CONDRODISPLASIAS

Sistematização e importância do problema

Um grupo importante de displasias esqueléticas integra entidades clínicas devidas a alterações dos receptores transmembrana, entre as quais se encontram as condrodisplasias associadas a defeitos do receptor 3 do factor de crescimento de fibroblastos (FGFR3) e a defeitos do receptor da PTH (ver atrás).

Entre as displasias relacionadas com mutações em diferentes loci no gene FGFR3 (sendo que a localização da mutação se correlaciona com o fenótipo) incluem-se:

  1. A displasia tanatófora de tipo I e II – a condrodisplasia letal mais comum, com uma prevalência de 1/35.000 nascimentos;
  2. A acondroplasia, a displasia esquelética/condrodisplasia, não letal, mais frequente, evidenciando prevalência de 1/15.000 a 1/40.000 nascimentos; e
  3. A hipocondroplasia.

Neste capítulo procede-se a uma abordagem sucinta das referidas condrodisplasias (1., 2., e 3.) dando ênfase à acondroplasia e a aspectos do diagnóstico diferencial.

1. DISPLASIA TANATÓFORA

Trata-se duma displasia grave, em geral letal no pré-parto (geralmente pré-termo) ou nas primeiras horas de vida, tendo decorrido a gravidez com poli-hidrâmnio. No exame físico ressalta fenótipo peculiar caracterizado essencialmente por macrocefalia, por vezes deformação craniana em “folha de trevo”, hipoplasia média facial, pescoço curto, tórax longo e estreito “em sino”, e membros muito curtos.

A destrinça entre tipo I e tipo II decorre de padrões radiográficos esqueléticos específicos. Sob os pontos de vista genético e biomolecular, cabe referir que no tipo I a mutação se situa no códon 650, com substituição de lisina por ácido glutâmico, enquanto no tipo II se associa a deleção da porção terminal carboxílica do FGFR3.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial principal faz-se com a acondrogénese, especialmente na forma homozigótica.

Nesta última situação a cabeça é de maiores dimensões, a ossificação é mais deficiente nos corpos vertebrais, especialmente na região lombar, verificando-se ausência no sacro, púbis, ílio e ísquio.

2. ACONDROPLASIA

Etiopatogénese e genética

A acondroplasia é o protótipo das condrodisplasias.

Todos os doentes com a acondroplasia típica têm mutações no gene FGFR3, códon 380 (arginina substituída por glicina), sendo a transmissão do tipo autossómico dominante; na sua maioria, os casos decorrem de uma nova mutação de progenitores normais.

Uma vez que, entre a população adulta com nanismo a acondroplasia é relativamente frequente, e frequentes são os casamentos entre tais pacientes, existe o risco hereditário de transmitir a cada descendente a doença (risco de 50% para as formas heterozigóticas, e 25% para as formas homozigóticas, estas últimas geralmente letais no período neonatal).

Manifestações clínicas

Tipicamente, o recém-nascido tem membros curtos, tronco alongado e estreito, macrocefalia com fronte proeminente, fontanela grande e nariz curto e dentes apinhados.

As alterações vertebrais manifestam-se por estreitamento do canal medular ao nível da coluna cervical e lombar. A gibosidade lombar que se verifica nas primeiras idades é substituída, com o avançar dos anos, por lordose lombar.

As alterações cranianas podem acompanhar-se de hidrocefalia em 6% dos casos, e de compressão ao nível do buraco occipital (5-10% dos casos) com risco de apneia central e morte súbita. Por vezes tal patologia pode associar-se a instabilidade da coluna cervical.

São comuns os quadros de hipoacusia e otite média recorrente associados a estenose do cavum, o que por vezes poderá estabelecer indicação para amigdalectomia.

O encurtamento dos membros é mais acentuado nos segmentos proximais e os dedos exibem muitas vezes uma configuração em tridente. O encurvamento mais acentuado da tíbia é notório, ao mesmo tempo que se verifica que o comprimento do perónio é desproporcionalmente mais comprido do que a tíbia.

Verifica-se hiperextensibilidade articular, embora ao nível do cotovelo se verifique restrição na extensão. Geralmente o comprimento ao nascer é anormalmente reduzido ou, por vezes, está no limite inferior do normal. Em regra, na idade adulta, a estatura é cerca de 118-145 cm no sexo masculino, e 112-136 cm no sexo feminino.

A inteligência é normal, excepto nos casos complicados de lesões neurológicas graves.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com outras formas de displasia com membros curtos, tais como, as displasias tanatófora, acondrogénese, metatrópica, torácica asfixiante, diastrófica, hipocondroplasia e síndroma de Ellis-van Creveld.

Actuação prática

A prestação de cuidados a pacientes com a patologia em análise implica um apoio multidisciplinar. De acordo com determinada sintomatologia específica, e com a coordenação por pediatra ou médico de família, poderão estar indicadas certas intervenções invasivas no âmbito da ORL, ortopedia e neurocirurgia.

Em centros especializados, com o apoio do endocrinologista, têm sido utilizados (de forma não consensual entre especialistas) fármacos tais como a GH (hormona de crescimento recombinante) e um análogo do péptido natriurético do tipo C como medidas para estimular o crescimento ósseo.

3. HIPOCONDROPLASIA

A hipocondroplasia partilha características clínicas e radiológicas esqueléticas com a acondroplasia, mas em menor grau e é mais ligeira. As dismorfias faciais são mais suaves, sendo que por vezes apenas é notória a proeminência frontal. Na idade adulta, em média são atingidas estaturas da ordem de 140 cm no sexo masculino e de 135 cm no sexo feminino.

Caracterizando-se esta condrodisplasia por muita heterogeneidade genética, cabe referir que em cerca de 3/4 dos pacientes foram detectadas alterações no gene FGFR3, correspondendo a mutação mais comum a alteração no códon 470; contudo, segundo a literatura, foram também detectadas anomalias ao nível do códon 540.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com a acondroplasia, pela sua expressão clínica e radiológica menos marcada. Com efeito, o fenótipo facial é aparentemente normal na hipocondroplasia, o que não acontece naquela.

Actuação prática

Quanto a actuação terapêutica do foro médico, nalguns centros tem sido utilizada a GH recombinante, a exemplo do que foi referido a propósito da acondroplasia.

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OSTEOGÉNESE IMPERFEITA

Definição e importância do problema

O termo osteogénese imperfeita (OI) designa um grupo de displasias ósseas hereditárias, heterogéneas sob os pontos de vista clínico e genético, causadas por defeitos estruturais ou quantitativos do colagénio de tipo I, o componente principal da matriz extracelular do osso e pele.

Integrando diversos tipos (ver adiante), caracteriza-se por osteoporose (a OI é a causa genética mais frequente de osteoporose), fragilidade óssea, fracturas patológicas e outras anomalias do tecido conectivo tais como escleróticas azuis, dentinogénese imperfeita e surdez progressiva. Na infância a incidência da referida entidade oscila entre 1/10.000 e 1/20.000.

Etiopatogénese

  1. Os defeitos quantitativos ou estruturais do colagénio do tipo I originam o amplo espectro clínico da OI (sobretudo OI dos tipos I a IV – ver adiante), salientando-se que o colagénio do tipo I é o componente primário da matriz extracelular do osso e da pele.
    A grande maioria dos indivíduos afectados evidencia mutações nos genes COL1A1 ou COL1A2, localizados em 17q21.31-q22 e 7q22.1; os referidos genes codificam a síntese das duas cadeias alfa do colagénio de tipo I.
    A heterogeneidade clínica da OI explica-se possivelmente pela grande diversidade de mutações que se têm objectivado nos genes atrás referidos.
    As mutações resultantes numa diminuição de cadeias pró-alfa-(I) podem dar lugar a fenótipos ligeiros de OI de tipo I, enquanto as deleções com perda de exões ou as inserções, de que resulta alteração da estrutura proteica, podem ser responsáveis por fenótipos mais exuberantes.
    Refira-se, entretanto, que ainda não se conhece bem, nem a relação entre a mutação e o fenótipo do doente, nem a causa da variabilidade clínica dentro da mesma família.
  2. O colagénio de tipo I é um heterodímero composto por duas cadeias, alfa-1 e alfa-2. As cadeias sintetizam-se como procolagénio, com um domínio helicoidal central formado por sequências de Gly-X-Y, em que Gly é a glicina, X é com frequência prolina, e Y a hidroxiprolina. A presença de glicina é importante para a formação da hélice. Nos extremos carboxilo ligam-se pequenas cadeias laterais, e coincidindo com a ligação, produz-se hidroxilação dos resíduos de prolina e lisina da hélice.
    Na OI de tipo I ligeira observa-se um defeito quantitativo do colagénio que se origina porque, ainda que o alelo alfa-1 seja nulo, produzem-se pequenas quantidades de colagénio normal.
    Os defeitos estruturais são de dois tipos – em 80% dos casos trata-se de mutações pontuais com substituição dos resíduos de glicina, sendo que a substituição de glicina nas duas cadeias alfa dá origem a quadros de distinta gravidade (em 1/3 dos pacientes, quando ocorre na cadeia alfa-1, o quadro é letal, enquanto se ocorrer na cadeia alfa-2, tal poderá não acontecer); e – em 20% dos casos trata-se de defeitos da ligação atrás referida.
    Em duas regiões de união à cadeia alfa-1 a mutação é letal, assim como em oito regiões espaçadas regularmente na cadeia alfa-2 na zona de união a proteoglicanos.
    Entre os tipos clássicos de OI a mais frequente e ligeira é a do tipo I.

Manifestações clínicas e classificação

Antes da abordagem dos diversos tipos de OI, faz-se uma referência geral às manifestações clássicas, sem especificação dos tipos da afecção.

1. Gerais

Esqueléticas

A fragilidade óssea e as fracturas patológicas de repetição condicionam um desenvolvimento anómalo do esqueleto, de gravidade muito variável em função do tipo de OI.

As fracturas ósseas recidivantes agravam ainda mais a fragilidade óssea por desmineralização subsequente, devida, esta, ao repouso que faz parte da actuação. As fracturas ósseas consolidam, no entanto, com normalidade. A verificação de extremidades inferiores curtas na idade adulta corresponde a sequela de fracturas diafisárias em idade pediátrica com consequente encurvamento das mesmas. (Figuras 1 e 2)

A face pode evidenciar conformação triangular, e verifica-se crânio de fronte proeminente, pavilhões auriculares de inserção baixa e de eixo oblíquo para trás.

FIGURA 1. Osteogénese imperfeita em RN: aspecto radiológico esquelético sendo notórios o encurvamento dos ossos do membro inferior e sinal de fractura femoral. (NIHDE)

FIGURA 2. Osteogénese imperfeita: sinal de fractura do úmero direito. (NIHDE)
Oculares

A cor das escleróticas oscila entre branca e azul nítida, admitindo-se que tal aspecto seja devido ao adelgaçamento da esclerótica por alteração das respectivas fibras de colagénio, permitindo a visualização da coroideia subjacente.

Por vezes, a esclerótica pericorneana tem cor mais esbranquiçada, sinal conhecido por anel de Saturno.

Salienta-se que estão descritos casos de escleróticas azuis familiares sem relação com OI.

Défice auditivo

A surdez deve-se a alterações do desenvolvimento e de ossificação dos ossículos do ouvido, assim como a calcificações anómalas.

Inicialmente pode haver hipoacusia de transmissão, habitualmente para altas frequências, surgindo mais tarde hipoacusia de percepção (componente neurossensorial).

Dentárias

No tipo IB da OI surgem alterações dentárias, integrando o conceito de dentinogénese imperfeita.

As manifestações clínicas relacionadas com a deficiência em dentina incluem alteração da cor dos dentes definitivos, exibindo aspecto amarelado ou castanho-azulado. Existe facilidade de fractura dentária pelo escasso suporte dentinário. Os dentes deciduais são frequentemente hipotróficos e opalescentes.

II. Classificação etiopatogénica e clínica

A classificação de Sillence agrupa os diferentes tipos de osteogénese imperfeita atendendo a critérios clínicos e radiológicos, e estabelece subtipos em função dos estudos genéticos e das características radiológicas. Os chamados tipos clássicos de Sillence são os I, II, II e IV, de hereditariedade dominante (AD), surgindo respectivamente com as seguintes frequências, respectivamente 50%, 5%, 20%, 20%.

Tipo I (ligeira)

As principais características da OI do tipo I são: fragilidade óssea (com 10% dos casos evidenciando fracturas ao nascer), escleróticas azuis e estatura média normal ou ligeiramente inferior à normal; mutação no gene COL1A1.

