Definição e importância do problema

A doença de Wilson (ou degenerescência hepatolenticular) é uma alteração rara do metabolismo do cobre, de transmissão autossómica recessiva, que se caracteriza por acumulação excessiva de cobre no sistema nervoso central, fígado, rins, córnea, esqueleto e outros órgãos. Ocorre com uma prevalência de homozigóticos em 1 a 4 /100.000 indivíduos, predominantemente em populações com elevada taxa de consanguinidade. Pode manifestar-se em qualquer idade, sendo mais frequente entre os 3 e 35 anos.

Etiopatogénese

O gene da doença de Wilson (localizado na região q14.3 do cromossoma 13, de que se conhecem mais de 300 mutações) codifica uma ATP-ase do tipo-P (ATP7B) que se expressa principalmente (mas não exclusivamente) nos hepatócitos e que se admite ter papel crucial na excreção biliar do cobre.

Com efeito, as alterações do funcionamento dos órgãos ocorrem por depósito anormal de cobre nos lisossomas devido a excreção biliar inadequada. Tal resulta de incorporação anormal do cobre em proteínas hepáticas tais como a ceruloplasmina.

Na doença de Wilson, a acumulação de cobre ocorre primariamente no fígado, após a 1ª/2ª década de vida. O cobre é libertado do fígado quando a capacidade de acumulação é excedida, sendo então depositado noutros tecidos.

A peroxidação lipídica das mitocôndrias, como resultado da sobrecarga em cobre, conduz a alterações funcionais de carácter tóxico, inibindo diversos processos enzimáticos.

Como complemento do que foi referido antes, cabe salientar que o cobre é um metal essencial, cofactor de muitas enzimas. O fígado é o órgão com maior concentração tecidual de cobre, seguido do cérebro, miocárdio e rins. A homeostase do cobre corporal depende do consumo dietético diário (2-5 mg/dia), da sua absorção intestinal (~30-50% do consumo diário), das necessidades metabólicas (1 mg/dia), e da capacidade de excreção biliar.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas relacionam-se com o depósito de cobre em órgãos específicos, mais frequentemente no fígado (90% dos casos), e no sistema nervoso central. A forma de apresentação é variável nas crianças, sendo rara antes dos cinco anos. As manifestações hepáticas precedem habitualmente as manifestações neurológicas durante 5 a 10 anos. (Quadro 1)

doença hepática manifesta-se habitualmente por icterícia recorrente, hepatite aguda autolimitada, hepatite autoimune, falência hepática aguda ou doença hepática crónica.

As manifestações neurológicas traduzem-se por alterações do movimento (tremores, incoordenação motora, perda de controlo da motricidade fina, coreia e coreoatetose) ou distonia rígida (rigidez, alterações da marcha e compromisso pseudobulbar).

As alterações psiquiátricas manifestam-se habitualmente por depressão, comportamentos neuróticos, alterações da personalidade e, ocasionalmente, deterioração intelectual.

As alterações do sistema ocular englobam o chamado anel de Kayser-Fleischer, correspondendo a um aspecto de cor de café esverdeado na margem externa da iris, devido a depósito anómalo de cobre na membrana de Descemet da córnea; este sinal clínico, pouco frequente antes dos 8 anos, surge em ~50% dos doentes com início de manifestações hepáticas, em ~90% nos que se manifestam com sintomatologia inicial do foro do SNC.

QUADRO 1 – Manifestações clínicas da doença de Wilson

Fígado
    • Hepatite aguda
    • Hepatite crónica activa
    • Cirrose
    • Insuficiência hepática fulminante
Sistema nervoso central
    • Neurológicas
    • Psiquiátricas
Oftalmológicas
    • Anel de Kayser-Fleischer na córnea (obs. com lâmpada de fenda)
    • Catarata
Outras
    • Renais
    • Esqueléticas
    • Cardíacas
    • Anemia hemolítica
    • Litíase biliar

Diagnóstico

Pode ser difícil, uma vez que não existe um único exame complementar que confirme a doença. Deve-se admitir-se a hipótese diagnóstica de doença de Wilson perante um quadro de doença hepática de etiologia não esclarecida associada a sinal neurológico ou psiquiátrico.

Neste contexto clínico deverá determinar-se o valor da ceruloplasmina que, na maioria dos casos de doença de Wilson, está diminuída. Numa fase precoce o cobre sérico está elevado e a sua excreção urinária (normalmente inferior a 40 mcg/dia), está elevada (100-1000 mcg/dia).

Se estiver presente a tríade clássica de doença hepática, manifestações neurológicas e anel deKayser-Fleischer, o diagnóstico torna-se mais fácil. Contudo, tal raramente ocorre, pelo que se torna necessário um elevado índice de suspeita decorrente da anamnese e do exame objectivo rigorosos.

