Definição e importância do problema
A diarreia crónica não específica (diarreia funcional / do andante ou da criança pequena) é um quadro de causa não orgânica o qual se insere na patologia funcional do tubo digestivo, classificando-se na alínea G5 dos chamados critérios de Roma III (Doenças funcionais gastrintestinais da infância).
É a causa mais frequente de diarreia crónica na infância nos países desenvolvidos, tendo início entre os 6 meses e os 3 anos de idade, desaparecendo espontaneamente entre os 2 anos (nos casos de começo mais precoce) e os 4-6 anos.
Etiopatogénese
As causas deste quadro permanecem ainda inexplicadas; admite-se que possa haver uma alteração da motilidade digestiva levando a uma maior rapidez do trânsito intestinal com a chegada ao cólon de uma maior quantidade de líquidos e sais biliares, provocando uma diarreia secretora.
Esta resposta motora inapropriada pode ser desencadeada pela percepção de determinados estímulos, quer a nível do sistema nervoso central, quer a nível periférico, mediados ou não por fenómenos inflamatórios locais.
Os estímulos podem ser de origem luminal, incluindo componentes exógenos da dieta (como o excesso de frutose ou sorbitol em crianças com consumo exagerado de sumos de fruta industriais), ou factores de tensão emocional relacionados com o ambiente psicossocial. O facto de poder surgir após uma gastrenterite aguda, com manutenção por parte dos pais de “líquidos claros” mais ou menos hiperosmolares, para hidratar a criança, poderá manter o círculo vicioso e perpetuar a diarreia.
Manifestações clínicas
A diarreia crónica não específica revela-se muitas vezes após um episódio de diarreia aguda ou de uma infecção respiratória medicada com antibióticos; caracteriza-se por um quadro de diarreia com 3-10 dejecções líquidas ou pastosas, por vezes com muco ou restos alimentares não digeridos (lienteria), com duração superior a 4 semanas e não acompanhadas de dor.
O tipo de dejecções varia ao longo do tempo, com períodos sem diarreia, ou até com obstipação. Habitualmente, ao longo do dia, as primeiras dejecções são mais formadas, seguindo-se fezes mais líquidas. Não se verificando dejecções durante o sono, não se encontra eritema do períneo nem distensão abdominal.
A criança apresenta um bom estado geral e nutricional, com humor e vitalidade conservados, sem perda de peso (se bem que ao fim de algum tempo de uma alimentação muito estrita e com uma dieta “antidiarreica” comece a ter anorexia e a evidenciar ligeira inflexão da curva ponderal). Assim, se o suprimento calórico for adequado, tipicamente não existe má progressão estaturo-ponderal.
Diagnóstico
O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo efectuar-se um mínimo de exames complementares, os quais podem incluir a avaliação do grau de digestão de fezes para excluir esteatorreia ou má absorção de açúcares, e pesquisa de quistos de Giardia ou antigénio de Giardia lamblia nas fezes. Um teste de H2 expirado sob regime com lactose para excluir intolerância a este dissacárido (ou uma prova clínica de evicção da lactose na dieta) podem revestir-se de utilidade.
Tratamento
Em primeiro lugar, importa tranquilizar os pais, explicando-lhes que se trata de uma situação benigna e limitada, a qual não afectará o crescimento da criança.
Em segundo lugar, deve retomar-se uma alimentação normal, sem recurso a dietas de exclusão (ditas adstringentes “anti-diarreicas” que só conduzem, pela monotonia, a anorexia). O suprimento de sumos de fruta deve ser limitado, devendo aumentar-se a ingestão de gorduras (azeite) e de fibras solúveis pelo seu efeito de promoção da diminuição da velocidade do trânsito no intestino delgado, com melhoria sintomática.
Não está aconselhado o uso de produtos antidiarreicos.
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