Estão descritos dois subtipos: IA, com dentes normais, e IB, com dentinogénese imperfeita (com a particularidade de haver com maior frequência fracturas ao nascer, deformidades esqueléticas mais acentuadas e estatura final mais baixa). Quanto ao subtipo IB admite-se que possa dever-se a uma mutação do gene da fosforina, uma glicoproteína implicada na mineralização da matriz da dentina.

Tipo II (letal perinatal)

A OI do tipo II é letal no período perinatal, sendo a sua manifestação fundamental a fragilidade óssea extrema. Aparece de forma esporádica. Escleróticas azuis. Mutação nos genes COL1A1 ou COL1A2.

Tipo III (deformante progressiva)

A OI do tipo III evidencia osteopénia marcada com frequentes fracturas e deformidades secundárias progressivas. Escleróticas brancas ou azuis claras. Muito frequente a presença de cifoscoliose deformante, do que pode resultar disfunção respiratória restritiva. Baixa estatura e diminuição da expectativa de vida. Mutação nos genes COL1A1 ou COL1A2.

Tipo IV (moderada a grave)

A OI do tipo IV é dum modo geral mais benigna, não se lhe associando escleróticas azuis. Encurvamento tibial mais marcado. Escleróticas brancas. Mutação nos genes COL1A1 ou COL1A2.

Tipos V (calosa hiperplásica) e VI (hiperosteóide com deficiente mineralização)

Estes tipos, evidenciando alterações esqueléticas semelhantes às do tipo IV e igual frequência (< 5%) na população global de OI, distinguem-se entre si quanto às alterações histológicas definidas nos subtítulos. Escleróticas brancas. Tipo V com transmissão AD e mutação no gene IFITM5; tipo VI com transmissão autossómica recessiva (AR) e mutação no gene SERPINF1.

Tipos VII, VIII e IX (autossómicos recessivos/AR)

A OI dos referidos tipos mostra características semelhantes às dos tipo II e III. A do tipo VII, com rizomélia, símile acondroplasia, produzida por uma mutação no gene CRTAP evidencia características semelhantes às do tipo III, e a do tipo VIII (também com rizomélia e símile acondroplasia) semelhantes às do tipo II, mas de modo mais ligeiro e com mutação no gene LEPRE. (Os genes CRTAP e LEPRE codificam dois dos componentes do colagénio no retículo endoplásmico: prolil 3 hidroxilase/P3H1 ou da sua proteína associada).

O tipo IX, semelhante ao VIII, decorre de mutação no gene PPIB (peptidilpropilisomerase B).

Tipos X e XI, XII e XIII (autossómicos recessivos/AR)

A OI do tipo X apresenta características intermédias entre as do tipo I e II, com mutação no gene SERPINH. A do tipo XI mostra características da do tipo III, com mutação no gene FKBP10. Quanto à OI dos tipos XII e XIII, respectivamente com mutações nos genes SP7 e PMO1 são verificadas características similares às do OI do tipo III.

De referir que existem algumas formas de OI não classificadas, com quadros clínicos variáveis (entre formas moderadas e formas graves), correspondentes a defeitos nos genes SP7, TMEM38B e WNT1.

Exames complementares

No âmbito da vigilância pré-natal, cabe referir que a ecografia fetal poderá não detectar as OI dos tipos I e IV.

Em situações de história familiar com casos recorrentes, a biópsia das vilosidades coriónicas poderá ser utilizada para estudos moleculares ou bioquímicos.

O exame radiográfico pode mostrar sinais de osteopénia, diminuição da espessura da cortical dos ossos longos, deformações vertebrais, deformação dos ossos longos e calos de fractura.

O aspecto radiográfico dentário característico, na forma de OI tipo IB (dentinogénese imperfeita) evidencia estreitamento das câmaras pulpares, adelgaçamento do esmalte e das raízes, o que confere um aspecto em “sino”.

A densitometria óssea mostra, nos ossos não fracturados, densidade mineral óssea diminuída.

A histopatologia óssea pode evidenciar um vasto leque de alterações da mineralização, aumento da porosidade cortical e adelgaçamento trabecular, assim como alterações da distribuição e organização das fibras de colagénio I; contudo, estes achados sendo inespecíficos, não são utilizados para a fundamentação diagnóstica.

Na prática, o diagnóstico é confirmado pelos estudos bioquímicos do colagénio, utilizando fibroblastos cultivados a partir de biópsia da pele. Com efeito, a realização de culturas de fibroblastos demonstra diminuição da síntese das cadeias pró-alfa-1 (I) do procolagénio de tipo I.

Quanto a estudos moleculares, por vezes, recorre-se à análise de ADN para identificar a mutação associada ao quadro clínico e, se necessário, uma prova de PCR em membros da família.

Nos casos de complicações neurológicas – designadamente invaginação basilar e risco de compressão do tronco cerebral – mais prováveis nos tipos III e IV, a TAC espiral poderá ser de grande utilidade.

Diagnóstico diferencial

A presença de fracturas ósseas no período neonatal implica estabelecer o diagnóstico diferencial com maus tratos físicos, acondroplasia, displasia tanatófora, ou distrofia torácica asfixiante; a verificação de valores de fosfatase alcalina normais ou elevados na OI neste período permite fazer a destrinça com hipofosfatasia.

Na primeira e segunda infância, em função dos antecedentes, poderá admitir-se a possibilidade de maus tratos físicos, escorbuto, sífilis congénita, hiperostose cortical infantil, osteopetrose, picnodisostose e outras síndromas em que se verifica densidade óssea aumentada (de facto a fragilidade óssea tanto pode aparecer, quer em situações de osteopénia, quer em situações de hiperostose).

Na adolescência, a OI deve diferençar-se da osteoporose juvenil (entidade que parece dever-se a diminuição da formação do colagénio I nas vértebras), da homocistinúria, do hipercorticismo, da displasia fibrosa e da osteomalácia resultante de síndroma da má absorção.

Nos adultos, o diagnóstico de OI deve considerar-se sempre que se verique fractura patológica, osteopénia no sexo masculino ou em mulheres na pré-menopausa, ou ainda osteopénia grave em mulheres pós-menopáusicas; nos adultos ainda, o diagnóstico diferencial estabelece-se fundamentalmente com a osteoporose secundária a neoplasias hematológicas, endocrinopatias e osteomalácia. De salientar a probabilidade de casos descritos de osteoporose familiar constituírem, de facto, variantes ligeiras de OI.

Prevenção secundária e tratamento

Há que instruir a família e o doente sobre a necessidade de evitar traumatismos e actividades violentas, assim como sobre as medidas habituais de urgência (analgesia, imobilização, etc.) antes de observação por especialista de orto-traumatologia.

O tratamento ortopédico das fracturas, assim como as medidas de reabilitação incluindo fisioterapia, são fundamentais para reduzir o impacte da doença sobre a capacidade funcional.

As fracturas consolidam com facilidade, não se acompanhando, em geral, de angulações significativas dos topos; nos casos graves poderá ser necessário tratamento cirúrgico ortopédico.

Depois da puberdade há tendência para diminuir a probabilidade de fracturas, para voltar a aumentar nos períodos de gravidez e na pós-menopausa.

Tem-se preconizado o uso de bifosfonatos com o objectivo de aumentar a massa óssea e diminuir a taxa de fracturas; mas não existem ainda estudos controlados que permitam garantir a eficácia de tal medida. Estudos recentes sugerindo a utilização de pamidronato intravenoso nos casos de OI grave demonstraram diminuição da taxa de fracturas.

A hormona de crescimento (GH) tem sido utilizada com eficácia, sobretudo nos tipos I e IV.

A transplantação de células estaminais, contendo células de estroma com capacidade de diferenciação em osteoblastos, está a ser estudada em crianças com OI do tipo III grave.

A hipoacusia trata-se inicialmente com próteses auditivas sem dispensar, no entanto, em fase ulterior, tratamento cirúrgico do foro otorrinolaringológico.

O tratamento da dentinogénese é sintomático, preconizando-se a aplicação de selantes para reduzir a abrasão da superfície dentária.

Evolução e complicações

Os pacientes afectados pela forma I e alguns pela forma IV, dum modo geral têm marcha autónoma sem ajuda. Nas crianças com OI tipos II, V, VI, e XI necessitam de apoio mais ou menos complexo (canadianas, cadeira de rodas, etc.) beneficiando de fisioterapia e programa de natação.

As complicações mais frequentemente descritas são do foro cardiorrespiratório (pneumonias recorrentes, e cor pulmonale) e neurológico (invaginação basilar, compressão do tronco cerebral e hidrocefalia), entre outras.

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DISPLASIAS ESQUELÉTICAS E DOENÇAS AFINS – CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Definição e importância do problema      

As displasias esqueléticas, também designadas osteocondrodisplasias/OCD, integram um grupo, clínica e geneticamente  muito heterogéneo, de entidades caracterizadas por alterações do crescimento e desenvolvimento do esqueleto (osso e cartilagem – esta última com importância na formação óssea -, em cuja composição entra o tecido conectivo).

Com uma prevalência na data do nascimento cerca de 1/4.000, tal patologia é explicável por mutações em genes. De salientar que há formas clínicas que se manifestam durante o primeiro ano de vida ou, mais tarde, na segunda infância.

De acordo com a mais recente classificação de tais doenças (International Working Group on Bone Dysplasias, 2015 e The Nosology and Classification of Genetic Skeletal Disorders and Online Mendelian Inheritance in Man – OMIM; www.omim.org/), foram já identificadas cerca de 450 entidades, divididas em 42 grupos, relacionados com 364 genes conhecidos.

Embora as manifestações clínicas se relacionem com o esqueleto, na maioria dos casos, os tecidos não esqueléticos estão também envolvidos. Aquelas têm, pois, um largo espectro, oscilando entre ligeiras e por vezes não detectadas, e formas graves e letais in utero. A letalidade, num contexto de hipocrescimento desarmónico, resulta geralmente de tórax de reduzidas dimensões, de hipoplasia pulmonar e de disfunção respiratória.

Muitas displasias esqueléticas graves podem ser diagnosticadas no período pré-natal por ecografia a partir das 20 semanas de gestação, aspecto com implicações clínicas importantes no plano de actuação futura. O diagnóstico é também já possível através do estudo do ADN fetal em sangue da mãe, grávida.

Quanto à hereditariedade, são descritos diversos padrões principais: autossómico recessivo ou dominante (AR, AD), dominante ou recessivo ligado ao X, e ligado ao Y. A acondroplasia, produzida por alteração no gene FGFR3, é a displasia óssea mais frequente, apresentando-se com uma incidência em nados vivos de 1/10.000 a 1/30.000. (ver adiante)

Histopatologia fundamental

Relevando a importância da cartilagem na formação e desenvolvimento do esqueleto, a repercussão do osso e da cartilagem nos músculos, tendões e ligamentos, e o facto de o tecido conectivo fazer parte da composição do osso e cartilagem, importa referir esquematicamente que a patologia em análise pode ser consequência de alteração:

  • do tecido mesenquimatoso ou forma jovem do tecido conectivo (o qual tem como elemento constitutivo essencial fibrilhas da proteína principal – colagénio – que actuam como elemento de suporte dos tecidos de diversos órgãos e sistemas);
  • da actividade de osteoblastos e osteoclastos; ou ainda
  • de outras proteínas complexas da matriz extracelular.

