Formas de apresentação e agentes etiológicos

Na criança as hepatites víricas apresentam-se sob duas formas:

  • Hepatites agudas em que, após o período de maior ou menor grau de lesão hepática, há uma recuperação funcional completa (excepto quando evoluem para hepatite fulminante, situação que acarreta uma alta morbilidade);
  • Hepatites crónicas a que corresponde processo de inflamação hepática que persiste após a infecção inicial e se mantém por um período superior a 6 meses.

Os agentes víricos hepatotrópicos causadores de hepatite aguda são os designados por vírus A (VHA), B (VHB), C (VHC), D (VHD), E (VHE); de referir que apenas os vírus B,C e D causam hepatite crónica. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Vírus hepatotrópicos: características

NomeTipoTransmissãoPeríodo de incubaçãoImunização activaImunização passiva
VHARNAFecal-oral, raramente transfusional28 dias (15-50 dias)VacinaImunoglobulina “standard”
VHBDNASexual, parentérica, intrafamiliar, vertical40-160 diasVacinaImunoglobulina específica
VHCRNAParentérica, sexual, (menos frequente) vertical20-60 dias
VHDRNASexual, parentérica40-160 diasUtilizada a vacina da Hepatite BImunoglobulina específica anti VHB
VHERNAFecal-oral30-40 dias
VHGRNAVertical, parentéricaRaramente doença hepática; muitas vezes coinfecção

São também agentes de hepatite aguda, no contexto de compromisso multiorgânico, os vírus de Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simplex 1, adenovírus, enterovírus, arbovírus e paramyxovírus.

1. Hepatite A

Epidemiologia

São considerados 3 padrões epidemiológicos de acordo com as condições socioeconómicas e sanitárias de regiões e países:

Endemicidade elevada: países em desenvolvimento (Ásia, África, América do Sul e Central). A exposição ao VHA produz-se na infância, estando a população adulta imune. A infecção é, na maioria dos casos, assintomática e causada por contacto interpessoal. Raramente surgem epidemias dado o elevado grau de protecção da população que atinge 90% das crianças abaixo dos 5 anos em áreas hiperendémicas, ou 90% aos 10 anos noutras;

Endemicidade intermédia: observa-se nos países com melhoria das condições sanitárias nos últmos anos (Europa mediterrânica e de Leste). Nestes casos a exposição produz-se na adolescência ou no adulto jovem, podendo surgir surtos epidémicos relacionados com transmissão pessoal ou águas contaminadas; 90 % dos adultos têm marcadores de seroconversão;

Endemicidade baixa: nos países muito desenvolvidos (Europa Ocidental ou do Norte, Japão, América do Norte) em que há uma baixa taxa de seroconversão mesmo nos adultos, havendo susceptibilidade a surtos epidémicos por águas ou alimentos contaminados, ou por viagens a países menos desenvolvidos.
Portugal passou, nas últimas décadas, de um padrão de endemicidade alta para um de endemicidade intermédia, sendo actualmente considerado como de baixa endemicidade pleo CDC.

Manifestações clínicas

Em crianças com idade inferior a 6 anos verificam-se cerca de 70% formas anictéricas (assintomáticas ou paucissintomáticas com clínica semelhante a gastrenterite aguda).

Nos adolescentes e adultos em 70% dos casos surgem formas sintomáticas. Estas caracterizam-se por dois períodos: pré-ictérico com sintomas gerais tais como mal-estar, fadiga, anorexia, náuseas e vómitos, o qual corresponde à maior excreção do vírus nas fezes e, por isso, à máxima contagiosidade. Subsequentemente surge o período ictérico com colúria em apenas 5 % das crianças e em 30% de adolescentes e adultos. Há, então, melhoria franca da sintomatologia geral e redução da excreção fecal do vírus (1-2 semanas), seguindo-se um período de convalescença com melhoria da icterícia e diminuição das alterações das enzimas hepáticas.