A suspeita clínica implica o encaminhamento para centros especializados na perspectiva da realização dum conjunto de exames complementares tais como:

  • hemograma, provas da função hepática, doseamentos séricos de acido úrico, fosfato, cobre, ceruloplasmina, e doseamento do cobre em urinade 24 horas;
  • doseamento do cobre no tecido hepático obitido por biópsia; e
  • exame oftalmológico com lâmina de fenda para pesquisa de anel de Kayser Fleischer.

Os dados histológicos obtidos por biópsia hepática são sobreponíveis aos encontrados na hepatite crónica activa: degenerescência gorda, hepatócitos em “balão”, grânulos de glicogénio e células de Küpfer de maiores dimensões.

A microscopia electrónica permite identificar grandes mitocôndrias.

Na doença de Wilson o conteúdo do cobre hepático excede 250 mcg/grama. Nas formas heterozigóticas os valores são inferiores.

Através da biologia molecular, análise da mutação do gene ATP7B é particularmente útil quando as alterações clínicas e bioquímicas não são específicas e em familiares em 1º grau de pacientes com doença de Wilson já diagnosticada.

O diagnóstico diferencial das alterações hepáticas detectadas faz-se com a hepatite autoimune e outras formas de hepatite crónica e cirrose criptogénica.

O exame imagiológico através da ressonância magnética pode ser de grande utilidade perante situações em que são notórias as manifestações neuropsiquiátricas. As alterações do putamen e dos gânglios basais sugerem depósito de metais.

Nota de síntese: o diagnóstico de doença de Wilson pode ser confirmado se, pelo menos, dois dos três parâmetros seguintes evidenciarem resultados anómalos: ceruloplasmina baixa, cobre urinário elevado e cobre hepático elevado.

Tratamento

O tratamento da doença de Wilson tem dois objectivos:

  1. Minorar a deposição de cobre nos tecidos através da utilização de quelantes do cobre tais como a penicilamina e a trientina; com esta estratégia poderá ser prevenido o desenvolvimento das alterações hepáticas, neurológicas e psiquiátricas em indivíduos assintomáticos afectados, e atenuar as manifestações em indivíduos sintomáticos.
    A recuperação das alterações neurológicas ou hepáticas poderá demorar vários meses.
  2. Prevenir a acumulação futura de cobre através de dieta com reduzido teor em cobre (inferior a 0,6 mg/dia) (evitando designadamente, vísceras, cacau, chocolate, marisco, brócolos, cogumelos, frango, nozes) com inibidores da absorção do referido microelemento (sais de zinco e tetratiomolibdato).

No que respeita a fármacos, podem ser utilizados:

  • D-penicilamina, o mais seguro e eficaz, de eleição nas formas hepáticas (associado a suplemento de vitamina B6 por se tratar do antimetabólito desta vitamina); é tomado oralmente, fora das refeições (em regra com intervalo de 2 horas) na dose de 20 mg/kg/dia, sem ultrapassar 1 grama/dia; como nota importante refere-se que, nos doentes com formas clínicas predominantemente neurológicas, poderá haver agravamento dos sintomas, o que implica utilização muito cuidadosa; as doses administradas poderão ser reduzidas em função dos resultados obtidos ao longo dos anos;
  • Trientina (di-hidrocloreto de trietileno tetramida), também por via oral na dose de 20 mg/kg/dia (máximo: 1,5 g/dia) e fora das refeições; pode ser usado em doentes com hipersensibilidade à penicilamina;
  • Zinco por via oral (em geral, acetato de zinco, com melhor absorção) na dose de 75 mg/dia em pacientes com < 50kg, em 3 doses, meia hora antes das refeições; os sais de zinco estão indicados sobretudo nos doentes assintomáticos;
  • Tetratiomolibdato por via oral, não disponível no nosso País.

A transplantação hepática poderá estar indicada se ocorrer insuficiência hepática aguda fulminante ou doença hepática descompensada, sem resposta à terapêutica.

Prognóstico

Sem terapêutica esta doença é fatal. A acumulação de cobre no fígado leva ao desenvolvimento de cirrose e, nos doentes com doença neurológica, a situação pode progredir para distonia grave, acinésia e mutismo. Na maioria dos casos os doentes morrem de doença hepática (cirrose ou insuficiência hepática aguda); em menor proporção, o desfecho traduz-se em complicações da doença neurológica progressiva.

No entanto, com terapêutica médica adequada e regime alimentar com restrições de cobre durante toda a vida, a evolução pode ser considerada favorável. Nos doentes em que se procedeu a transplante hepático a evolução é em geral muito boa.

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