Definição e importância do problema

A hepatite autoimune (HAI) é uma doença inflamatória crónica grave do fígado, progressiva e rara, poligénica multifactorial.

A lesão hepática decorre de uma resposta autoimune a antigénios teciduais próprios do hospedeiro (resposta imunológica contra os próprios antigénios, neste caso hepáticos), em indivíduos com constituição genética predisponente. Trata-se de um processo de desregulação imune de espectro variável atingindo apenas o fígado ou, concomitantemente, outros órgãos, o qual se traduz por resposta inflamatória mediada por citocinas (produzidas de modo sistémico, ou localmente, ao nível do sistema porta).

O alvo imunogénico varia, podendo incluir o parênquima hepático, o epitélio dos ductos biliares, ou ainda a vasculatura, isoladamente ou em sobreposição; assim, as manifestações clínicas dependem do padrão anatomopatológico que prevalece.

Tratando-se dos ductos biliares, pela similitude da patogénese, gera-se um quadro de colangite esclerosante, podendo estar associado a HAI. (ver adiante)

A HAI acometendo preferencialmente o sexo feminino, e rara antes dos 2 anos, evidencia índice máximo de incidência entre os 10 e 30 anos. É menos frequente do que a hepatite vírica; a incidência na Europa é estimada em 1,9/100.000 habitantes e prevalência em 16,9/100.000 habitantes.

Em diversas séries publicadas, nas formas não tratadas a morbilidade é marcada sobretudo pela cirrose e insuficiência hepáticas, rondando a mortalidade pelos 50% aos 5 anos após o diagnóstico, e pelos 90% ao cabo de 10 anos.

Etiopatogénese e classificação

A predisposição genética é sugerida pelo aumento da frequência dos haplótipos HLA B8/DR3, dos alótipos DR3 e DR4, e pela coexistência de outras manifestações autoimunes.

De acordo com o perfil de autoanticorpos são descritos dois tipos de HAI:

  • Tipo I (~2/3 dos casos), caracterizado pela positividade de anticorpos antinucleares (ANA), anticorpos antimúsculo liso/smooth-muscle-antibody (SMA), (sendo que, entre estes, os anticorpos antiactina F são mais específicos), anticorpos antineutrófilo citoplásmicos de padrão perinuclear atípicos (pANCA), anticorpos contra o antigénio solúvel hepático / soluble liver antigen (SLA), também denominados antigénios hepatopancreáticos /liver-pancreatic antigen (LP) – (SLA/LP); e, por vezes, anticorpos antimitocondriais típicos da cirrose biliar primária (AMA);
  • Tipo II (~1/3 dos casos), caracterizado pela positividade de anticorpos anti-microssoma do tipo 1 [do fígado-rim de rata]/liver-kidney-microsome (LKM-1) e raramente do tipo LKM-3 e/ou anti-citosol do tipo 1 [do fígado]; de salientar que este último tipo II de HAI está associado a doentes mais jovens, a maior incidência de défice de IgA e a maior probabilidade de formas iniciais de apresentação clínica com insuficiência hepática.

Neste tipo II também se podem encontrar anticorpos anti SLA que se pensava constituírem um terceiro tipo de hepatite autoimune (HAI –Tipo III), designação hoje contestada. Este tipo de anticorpos, podendo estar presente isoladamente, parece indiciar uma pior resposta à terapêutica em ambos os tipos de HAI.

Na criança com HAI é frequente encontrarmos formas clínicas de sobreposição (síndromas de sobreposição) com colangite esclosante autoimune (com lesão do epitélio biliar) e raramente, apesar de não se saber se constitui uma entidade clínica autónoma, em situações com hiper IGG4 associada a pancreatite e/ou colangite.

No mecanismo de lesão hepática, muito complexo, entre outras, participam as células T, NK, macrófagos, células B, e NKT.

Manifestações clínicas e laboratoriais

A doença pode manifestar-se de modo muito diversificado, desde a detecção de hepatomegália assintomática numa observação de rotina, ao aparecimento de insuficiência hepática.