Ocasionalmente podem surgir formas colestáticas em que predominam sintomas como acolia e prurido, ou hepatite de evolução a dois tempos em que, após melhoria clínica e laboratorial, surge novamente agravamento, mas de menor duração.

Cerca de 1 em cada mil casos de hepatite por VHA na criança pode evoluir para um quadro de insuficiência hepatocelular aguda – hepatite fulminante – com alta mortalidade e necessidade frequente de transplante hepático. São sinais indicativos desta evolução a manutenção e agravamento dos sintomas gerais; e, no período ictérico, a intensificação da icterícia, o aparecimento de alterações comportamentais (irritabilidade, sonolência) sugestivas de encefalopatia, e de alterações clínicas da coagulação (discrasia hemorrágica).

Diagnóstico

O diagnóstico de toda e qualquer hepatite aguda faz-se se se verificar elevação das enzimas de citólise hepática : ALT e AST. Os respectivos valores são habitualmente 10 vezes superiores aos valores normais, mas podem ser 100 vezes superiores (geralmente entre a terceira e sexta semana de doença), sem que haja alguma relação com o prognóstico final. A sua normalização costuma indicar o final da doença (pela oitava semana de doença); contudo a sua queda abrupta na presença de icterícia agravada pode ser sugestiva de evolução para hepatite fulminante.

A bilirrubina, usualmente a directa, (mas por vezes a directa e a indirecta) encontra-se moderadamente aumentada na fase ictérica da doença bem como as enzimas de colestase (gama – glutamil – transpeptidase ou GGT e fosfatase alcalina); estas últimas podem, no entanto, estar bastante elevadas nas formas colestáticas da infecção.

A síntese proteica (albumina e factores da coagulação) não está geralmente afectada, podendo, no entanto, haver um ligeiro aumento do tempo de protrombina. O metabolismo dos hidratos de carbono também não está alterado (normoglicémia).

O diagnóstico etiológico faz-se pela demonstração da presença de anticorpos anti VHA da classe IgM. Estes surgem entre 25 a 30 dias após o contacto com o vírus e persistem durante cerca de 2 a 3 meses. Os anticorpos de classe IgG surgem após 40 dias e persistem indefinidamente.

Tratamento

O tratamento é de suporte, incluindo hidratação e nutrição adequadas, nomeadamente com suprimento de hidratos de carbono de absorção rápida (açúcares). Não há necessidade de repouso forçado ou de dietas restritivas.

Prevenção

Para além do cumprimento estrito de medidas relacionadas com higiene individual e colectiva, e com saneamento ambiental, é realizada através de imunoterapia passiva e da vacina:

  • Imunoterapia passiva: para contactos com menos de 40 anos (a partir dessa idade já existem em geral anticorpos) de preferência antes de 2 semanas após a exposição; administra-se imunoglobulina “standard” (polivalente) por via intramuscular: 0,02 ml/Kg em dose única (máximo: 3 ml em lactentes e 5 ml em crianças maiores).
    De acordo com recomendações sobre vacinas extra-PNV da Secção de Infecciologia da SPP (2015-2016) pode proceder-se à vacinação no período de14 dias pós contacto, sendo os resultados sobreponíveis.
  • Vacina: é produzida a partir de vírus inactivados sendo muito eficaz. Induz imunidade prolongada e seroconversão rápida (94,6% após a 1ª toma, 100% após a segunda que deve ser administrada 6 meses depois da primeira). Em Portugal encontram-se comercializada a vacina Havrix® e a VAQTA(R), estando a forma Havrix 720 (Junior) indicada para menores de 15 anos de idade e a VAQTA(R) para menores de 18 anos.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a vacinação em larga escala nas crianças que habitam países de endemicidade intermédia. A Associação Espanhola de Pediatria (AEP) recomenda a vacinação a todas as crianças de mais de um ano que frequentem creches ou jardim-escolas. As recomendações devem incluir, na idade pediátrica, crianças que viajem para países de elevada endemicidade ou portadoras de doença hepática crónica ou de patologia hematológica que necessitem de administração repetida de sangue ou derivados.

