Definição e importância do problema

A designação “doença inflamatória do intestino” (DII) inclui duas doenças crónicas em que se verifica inflamação do aparelho digestivo: colite ulcerosa (CU) e doença de Crohn (DC).

Apesar de haver alguns factores comuns a estas doenças, existem características específicas de cada uma delas, o que permite distingui-las. Iniciam-se cedo na vida adulta, com apresentação na idade pediátrica em cerca de 20 – 30% dos casos. Caracterizam-se por haver, em alternância, períodos de remissão e de recaída, sendo a gravidade muito variável. Em comparação com as formas clínicas no adulto, a DII pediátrica é mais extensa no que respeita a localização e de evolução mais grave.

Nas últimas décadas tem havido aumento da incidência da DII em idade pediátrica, em especial da DC. Relativamente a esta última afecção, estima-se na idade pediátrica uma incidência de 4,5/100.000 nos EUA, e de 2,1-3,7 /100.000 no Canadá; quanto a incidência de CU aponta-se o valor de 2/100.000 (10-19 anos) nos EUA. Considerando globalmente a DII, com pico de incidência entre os 15 -30 anos, dados provenientes da Europa (França e Reino Unido) apontam o valor de 5-6 casos por 100.000 habitantes (3-5 para DC e 0,8-2 para CU).

Etiopatogénese

A etiopatogénese da DII é complexa e não está totalmente definida. Produz-se por interacção variável de factores ambientais e genéticos que modificam a tolerância à microbiota intestinal e produzem resposta imunológica anómala (desregulação), que desencadeia uma resposta inflamatória da parede intestinal.

A DC e a CU são doenças complexas cujo componente genético é do tipo poligénico e de penetrância variável. Existem formas monogénicas de começo infantil, relacionadas com mutações do gene da interleucina 10 (IL 10) ou do seu receptor (IL 10R). A favor da base genética da DII está o facto de se ter demonstrado agregação familiar nalguns casos.

A maioria dos genes relacionados com DII (designadamente genes nos cromossomas 12 e 16) associa-se a DC. Estudos recentes revelaram que variações em genes especificos, ATG16L1, IL23R, IRGM e NOD2 aumentam o risco de desenvolvimento de DC.

De acordo com diversos estudos, não se observam diferenças genéticas significativas entre DII pediátrica e do adulto, excepto no que diz respeito a certas formas de início pediátrico muito precoce.

A inflamação crónica no intestino leva a várias alterações fisiopatológicas que resultam essencialmente em diarreia, enteropatia exsudativa, hemorragia, dor abdominal e estenoses. É importante o papel das citocinas e dos eicosanóides pró-inflamatórios os quais aumentam a permeabilidade vascular e originam vasodilatação, provocando secreção de electrólitos e aumento da contractilidade do músculo liso. O epitélio inflamado leva a perda de proteínas. As citocinas promovem o recrutamento e a actividade de células formadoras de colagénio, levando à proliferação de tecido fibroso com consequente espessamento da parede e formação de estenoses.

………*……..

1. DOENÇA de CROHN

Particularidades

Classicamente, o íleo terminal é o segmento atingido com maior frequência (50%), embora qualquer área do tracto gastrintestinal desde a boca ao ânus [incluindo, claro está, o colon (~20%), o esófago, o estômago, e o duodeno ] possa estar envolvida. Pode ocorrer envolvimento isolado do cólon nalguns doentes.Os termos sinónimos são ileíte terminal ou regional, ileocolite ou enterocolite granulomatosa.

O intestino apresenta-se espessado, nodular, muitas vezes com franca ulceração. Os granulomas sem caseificação são muito característicos. Quando a inflamação, que é transmural, se estende para além da serosa, podem existir fístulas para estruturas adjacentes, como o intestino, bexiga, vagina ou períneo.

Esta doença tem características de descontinuidade quanto às áreas afectadas, manifestando-se pela alternância de zonas sãs com zonas afectadas.