Aspectos semiológicos 

A abordagem dos casos sugestivos de displasia esquelética implica um conjunto de procedimentos semiológicos, salientando sucintamente:

  1. Anamnese, a qual deverá inquirir sobre antecedentes familiares tendo em atenção aspectos somatométricos dos progenitores e doutros familiares;
  2. Somatometria rigorosa do paciente: peso, comprimento ou altura, perímetro cefálico, comprimento do braço, relação segmento superior (SS) do corpo/segmento inferior (SI) do corpo.
    • A relação SS/SI considerada normal até à adolescência oscila entre 1,6 e 0,93; se tal relação no recém-nascido for superior a 1,8 está-se em geral perante uma situação de baixa estatura desproporcionada associada a membros curtos; se a relação for inferior 0,93 está-se em geral perante uma situação de baixa estatura com tronco curto.
      Se as extremidades dos dedos das mãos (habitualmente atingindo a coxa no seu terço superior) estiverem ao nível da crista ilíaca ou acima desta, a desproporção torna-se evidente.
    • Importa igualmente averiguar qual a região do corpo com maior encurtamento (segmento do membro ou tronco).
      Se a porção proximal de um membro – respectivamente úmero ou fémur – constituir a parte mais curta, está-se perante um encurtamento chamado rizomélico (por ex. acondroplasia). Se o encurtamento afectar a parte medial do membro – respectivamente antebraço ou perna – o encurtamento é designado mesomélico. Se o encurtamento se verificar na parte distal do membro – respectivamente mãos e pés – o encurtamento é chamado acromélico.
      Se o tronco corresponder à área predominantemente mais curta, o mesmo é acompanhado de pescoço, tórax e coluna vertebral mais curtos.
  3. Detecção de eventuais anomalias associadas salientando-se a prioridade da observação, logo no período neonatal da laringe, traqueia e região cervical.
  4. Exame radiográfico do esqueleto com medições dos vários segmentos dos membros, tórax, coluna (salientando-se a elevada incidência de anomalias vertebrais cervicais, etc..
  5. Exames complementares vários a seleccionar em função do contexto clínico: estudo citogenético, exame da pele (histoquímico, cultura de fibroblastos para estudo do colagénio, etc.), bioquímico (balanço do cálcio/fósforo, fosfatase alcalina, etc.), genético, biomolecular, biópsia da cartilagem e do osso, etc..

Manifestações clínicas

As osteocondrodisplasias mais representativas e ou frequentes integram os seguintes grandes grupos:

I – Displasias esqueléticas propriamente ditas

  1. Relacionadas com o crescimento ósseo
    1. Osteodisplasias cujo exemplo prototípico é a osteogénese imperfeita, que se distingue das restantes pela fragilidade óssea, associada às características gerais atrás referidas;
    2. Condrodisplasias, associadas a genes que são essenciais para o crescimento e desenvolvimento do esqueleto, tendo em conta o papel da cartilagem na formação óssea; as mesmas englobam dois subgrupos:
      2.1) casos em que predominam membros curtos; e
      2.2) casos em que predomina tronco curto.
  2. Não relacionadas com o crescimento ósseo
    1. Disostoses, ou anomalias isoladas de determinado osso ou de ossos de determinada região anatómica não conduzindo em geral a encurtamento da estatura e ou dos membros, e cuja etiopatogénese pode ser diversa. Em geral, trata-se de alterações simétricas, deformações esqueléticas, mobilidade articular anormal, protuberâncias articulares ou periarticulares, deformações ósseas da base do crânio, costelas curtas, fenda palatina, etc., que, por sua vez, podem afectar os tecidos não esqueléticos.

II – Displasias não esqueléticas (ou do tecido conectivo)

Estas afecções, em geral designadas por não esqueléticas (mais propriamente, predominatemente não esqueléticas), partilham características comuns com as displasias esqueléticas no que se refere à etiopatogénese (mutação de determinados genes com papel especial no referido tecido conectivo) e têm uma expressão clínica mais relevante ao nível de tecidos não esqueléticos (exceptuando na síndroma de Marfan e aracnodactilia congénita). Como exemplos, citam-se: defeitos cardíacos na síndroma de Ellis-van-Creveld, descolamento da retina na displasia espondiloepifisária, disfunção renal na distrofia torácica asfixiante, imunodeficiência na hipoplasia cartilagem-cabelo, etc..

Notas importantes:

    • Algumas destas entidades mais representativas deste grupo de displasias, consideradas por alguns autores separadamente das osteocondrodisplasias, são descritas em capítulos ulteriores.
    • Para além dos grandes grupos atrás referidos existe ainda uma multiplicidade de situações (metabólicas, nutricionais, etc.) com expressão esquelética, cuja etiopatogénese é extrínseca aos ossos ou ainda não está completamente esclarecida.

Etiopatogénese e nosologia

Actualmente, quer as displasias predominantemente esqueléticas, quer as predominantemente não esqueléticas, são classificadas e agrupadas tendo em conta determinados critérios etiopatogénicos interligados e baseados na genética, na biologia molecular, e nas manifestações clínicas e radiográficas.

Aspectos da patogénese

Conhecem-se mais de 360 genes que expressam de forma específica as proteínas do colagénio, dando lugar a diferentes tipos de colagénio tri-helicoidal. As mutações nos genes destes tipos de colagénio e nos genes que sintetizam outras proteínas da matriz extracelular dão lugar a diferentes fenótipos.

O atingimento ósseo pode dever-se à alteração do crescimento e da diferenciação das diversas células que fazem parte do tecido ósseo (condroblastos, condrócitos, osteoblastos, osteócitos, osteoclastos), assim como às alterações das proteínas que constituem a matriz extracelular, sobretudo o colagénio, com implicação nas alterações, quer ósseas, quer do tecido conectivo.

Considerando os diferentes tipos de colagénio (29 tipos), são os colagénios fibrilhares e, em especial, do tipo I, II, IX, e XI os mais implicados nas displasias ósseas.

Também as alterações de outras moléculas proteicas complexas, como a proteína oligomérica da matriz do colagénio – POMC ou proopiomelanocortina, a matrilina 3, e os proteoglicanos (decorina, betaglicano, etc.) são causa de displasias esqueléticas.

As alterações dos proteoglicanos e outras moléculas, como as glucoproteínas de adesão, permitindo que a matriz extracelular (perlecano, filamina, fibronectina, tenascina, laminina, entactina, condronectina e osteonectina) adira às células, estão também implicadas neste grupo de doenças.

De referir que os iões sulfato são fundamentais para a célula cartilagínea e para a síntese de proteoglicanos destinados à formação da matriz extracelular; do défice de sulfato nos proteoglicanos da cartilagem resultam as manifestações clínicas e o fenótipo.

Todos estes processos são regulados por distintas hormonas que actuam no crescimento e mineralização ósseos:

  • Hormona paratiroideia ou paratormona (PTH), calcitonina, vitamina D e seus metabólitos.
  • Hormona de crescimento (GH) e factor de crescimento análogo da insulina (IGF-1), tri-iodotironina (T3). Existem receptores para a IGF-1 ao nível da zona de proliferação da cartilagem de conjugação. T3 actua na maturação óssea mediante efeito directo sobre a diferenciação do condrócito, e indirecto, ao estimular GH e IGF-1.
  • Androgénios e estrogénios que aumentam a produção de osteoblastos e favorecem a fusão metáfise-epífise.
  • Hormonas do córtex suprarrenal inibindo o crescimento através do seu efeito anti-GH.

Aspectos genéticos e moleculares

Os progressos da biologia molecular e da genética permitiram concluir que diversos quadros clínicos de displasias esqueléticas e não esqueléticas resultam de mutações de genes que codificam proteínas colagénicas e não colagénicas, as quais fazem parte da matriz extracelular da cartilagem e do osso, essenciais para o crescimento e desenvolvimento do esqueleto; são exemplo o factor de crescimento dos fibroblastos E-3, o colagénio dos tipos II e I, este último o principal colagénio do osso.

As anomalias do tecido conjuntivo, esporádicas ou hereditárias, derivam, em princípio, de mutações de um só gene. Admite-se que na grande maioria se trata de mutações de novo, não se tendo identificado qualquer situação de risco epidemiológico associado a agentes externos indutores.

Salienta-se, a propósito, que as mutações conhecidas na actualidade são de dois tipos fundamentais: mutações pontuais (que afectam apenas um nucleótido) ou deleções/grandes inserções (que afectam vários nucleótidos).

O efeito da mutação sobre a função duma proteína também é muito variável: pode produzir diminuição, anulação ou transformação da referida função. Em muitos destes transtornos, a detecção de portadores da anomalia somente é possível analisando os polimorfismos do ADN no indivíduo e na sua família.

Nas doenças com gene conhecido podem empregar-se técnicas de diagnóstico directo mediante amplificação por PCR (polymerase chain reaction ou reacção em cadeia da polimerase).

Actualmente investiga-se a hipótese de determinado fenótipo poder corresponder a dois ou mais genes. Neste tipo de patologia, a transmissão hereditária (complexa, como foi referido no início) pode evidenciar um tipo de transmissão autossómica dominante muito marcado. Em certos casos, a descendência de um indivíduo normal pode levar ao aparecimento de dois ou mais indivíduos gravemente afectados; este último padrão, sugestivo de transmissão autossómica de modo recessivo, pode corresponder a mosaicismos germinais no progenitor.

Como resultado da investigação em biologia molecular, foram identificados seis mecanismos – cada mecanismo numerado e identificado com dígitos entre parêntesis, de (1)… a (6), a que correspondem outros tantos grupos de entidades clínicas, servindo de base à já referida classificação e nosologia OMIM:

(1) Alterações dos receptores transmembranares
(2) Alterações do colagénio e das proteínas da matriz da cartilagem
(3) Alterações do sistema de transporte transmembranar do sulfato
(4) Alterações dos factores de transcrição do ADN
(5) Alterações da densidade óssea (excesso ou defeito de reabsorção óssea)
(6) Anomalias de etiopatogénese desconhecida/não completamente esclarecida.

Nosologia

O Quadro 1 discrimina os grupos de displasias esqueléticas (numeração romana de I a XXI correspondendo às características clínicas mais marcantes) e identificados no período neonatal, com especificação do mecanismo patogénico de base atrás explicado, de (1) a (6), e ou do tipo de hereditariedade, e do gene ou genes implicados.

QUADRO 1 – Displasias esqueléticas identificadas no período neonatal

Grupo ou Nome da DoençaMecanismoModo de HereditariedadeGene
I. Alteração do receptor 3 do factor do crescimento do fibroblasto (FGFR3)
Displasia tanatófora (letal no RN)(1)ADFGFR3
Acondroplasia(1)ADFGFR3
Hipo/pseudo/acondroplasia(1)ADFGFR3
Acondroplasia grave com atraso do desenvolvimento e acanthosis nigricans(1)ADFGFR3
II.Doenças do colagénio tipo II
Acondrogénese II (letal) ADCOL2A1
Hipocondrogénese (letal) ADCOL2A1
Displasia espondiloepifisária(2)ADCOL2A1
Displasia de Kniest(2)ADCOL2A1
Displasia de Stickler (osteoartro-oftalmopatia)(2)ADCOL2A1
Displasia de Strudwick(2)ADCOL2A1
III.Doenças do colagénio tipo X1
Fibrocondrogénese ARCOL11A1
Fibrocondrogénese ADCOL11A1, COL11A2
Displasia otoespondilomegaepifisária ARCOL11A2
IV.Doenças do sistema de transporte do sulfato
Acondrogénese IB(3)ARSLC26A2
Atelosteogenénese II(3)ARSLC26A2
Displasia diastrófica(3)ARSLC26A2
Condrodisplasia com luxações articulares congénitas ARCHST3
V.Doenças do perlecano
Displasia dissegmentar ARPLC
Displasia dissegmentar, tipo Silverman-Handmaker ARPLC
Displasia dissegmentar, tipo Rolland Desbuquois ARPLC
VI.Doenças das filaminas e similares
Síndroma otopalatodigital I and II(6)XLDFLNA
Displasia fronto-metafisária, síndroma de Melnick-Needles XLDFLNA
Atelosteogénese tipos I e III ADFLNB
Síndroma de Larsen ADFLNB
Displasia de Boomerang (espondilo-cárpico-társica) ARFLNB
Síndroma com rim poliquístico e fibula em serpentina ADNOTCH2
VII. Doenças TRPV4
Displasia metatrópica(6)ADTRPV4
Displasia espondilometafisária, tipo Kozlowski(6)ADTRPV4
VIII.Displasias de costela curta (com ou sem polidactilia)
Displasia condroectodérmica (Ellis-van Creveld)(6)AREVC1, EVC2
Síndroma de costela curta e polidactilia I, II, III, e IV incluindo distrofia torácica asfixiante (Jeune)(6)ARDYNC2H1, IFT80, NEK, WDR35, WDR19, WDR34
Displasia toracolaríngea AD?
IX.Displasias metafisárias
Hipoplasia cartilagem-cabelo (McKusik)(6)ARRMRP
Displasia metafisária, tipo Jansen(1)ADPTHR1
X.Displasia espondilo-epi-(meta)-fisária    
Síndroma de membro curto e calcificação anormal ARDDR2
XI.Displasias espondilodisplásicas
Acondrogénese 1A ARGMAP210
Displasia de Schneckenbecken ARSLC35D1
Opsismodisplasia ARINPPL1
XII.Doenças acromesomélicas
Displasia acromesomélica, tipo Maroteaux ARNPR2
XIII.Displasias mesomélicas e rizo-mesomélicas
Discondrosteose homozigótica tipo Langer Pseudo-AR/XLDSHOX
Omodisplasia ARGPC6
Síndroma de Robinow, recessiva ARROR2
Síndroma de Robinow, dominante ADWNT5
XIV.Displasias de osso arqueado
Displasia campomélica(4)ADSOX9
Displasia de Stuve-Wiedemann ARLIFR
Displasia de osso arqueado tipo FGFR2 ADFGFR2
Nanismo osteodisplásico microcefálico primordial 1 ARRNU4ATAC
Nanismo osteodisplásico microcefálico primordial 2 ARPCNT
Osteocraniostenose ?FAM111A
XV.Displasias de osso delgado
Nanismo osteodisplásico microcefálico primordial 1 ARRNU4ATAC
Nanismo osteodisplásico microcefálico primordial 2 ARPCNT
Osteocraniostenose ?FAM111A
XVI.Displasias com múltiplas luxações
Displasia de Desbuquois ARCANT1, XYLT1
Displasia pseudodiatrófica AR?
XVII.Grupo da condrodisplasia punctata  (CDP)
CDP, ligada ao X, dominante XLDEBP
Tipo Conradi-Hunermann (CDPX2) XLRARSE
Tipo braqui-tele-falângica (CDPX1) XLDNSDHL
Hemidisplasia congénita com eritrodermia ictiosiforme e defeitos dos membros –síndroma CHILD XLDEBP
Displasia de Greenberg ARLBR
CDP rizomélica tipo 1 ARPEX7
CDP rizomélica tipo 2 ARDHPAT
CDP rizomélica tipo 3 ARAGPS
XVIII.Displasias  osteoscleróticas neonatais
Displasia de Bloomstrand ARPTHR1
Desmosterolose ARDHCR24
Doença de Caffey (infantil)(6)ADCOL1A1
Displasia de Raine ARFAM20C
XIX.Grupo de densidade óssea aumentada
Osteopetrose (formas neonatais ou infantis graves)(5)ARTCIRG1
Osteopetrose (formas neonatais ou infantis graves)(5)AR e ADCLCN7
Disosteosclerose /picnodisostose(5)ARSLC29A3
Displasia hiperostótica de Lenz-Majewski SPPTDSS
XX.Osteogénese imperfeita e grupo de densidade óssea diminuída
Osteogénese imperfeita (OI), moderada, grave e perinatal letal(5)ADCOL1A1, COL1A2, IFITM5
OI moderada, grave e perinatal letal(5)ARCRTAP, P3H1,PPBI, FKBP10, HSP47, SP7, WNT1, TMEM33B
Síndroma de Bruck ?PLOD2, FKBP10
Síndroma de osteoporose-pseudoglioma ARLRP5
Displasia de Cole-Carpenter SPSEC24D, P4HB, CRTAP
XXI.Grupo com mineralização anormal
Hipofosfatasia, formas perinatal e infantil(5)AR e ADTNSALP