A Secção de Infecciologia da SPP recomenda a vacinação de crianças e adolescentes que: – viajem para países com endemicidade intermédia ou alta; – tenham patologia hepática crônica; – sejam hemofílicos e recebam hemoderivados; – sejam candidatos a transplante de órgão; – sejam doentes infectados por VIH; – pertençam a comunidade onde seja detectado um surto. (ver Capítulo sobre Viagens e Glossário geral).

2. Hepatite B

Epidemiologia

O VHB pertence à família dos Hepadnavirus (vírus com tropismo hepático). A infecção por este vírus tem enorme relevância a nível mundial, estimando-se que existam 350 milhões de infectados em todo o mundo.

Consideram-se três padrões epidemiológicos:

  • Áreas geográficas de alta endemicidade (prevalência de portadores do VHB superior a 8%) na China, Sudeste Asiático, África negra;
  • Áreas de endemicidade intermédia (2-7% de portadores) na América do Sul, bacia do Mediterrâneo, Europa de Leste e Próximo Oriente;
  • Áreas de baixa endemicidade (prevalência de portadores inferior a 2%) na Europa Ocidental, América do Norte e Austrália.

Globalmente Portugal é considerado um país de endemicidade baixa, mas nos grandes centros urbanos a prevalência corresponde a endemicidade intermédia.

A transmissão vírica na idade pediátrica pode ser: perinatal (vertical através de mãe infectada); intrafamiliar (horizontal), a de maior significado no nosso país; ou na adolescência (parenteral relacionada com a toxicodependência ou sexual).

A infecção pode originar um quadro de hepatite aguda ou crónica (com alteração das provas hepáticas) ou de “portador assintomático” (sem alteração das provas hepáticas e com uma actividade necroinflamatória hepática mínima).

Manifestações clínicas

Descrevem-se essencialmente duas formas clínicas:

  • Hepatite aguda: o quadro clínico da hepatite B aguda é semelhante ao da hepatite A sendo, no entanto, mais frequente o aparecimento de sintomas extra-hepáticos: artralgias, renais (glomerulopatias), cutâneos (acrodermatite papular constituindo a síndroma de Gianotti-Crosti) ou síndroma tipo mononucleose. Por outro lado, o risco de evolução para hepatite fulminante é mais elevado (1%).
  • Hepatite crónica: é, na grande maioria dos casos, clinicamente silenciosa, sendo revelada quando se realizam rastreios analíticos em crianças familiares de doentes ou de portadores do VHB, institucionalizadas ou provenientes de países endémicos.

Diagnóstico

Para o diagnóstico laboratorial da hepatite B (Quadro 2) são utilizados os seguintes marcadores:
Ag = (antigénio)
Ac = (anticorpo)
Ag HBs: Marcador de infecção actual.
Ag HBe: Marcador de replicação vírica elevada e de alta contagiosidade.
Ac HBc: Marcador de infecção passada ou actual (interesse em estudos epidemiológicos)
Ac HBc de classe Ig M: Marcador de infecção recente.
Ac HBe: Marcador do fim da replicação vírica activa.
Ac HBs: Marcador da seroconversão natural ou de resposta vacinal.
DNA VHB: Marcador da replicação vírica e infecciosidade, podendo ser quantificada a carga vírica. (Quadro 2)
A hepatite aguda diagnostica-se por elevação das transaminases, associando-se à presença de Ag HBs e de Ac HBc de classe IgM.