Manifestações clínicas

Discriminam-se as manifestações clínicas mais típicas por ordem decrescente de frequência:

  • Dor abdominal
  • Perda de peso
  • Diarreia
  • Sangue nas fezes
  • Lesões perianais
  • Febre
  • Restrição do crescimento
  • Úlceras orais
  • Artralgia / artrite
  • Lesões cutâneas

QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da DII

Cutâneas
• Eritema nodoso
• Piodermite gangrenosa
• Doença perianal
Hepáticas
• Colangite esclerosante
• Hepatite crónica
• Litíase
• Cirrose
Articulares
• Artralgia
• Artrite
• Espondilite anquilosante
• Sacroileíte
Oftalmológicas
• Uveíte
• Episclerite
• Cataratas
Renais
• Litíase
• Hidronefrose
• Fístula enterovesical
Hematológicas
• Défice de ferro, folatos e vitamina B12
• Anemia
• Trombocitose
• Neutropénia
Vasculares
• Tromboflebite
• Vasculite

2. COLITE ULCEROSA

Particularidades

Ao contrário da doença de Crohn em que a inflamação é transmural, o processo inflamatório na colite ulcerosa localiza-se apenas na mucosa. Inicia-se quase sempre no recto, em continuidade (isto é, sem zonas afectadas intercaladas com zonas não afectadas), atingindo extensões variáveis e diminuindo de gravidade em direcção ao cego.

São frequentes os abcessos das criptas, as alterações da arquitectura e a depleção das células caliciais.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas por ordem decrescente de frequência são:

  • Rectorragia
  • Diarreia
  • Dor abdominal
  • Perda de peso
  • Artralgia / artrite
  • Febre
  • Restrição do crescimento

Existem várias manifestações extraintestinais da DII que podem, quer preceder os sintomas gastrintestinais, quer coexistir ou aparecer meses ou anos após o diagnóstico (Quadro 1).

………*………

Diagnóstico da DII

A DII deverá ser sempre admitida como hipótese de diagnóstico nas seguintes situações: dor abdominal crónica, diarreia crónica com ou sem sangue, atraso de crescimento e pubertário, perda de peso, rectorragias, anemia inexplicada, abcessos perianais, fístulas, fissuras, história familiar de DII e sintomas extra-intestinais como úlceras orais, artrite, lesões cutâneas (eritema nodoso e pioderma gangrenoso), alterações oculares e hepaticas.

O diagnóstico da DII é sugerido pela combinação de manifestações clínicas, e confirmado por exames laboratoriais, imagiológicos, endoscópicos e histológicos.

Em crianças com apresentação de colite abaixo dos 3 anos, deve ser considerada a colite causada por imunodeficiência, nomeadamente doença granulomatosa e deficiência de receptor da IL10.

Os exames laboratoriais habitualmente requeridos para a avaliação inicial são essencialmente: hemograma, doseamento de proteína C reactiva, velocidade de sedimentação, ferritina, plaquetas, albumina, ANCA e ASCA, pesquisa de sangue oculto nas fezes, calprotectina fecal, e coproculturas.

Os exames imagiológicos habitualmente realizados são ecografia abdominal e enterografia por ressonância magnética (permitindo avaliar com rigor: estenoses, extensão do processo inflamatório, envolvimento transmural, doença penetrante e abcessos).

A endoscopia (esófago-gastro-duodenoscopia e ileocolonoscopia) deve ser sempre realizada em doentes com suspeita de DII, dado que poderá sugerir de imediato o diagnóstico pelas alterações visíveis; por outro lado, importa proceder a biópsias para confirmação histológica. Mesmo em zonas de aparência normal, devem ser realizadas biópsias dos vários segmentos pela possibilidade de existência de sinais de inflamação detectáveis apenas por exame microscópico.

A cápsula endoscópica do intestino delgado tem vindo a ser utilizada cada vez mais frequentemente em pediatria, principalmente em crianças com idade superior a 10 anos. Com tal técnica é possível avaliar o atingimento do intestino delgado em zonas não acessiveis à endoscopia, o que poderá ser importante para as decisões terapêuticas; igualmente muito sensível para avaliar lesões da mucosa, contudo, não detecta processos extraluminais e não permite fazer biópsias. Poderá também haver o risco de retenção.

A enteroscopia de duplo-balão permitindo visualizar o intestino de delgado, é, contudo, um procedimento demorado, com alguns riscos e necessita de especialização.

Actualmente em determinados centros especializados está a utilizar-se (em casos seleccionados e não como rotina) um marcador serológico (macro- CK ou macrocreatinaquinase de tipo 1/complexo CK-Ig) associado a doença crónica e a doença autoimune; valores elevados e persistentes verificam-se na colite ulcerosa, e não na doença de Crohn.