Reportando-nos ao Quadro 1 e tendo em consideração os objectivos pedagógicos do livro, optou-se por uma selecção das entidades clínicas de maior prevalência e ou fazendo parte da iconografia dos autores, e mais conhecidas pelo médico de família e pelo pediatra geral (respectivamente grupos I, II, IV, VI, VII, VIII, IX, XIV, XVII, XVIII, XIX, XX e XXI.

I.

  • Displasia tanatófora, habitualmente letal, caracterizada por hipocrescimento micromélico, macrocefalia (Figuras 1 e 2).

FIGURA 1 – Displasia tanatófora (fenótipo) (NIHDE)

FIGURA 2 – Displasia tanatófora. Radiografia do esqueleto evidenciando sinais de situs inversus, encurtamento e encurvamento dos ossos longos (NIHDE).

  • Acondroplasia, como foi referido, a displasia esquelética mais frequente, verificando-se hipocrescimento rizomélico, macrocefalia, fronte proeminente, ponte nasal plana ou deprimida, e mãos curtas com dedos “em tridente” na extensão. Atingimento precoce do desenvolvimento motor, cifose toracolombar e sintomatologia da via respiratória superior, incluindo apneia do sono, e otites de repetição (Figuras 3 e 4).

FIGURA 3 – Acondroplasia (NIHDE).

FIGURA 4 – Mão de criança com acondroplasia (NIHDE).

  • Hipocondroplasia ou pseudoacondroplasia, cerca de vinte vezes mais rara do que a acondroplasia (~1/200.000): hipocrescimento, normocefalia, mãos e pés pequenos. Forma semelhante à acondroplasia, embora mais ligeira. Casos descritos submetidos a tratamento com hormona do crescimento e melhoria do crescimento e da desproporção corporal.
Nota: A abordagem das entidades clínicas que integram a alínea I é retomada noutro capítulo.

II.

  • Acondrogénese tipo II / hipocondrogénese, letais: hipocrescimento, extremidades curtas, normocefalia.
  • Displasia congénita espondiloepifisisária: displasia rara (~1/300.000), caracterizada por hipocrescimento de tronco curto, artropatia, achatamento facial, palato fendido, miopia, degenerescência retiniana, descolamento da retina, mielopatia cervical e hipotonia. Formas evidenciando traqueomalácia e insuficiência respiratória. Atraso da ossificação epifisária, coxa vara progressiva. Instabilidade atlanto-axial, com compromisso neurológico. 
  • Displasia de Kniest: estatura baixa, extremidades curtas, pés botos, artropatia dolorosa, rigidez e contracturas em flexão, palato fendido, défice auditivo, miopia, descolamento da retina. Imagem radiológica de irregularidades epifisárias e de alargamento metafisário. 
  • Displasia de Strudwick: hipocrescimento, pectus carinatum, escoliose, palato fendido, miopia, degenerescência retiniana, mielopatia cervical.
  • Síndroma de Stickler (Osteoartro-oftalmopatia): pelas manifestações articulares e oculares, assemelha-se à displasia espondiloepifisária. A mesma evidencia fenda palatina, alterações orofaciais/ micrognatia, hipoacúsia, exoftalmo, epicanto, miopia grave, cataratas, descolamento retiniano, pés equinovarus, encurtamento rizomélico, atraso mental, hipotonia, prolapso mitral.
    Ao contrário das restantes entidades que fazem parte do grupo II, com o mecanismo (2), nesta displasia não existe baixa estatura.
Notas importantes:
    • Nas entidades que integram o grupo II e o mecanismo (2), a alteração da síntese do procolagénio de tipo II, que existe principalmente na cartilagem hialina e no humor vítreo, explica que se verifiquem repercussões fundamentalmente em estruturas oculares, coluna vertebral e epífises dos ossos longos.
    • Reitera-se que em todas as referidas entidades clínicas é característica marcante a baixa estatura, exceptuando no caso da displasia de Stickler.
    • Esta última, pelo compromisso articular e ocular assemelha-se à displasia espondiloepifisária.
    • No recém-nascido, pela micrognatia e fenda palatina, assemelha-se à anomalia de Pierre Robin.

IV.

Da família ou grupo IV (doenças do sistema de transporte do sulfato), a que corresponde o mecanismo (3), destacamos:

  • Acondrogénese do tipo IB – hipocrescimento rizomélico neonatal grave, escassa ou ausente ossificação vertebral, pélvica e craniana, crânio mole, fémures curtos; frequentemente letal.
  • Atelosteogénese do tipo II – frequente morte in utero ou prematuridade, hipocrescimento micromélico grave, hipoplasia dos corpos vertebrais, hipoplasia dos úmeros e fémures, escassa ossificação do cúbito e perónio.
  • Displasia diastrófica – hipocrescimento micromélico, indicador curto, polegar implantado mais proximalmente, afastado dos dedos restantes e perpendicular ao eixo do membro superior, 1º metacárpico ovóide, pé equinovaro, cifoscoliose, anomalias dos pavilhões auriculares, palato fendido, micrognatia. A radiografia da mão evidencia ossos das falanges e metacárpicos irregulares e curtos (Figura 5).

FIGURA 5 Displasia diastrófica. (NIHDE)

Nota importante: tal como nas duas entidades anteriores (desta alínea IV), a displasia diastrófica associa-se à presença de mutações heterozigóticas do gene transportador de iões sulfato (SLC26A2) localizado em 5q31-q34. O modo de transmissão é autossómico recessivo em todas estas afecções; para a manifestação da doença é condição fundamental a presença de dois alelos mutantes, sendo que o fenótipo é determinado pela combinação de alelos mutantes. 

VI.

As filaminas A e B estabelecem conexão funcional das proteínas estruturais extracelulares com as intracelulares; tal é fundamental para o crescimento e desenvolvimento esquelético.

Mutações nos genes codificando as proteínas filaminas A foram detectadas em diversas alterações do desenvolvimento esquelético:

  • Síndroma otopalatodigital tipos I e II e
  • Displasia fronto-metafisária e, ainda
  • Síndroma de Melnick-Needles.

Quanto a mutações nos genes relacionados com as filaminas B, citam-se:

  • Síndroma de Larsen
  • Atelosteogénese tipos I e II, perinatais letais e,
  • Displasia de Boomerang (espôndilo-cárpico-társica).

VII.

  • Displasia metatrópica – entidade com nome derivado da palavra grega metatropos significando” mudança de padrão”; neste caso, modificação das proporções corporais com a idade. O fenótipo no RN chama a atenção por tronco estreito e longo, a par de extremidades curtas. Por vezes nota-se apêndice ou pequena “cauda” ao nível da região sagrada. Outros achados incluem: hipoplasia odontoide, por vezes associada a instabilidade cervical; cifoescoliose acentuando-se com a idade e conduzindo a alterações da postura e a insuficiência respiratória; articulações proeminentes levando a restrição da mobilidade, exceptuando nas mãos; rigidez articular progressiva, notória sobretudo nas ancas e joelhos; platispondilia com alargamento dos espaços intervertebrais; epífises inferiores do fémur em sino, com alargamento das respectivas metáfises; hipoplasia dos ossos ilíacos. Atingindo a idade adulta (com estatura baixa, de 110-120 cm), pode agravar-se a função respiratória, levando a morte prematura.
  • Displasia espondilometafisária, tipo Kozlowski. O fenótipo desta displasia é dominado por escoliose e platispondilia progressivas. Manifesta-se na primeira infância, com baixa estatura envolvendo sobretudo o tronco, e mãos e pés curtos; alargamento e mineralização irregular das metáfises, especialmente no fémur proximal. As manifestações limitam-se ao esqueleto. Na idade adulta, a estatura ronda os 130-150 cm.

VIII.

  • Displasia condroectodérmica (síndroma de Ellis-van Creveld) – Hipocrescimento, membros curtos (segmentos médio e distal), polidactilia pós-axial, dente congénito, tórax estreito e comprido, displasia das unhas, defeitos cardíacos, genu valgum, ilíacos curtos e quadrangulares, disfunção renal, disfunção hepática, cabelos escassos; adultos baixos (119-161 cm); problemas respiratórios ou cardíacos em 30% dos casos. 
  • Síndromas de costela curta e polidactilia – Letal no RN por estreitamento da caixa torácica, levando a insuficiência respiratória; polidactilia, extremidades curtas e outras anomalias associadas. 
  • Distrofia torácica asfixiante (síndroma de Jeune) – Fácies aparentemente normal; fenótipo semelhante ao da síndroma de Ellis –Van Creveld; caixa torácica longa e estreita associada a hipoplasia pulmonar, membros curtos, polidactilia; casos descritos evidenciando má-absorção intestinal e disfunção hepática.

IX.

  • Hipoplasia cartilagem cabelo (condrodisplasia metafisária – tipo McKusick) – Esta displasia, rara, surge com incidência compreendida entre 1/700 (nos EUA) a 1/ 18.000 nascimentos (na Finlândia). Para além das manifestações esqueléticas (baixa estatura, arqueamento femoral, alargamento das metáfises, perónio mais comprido que a tíbia, hipoplasia das cartilagens, platispondilia, encurtamento das falanges associado a alargamento da região metacárpica), evidencia sinais não esqueléticos (cabelo escasso e frágil, neutropénia, défice imunitário (anomalias das células T, neutropenia, leucopenia, e susceptibilidade a infecções por vírus da varicela); igualmente estão descritos casos associados a doença de Hirschprung, doença celíaca e a susceptibilidade a neoplasias como tumores cutâneos e linfomas. A altura na idade adulta é ~107-157 cm. 
  • Displasia metafisária, tipo Jansen – Trata-se duma condrodistrofia primária muito rara. É causada por uma mutação no gene PTHrP localizado em 3p21-p22, o qual codifica o receptor peptídico relacionado com a paratormona.
    Associada a baixa estatura, é caracterizada por metáfises alargadas e concavas, inicialmente com acentuado grau de osteólise (zonas com lacunas /”ratamento” de densidade óssea diminuída, em”mapa geográfico”); com o tempo, a esse nível, surge calcificação nas extremidades distais dos ossos longos dos membros inferiores (tíbia, perónio e fémur). Vértebras igualmente afectadas, com irregularidades no crescimento. Surge hipercalcémia (13-15 mg/dL).
    O diagnóstico diferencial faz-se com a condrodisplasia metafisária tipo Schmid, com manifestações mais ligeiras, embora as alterações ao nível da anca sejam mais debilitantes que na de tipo Jansen; a displasia tipo Schmid está relacionada com defeitos no colagénio tipo X, alfa 1 relacionados com mutações no gene COL10A1, localizado em 6q21-q22.3.

