Definição
Define-se como crónica toda situação de diarreia com duração superior a 15 dias. As diarreias crónicas podem acompanhar-se, ou não, de síndroma de má absorção.
Etiopatogénese
O Quadro 1 resume as principais causas de diarreia crónica.
QUADRO 1 – Causas de diarreia crónica
Com má-absorção intestinal | Sem má-absorção intestinal |
Defeito da Digestão | Colite |
a) Insuficiência pancreática exócrina: Fibrose quística b) Defeito da micelização dos sais biliares: Colestase | a) Inflamatória Doença inflamatória do intestino b) Infecciosa Salmonella |
Defeito da Absorção | Medicamentos / produtos dietéticos |
a) Redução da superfície total de absorção: Síndroma do intestino curto b) Lesão da parede (enteropatia): Doença celíaca c) Defeitos selectivos: 1) Absorção de açúcares Primários: Secundários: 2) Absorção de gorduras Abetalipoproteinemia | Abuso de laxantes Abuso de sorbitol (pastilhas, sumos de fruta) Antibióticos |
Enteropatia exsudativa | Funcionais |
Linfangiectasia intestinal | a) Diarreia crónica não específica b) Síndroma do cólon irritável (com predomínio de diarreia) |
A diarreia crónica que se acompanha de síndroma de má absorção pode ser explicada habitualmente por três situações de base:
Má-digestão – Como resultado de insuficiência pancreática exócrina, ou incapacidade de formação de micelas por défice quantitativo de sais biliares no intestino, ou qualitativo (desconjugação por bactérias no intestino contaminado); nesta situação as fezes são moles, abundantes, gordurosas e fétidas caracterizadas por: esteatorreia intensa (20-30 g de gorduras fecais por dia), creatorreia (superior a 3g de azoto por dia, correspondendo a 20-30 % das proteínas ingeridas) e presença de produtos de fermentação de açúcares não absorvidos (cerca de 30 mmol por dia de ácidos voláteis).
Má-absorção – Nestes casos a componente da digestão está preservada, mas há diminuição da capacidade de absorção de nutrientes por redução da superfície de absorção (lesão da mucosa nas enteropatias, ou redução da superfície total intestinal na síndroma do intestino curto). As fezes são moles ou líquidas, raramente gordas, por vezes ácidas (por grande aumento dos ácidos voláteis resultantes da fermentação, dos hidratos de carbono não absorvidos no delgado) e pela flora bacteriana do cólon. A esteatorreia é moderada (< 10g por dia), excepto nas situações de défice selectivo da absorção de gorduras, bem como a creatorreia (1-2 g por dia), excepto quando há um forte componente de enteropatia exsudativa.
Fermentação – Nestas situações predominam os sintomas de má absorção de açúcares, a qual pode ser primária ou secundária (neste caso acompanhando as situações de redução das vilosidades ou na síndroma pós-gastrenterite). Habitualmente as fezes são ácidas (pH < 5) por conterem ácidos voláteis e ácido láctico, podendo ser detectada a presença directa de açúcares fecais pela pesquisa de substâncias redutoras (Clinitest® > 1%). Apenas a sacarose não origina directamente substâncias redutoras nas fezes, necessitando de tratamento prévio destas por ácido clorídrico.
Outra forma de enquadrar a diarreia crónica é distinguir um mecanismo secretor ou osmótico. Por exemplo, as diarreias secundárias a má-digestão ou absorção originam com frequência diarreias osmóticas, que cessam com a prova de jejum. Pelo contrário, a diarreia secretora, sem resposta ao jejum, caracteriza-se por diarreia líquida abundante e muitas vezes mais grave. Muitos casos de defeitos congénitas de diferenciação ou polarização dos enterócitos (ex. displasia epitelial ou doença de inclusão de microvilosidades) fazem parte deste grupo.
O grupo das diarreias crónicas congénitas tem sido recentemente melhor caracterizado e alargado (Quadro 2). Correspondem a enteropatias hereditárias com início precoce na vida. A maioria tem transmissão autossómica recessiva e mutação genética identificada. Algumas têm início pré-natal e podem ser suspeitadas por poli-hidrâminio e distensão fetal das ansas intestinais, como na cloridrorreia congénita. Podem ser globalmente classificadas em:
- Defeitos na digestão, absorção e transporte de nutrientes e electrólitos (ex. Défice congénito de lactase);
- Defeitos na diferenciação e polarização dos enterócitos (ex. Displasia epitelial congénita);
- Defeitos na diferenciação das células enteroendócrinas (ex. Défice neurogenina 3, síndroma de Mitchell Riley);
- Desregulação na resposta imune intestinal (ex. síndroma IPEX- immune dysregulation, polyendocrinopathy, enteropathy, X-linked).
