e tóxicos
Doenças metabólicas
    • Défice de Alfa-1 antitripsina
    • Doença de Wilson
    • Hemocromatose
    • Galactosémia, frutosémia, doenças de armazenamento de glicogénio
    • Tirosinémia, doenças do ciclo de ureia
    • Doença de Gaucher, Niemann-Pick tipo C, síndroma de Zellweger
Vascular
    • Trombose da veia porta, síndroma de Budd-Chiari
    • Doença veno – oclusiva
    • Doenças cardíacas

A atrésia biliar e as causa hereditárias de colestase intra-hepática são as causas mais comuns de doença hepática crónica na criança. Nos primeiros anos de vida a atrésia biliar e as síndromas genético-metabólicas são as etiologias mais prevalentes, enquanto nas crianças mais velhas são as hepatites víricas e as doenças autoimunes que predominam. Nem sempre é possível identificar a causa da doença hepática, sendo que 5 a 15% dos casos de cirrose na idade pediátrica são considerados de etiologia indeterminada (criptogénica).

A atrésia biliar ocorre nas primeiras semanas de vida, caracterizando-se por obstrução completa dos ductos biliares. A hipertensão portal e a cirrose biliar tendem a ocorrer logo no início da doença. Manifesta-se como icterícia desde o nascimento e, em 15 a 30% dos doentes, pode cursar com outras anomalias extra-hepáticas (defeitos congénitos cardíacos e renais, entre outros). O tratamento é cirúrgico e deve ser o mais precoce possível. Sem tratamento geralmente as crianças a esperança de vida varia entre os 18 e os 24 meses.

A causa mais comum de colestase intra-hepática progressiva familiar é a síndroma de Alagille, situação associada a uma mutação no gene JAG1 localizado no braço curto do cromossoma 20. O diagnóstico pode ser difícil nos primeiros meses de vida apresentando-se com colestase importante, salientando-se que as crianças apresentam outras características como fácies peculiar e malformações dos arcos vertebrais, cardíacas e/ou oculares. Há progressão para cirrose em 20 a 25% dos casos.

No que diz respeito às causas víricas, as hepatites B e D são as causas mais comuns de cirrose na adolescência. Apesar de a transmissão da hepatite C poder ocorrer na infância, tipicamente a progressão para cirrose só ocorre mais tardiamente na idade adulta.

A cirrose pode ser classificada morfologicamente como micronodular (presença de nódulos com menos de 3 mm de diâmetro), macronodular (nódulos de dimensão superior a 3 mm de diâmetro) ou mista (presença de componentes dos dois subtipos anteriores). Esta classificação é pouco utilizada já que a aparência macroscópica do fígado tendencialmente evolui à medida que a doença progride (a cirrose micronodular normalmente progride para macronodular) e, para além disso, é pouco específica no que diz respeito à etiologia. Actualmente os marcadores serológicos disponíveis são mais específicos na determinação da etiologia do que o aspecto morfológico do fígado.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da cirrose depende da etiologia da mesma e da eventualidade de situação clínica de doença compensada ou descompensada. Cerca de 40% dos doentes são assintomáticos previamente ao episódio de descompensação hepática. A primeira suspeita clínica decorre muitas vezes do achado acidental de hepato-esplenomegália ou a documentação analítica de valores alterados de enzimas hepáticas. As manifestações clínicas podem incluir sintomas e sinais inespecíficos como anorexia, fadiga, náuseas ou vómitos.

Na avaliação global da criança assintomática podem estar presentes estigmas típicos de doença hepática que façam suspeitar do diagnóstico, nomeadamente eritema palmar e plantar, presença de telegenctasias, dedos em baqueta de tambor ou dilatação das veias da parede abdominal. A palpação abdominal pode revelar um fígado aumentado ou, nos casos mais avançados, pequeno, nodular e duro. Uma evolução estaturo-ponderal abaixo do expectável pode ser um dos sinais precoces de doença hepática crónica; por isso, é essencial a avaliação antropométrica regular.

Na maioria dos casos a primeira suspeita clínica de doença hepática crónica ocorre quando há descompensação hepática e a criança apresenta icterícia, prurido, distensão abdominal, ascite, hemorragia gastrintestinal alta, ou até, alteração do estado de consciência associado a encefalopatia hepática.