QUADRO 2 – Diagnóstico laboratorial do estádio da infecção por VHB

 TransaminasesMarcadoresReplicação víricaComentários
Hepatite agudaElevadas

AgHBs +
Ac HBc IgM +

Elevada 
Hepatite crónica “activa”Elevadas

AgHBs +
AgHBe +
AcHBc IgM –

ElevadaNa infecção perinatal os RN têm transaminases normais
“Portador” crónicoNormais

AgHBs +
Ac HBe +
AcHBc IgM –

Baixa 
Seroconversão naturalNormais

AgHBs –
AcHBc +
AcHBs +

Nula 
Contacto antigo com o vírusNormais

AcHBc +
Restantes negativos

NulaÚtil em estudos epidemiológicos como indicador de contacto com o VHB
Estado pós-vacinal 

Ac HBs +
Restantes negativos

Nula 

 

A hepatite crónica define-se pela presença de Ag HBs por um período superior a 6 meses. Pode ser acompanhada de inflamação hepática traduzida por elevação das transaminases, habitualmente no contexto de replicação vírica activa, ou pode cursar com transaminases normais, geralmente sem replicação vírica a que corresponde a situação de portador assintomático.

História natural da infecção por VHB

A infecção por vírus da hepatite B (VHB) adquirida no período perinatal (transmissão vertical) evolui para a cronicidade em mais de 90% das crianças. A infecção adquirida nos primeiros 5 anos de vida, habitualmente por transmissão intrafamiliar (horizontal), evolui para a cronicidade em 20-30% dos casos. As crianças infectadas no período perinatal apresentam um padrão de “tolerância imune” ao VHB, com replicação vírica activa, presença de Ag HBe, DNA VHB muito elevado no soro e transaminases normais. Ulteriormente muitas delas , tal como as que foram infectadas mais tardiamente, irão apresentar um padrão diferente com elevação das transaminases, presença de Ag HBe e DNA VHB, e manifestações necroinflamatórias demonstradas na histologia hepática.

Cerca de 80% destas crianças irão apresentar: – seroconversão anti HBe perto da puberdade, com normalização das transaminases; – níveis indetectáveis ou baixos de DNA VHB (excepto se se utilizar a técnica de reacção em cadeia da polimerase ou PCR); e – ausência ou presença mínima de actividade inflamatória demonstrada por histologia hepática. Este perfil define os chamados portadores inactivos.

A taxa de diminuição progressiva ou de depuração do Ag HBe é muito baixa nos primeiros 3 anos de vida (2-10%), aumentando subsequentemente (8-12% por ano). A taxa de depuração espontânea de VHB com seroconversão anti-HBs é muito baixa (0,6-1% por ano).

Apesar da aparente benignidade da evolução da HB na criança, há casos descritos de cirrose precoce com risco acrescido de carcinoma hepatocelular (10-40%) quer na idade pediátrica, quer no adulto. Um subgrupo restrito de crianças evoluindo com depuração do Ag HBe pode apresentar reactivação ou manutenção das alterações hepáticas, comportando risco de evolução na idade adulta para cirrose ou carcinoma hepatocelular.

A experiência portuguesa é semelhante à das séries europeias, predominando as formas adquiridas por via intrafamiliar. Num estudo efectuado no Hospital Dona Estefânia compreendendo 187 crianças infectadas comprovou-se que em 42,7% dos casos a transmissão fôra horizontal, contra 6,4% de transmissão vertical.

O rastreio sistemático do Ag HBs nas grávidas, administrando imunoglobulina e vacinando os seus recém-nascidos, e a introdução da vacinação contra VHB, (inicialmente nos pré-adolescentes e actualmente desde o nascimento), levaram a uma redução dos novos casos (redução de 80% dos casos até aos 14 anos comunicados à Direcção Geral da Saúde – DGS entre 1995-1999). Assim, para além das crianças infectadas antes destas mudanças nas normas de actuação, os novos casos recebidos nos centros pediátricos correspondem fundamentalmente a crianças de famílias oriundas de zonas endémicas, nomeadamente das ex-colónias africanas.