A macro-CK de tipo 2 (oligómero de CK) está associada a doença maligna.

Quanto a diagnóstico diferencial, de referir que diversos agentes infecciosos podem provocar quadro clinico semelhante à DII (por ex. Campylobacter, Yersinia, Clostridium difficile, E coli 0157:H7, BK, Entamoeba histolytica, CMV, Criptosporidium, etc.).

Igualmente estão descritas situações clínicas simile DII (DII like, segundo os anglófonos) associadas a alterações vasculares isquémicas (LED,PSH,SHU), a doenças inflamatórias de causa imune (como doença de Behçet, gastrenterite eosinofílica,etc.), imunodeficiências primárias, alterações alérgicas, a abuso de laxantes e a linfoma intestinal.

Tratamento

Medidas gerais

Os objectivos do tratamento da DII na criança são induzir e manter a remissão prolongada, minorando as complicações e os efeitos secundários da terapêutica. Deve prevenir recaídas, promover o crescimento e o desenvolvimento pubertário e melhorar da qualidade de vida. A adesão à terapêutica deve ser avaliada com frequência, uma vez que as interrupções da medicação são causa frequente de falência de resultados, principalmente em adolescentes.

Nutrição

A nutrição entérica exclusiva (NEE) tem vindo a ser utilizada em doentes com DC aguda para indução de remissão. Consiste na utilização de fórmulas, elementares, semi- elementares e poliméricas como terapêutica primária para induzir e manter a remissão na D. Crohn e como suplemento para recuperar o crescimento e corrigir deficits de micronutrientes. Há estudos que referem que a NEE pode ser tão eficaz no tratamento da DC aguda como os fármacos seguidamente citados e que, como suplemento da alimentação, pode prolongar a remissão da doença. Alguns estudos sugerem também que a NEE pode levar à cicatrização da mucosa. A maior dificuldade da utilização da NEE prende-se com a baixa adesão de pais / família e crianças, uma vez que tem que ser utilizada por períodos não inferiores a 6-8 semanas e muitas crianças não conseguem ingerir a quantidade necessária por boca, sendo necessário recorrer a colocação de sonda nasogástrica

Agentes terapêuticos

Existem vários tipos de agentes terapêuticos:

  • Aminossalicilatos – 5 ASA (ácido 5 – amino-salicílico)
  • Antimicrobianos (mais frequentemente, metronidazol, ciprofloxacina)
  • Corticosteróides (prednisolona, budesonido)
  • Imunomoduladores (azatioprina, 6-mercaptopurina, metotrexato, ciclosporina, etc.)
  • Agentes biológicos- Anticorpos monoclonais anti-factor necrosante tumoral Anti -TNF-alfa,  designadamente, infliximab, adalimumab.

O aparecimento da terapia com agentes biológicos no final do último século tem tido um impacte muito positivo na evolução de grande parte de crianças com doença grave. Os gastrenterologistas pediátricos têm vindo a optar por uma terapêutica inicial mais “intensiva/agressiva”, com o objectivo de alterar o curso natural da doença, evitando assim complicações, nomeadamente estenoses e fistulas, e necessidade de terapêutica cirúrgica.

Estes fármacos deverão ser utilizados de acordo com as características da doença, gravidade e resposta terapêutica.

À terapêutica médica deve sempre associar-se, apoio psicológico.

Cirurgia

A principal indicação da cirurgia é a existência de complicações da doença (estenoses e fístulas), perfuração, hemorragia, falência da terapêutica médica e complicações da terapêutica (por ex. restrição do crescimento). Poderá ser necessária em cerca de 60% dos casos na doença de Crohn e em 25 % – 40% dos casos de colite ulcerosa.

Prognóstico

A DII é um processo inflamatório crónico que não pode ser curado por terapêutica médica ou cirúrgica, mas pode ser controlado, permitindo que a criança tenha uma boa qualidade de vida.