 XIV.

  • Displasia campomélica – No âmbito das displasias que têm como mecanismo básico as alterações dos factores de transcrição do ADN-mecanismo designado por (4), ressalta a displasia campomélica, considerada historicamente uma condrodisplasia. Aparente na data de nascimento, chama a atenção a baixa estatura, o arqueamento dos membros, sobretudo dos inferiores (fémur e tíbia arqeuados); o exame radiográfico do esqueleto evidencia conformação de crânio grande e pequena face, micrognatismo, tórax pequeno, hipoplasia ou ausência das omoplatas, ossos da bacia hipoplásicos e extremidades inferiores curtas. A par de sinais esqueléticos, verificam-se manifestações não esqueléticas, como dificuldade respiratória, sintomatologia neurológica, cardíaca e renal. (Figuras 6 e 7).
    Cumpre anotar que alguns autores incluem neste grupo, cujo mecanismo é o assinalado por (4), certas disostoses (anomalias apenas de certos ossos), como a displasia cleidocraniana (ausência de clavículas e ombros descidos e estreitos, fronte proeminente, escafocefalia, paralisia facial, etc.), e a síndroma nail-patella ou da unha rótula (osteo-onicodisostose), caracterizada essencialmente por displasia das unhas e ausência ou hipoplasia da rótula.

FIGURA 6 – Displasia campomélica. Pormenor do encurtamento da coxa direita.

FIGURA 7 – Displasia campomélica. Hemissoma direito. Pormenor do aspecto radiográfico do encurvamento do fémur direito.

XVII.

  • Condrodisplasia punctata (CDP) – Este termo refere-se a uma entidade, clínica e geneticamente heterogénea, integrando diversos tipos. A síndroma designada por CDP tipo Conradi-Hunermann, de transmissão dominante ligada ao X (XLD), mais bem caracterizada, é a forma mais típica, pela abundância de manifestações.
    O fenótipo é, em geral, semelhante ao da acondroplasia, com encurtamento dos membros. Descrevem-se calcificações punctiformes transitórias (até ~3-4 anos) nas epífises e nas áreas de formação óssea encondral (ao longo das vértebras e região pélvica), microcefalia, cataratas, atrofia do nervo óptico, defeitos cardíacos. Na quase totalidade das formas XLD, e em cerca de 25% das formas de transmissão recessiva, verificam-se lesões cutâneas ictiosiformes, com hiperqueratose, eritema e descamação. (Figura 8)
    Como nota importante, importa referir que a sintomatologia que engloba a entidade CDP poderá estar associada a antecedentes maternos de défice em vitamina K, a efeito teratogénico da warfarina, assim como a certas doenças hereditárias do metabolismo, como doenças do peroxisoma e da biossíntese do colesterol.

FIGURA 8 – Condrodisplasia calcificante congénita (Doença de Conradi). Aspecto radiológico das epífises com calcificações punctiformes.

XVIII.

  • Doença de Caffey (Hiperostose cortical infantil) – Trata-se duma doença rara que tem como base o mecanismo designado por (6), pertencendo ao grupo de displasias osteoscleróticas neonatais; caracteriza-se por hiperostose cortical com inflamação da fascia e músculos contíguos à estrutura óssea. Início de sintomas antes dos 6 meses de idade, com tumefacção dos tecidos moles contíguos aos ossos, precedendo as alterações ósseas. Citam-se a seguir alguns aspectos das manifestações clínicas, do diagnóstico diferencial e do tratamento : a) início súbito com irritabilidade e tumefacção dolorosa dos tecidos moles (esta última nem sempre evidente) suprajacente aos ossos em que se verifica hiperostose cortical (aspecto imagiológico), a qual se verifica ulteriormente à sintomatologia referida; ao nível da face, uma tumefacção da região geniana ou do maxilar inferior, unilateralmente, é suspeita; b) febre e anorexia; c) os ossos mais afectados são a clavícula, maxilar inferior, rádio e cúbito; d) remissões e recaídas com duração variável(~2 semanas -3 meses); e) elevação da velocidade de sedimentação, da fosfatase alcalina e, por vezes, da PGE; f) o diagnóstico diferencial faz-se com intoxicação crónica com vitamina A, infusão IV com PGE em casos de cardiopatia dependente de PDA, tumores ósseos e escorbuto; g) o tratamento inclui, entre outras medidas, indometacina e prednisolona.

XIX.

  • Osteopetrose – A afecção mais representativa do grupo de densidade óssea aumentada em relação com o mecanismo (5), em que se verifica defeito na reabsorção óssea por disfunção dos osteoclastos, é a osteopetrose, com vários subtipos, e a picnodisostose. A raridade desta patologia traduz-se por incidências de 1/250.000 nascimentos (nas formas graves) e de 1/20.000 nascimentos (nas formas ligeiras).
    A forma grave, geralmente detectada na primeira infância, evidencia macrocefalia, hepatosplenomegalia (por eritropoiese extramedular compensatória), alterações dentárias, surdez, cegueira, anemia, hipocrescimento, atraso do neurodesenvolvimento e fracturas patológicas; e sinais radiográficos ósseos de osteosclerose difusa, aumento da densidade óssea, alargamento das metáfises e surgimento de bandas com densidades variáveis, perpendiculares ao eixo do rádio e cúbito, sobrepostas, em sanduíche, justa metafisárias. Do estreitamento dos foramina dos ossos do crânio, resultam diversos tipos de neuropatia dos nervos cranianos, designadamente do nervo facial.
    Como dados laboratoriais, valores séricos baixos de cálcio e fósforo, normais de 25-OH-vitamina D, e elevados de PTH.
    Na forma de manifestação tardia (adolescência e adultícia) – doença de Albers-Schonberg) as manifestações são mais ligeiras.
    O tratamento inclui, para além de medidas sintomáticas (cuidados dentários, transfusões de sangue e derivados no contexto de anemia, antibioticoterapia para infecções, etc.), o transplante de células estaminais hematopoiéticas, assim como a administração de calcitriol e interferão-gama.

XX.

No grupo caracterizado essencialmente por densidade óssea diminuída, sobressai a Osteogénese imperfeita, entidade que é abordada ulteriormente, em capítulo especial.

 XXI.

Hipofosfatasia

Esta entidade clínica, caracterizada essencialmente por mineralização anormal, é rara (incidência de 1/100.000 nascimentos) e heterogénea. A mesma resulta de mutações no gene que codifica a fosfatase alcalina não específica dos tecidos hepático, ósseo e renal (tissue non-specific alkaline phosphatase ou TNSALP), essencial para a normal mineralização óssea. Como consequência das mutações, verifica-se redução da actividade de TNSALP.

A heterogeneidade clínica traduz-se essencialmente por seis formas de apresentação, salientando-se como mais frequentes:

  • a neonatal ou perinatal (hipofosfatasia congénita letal), mais grave, e
  • a infantil (hipofosfatasia tarda), mais ligeira, ocorrendo na infância ou adolescência.

Na forma congénita, no feto ou RN surge: – ausência de ossificação dos arcos neurais, e ausência de visualização da maioria dos corpos vertebrais; – deformidades das extremidades com, arqueamento bizarro e encurtamento dos ossos longos; -hipercalcémia; e – esqueleto em geral, e designadamente o crânio, deficientemente ossificados.

Na forma mais ligeira salientam-se: – defeitos de ossificação ao nível das metáfises, surgindo o aspecto em “taça”; – arqueamento dos membros inferiores; – radiografia do crânio evidenciando alguns “ilhéus” de ossificação irregular; – encurtamento estatural; – deformação do tórax simile raquítico.

Na forma mais tardia incluem-se: – craniossinostose; – perda precoce dos dentes decíduos ou permanentes por hipoplasia do cimento; – dores e fracturas ósseas; – sinais semelhantes aos do raquitismo.

Considerando as formas de transmissão AR, ambos os progenitores são geralmente portadores.

Como dados laboratoriais próprios da hipofosfatasia citam-se: hipercalcémia nas formas neonatais e infantis (por não incorporação do cálcio nos condrócitos maduros), o que poderá originar nefrocalcinose; diminuição do nível sérico da fosfatase alacalina (dado importante para o diagnóstico diferencial com raquitismo, em que existe aumentado); elevação do nível sérico de vitamina B6; e elevação urinária da fosfoetanolamina. Os exames de genética molecular são evidentemente importantes para o diagnóstico (ver atrás).

No que respeita ao tratamento, cabe uma referência especial ao fármaco asfotase-alfa.

Actuação prática e seguimento – generalidades

A actuação prática nas displasias esqueléticas incide em diversas vertentes, tendo em conta a multiplicidade de problemas associados tais como:

  • problemas médicos associados (por ex. dificuldade respiratória decorrente de deformações torácicas), ou cardiopatias congénitas, estando indicado em tais circunstâncias o suporte ventilatório;
  • problemas do foro ORL e oftalmológico;
  • problemas ósseos em relação com a etiopatogénese de cada situação, por ex. tratamento de diversas formas de raquitismo obrigando aos respectivos tratamentos etiológicos;
  • problemas ortopédicos e cirúrgicos obrigando a diversas modalidades de intervenção, com algumas limitações quanto a resultados finais.

Deduz-se, pois, que a abordagem de pacientes com a patologia descrita terá que ser necessariamente multidisciplinar, incluindo perinatologistas, pediatras gerais, geneticistas, endocrinologistas, neurocirurgiões, otorrinolaringologistas, cirurgiões pediátricos e neurocirurgiões.

Salienta-se que tal abordagem torna indispensável a prestação de cuidados centrados na família em ligação estreita ao médico de família e pediatra geral, e que na ausência de formas clínicas não letais é possível obter uma qualidade de vida boa.

O fluxograma que integra a figura 9 sintetiza a actuação recomendada para os casos de suspeita de displasia esquelética no recém-nascido.

Actuação prática e seguimento – generalidades

A actuação prática nas displasias esqueléticas incide em diversas vertentes, tendo em conta a multiplicidade de problemas associados tais como:

  • problemas médicos associados (por ex. dificuldade respiratória decorrente de deformações torácicas), ou cardiopatias congénitas, estando indicado em tais circunstâncias o suporte ventilatório;
  • problemas do foro ORL e oftalmológico;
  • problemas ósseos em relação com a etiopatogénese de cada situação, por ex. tratamento de diversas formas de raquitismo obrigando aos respectivos tratamentos etiológicos;
  • problemas ortopédicos e cirúrgicos obrigando a diversas modalidades de intervenção, com algumas limitações quanto a resultados finais.

Deduz-se, pois, que a abordagem de pacientes com a patologia descrita terá que ser necessariamente multidisciplinar, incluindo perinatologistas, pediatras gerais, geneticistas, endocrinologistas, neurocirurgiões, otorrinolaringologistas, cirurgiões pediátricos e neurocirurgiões.

Salienta-se que tal abordagem torna indispensável a prestação de cuidados centrados na família em ligação estreita ao médico de família e pediatra geral, e que na ausência de formas clínicas não letais é possível obter uma qualidade de vida boa.

(Adaptado de Krakow D, 2015)

FIGURA 9 – Actuação perante a suspeita de Displasia Esquelética no Recém-Nascido

O fluxograma que integra a figura 9 sintetiza a actuação recomendada para os casos de suspeita de displasia esquelética no recém-nascido.

No que respeita às displasias do tecido conectivo (não esqueléticas), em capítulos seguintes é dada ênfase às síndromas de Ehlers – Danlos, de Alport, epidermólise bolhosa, síndroma de Marfan, cutis laxa, pseudoxantoma elástico e síndroma de Williams.