QUADRO 2 – Diarreias crónicas congénitas/ de início precoce
Designação | Gene | Características |
Cloridrorreia congénita | SLC26A3 | Poli-hidrâmnio, diarreia neonatal precoce e grave, Cl– fecal > 90 mmol/L |
Diarreia com perda de sódio | SPINT2 (forma sindromática) | Hiponatrémia, acidose metabólica, Na+ fecal > 145 mmol/L |
Doença de inclusões microvilositárias | MYO5B | Diarreia início 0-4 meses, histologia típica |
Displasia epitelial intestinal | EpCAM | Diarreia grave precoce, queratite punctata, atrésia coanas/ esófago, dismorfias faciais |
Síndroma trico-hepato-entérico | TTC37, SKIV2L | Diarreia rebelde, RCIU, dismorfias faciais, anomalia do cabelo, alterações hepáticas |
Na diarreia crónica não acompanhada por má absorção podem surgir dois tipos de diarreia:
Cólica – Caracterizada por fezes heterogéneas com pequeno volume e frequência aumentada, fétidas, com muco, e ocasionalmente com sangue e/ou pus. A esteatorreia está ausente bem como os ácidos voláteis; mas nas situações de inflamação importante da mucosa (doença inflamatória do intestino) há creatorreia importante por exsudação de proteínas. Estas diarreias são também ricas em sódio por diminuição da sua reabsorção cólica.
Não específica – Caracterizada por fezes de volume e consistência muito variáveis, por vezes líquidas, por vezes pastosas, muito frequentemente com lienteria (restos alimentares); habitualmente as primeiras dejecções do dia são de características normais, piorando ao longo do dia; não há defecação durante o sono.
Manifestações clínicas
A diarreia crónica acompanhada de má absorção traduz-se por restrição do crescimento estaturo-ponderal e, ao contrário do adulto em que o apetite está aumentado, na criança é acompanhada de anorexia, o que agrava a negatividade do balanço energético-proteico.
Há também sintomas e sinais relacionados com a má absorção de micronutrientes como o ferro (anemia ferropénica), o cálcio (raquitismo, hipocalcémia), o ácido fólico e vitamina B12 (anemia macrocítica), as vitaminas lipossolúveis A (baixa da visão nocturna, pele seca), D (raquitismo), E (diminuição dos reflexos osteotendinosos, oftalmoplegia, ataxia), K (alterações da coagulação), e ainda do zinco (alterações cutâneas periorificiais, alterações imunológicas, perda da sensação gustativa).
A má absorção proteica pode levar a situações de hipoalbuminémia e edema, enquanto a má absorção dos açúcares origina fermentação cólica com distensão abdominal e eritema perianal causado pelas fezes ácidas.
Diagnóstico
Perante um quadro de diarreia crónica há que avaliar o impacte sobre o crescimento ponderal e estatural (neste último caso a repercussão é mais tardia). Se se verificar uma desaceleração ou “queda” dos percentis de peso e estatura, há que suspeitar de síndroma de má-absorção; e, para além dos exames destinados a estabelecer um diagnóstico etiológico específico, importa ainda estudar a repercussão funcional que um quadro de má absorção de macro e micronutrientes, pode causar. (Quadro 3)
QUADRO 3 – Exames complementares na diarreia crónica
NB → DD = diagnóstico diferencialHiato osmótico fecal = 290 – [2x (Na+K)] (DD entre diarreia secretora de osmótica- Quadro 4) |
Fezes |
• Grau de digestão |
Sangue |
• Anticorpos “marcadores” de doença celíaca |
Outros |
• Endoscopia alta com biópsia do intestino proximal (enteropatias) |
QUADRO 4 – Interpretação do Hiato Iónico Osmótico Fecal
Secretória | Osmótica | |
NB → Hiato Osmótico fecal: 290 – [2x (Na+K)] → distingue diarreia secretora de osmóticaAdaptado de (Pezzella V, et al. Investigation of chronic diarrhoea in infancy. Early Hum Dev 2013; 89: 893-897) | ||
Hiato osmótico | < 50 mOsm/kg | >50 mOsm/kg (geralmente > 135) |
Concentração de Cl- | > 40 mEq/L | < 35 mEq/L |
Concentração de Na+ | > 70 mEq/L | < 70 mEq/L |
Tratamento
Está dependente do diagnóstico etiológico, podendo ser de evicção dietética (doença celíaca, IPLV, intolerância aos açúcares) transitória ou permanente, ou farmacológica (giardíase, doença inflamatória do intestino) ou suplementação enzimática pancreática (fibrose quística).
Nas situações em que a diarreia se acompanha de desnutrição acentuada há que, independentemente do tratamento etiológico, promover a reabilitação nutricional através de técnicas de suporte como alimentação parentérica exclusiva ou com alimentação entérica. As técnicas de suporte nutricional usando a alimentação entérica (quer contínua quer nocturna, por bomba de infusão) são muito eficazes, permitindo incrementar a absorção de nutrientes graças ao emprego de fórmulas semi-elementares, ou mesmo fórmulas com aminoácidos livres.
Nos defeitos congénitos dos enterócitos, a nutrição parentérica, complementada ou não com nutrição entérica, é muitas vezes necessária, sendo ainda por vezes indicado o transplante intestinal.
São descritas nos capítulos seguintes, com mais pormenor, três situações clínicas frequentes que cursam com diarreia crónica na criança: a doença celíaca, a giardíase e a diarreia crónica inespecífica.
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