Tratamento

O tratamento de um agente infeccioso deverá ter como objectivo a sua eliminação do organismo. No entanto, a constatada dificuldade de qualquer pauta terapêutica utilizada levar consistentemente à eliminação do VHB com seroconversão anti HBs torna os objectivos terapêuticos mais limitados, assumindo-se não apenas a eliminação vírica, mas a diminuição da actividade necroinflamatória hepática através da eliminação da replicação vírica traduzida pela eliminação do Ag HBe (com ou sem seroconversão anti e), e desaparecimento dos níveis séricos detectáveis do DNA VHB (resposta virológica). Adicionalmente procura-se a normalização das transaminases (resposta bioquímica). Desta forma, obvia-se a progressão da lesão hepática para cirrose e risco de carcinoma hepatocelular (CHC).

Admite-se a benignidade da doença, aquando da sua fase imunotolerante (em que tipicamente ALT atinge valores inferiores a 1,5 a 2 vezes o limite superior normal), conhecendo-se a potencial evolução para estado de portador inactivo. Sabe-se também que, mesmo na ausência de cirrose e de replicação vírica activa, a infecção crónica por VHB pode, a longo prazo, originar o CHC (provavelmente após a integração do genoma do vírus no DNA do hepatócito), obrigando a criteriosa monitorização. Reserva-se a terapêutica, para crianças com doença activa (transaminases elevadas, agHBe positivo, carga vírica elevada).

Assim, o tratamento deve ser reservado a crianças com ALT persistentemente elevada pelo menos durante 6 meses, tendo em vista evitar o procedimento de terapêutica a doentes que estejam em fase de seroconversão Hbe. Dever-se-á ter em conta a carga vírica, não apenas para clarificar o estádio da doença, mas também para se averiguar da necessidade de exclusão de outra patologia.

Os fármacos utilizados no tratamento da HB crónica da criança são o interferão alfa, e análogos dos nucleósidos lamivudina, adefovir, entecavir e tenofivir.

Os efeitos secundários com o interferão são mais acentuados, tais como síndroma simile gripal após a administração, diminuição do número dos neutrófilos (reversível com a diminuição da dose), sintomas depressivos na adolescência, perda do apetite e do cabelo, fenómenos autoimunes (anemia hemolítica, tiroidite), etc..

A lamivudina não induz efeitos adversos significativos; no entanto, a utilização do fármaco não induz resposta virológica ou seroconversão AgHBS superior ao IFN, levando ao surgimento de mutantes resistentes.

O entecavir é um análogo carboxílico que inibe diferentes passos no ciclo de replicação do HBV, sendo mais eficaz que a lamivudina e o adefovir no tratamento de adultos. Destaca-se ainda um bom perfil de segurança, estando o fármaco aprovado após os dois anos de idade.

O adefovir encontra-se aprovado para idades > 12 anos (não se tendo demonstrado resultados positivos em crianças abaixo dos 12 anos). Trata-se de um fármaco seguro mas mais associado à criação de mutações indutoras de resistência.

O tenofovir está autorizado acima dos 12 anos e, à semelhança dos restantes, induz boa resposta virológica e não produz mutantes resistentes.

De acordo com as últimas normas de orientação da European Association for the Study of Liver Disease, o interferão mantém-se como primeira opção terapêutica visto ser o fármaco que parece oferecer maior hipótese de resposta virológica mantida após terapêutica; os análogos de nucleósidos são considerados como de segunda linha, ainda que com o surgimento de novos fármacos menos associados a mutantes resistentes esta última opção passe a ser cada vez mais considerada.

Reportando-nos às normas de orientação norte americanas (American Association for the Study of Liver Disease) emitidas em 2015, não há clara definição de qual o fármaco preferencial.

Os resultados da terapêutica com interferão ou com análogos dos nucleósidos apresentam a curto prazo efeitos positivos em relação ao curso natural da doença, sendo necessários estudos de maior duração para comprovar esses benefícios a longo prazo, assumindo os autores internacionais o benefício da instituição de terapêutica em populações seleccionadas de crinças com HBV crónica.

Face ao conhecimento actual sobre os resultados da terapêutica da HB crónica na criança, mantém-se a a importância de prevenção.