GLOSSÁRIO

Platispondilia > Achatamento do corpo vertebral de várias vértebras da região dorsolombar que pode conduzir a cifose.

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ALGONEURODISTROFIA JUVENIL. SÍNDROMAS DE AMPLIFICAÇÃO DOLOROSA

Definição

A Algoneurodistrofia Juvenil (ANDJ) é uma síndroma caracterizada por dor extrema habitualmente numa extremidade, em desproporção com o agente causal nocivo, em geral pequeno traumatismo ou imobilização, acompanhada de um ou mais sintomas de disfunção autonómica. Daí, outra designação por que é conhecida – síndroma de amplificação dolorosa.

Foi descrita pela primeira vez na criança em 1971, cerca de um século depois da descrição do adulto. Trata-se duma entidade clínica cujo reconhecimento crescente constitui uma realidade. Para caracterizar tal situação, têm sido utilizadas as seguintes designações (relevando-se em itálico as designações que mais frequentemente surgem na literatura científica): Síndroma de Dor Regional Complexa do tipo I – sem lesão nervosa definida – o habitual na criança e adolescente; e Síndroma de Dor Regional Complexa do tipo II – com lesão nervosa associada) – Complex Regional Pain Syndrome-CRPS; Distrofia Simpática Reflexa – Reflex Sympathetic Distrophy; Distrofia Neurovascular Reflexa; e Atrofia de Sudeck ou Causalgia.

Aspectos epidemiológicos

Sendo a incidência desconhecida, em várias séries pediátricas, a ANDJ é mais comum no género feminino (cerca de 70% dos casos); descrita entre os 5 e os 17 anos e sendo pouco frequente antes dos 7, aponta-se para uma idade média de 13 anos. O tempo médio decorrido entre o início dos sintomas e o diagnóstico varia entre 4 e 12 meses.

Etiopatogénese

Pouco se conhece sobre a etiopatogénese da ANDJ. Parece verificar-se uma activação exacerbada das vias da dor por intermédio dum arco reflexo anómalo transmitido ao córtex cerebral e posteriormente à medula, o que por sua vez determina activação do sistema nervoso simpático, originando manifestações de disautonomia.

A dor e imobilização perpetuam ainda mais este ciclo de nocicepção, com libertação de vários neuropéptidos e mediadores inflamatórios que aumentam a sensibilidade dos axónios lesados. Admite-se igualmente que haja um envolvimento específico do sistema nervoso central a nível dos gânglios da base e lobo parietal. De acordo com um estudo de ressonância magnética funcional, foi identificada a zona do córtex que é activada, permitindo por outro lado demonstrar que, mesmo após a resolução clínica do quadro, se mantêm activadas as vias endógenas da dor.

Factores desencadeantes

Na forma juvenil, o factor desencadeante com acção nociva mais frequente é psicossomático. A história de trauma prévio pode estar presente (cirurgia, fractura, trauma de tecidos moles ou venopunções/injecções), salientando-se que esta circunstância ocorre em menor proporção de casos do que no adulto, é de menor intensidade e pode não estar temporalmente relacionada com o início da dor.

Na criança, sendo de primordial importância o contexto social e familiar, é frequente a associação de ANDJ a antecedentes de abuso sexual, problemas familiares ou na escola, e “bullying”.

Habitualmente verifica-se que os pacientes, com uma “personalidade-tipo”, e com a particularidade de terem assumido cargos de excessiva responsabilidade na família (cuidadores de irmãos mais novos, por exemplo), evidenciam síndromas funcionais (como dor abdominal recorrente, síndroma do cólon irritável, enxaqueca, entre outras), sinais de hipersensibilidade simpática, traduzida designadamente por hipersudorese palmoplantar).

Pode registar-se ainda associação a síndromas de conversão, distúrbios alimentares e tentativas prévias de suicídio. As alterações do sono são muito comuns (insónia inicial e acordares frequentes).

Manifestações clínicas

Do quadro clínico fazem parte a dor intensa e persistente, por vezes descrita como sensação de queimadura, de intensidade crescente e, como se referiu antes, em desproporção com os factores potencialmente nocivos apurados na anamnese e na observação.

Sobre a dor e suas características, importa relevar certos sinais associados:

  • Em geral localizada a uma extremidade distal do membro inferior, menos frequente nos membros superiores;
  • Recusa de mobilização da região afectada e impotência funcional, num grau aparentemente exagerado;
  • Hiperestesia e alodinia frequentes, com intolerância ao simples toque leve e ao contacto da roupa;
  • Possível presença de vários sinais de disfunção autonómica, destacando como mais frequentes a alteração da temperatura corporal, o edema das extremidades (não articular e com limites mal definidos), cianose, pele pálida e fria, de aspecto marmoreado e hipersudorese/hiper-hidrose.

No âmbito do adulto foi descrito um escalonamento evolutivo da doença em períodos (os designados Estádios de Steinbroker: I, II e III (Quadro 1). Como particularidade na criança, importa referir que nesta apenas se verificam os estádios 1 e/ou 2 seguinte). Mais adiante estabelece-se com mais pormenor a destrinça entre o quadro clínico no adulto e na idade pediátrica.

QUADRO 1 – Estádios de Steinbroker no contexto da Algoneurodistrofia

Estádios de Steinbroker
    • Estádio I: vasodilatação e estase regional – dor, edema, hiper-hidrose, sinais de instabilidade motora
    • Estádio II: predomina a vasoconstrição – pele fria, cianótica ou pálida
    • Estádio III: alterações tróficas, contractura da pele e articulações e desmielinização radiográfica

FIGURA 1. Edema de contornos mal definidos, não articular a nível do pé esquerdo em adolescente de 10 anos com AGJ, seguido na Consulta de Reumatologia Infantil, do Adolescente e do Adulto Jovem, Instituto Português de Reumatologia

FIGURA 2. Tumefacção difusa da mão direita com impossibilidade de extensão completa dos dedos e uma discreta palidez cutânea em adolescente de 16 anos com AGJ, seguido na Consulta referida na legenda da Figura 1

Exames complementares

Os resultados da avaliação laboratorial, incluindo os parâmetros hemograma completo, velocidade de sedimentação, proteína C reactiva, função renal, hepática e ionograma não evidenciam anomalias, salientando a ausência de elevação dos parâmetros de inflamação.

Verificando-se antecedentes de traumatismo (e supeitando-se de fractura) ou suspeitas de tumor ósseo, está indicado o estudo radiográfico da região afectada. Tal exame, no contexto de AGJ não revela alterações. No adulto, contudo, tal exame poderá evidenciar ocasionalmente sinais de osteoporose mosqueada.

Para exclusão de inflamação articular e outra patologia inflamatória, está indicada a ecografia articular com “Power-Döppler”.

No que respeita a outros exames de imagem, a ressonância magnética pode fornecer achados inespecíficos de edema medular e discreto derrame articular, os quais pouco auxiliam no diagnóstico, sobretudo se houver antecedentes de trauma.

FIGURA 3. Padrão de cintigrafia óssea com 99Tc: hipofixação do radiofármaco ao nível do pé direito num caso de AGJ

O resultado da cintigrafia óssea com 99Tc nos casos de AGJ na idade pediátrica pode evidenciar vários padrões, sendo o mais frequente a hipofixação do radiofármaco na extremidade envolvida, como mostra a Figura 3. Pode também não evidenciar qualquer anomalia ou um padrão de hiperfixação no segmento afectado, tal como é habitualmente observado nos adultos.

Diagnóstico diferencial entre ANDJ na idade pediátrica e no adulto

A forma juvenil tem particularidades próprias em relação à forma do adulto, em termos de factor desencadeante, evolução clínica, resposta ao tratamento, grau de incapacidade e prognóstico funcional, o que leva a colocar a hipótese de que se a ANDJ seja uma entidade totalmente distinta, com base em mecanismos fisiopatológicos próprios. O Quadro 2 resume estas diferenças.

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre ANDJ no adulto e na idade pediátrica

Na Idade Pediátrica No Adulto
Predomínio franco no sexo feminino Idade média: 13 anos Predomínio ligeiro no sexo feminino Idade média: 46 anos
Factor desencadeante psicossomático mais frequente; raramente de tipo “adulto” Factor desencadeante de etiologia traumática, com ou sem imobilização, ou associado a doença grave prévia
Atingimento de membros inferiores Atingimento de membros superiores
Sinais neurológicos e de disautonomia menos frequentes Sinais de disfunção autonómica mais frequentes e evolução em três estádios
Estudo radiográfico normal Estudo radiográfico: osteoporose mosqueada
Cintigrafia óssea com vários padrões (mais comum a hipocaptação na extremidade afectada, excepto nos casos pós-traumáticos) Cintigrafia óssea com hipercaptação na extremidade afectada
Abordagem cognitivo-comportamental por equipa multidisciplinar Abordagem farmacológica
Evolução favorável com medidas de medicina física e reabilitação e apoio psicológico Fraca resposta a terapêutica conservadora

Tratamento

Atendendo às particularidades da ANDJ, a abordagem terapêutica deve ser conduzida por uma equipa multidisciplinar que inclua reumatologista pediátrico, pediatra, fisiatra e psicólogo, com o activo envolvimento da criança e dos pais. Os objectivos são restaurar a função, aliviar a dor e quebrar o ciclo da imobilização prolongada.

A terapia ocupacional e física, evidenciando excelentes resultados, deve ser prioritária, e a iniciar logo que seja feito o diagnóstico. Inclui vários tipos de exercícios (aeróbio, hidroterapia, de funcionalidade, etc.) que ajudam na imobilização prolongada e no controlo da dor. Nos estudos em que a terapia física foi utilizada em exclusivo (sem medicação concomitante) verificou-se benefício clínico, designadamente quanto ao restauro da função.

A terapêutica cognitivo-comportamental, fulcral nesta abordagem, tem como objectivos ajudar o doente e a família a tomar consciência da origem dos sintomas e ajudar a criança a aceitar que tem a capacidade de os modificar, tendo o médico um efeito de terapeuta, não antagonizando ou desvalorizando as queixas, mas explicando o processo fisiopatológico e orientando o doente para tomar as suas decisões e vencer a imobilização.

O tratamento farmacológico com analgésicos, antidepressivos ou indutores do sono pode ter alguma relevância, embora os estudos sobre a sua utilização em crianças sejam imprecisos, controversos e sem eficácia documentada.

Os resultados em algumas séries mostram um efeito benéfico com o uso de gabapentina e amitriptilina; contudo, pelos potenciais efeitos, carecem de confirmação com ensaios clínicos controlados.

GLOSSÁRIO

Alodinia > Resposta com dor exagerada por estímulo pouco nocivo ou inofensivo.
Disautonomia > Perturbação funcional do sistema nervoso autónomo ou vegetativo.
Hiperalgesia > Resposta com dor exagerada por estímulo nocivo provocando dor expectável.
Nociceptivo > Diz-se de uma excitação nervosa que provoca sensação dolorosa, ou da reacção provocada por tal excitação (por exemplo, reflexo nociceptivo (reflexo de defesa, tal como a retracção do pé ao ser beliscada a planta)).
Nociceptor > Receptor nervoso sensível aos estímulos produzidos por agentes nocivos (nomeadamente aos estímulos dolorosos).

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DORES DE “CRESCIMENTO”

Definição e importância do problema

O termo “dores de crescimento”, controverso, representa um mau uso da linguagem médica, pela sua imprecisão; trata-se dum diagnóstico facilmente aceite pelos pais pela frequência muitas vezes excessiva com que é utilizado.

Efectivamente, as dores dos membros que as crianças com este diagnóstico referem (em cerca de 10-20% em idades escolar) não são causadas pelo crescimento.

Critérios de diagnóstico

Do ponto de vista clínico este diagnóstico aplica-se a um conjunto de dores com características bem definidas (Quadro 1), surgindo entre os 4 e os 12 anos de idade, habitualmente apenas ao fim da tarde ou à noite e nunca pela manhã ao acordar, e podendo ser desencadeadas ou agravadas em dias de exercício físico mais intenso. A sua duração é inferior a 2 horas.

O exame físico é normal e, na maioria dos casos, não há mesmo referência a dor articular, se bem investigada clinicamente a situação. Trata-se principal ou exclusivamente de algias ao nível da superfície de extensão dos membros inferiores, podendo, em casos raros, ser também atin-gidos os membros superiores; não há quaisquer limitações funcionais do aparelho locomotor. O crescimento é normal.