BIBLIOGRAFIA

Ashton JJ, Batra A, Beattie RM. Paediatr Child Health 2018; 28: 507-514

Bayless T, Hanauer S (eds.) Advanced Therapy of Inflammatory Bowel Disease. Hamilton: Decker, 2001

Beattie RM, Croft NM, Fell JM, et al. Inflammatory bowel disease. Arch Dis Child 2006; 91: 426-432

Benchimol EI, Fortinsky KJ, Gozdyra P, et al. Epidemiology of pediatric inflammatory bowel disease: a systematic review of international trends. Inflamm Bowel Dis 2011; 17: 423 – 439

Blackburn SC, Wiskin AE, Barnes C, Dick K, Afzal NA, Griffiths DM, et al. Surgery for children with Crohn’s disease: indications, complications and outcome. Arch Dis Child 2014; 99: 420- 426

Conrad MA, Rosh JR. Pediatric inflammatory disease. Pediatr Clin North Am 2017; 64: 577-591

de Zoeten EF, Pasternak BA, Mattei P, Kramer RE, Kader HA. Diagnosis and treatment of perianal Crohn disease: NASPGHAN clinical report and consensus statement. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2013; 57: 401- 412.

Fagerberg UL, Loof L, Myrdal U, et al. Colorectal inflammation is well predicted by fecal calprotectin in children with gastrointestinal symptoms. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2005; 40:450-455

Frokjaer JB, Larsen E, Steffensen E, et al. Magnetic resonance imaging of the small bowel in Crohn’s disease. Scand J Gastroenterol 2005; 40:832- 842.

Gavin J, Marino LV, Ashton JJ, et al. Patient, parent and professional perception of the use of maintenance enteral nutrition in Paediatric Crohn’s Disease. Acta Paediatrica 2018; 107: 2199-2206

Guandalini S (ed). Textbook of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. London: Taylor & Francis, 2004

Hyams J, Crandall W, Kugathasan S, et al. Induction and maintenance infliximab therapy for the treatment of moderate-to-severe Crohn’s disease in children. Gastroenterology 2007; 132:863-873

Karaskova E, Volejnikova J, Holub D, Velganova-Veghova M, et al. Hepcidin in newly diagnosed inflammatory bowel disease in children. J Paediatr Child Health 2018; 54:1362-1367

Kim MJ, Lee JS, Lee JH, et al. Infliximab therapy in children with Crohn’s disease: a one-year evaluation of efficacy comparing ‘top-down’ and ‘step-up’ strategies. Acta Paediatr 2011; 100:451- 455

Kim S, Park S, Kang Y, et al. Medical staff tend to underestimate the quality of life in children and adolescents with inflammatory bowel disease. Acta paediatrica 2019; 108: 138-142

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Kulungowski AM, Acker SN, Hoffenberg EJ, Neigut D, Partrick DA. Initial operative treatment of isolated ileal Crohn’s disease in adolescents. Am J Surg 2015; 210:141-145.

Lewis JD. The utility of biomarkers in the diagnosis and therapy of inflammatory bowel disease. Gastroenterology 2011; 140: 1817 – 1826

Mamula P, Markowitz JE, Baldassano RN. Inflammatory bowel disease in early childhood and adolescence: special considerations. Gastroenterol Clin North Am 2003; 32: 967-995

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Pallotta N, Civitelli F, Di Nardo G, Vincoli G, Aloi M, Viola F, et al. Small intestine contrast ultrasonography in pediatric Crohn’s disease. J Pediatr 2013; 163:778e-784e

Piekkala M, Kalajoki-Helmiö T, Martelius L, Pakarinen M, Rintala R, Kolho KL. Magnetic resonance enterography guiding treatment in children with Crohn’s jejunoileitis. Acta Paediatr 2012; 101:631-616

Rutgeerts P, Sandborn WJ, Feagan BG, et al. Infliximab for induction and maintenance therapy for ulcerative colitis. NEJM 2005; 353: 2462-2476

Walker WA, Goulet O, Kleinmam RE, et al. Pediatric Gastrointestinal Disease. Hamilton (Ontario): Decker, 2004

Walters TD, Kim MO, Denson LA, Griffiths AM, Dubinsky M, Markowitz J, et al. Increased effectiveness of early therapy with anti-tumor necrosis factor-alpha vs an immunomodulator in children with Crohn’s disease. Gastroenterology 2014;146 :383-391

Wyllie R, Hyams JS, Kay M (eds). Pediatric Gastrointestinal and Liver Disease. Philadelphia: Elsevier, 2016

YU Y, Chen K-C, Chen J. Exclusive enteral nutrition versus corticoesteroids for treatment of pediatric Chron’s disease: a meta-analysis. World J Pediatr 2019; 15:26-36