Como foi referido antes, em ambos os tipos de HAI (I e II) a doença predomina no sexo feminino, sendo frequentes outras manifestações autoimunes, tanto nos doentes como nos familiares.

Na HAI do tipo I, as doenças autoimunes mais frequentemente associadas são a síndroma nefrótica, a colangite esclerosante, a colite ulcerosa, a trombocitopénia autoimune, a anemia hemolítica autoimune e a doença de Behçet.

A propósito da associação de HAI e colangite esclerosante (com patogénese similar) e das síndromas de sobreposição, importa referir que em certas formas clínicas é estabelecido inicialmente o diagnóstico de HAI, verificando-se mais tarde a ocorrência de colangite esclerosante. A associação HAI com colangite esclerosante cursa tipicamente com elevação de hiperglobulinémia (IgG4).

À HAI do tipo II, associam-se tiroidite, vitíligo, hipoparatiroidismo, doença de Addison e diabetes insulinodependente.

Em cerca de 40% dos casos o quadro não se distingue da hepatite aguda vírica. Um grupo de doentes com HAI, principalmente anti LKM-1 positivos, pode evoluir para um quadro de insuficiência hepática aguda com encefalopatia, em 2-8 semanas após o início dos sintomas.

Em 25-40 % dos doentes o quadro evolui insidiosamente com cansaço progressivo e icterícia recidivante, anorexia, amenorreia e perda de peso. Em 15% dos casos o diagnóstico é feito no âmbito da avaliação duma esplenomegália, ou hepatomegália, ou de situações com função hepática alterada, ou ainda por hemorragia digestiva alta, consequência de hipertensão portal.

Numa minoria de casos a doença hepática não é muito relevante quando é feito o diagnóstico, predominando sinais de compromisso extra-hepático. No entanto, em todos os casos há sempre hepatomegália e transaminases (ALT e AST) elevadas desde o início da doença.

A doença deve ser sempre admitida como hipótese em todos os doentes com sinais e sintomas de doença hepática prolongada ou grave.

Para além da semelhança das manifestações da HAI com hepatite vírica, tal pode acontecer também com situações de hepatite induzida por drogas e de doença de Wilson.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em critérios analíticos e histológicos, com exclusão doutras causas de hepatopatia crónica (vírica, tóxica, medicamentosa, metabólica) as quais podem evoluir com alterações semelhantes.

Observa-se elevação dos níveis de ALT e AST (2 a 3 vezes o valor normal) e hipergamaglobulinémia (> 2g/dL), por vezes com hiperbilirrubinémia conjugada/colestase.

Nos casos de evolução avançada com compromisso da função hepática pode verificar-se hipoalbuminémia e diminuição dos níveis dos factores de coagulação, designadamente alteração do tempo de protrombina.

A suspeita de HAI obriga a investigar os autoanticorpos descritos anteriormente.

O diagnóstico pode inferir-se pela presença de autoanticorpos séricos (mesmo que em titulações baixas de 1/20) e pela concomitância de outras doenças autoimunes, quer no paciente, quer em familiares, o que pode acontecer com uma frequência ~ 40%. A ausência de detecção dos autoanticorpos, não deverá inicialmente excluir o diagnóstico, pois os mesmos poderão surgir somente com a evolução da doença.

Se qualquer dos marcadores evidenciar títulos elevados deve proceder-se à biópsia hepática. O padrão histológico é fundamental para confirmar o diagnóstico (infiltrado intenso de células mononucleares nos espaços porta). No entanto, o estado geral precário muitas vezes não permite a realização da referida biópsia.

Em suma, os critérios de diagnóstico habitualmente aceites são discriminados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Critérios para o diagnóstico de hepatite autoimune

*Bridging: processo de fibrose entre dois espaços porta
(International Autoimmune Hepatitis Group Report: Adaptado de Alvarez e colaboradores, 1999)