Frequentemente há referência a sintomatologia idêntica num dos progenitores durante a infância, o que poderá determinar a existência de uma predisposição familiar para a dor. A massagem suave, com ou sem anti-inflamatório ou analgésico tópico, é habitualmente suficiente para permitir o alívio das queixas e o repouso nocturno adequado.

Embora o prognóstico a curto e longo prazo seja excelente, pode haver alguma ansiedade do agregado familiar, pois, por vezes, as crianças acordam durante a noite a chorar e a queixar-se das dores. Com o evoluir do tempo estas queixas vão-se tornando progressivamente mais raras e menos intensas, até desaparecerem completamente, independentemente dos tratamentos efectuados.

Os resultados dos exames complementares, por vezes efectuados para aliviar as preocupações familiares, são integralmente normais.

QUADRO 1 – Dores de “Crescimento”

Características clínicas
    • Idade de início: 4 a 12 anos
    • Sem predominância de sexo
    • Dores tipicamente nocturnas ou vespertinas (nunca de manhã ao acordar)
    • Localização mais frequente na superfície de extensão dos membros inferiores, acima ou abaixo do joelho, bilateralmente (não articulares)
    • Boa resposta à analgesia simples e/ou massagem local suave
    • Exame objectivo normal
    • Exames complementares de diagnóstico com resultados normais

Diagnóstico diferencial

O aspecto mais grave e preocupante deste diagnóstico diz respeito às situações em que o termo é empregue levianamente para classificar doenças, potencialmente graves, que nada têm a ver com a situação clínica em análise que é inespecífica mas característica. Estão neste caso as artrites idiopáticas juvenis e doenças neoplásicas benignas (osteoma osteóide) ou malignas (sarcomas ósseos, leucoses), cujo diagnóstico diferencial é geralmente fácil e cuja orientação terapêutica poderá ser atrasada por abordagem incorrecta e superficial.

Tratamento

O tratamento das “dores de crescimento” deve ser efectuado com massagem suave das zonas afectadas, com ou sem a aplicação tópica de analgésico ou anti-inflamatório, eventualmente associado à administração “per os” de uma dose de paracetamol ou de ibuprofeno, associados à educação do agregado familiar.

Haverá que explicar aos pais, também, o carácter benigno e transitório desta situação clínica.

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FEBRE REUMÁTICA

Definição e importância do problema

A febre reumática (FR) é uma complicação inflamatória, não supurativa de uma infecção de oro-faringe causada pelo estreptrococo ß-hemolítico do grupo A de Lancefield (Streptococcus pyogenes); afecta o coração, articulações, sistema nervoso central, tecido subcutâneo e pele. A doença cardíaca reumática ainda é uma das causas mais importantes de cardiopatia adquirida na infância, principalmente nos países em vias de desenvolvimento. Em Portugal, a FR tem baixa prevalência, descrevendo-se casos esporádicos. Para a Organização Mundial da Saúde, a FR constitui um problema de saúde pública mesmo em países desenvolvidos.

O impacte económico da doença está associado a custos directos e indirectos elevados tanto para o doente e a família, como para a sociedade, relacionados sobretudo com a lesão cardíaca.

Em países em desenvolvimento, a incidência da FR varia de 1,0 a 150 por 100.000 crianças em idade escolar. A taxa de mortalidade nos casos de doença cardíaca reumática varia de 0,5 a 8,2 por 100.000. Nem todos os indivíduos com faringo-amigdalite estreptocócica desenvolvem FR; em situações epidémicas, 3% desenvolvem a doença e em situações endémicas a taxa cai para 0,3%.

Aspectos epidemiológicos

A maior incidência de FR é observada em crianças entre 5 e 15 anos de idade, sendo que a doença é rara antes dos 5 anos (3 a 5% dos casos). Existe um predomínio discreto no sexo feminino devido à maior frequência de coreia neste sexo. Não há predisposição racial.

Etiopatogénese

Está provado que a resposta autoimune aos antigénios estreptocócicos tem um importante papel no desenvolvimento da FR em indivíduo susceptível.

Apesar de a infecção estreptocócica estar bem definida como sendo o factor etiológico da doença, a sua patogénese não é completamente compreendida. Alguns factores parecem ser, contudo, importantes:

  1. Predisposição genética, com uma maior frequência em algumas famílias. Estudos com diferentes antigénios leucocitários humanos (HLA) mostraram uma associação entre a doença e esses antigénios; entretanto diferentes estudos mostram associações diversas e alguns resultados são contraditórios. Além disso, a FR foi associada a um aloantigénio de linfócito B, reconhecido por um anticorpo monoclonal D8 / 17, que ocorre em cerca de 90% dos pacientes e em apenas 15% da população saudável. Entretanto, estudos posteriores em diferentes populações não corroboraram estes achados;
  2. Factores relacionados com estreptococo: alguns serótipos com M1, M3, M5, M6, M14, M18, M19 e M24 são considerados reumatogénicos. A proteína M é o antigénio da bactéria mais reumatogénico;
  3. Factores ambientais: más condições de vida, aglomerações, acesso difícil às unidades de saúde e regiões

A reacção cruzada entre antigénios estreptocócicos e estruturas do organismo humano é bem conhecida. Existe um mimetismo molecular entre alguns tecidos do hospedeiro relacionado com sequências antigénicas comuns às do estreptococo. Dados recentes sugerem que os linfócitos T têm um papel importante na patogénese da cardite reumática.

Pacientes com FR aguda apresentam títulos elevados de anticorpos contra a proteína M (que pode agir como superantigénio), induzindo uma resposta imune exagerada e autoimunidade.

Os nódulos de Aschoff representam a lesão patognomónica da cardite reumática, caracterizada por infiltrado de macrófagos, linfócitos e fracção C3 do complemento.

Em resumo, a infecção estreptocócica inicial num hospedeiro geneticamente predisposto e num ambiente susceptível pode levar à activação de linfócitos T e B pelos antigénios estreptocócicos e super-antigénios, resultando na produção de citocinas e anticorpos dirigidos contra estruturas do hospedeiro.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos, o aparecimento das manifestações clínicas ocorre entre a segunda e a terceira semana após a infecção estreptocócica. Por vezes o quadro clínico pode aparecer mais precocemente .

Artrite

A poliartrite ocorre em 35 a 65% dos pacientes no primeiro surto. Embora muito frequente, é a manifestação menos específica. Geralmente a artrite é migratória, poliarticular, assimétrica, transitória, autolimitada, atingindo as grandes articulações, com dor desproporcional aos sinais inflamatórios; e apresenta uma boa resposta a doses anti-inflamatórias de ácido acetilsalicílico. Geralmente o processo inflamatório permanece por 2 ou 3 dias em cada articulação, e desaparece sem deixar sequelas em 2 a 3 semanas. Porém, há que salientar que nem sempre a artrite é típica; e que há casos com período de latência mais curto, mono ou oligoartrite, com compromisso de pequenas articulações e coluna cervical, com duração superior a 6 semanas e má resposta aos salicilatos.

De referir que a chamada artrite reactiva pós-estreptocócica se apresenta após um período de latência mais curto (≤ 10 dias após a infecção): artrite prolongada ou artrite recorrente, às vezes simétrica e com tenossinovite, e sem resposta aos anti-inflamatórios não esteróides (AINE). Trata-se doutra forma de artrite que, nos países onde a FR é prevalente, deve ser, contudo, considerada como pertencendo ao espectro da mesma, implicando conduta profiláctica e terapêutica semelhante à que é aplicada à artrite, antes descrita.

Cardite

A cardite é também uma manifestação frequente, ocorrendo em 50 a 70% dos pacientes. Apesar de o endocárdio, miocárdio e pericárdio poderem estar afectados simultaneamente, caracterizando a pancardite, a endocardite, isolada ou não, é a manifestação mais encontrada.

A presença de sopro cardíaco patológico, com ou sem taquicárdia, na ausência de febre, caracteriza a cardite clínica. O sopro é geralmente sistólico, apical e reflecte a insuficiência mitral. As válvulas mais acometidas em ordem de frequência são: mitral, aórtica, tricúspide e pulmonar. O compromisso de válvulas cardíacas direitas isoladamente, sem envolvimento das esquerdas, é muito raro. A estenose mitral é rara na faixa etária pediátrica; quando presente, indica lesão cardíaca prévia.

Nos últimos anos, têm-se descrito casos de pacientes com cardite assintomática (subclínica) que se apresentam sem sopro cardíaco, porém com alteração ecocardiográfica.

A cardite pode manifestar-se até à sexta semana de evolução do surto agudo, e casos com resultados de marcadores inflamatórios de fase aguda elevados devem ser acompanhados semanalmente durante esse período. Sopro cardíaco durante a fase aguda não indica lesão valvular permanente, e em 60% dos casos regride.

Nos casos de miocardite ou pericardite isoladas, sem compromisso endocárdico, outros diagnósticos diferenciais devem ser considerados.

Coreia de Sydenham

Esta manifestação ocorre mais frequentemente no sexo feminino. A sua frequência oscila entre 10 e 30%. Ela é caracterizada por labilidade emocional, fraqueza muscular e, posteriormente, movimentos involuntários e incoordenados. Todos os músculos podem ser afectados; porém os movimentos das mãos, braços, pés e pernas, além de lábios, língua e face, são mais evidentes. Dificuldades na fala e na escrita podem estar presentes. Os movimentos coreicos são geralmente bilaterais, diminuem com o repouso e desaparecem com o sono. Transtornos neuropsiquiátricos ocorrem como sequela da coreia e incluem distúrbios obsessivo-compulsivos, depressão, tiques e dificuldade de concentração.

 

Embora a coreia seja descrita como uma manifestação isolada, ela está associada à cardite ou à artrite em metade dos casos. A coreia é uma manifestação tardia da FR, e, por esse motivo, quando se apresenta isolada, a demonstração laboratorial de actividade inflamatória e os sinais de infecção estreptocócica recente estão ausentes.

Surtos recorrentes de FR que apresentaram coreia no primeiro surto, costumam manifestar-se com coreia.

Nódulos subcutâneos

Trata-se duma manifestação clínica rara, que ocorre em cerca de 3 a 10% dos casos e geralmente está associada à cardite. Os nódulos são arredondados, móveis, indolores e presentes nas superfícies de extensão das articulações, principalmente em cotovelos, joelhos e tornozelos. (Figura 1)

FIGURA 1. Nódulos subcutâneos no contexto de FR

Eritema marginado

É também uma manifestação rara e associada à cardite. Caracteriza-se por lesões cutâneas não pruriginosas, com bordo elevado e hiperemiado, e palidez central, no tronco e raiz proximal dos membros. (Figura 2)

Outras manifestações incluem febre, artralgia, dor abdominal e epistaxe.

Exames complementares

Embora os resultados dos exames complementares não sejam específicos, eles são auxiliares no diagnóstico da infecção estreptocócica recente, na avaliação da actividade inflamatória, e no diagnóstico diferencial de outras causas de artrite aguda como a leucemia e as hemoglobinopatias.

FIGURA 2. Eritema marginado no contexto de FR

O hemograma pode ser normal ou apresentar anemia ligeira e/ou leucocitose com neutrofilia. A presença de linfocitose persistente ou anemia importante torna necessário o diagnóstico diferencial com leucemia. Tanto a velocidade de sedimentação (VS) como a proteína C reactiva (PCR) estão alteradas desde o início do surto agudo e assim permanecem até à segunda ou terceira semana. Estes reagentes de fase aguda são influenciados pelo uso de anti-inflamatórios. Valores muito elevados de VS são sugestivos de cardite. A a-1 glicoproteína ácida e a a-2 globulina elevam-se mais tardiamente e permanecem alteradas durante todo o surto agudo, sendo assim os parâmetros mais adequados para a avaliação da actividade da FR, embora influenciados pelo uso de AINE.

O método de excelência padrão ouro para detecção do Streptococcus pyogenes e diagnóstico da infecção estreptocócica é a cultura da orofaringe. Entretanto, na vigência da FR, a sua sensibilidade diminui para 15 a 20% devido ao período de latência entre a infecção estreptocócica e a doença, e também ao uso prévio de antibióticos. Teste rápido para detecção de antigénio estreptocócico através de material obtido da orofaringe (tipo Phadirect®) também tem uma sensibilidade baixa, além de alto custo. Por outro lado, nem as culturas nem os testes rápidos para detecção de antigénio estreptocócico podem distinguir entre a infecção aguda estreptocócica e o portador de estreptococo sem doença. Portanto, testes serológicos para anticorpos estreptocócicos (anti-estreptolisina O e anti-desoxirribonuclease B) são essenciais e devem ser realizados para todos os pacientes com suspeita de FR.