Diagnóstico

Uma história clínica minuciosa é essencial na avaliação da criança com doença hepática crónica. É fundamental ter em atenção certos pormenores relacionados com antecedentes familiares (nomeadamente história de infecção materna por vírus, designadamente das hepatites B, C ou D), do período neonatal (nomeadamente intercorrências como colestase hepática, nutrição parentérica, entre outras), assim como a existência de tatuagens ou piercings nos adolescentes.

O estudo laboratorial é importante para avaliar o grau de lesão e de função celulares. As aminotransferases – aspartato-aminotransferase (AST) e alanina-aminotransferase (ALT) – são indicadores sensíveis, mas não específicos de lesão hepatocelular. Encontram-se de forma geral moderadamente elevadas, referindo-se que na maioria das formas de hepatite crónica existe ratio AST/ALT inferior a 1, que pode reverter à medida que há progressão para cirrose. Quando existe lesão celular provocada por obstrução hepática as enzimas canaliculares como a fosfatase alcalina (FA) e a gama-glutamil transferase (GGT) aumentam, assim como a bilirrubina sérica.

Os marcadores de função hepática (albumina e factores de coagulação) apresentam uma boa correlação com a síntese hepática e, consequentemente, são importantes como indicadores de prognóstico. A hipoalbuminémia e o aumento do tempo de protrombina que se mantêm, apesar da administração de vitamina K, são sugestivos da existência de descompensação hepática importante. Estes marcadores não são, no entanto, específicos uma vez que existem outras causas de hipoalbuminémia, nomeadamente síndroma nefrótica, enteropatia exsudativa e má nutrição.

Deve também fazer parte da investigação laboratorial um hemograma completo e a avaliação da função renal (determinação sérica da ureia e da creatinina). Na doença crónica grave existe geralmente repercurssão no hemograma: inicialmente trombocitopenia e, posteriormente, leucopénia e anemia à medida que a doença progride. A trombocitopenia ocorre essencialmente pelo estabelecimento de hipertensão portal associada à esplenomegalia congestiva, o que pode determinar um quadro de sequestro da massa plaquetária circulante, podendo ser da ordem de 90%.

No decurso da abordagem diagnóstica é fundamental a identificação da etiologia da doença crónica, já que as implicações terapêuticas e prognósticas são distintas. Nesta perspectiva torna-se imperioso efectuar estudo serológico vírico (designadamente dirigido aos vírus das hepatites B, C, VIH e, eventualmente a outros, dependendo da história clínica da criança).

A ecografia abdominal permite identificar a textura, a presença e o tamanho dos nódulos hepáticos, assim como a presença de esplenomegalia associada. A utilização da ecografia Doppler permite avaliar a direção e o fluxo da veia porta. Métodos não invasivos como a elastografia podem ser úteis na identificação do grau de fibrose hepática. Outros exames imagiológicos, nomeadamente TC e RM, não são geralmente utilizados na investigação diagnóstica.

A biópsia hepática prevalece como técnica de excelência / gold standard no diagnóstico de cirrose hepática, permitindo designadamente a análise da arquitectura hepática, a confirmação do grau de actividade da doença e, muitas vezes, a determinação da etiologia; a sua sensibilidade diagnóstica varia entre 80 e 100% dependendo do tamanho e número de amostras. Apesar das vantagens descritas quanto à precisão diagnóstica, a biópsia não é normalmente efectuada quando as manifestações clínicas e os resultados das avaliações laboratoriais e imagiológicas sugerem o diagnóstico e, por outro, os resultados anatomo-patológicos não sejam absolutamente decisivos quanto às opções terapêuticas.

O quadro 2 sintetiza os exames complementares a efectuar na investigação da criança com doença hepática crónica.

QUADRO 2 – Exames complementares

Investigação geral
    • Exames laboratoriais
      • Hemograma
      • Bilirrubina total e conjugada
      • Fosfase alcalina
      • Gama-glutamiltranferase
      • Aminotransferases
      • Desidrogenase láctica
      • Albumina
      • Tempo de protrombina/INR
      • Colesterol total
      • Alfafetoproteína
    • Outros exames
      • Ecografia hepática
      • Endoscopia digestiva alta
      • Biópsia hepática
Investigação etiológica específica
Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes causas (De acordo com as possíveis causas de cirrose hepática – Quadro 1.)