Histologia
Hepatite de interface (ou de actividade necroinflamatória periportal com infiltração celular ultrapassando o espaço porta) moderada a grave; hepatite lobular ou necrose “bridging”* portal central sem lesões biliares ou granulomas bem definidos e sem alterações sugerindo outra etiologia
Bioquímica
Alteração das transaminases, especialmente se a fosfatase alcalina estiver pouco elevada. Alfa-1-antitripsina, ferritina, cobre, cobre e ceruloplasmina séricos normais
Imunoglobulinas séricas
Globulinas séricas totais ou gamaglobulinas ou IgG elevadas (por vezes IgG >16 g/L)
Autoanticorpos séricos
Autoanticorpos séricos
Anticorpos antinucleares (ANA), anticorpos anti-músculo liso (SMA), anticorpos anti-Actina F, anticorpos anti-microssoma do tipo 1 [do fígado-rim] (LKM-1) e/ou anti-citosol do tipo 1 [do fígado], com títulos >1:20
Marcadores víricos
Serologia negativa para hepatite A, B, C
Outros factores etiológicos
Consumo de álcool <25 g/dia
Ausência de uso recente de drogas hepatotóxicas

Na avaliação destes doentes é igualmente importante proceder a endoscopia digestiva alta para detecção de sinais hipertensão portal.

Nos casos de suspeita de síndroma de sobreposição/overlap deverá ser realizada colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) ou colangiografia magnética.

São factores de mau prognóstico:

  • baixa idade na data do diagnóstico;
  • valores elevados de bilirrubinémia;
  • forma clínica associada a anti-LKM1;
  • actividade histológica intensa;
  • fenótipo HLA-B8 e HLA-DR3.

Tratamento

Se a HAI se manifestou desde o início por insuficiência hepática aguda/fulminante, o tratamento indicado é o transplante hepático urgente.

Nos outros casos a terapêutica indicada é a imunossupressão. O tratamento deve ser iniciado com prednisolona na dose de 2 mg/kg/dia (dose máxima de 60 mg), que se vai diminuindo progressivamente se houver redução do valor das transaminases. O objectivo é manter uma dose mínima, habitualmente 5 mg/dia, suficiente para manter as transaminases normais. Nas primeiras 8 semanas de tratamento a avaliação das transaminases deve ser semanal, fazendo-se os ajustes necessários da dose de corticóide. Salienta-se que este tratamento deve ser iniciado imediatamente, não se esperando pelos 6 meses, critério habitual nas hepatites víricas.

Se não houver normalização das transaminases ou se a evolução não permitir reduzir a dose de corticóide, acrescenta-se azatioprina na dose de 0,5-2 mg/kg/dia. Começa-se com a dose mais baixa. Em presença de icterícia a introdução da azatioprina deve ser adiada pelo seu potencial hepatotóxico.

Apesar de, na maior parte dos casos, as transaminases começarem a baixar logo que se inicia a terapêutica, a sua completa normalização poderá surgir somente ao cabo de alguns meses.

As recidivas são frequentes obrigando a novos acertos terapêuticos. Se não se conseguir remissão da doença, a cirrose é a evolução. A evolução para cirrose depende também dos achados iniciais da biópsia: se na data do diagnóstico já forem evidentes os quadros morfológicos de bridging e da chamada piecemeal necrosis, é provável que, apesar do tratamento, se verifique tal evolução.

eficácia da terapêutica é determinada pelo valor das transaminases e gamaglobulinas, e não pelo título dos autoanticorpos.

Nos casos em que se verifica resposta à imunossupressão com os fármacos descritos antes, poderão ser tentadas outras drogas (ciclosporina, tacrolimus, microfenolato de mofetil).

A maior parte dos autores recomenda actualmente que o tratamento se mantenha, pelo menos, 5 anos após a normalização das transaminases.

Após suspensão da terapêutica há que manter uma vigilância rigorosa das transaminases pela possibilidade de recidiva. Há autores que recomendam nas hepatites autoimunes LKM positivas, manutenção da terapêutica durante toda a vida.

Está indicada transplantação hepática nas seguintes circunstâncias:

  • insuficiência hepática fulminante;
  • complicações da cirrose hepática;
  • falência da terapêutica médica; ou
  • aparecimento de efeitos secundários intoleráveis da medicação.

Salienta-se que em 40-80% dos casos se verifica recorrência pós-transplante.

Estes doentes devem ser sempre seguidos em centros especializados.

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