Prevenção

Para além das medidas gerais de prevenção referidas a propósito da hepatite A, há a referir que a profilaxia tem duas componentes fundamentais:

  • Imunoterapia passiva: a gamaglobulina específica hiperimune (HBIG) utiliza-se nos RN filhos de mães portadoras do VHB (em simultâneo com o início da vacina) nas primeiras 8-12 horas de vida, na dose de 0,5 mL.*
    Nos contactos acidentais com material potencialmente contaminado (agulhas com sangue) em crianças não vacinadas, deve ser administrada na dose de 0,06 ml/kg (máximo 5 ml), seguindo-se esquema vacinal rápido (0-1-2-12 meses).
  • Imunoterapia activa: em Portugal já tem lugar a vacinação universal dos RN segundo o esquema 0-1-6 meses. As crianças ainda não abrangidas por este plano são vacinadas entre os 11-13 anos.
    Em qualquer dos casos não são necessárias doses de reforço para além das 3 doses da primovacinação (ver Glossário geral).

*Mesmo com adequada profilaxia, até cerca de 25% das crianças nascidas de mães com carga vírica elevada (>109cópias / mL) podem infectar-se.

3. Hepatite C

Epidemiologia

A infecção por VHC, atingindo mais de 170 milhões de pessoas em todo o mundo, é a causa mais importante de hepatite vírica crónica nos países desenvolvidos.

A transmissão ocorre fundamentalmente por via parentérica (hemoderivados contaminados até ao início dos anos 90, data a partir da qual passou a ser feito o rastreio serológico sistemático dos dadores e dos toxicodependentes). A via sexual é também possível, mas com muito menor frequência do que no caso da hepatite B.

Na idade pediátrica o principal meio de transmissão é o materno-fetal (vertical) com um risco de transmissão que oscila entre 3-5%, podendo atingir 30% quando as mães estão infectadas em simultâneo por VHC e por vírus de imunodeficiência humana na ausência de terapêutica (a virémia por VHC é muito intensa nestes casos).

Num estudo prospectivo que efectuámos no Hospital Fernando Fonseca e que compreendeu 43 pares mãe-filho seguidos desde o nascimento até aos 18-24 meses verificou-se uma baixa taxa de infecção (2,2%).

A excreção do vírus no leite materno não foi demonstrada, pelo que o aleitamento por mães VHC + (desde que VIH -) não está contraindicado.

A estrutura genética do VHC não é uniforme, descrevendo-se 6 genótipos (1-6), sendo o genótipo 1 o mais frequente na Europa.

Manifestações clínicas e história natural

A infecção por VHC na idade pediátrica é geralmente assintomática, havendo uma evolução para a cronicidade em 70-85% dos infectados.

Os estudos em crianças com infecção vertical mostram ausência de sintomas ou sinais (como icterícia ou hepatomegália), com elevação de transaminases em 90% dos casos no 1º ano de vida (dos quais 30% com aumento até 5 vezes o normal); 23% dessas crianças infectadas evidenciaram sinais de cura aos 3 anos de vida evoluindo 77% para a cronicidade. Dos doentes que não evidenciaram cura espontânema, 80 % serão assintomáticos, persistindo em 20 % elevação de transminases e hepatomeglia. Globalmente, a evolução para cirrose é muito baixa ( 1a 2 % ), assumindo-se que a evolução para doença hepática grave e HCC ocorra cerca de 20 a 30 anos após a infecção.

Ao contrário da infecção no adulto, na criança não há associação habitual a outras doenças extra-hepáticas autoimunes podendo, no entanto, em 7% dos doentes haver associação com anticorpo LKM-1.

Diagnóstico

O diagnóstico da infecção por VHC baseia-se na presença do Ac VHC, confirmada por técnicas de 3ª geração (RIBA 3) e na demonstração da virémia (positividade para RNA-VHC por PCR). A virémia pode ser intermitente, pelo que um resultado negativo não exclui o diagnóstico.