Complicações

Tendencialmente as complicações da cirrose surgem associadas à descompensação da doença de base (geralmente no decurso de infecções, hemorragia, toma medicamentosa, desidratação, entre outros). A má-nutrição é frequente e associa-se a morbimortalidade importante, pelo que a sua rápida identificação é essencial. O quadro 3 descreve as principais complicações associadas a esta entidade.

QUADRO 3 – Complicações de cirrose na idade pediátrica

    • Má-nutrição e restrição de crescimento
    • Hipertensão portal e hemorragia de varizes esofágicas
    • Hiperesplenismo
    • Ascite
    • Encefalopatia
    • Coagulopatia
    • Síndroma hepatopulmonar
    • Infecções bacterianas, peritonite bacteriana
    • Carcinoma hepatocelular

As infecções são relativamente frequentes (respiratórias, do tracto urinário ou a peritonite bacteriana espontânea, mais rara, mas potencialmente mais grave). Pode também surgir ascite, encefalopatia e síndroma hepato-renal.

A ascite, comum na idade pediátrica em situações de doença hepática terminal, está geralmente associada a mau prognóstico. Na maioria dos casos responde à restrição dietética de sódio e ao uso de diuréticos, embora exigindo vigilância rigorosa e contínua do doente. Na ascite refractária ou associada a dificuldade respiratória pode ser necessário proceder a paracentese.

A encefalopatia hepática é, na maioria das vezes, causada por infecções embora também possa ser consequência de hemorragia gastrintestinal, desequílibrio hidro-electrolítico e obstipação. O diagnóstico é muitas vezes dificil já que a apresentação pode variar entre forma subclínica e alterações subtis do estado de consciência, ou mesmo, coma.

O carcinoma hepatocelular nas crianças com doença hepática crónica é decorrente da progressão da doença metabólica, colestática ou vírica, sendo a sua etiopatogénese multifactorial.

Tratamento

O tratamento tem como objectivos principais retardar ou evitar a progressão da doença hepática e prevenir as suas complicações. Assim, os objetivos principais são identificar-se e controlar a causa da doença.

A imunização contra microrganismos capsulados é recomendada sobretudo nas crianças com asplenia funcional devido à hipertensão portal crónica.

Nos doentes com descompensação e ascite refractária, a realização de shunt porta-sistémico intra-hepático pode ser importante tendo em perspectiva ulterior transplante hepático. Este está indicado em doentes com cirrose progressiva ou descompensações frequentes refractárias às medidas levadas a cabo.

Prognóstico

O prognóstico da cirrose hepática é variável já que depende de múltiplos factores como a etiologia, gravidade da doença-base, presença de complicações e co-morbilidades associadas.

O factor preditivo de descompensação hepática mais relevante é o aumento do gradiente de pressão venosa hepática, muitas vezes não avaliado por rotina em pediatria. O risco de mortalidade e a atribuição do grau de prioridade tendo em vista eventual transplante hepático são calculados com base em escalas ou índices de gravidade como os designados pelas siglas MELD (Model for End-Stage Liver Disease) para aplicar em pacientes com idade superior a 12 anos, ou PELD (Pediatric End-Stage Liver Disease) utilizado em pacientes com menos de 12 anos.

Para o cálculo da escala PELD utiliza-se fórmula matemática logarítmica complexa valorizando os seguintes parâmetros: idade em menores de 1 ano, albumina em g/dL, bilirrubina total em mg/dL e restrição do crescimento < 2 desvios–padrão.

No que respeita à classificação prognóstica de Child-Pugh, utilizam-se os parâmetros: – encefalopatia; – ascite; – bilirrubina em mg/dL; – albumina em g/L; -tempo de protrombina/TP (em segundos) ou INR. A cada parâmetro é atribuída pontuação de 1, 2 ou 3. (quadro 4)

 QUADRO 4 – Classificação de Child-Pugh

Pontuação123

Encefalopatia

Ascite

Bilirrubina (mg/dL)

Albumina (g/dL)

TP (em segundos)

INR

não

não

< 3

> 3,5

1-4

 < 1,8

grau 1-2

ligeira

3-4

2,8-3,5

4-6

1,8-2,3

grau 3-4

moderada

> 4

<2,8

>6

>2,3

Pontuação:5-6 <> doença compensada
7-9 <> compromisso funcional significativo
10-15 <> doença descompensada, menor taxa de sobrevivência

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