As alterações das transaminases ocorrem segundo 3 padrões: disfunção persistente (a mais frequente na data do diagnóstico); alteração flutuante (alternando com períodos de normalidade); normalidade continuada (mesmo na presença de virémia).

O diagnóstico de cronicidade baseia-se na demonstração do RNA-VHC, pelo menos 2 a 3 meses após o contacto conhecido (nomeadamente após o parto). Nestes casos há também presença do Ac VHC no soro, excepto nos imunodeficientes.

No doente com infecção crónica deve ser avaliado o genótipo, o qual permite prever a resposta terapêutica.

Tratamento

A infecção por VHC nas crianças tem um curso habitualmente muito ligeiro ou moderado (75% dos casos com inflamação hepática leve e 22% moderada de acordo com dados da biópsia); a cirrose surge apenas em 2% dos casos (ao contrário dos adultos em que na segunda década da infecção há progressão para cirrose em percentagem dez vezes superior).

Até 2008 a terapêutica utilizada era composta da associação de Interferão alfa em associação com ribavirina, atingindo-se com esta terapêutica respostas virologicas de 85 a 100 % das crianças infectadas com genótipo 2 ou 3 e 35-50 % no caso de genótipo 1. A introdução em 2008 de terapêutica com Peg Interferão alfa 2b (em substituição de interferão) não veio modificar muito a resposta virológica obtida, em particular com o tratamento do genótipo 1 (e em particular se baixa carga vírica). São propostos esquemas com duração de 48 semanas para doentes com genótipo 1e 4 e de 24 semanas para doentes com genótipos 2 e 3.

Face às características da evolução clínica da doença na criança e à existência de novos fámacos em estudo com acção directa antivírica e elevada resposta virológica nos diferentes genótipos (em particular ledispavir e sofosbuvir), grande parte dos peritos internacionais defende protelar o incio de terapêutica até à sua autorização para a população pediátrica.

Nos casos em que se supõe poder haver progressão de doença hepática, poder-se–ão utilizar os esquemas actualmente autorizados pelas agências medicamentosas. Mantém-se no entanto a indicação para início de terapêutica após os 3 a 6 anos de idade (após o que se supõe ser escassa a depuração espontânea).

Prevenção

Reiterando as medidas preventivas atrás explanadas, no que respeita à profilaxia passiva, salienta-se que as imunoglobulinas standard não são eficazes na prevenção da infecção.

Quanto à profilaxia activa, pela variabilidade genómica do vírus, não estão ainda disponíveis vacinas eficazes.

4. Hepatite D

A hepatite D resulta dum vírus RNA incompleto que, para se manter infectante, necessita de uma cobertura exterior, assegurada pelo Ag HBs. Como tal, a infecção por este vírus só acontece no contexto de uma coinfecção com o VHB, ou de uma sobreinfecção de um doente com VHB, crónico.

Trata-se duma infecção rara na idade pediátrica. A sobreinfecção nos doentes com hepatite B crónica aumenta a gravidade desta. O tratamento e prevenção são os aplicáveis à hepatite B.

5. Hepatite E

Trata-se duma hepatite por vírus com uma transmissão fecal-oral semelhante ao VHA, sendo frequente a existência de surtos epidémicos em países da América Central, Índia e África do Norte; esta infecção é rara entre nós.

Não apresenta evolução para a cronicidade, sendo a incidência maior entre adolescentes e adultos jovens. Na grávida, principalmente no último trimestre, tem uma alta mortalidade (até 20%). Não há imunoglobulina específica ou vacina disponíveis.

6. Hepatite G

Este vírus pertence à família do VHC com um mecanismo de transmissão fundamentalmente parentérica; no entanto poderá haver transmissão vertical. É factor de coinfecção com outros vírus hepatotrópicos, mas há dúvidas de que, isoladamente, possa causar algum tipo de infecção hepática relevante, aguda, fulminante ou crónica.

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