Títulos elevados de anti-estreptolisina O (TASO) ou aumentos de título em doseamentos seriados com intervalo de 15 dias comprovam a infecção estreptocócica recente. É importante salientar que cerca de 20% dos pacientes não apresentam elevação de valores deste anticorpo na fase aguda; os valores de normalidade são variáveis e dependentes da região geográfica.

O ecocardiograma tornou-se nos últimos anos, o exame de excelência para o diagnóstico de doença cardíaca. O ecocardiograma doppler colorido é útil na avaliação da função miocárdica, no diagnóstico da doença valvular, e na pericardite.

Achados ecocardiográficos de lesões valvulares na ausência de manifestações clínicas de cardite, têm sido descritos por vários autores. Em estudo prospectivo e cego realizado por nós em 56 pacientes com FR, observámos uma frequência de 19,6% de cardite subclínica e persistência das lesões em 72% dos pacientes.

A radiografia de tórax e o electrocardiograma evidenciam fraca sensibilidade, estando presentes alterações em apenas 30% dos casos de cardite reumática.

Diagnóstico

Não existe nenhum sinal, sintoma ou exame laboratorial patognomónico de FR. O diagnóstico de certeza pode ser difícil devido à variabilidade das manifestações clínicas. A este propósito são recordados os critérios de Jones, revistos em 2015 (Quadro 1). A partir de 1992, estes critérios têm sido considerados apenas para o primeiro surto.

QUADRO 1 – Critérios de Jones modificados (revistos em 2015)

A. Para todos os pacientes com evidência de infecção prévia por Streptococcus do grupo A

Diagnóstico: Febre reumática inicial – dois critérios major ou um major e dois minor
Diagnóstico: Febre reumática recorrente – dois major, ou um major e dois ou três minor

B. Critérios Major
Populações de baixo risco 
Cardite (clínica e/ou subclínica)
Artrite (apenas poliartrite) 
Coreia
Eritema marginado
Nódulos subcutâneos
Populações de alto e moderado risco
Cardite (clínica e/ou subclínica)
Artrite: mono ou poli, poliartralgia
Coreia
Eritema marginado
Nódulos subcutâneos
C. Critérios Minor
Populações de baixo risco
Poliartralgia
Febre (≥ 38,5°C)
Populações de alto e moderado risco
Monoartralgia
Febre (≥ 38°C)

Velocidade de sedimentação (VS)  ≥ 60 mm/hora e/ou PCR ≥ 3 mg/dL; VS  ≥ 60 mm/hora e/ou PCR ≥ 3 mg/dL
Intervalo PR prolongado – excepto se existir cardite

É importante salientar que nem todos os pacientes preenchem os critérios de diagnóstico. Na presença de coreia isolada ou cardite, o diagnóstico de FR poderá ser feito sem preencher os outros critérios de Jones.

Apresentações incomuns da FR aguda com manifestações clínicas muito variadas que não preenchem os critérios de Jones são responsáveis por erros e atraso no diagnóstico. Seria importante mudar o conceito da “artrite reumática”, para incluir as formas atípicas de artrite; o ecocardiograma, se utilizado com critério, constitui método preciso para distinguir a lesão valvular patológica da fisiológica e, portanto, para o diagnóstico da cardite subclínica; a evidência da infecção estreptocócica não é sempre possível, e por esta razão, deveria ser considerada como uma condição importante para o diagnóstico, mas não como um critério adicional obrigatório.

Oligo ou poliartrite na ausência de outras manifestações major da FR obrigam ao diagnóstico diferencial com outras artrites agudas. Artrite séptica, outras artrites reactivas, doenças do colagénio, leucemia linfóide aguda, outras neo- plasias e anemia de células falciformes devem ser consideradas.

Pericardite vírica ou tuberculosa, miocardite vírica, endocardite bacteriana, quadro clínico acompanhado de sopro inocente, doença cardíaca congénita e doenças do colagénio, como lúpus eritematoso sistémico ou artrite idiopática juvenil, devem ser excluídos nos casos de cardite.

Apesar de a coreia ser muito sugestiva de FR, quando ela se apresenta como manifestação isolada há necessidade de excluir patologias como encefalite vírica, tiques, hiperactividade, lúpus eritematoso sistémico e síndroma antifosfolípidos, além de tumor cerebral.

Prevenção primária

O tratamento da FR consiste na eliminação do Streptococcus pyogenes (prevenção primária), no tratamento da cardite, da artrite e da coreia, e na prevenção secundária da infecção recorrente.

A prevenção primária deve ser iniciada até ao nono dia de infecção da orofaringe, para evitar o ataque inicial da FR. O estreptococo pode ser eliminado com uma injeção intramuscular única de penicilina G benzatínica na dose de 600.000 Unidades para doentes com menos de 20 kg e de 1.200.000 Unidades para aqueles com  ≥ 20kg. Nos raros casos em que se verifica alergia à penicilina, os antibióticos de escolha são a eritromicina (30 a 40 mg/kg/dia) dividida em 4 doses durante 10 dias ou a azitromicina durante 5 dias. Antibióticos por via oral são menos eficazes, devido à baixa adesão ao tratamento e também à variação na absorção. É importante salientar que as sulfamidas não são eficazes na prevenção primária.

O uso de antibióticos não é necessário para portadores sãos do estreptococo; com efeito, os referidos portadores, não disseminam o microrganismo para os seus contactos, havendo escasso risco de surgir FR.

A amigdalectomia não é eficaz na redução da incidência da FR, e não está recomendada na prevenção primária da FR. Ela não altera a evolução da doença assim como a frequência de primeiro surto ou recorrências.

Tratamento

A cardite é tratada com corticosteróides (1 a 2 mg/kg/dia de prednisona, em dose fraccionada na primeira semana e depois uma vez por dia). Essa dose deve ser mantida por duas a três semanas até à melhoria clínica e normalização dos resultados das provas inflamatórias, e reduzida lentamente nas duas semanas seguintes. Diuréticos, inibidores da enzima conversora da angiotensina e digitálicos são usados no tratamento da insuficiência cardíaca. Em pacientes com cardite é recomendado o repouso durante pelo menos quatro semanas.

Para o tratamento da artrite é recomendado o uso do ácido acetilsalicílico em doses de 80 a 100 mg/kg/dia (máximo de 3 gramas/dia), pela sua eficácia e baixo custo. Logo que os resultados das provas inflamatórias normalizam, a dose deve ser reduzida até completar quatro a oito semanas de tratamento. Naproxeno ou outros AINE também podem ser usados. Para pacientes com cardite associada, o tratamento com corticosteróides é suficiente.

Para o tratamento da coreia de Sydenham é recomendado o haloperidol (dose inicial de 1 a 2 mg/dia até o máximo de 4 a 5 mg/dia), ácido valpróico (30 a 40 mg/kg/dia) ou pimozida (1 a 6 mg/dia) com redução gradual da dose durante meses após o desaparecimento dos sintomas. Deve-se ter cuidado especial com os efeitos adversos destes medicamentos.

Prevenção secundária

A prevenção secundária é realizada com penicilina G benzatínica nas mesmas doses que para a prevenção primária. O intervalo recomendado entre as doses é quatro semanas, embora nas populações de alto risco, a penicilina deva ser dada a cada 3 semanas.

Doentes com FR sem cardite devem ser submetidos a prevenção até os 21 anos de idade, ou no mínimo por 5 anos após o último surto. Doentes com cardite, porém sem sequelas, devem ser submetidos a prevenção até os 25 anos ou, no mínimo, por um período de 10 anos. Nos casos de envolvimento da válvula mitral e da aórtica, a referida prevenção deve ser mantida por tempo indeterminado.

Os doentes em que estão indicados procedimentos dentários e cirurgias devem receber adicionalmente amoxicilina.

A alergia à penicilina é uma condição rara, especialmente em crianças abaixo dos 12 anos de idade. Nestes casos é recomendada a sulfadiazina de uso diário em doses de 500 mg/dia para crianças até 25 kg e 1 g/dia para aquelas com 25 kg ou mais; em alternativa o sulfisoxazol: 120 mg/kg/dia.

Nota: Têm sido desenvolvidas vacinas para uso em indivíduos geneticamente susceptíveis. As vacinas mais promissoras são as baseadas na proteína M. Foi desenvolvida uma nova vacina que contém péptidos N-terminal de antigénios estreptocócicos e proteína M de 26 serótipos reumatogénicos que não evidenciou reumatogenicidade em indivíduos voluntários. Sucesso no desenvolvimento de vacinas poderá ser alcançado nos próximos anos.

GLOSSÁRIO

Prevenção primária > Conjunto de meios médicos e médico-sociais para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos e evitar a doença.
Prevenção secundária > Para impedir o agravamento da doença.
Prevenção terciária > Para evitar sequelas da doença já estabelecida e permitir reinserção social do doente.

Muitas vezes emprega-se o termo prevenção como sinónimo de profilaxia. De acordo com os peritos da linguagem biomédica deve utilizar-se o termo “prevenção” quando se aplica a acção (por exemplo estilo de vida saudável); e o termo profilaxia quando se refere a substância (por ex. penicilina ou outro fármaco) – penicilina profiláctica.

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PANICULITES

Definição e generalidades

As paniculites (ou hipodermites) são quadros clinicopatológicos em que se verifica inflamação do panículo adiposo (hipoderme) de etiopatogénese diversa. De salientar que algumas formas de paniculite se acompanham de vasculite.

Recorda-se que a hipoderme é constituída por lobos adiposos compartimentados por septos de tecido conjuntivo denso que se prolongam desde a derme profunda até à fáscia subcutânea. Tendo em conta esta organização estrutural, a paniculite pode ser predominantemente septal ou lobular. Esta classificação é adoptada pela maioria dos autores, sendo que se poderá verificar a ocorrência de formas mistas (septal e lobular).

Relativamente à patologia do panículo adipose, importa uma referência à chamada lipodistrofia, situação que corresponde à redução do panículo adiposo e integra diversas entidades clínicas. Este quadro patológico pode ser generalizado ou localizado. De acordo com diversos autores, a designação de lipoatrofias é mais apropriada.

Etiopatogénese e formas clínicas

Entre as paniculites predominantemente septais, destaca-se o eritema nodoso, a paniculite mais frequente na idade pediátrica. Outras entidades clínicas em que se verifica a forma septal incluem a necrobiose lipóidica diabética e formas com atingimento subcutâneo como o granuloma anelar e a morfeia.

No que respeita às paniculites predominantemente lobulares, importa uma referência às seguintes formas:

  • De natureza enzimática, as associadas a doença do pâncreas, e as provocadas por défice de alfa-1 antitripsina;
  • Infecciosas;
  • Surgindo no período neonatal: esclerema e necrose subcutânea;
  • Associadas a lúpus eritematoso e a dermatomiosite;
  • Associadas a factores etiológicos como o frio, traumatismos, corticoterapia e depósito de cristais como os uratos nas situações de gota; e, igualmente no contexto de “maus tratos por procuração e abusos” traduzidos em injecção de produtos como leite, drogas, óleos minerais, etc..

Como se torna fácil depreender, a identificação do factor etiológico é importante pelas implicações na escolha da terapêutica.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Fundamentalmente o diagnóstico é clínico, com confirmação por estudo histopatológico. Salienta-se, contudo, que por vezes surgem dificuldades relacionadas com a circunstância de factores etiológicos diversos poderem originar quadros histopatológicos semelhantes.

Para obtenção da peça de biópsia implica procedimento que permita atingir zonas profundas, até à fáscia aponevrótica subcutânea.

Neste capítulo é dada ênfase a três entidades clínicas clássicas e históricas: o esclerema neonatal e a necrose adiposa subcutânea do recém-nascido (raros), e o eritema nodoso que, como foi referido antes, é a paniculite mais frequente na idade pediátrica.

1. ESCLEREMA NEONATAL

Trata-se de entidade que surge em RN, em geral pré-termo, no contexto de terapia em cuidados intensivos, pressupondo patologia grave, em geral sépsis, de prognóstico reservado.

Etiopatogénese

A etiopatogénese não está completamente esclarecida. Admite-se que a situação se relacione a formação de cristais nos adipócitos subcutâneos, tendo em conta a elevada concentração destes em ácidos gordos saturados (palmítico, esteárico) em contraste com a baixa concentração em ácidos gordos insaturados (oleico).

Descrevem-se dois tipos de cristais: A e B.

Os primeiros, de pequenas dimensões, são habituais na hipoderme do RN, elevando-se o seu teor no contexto de esclerema. Os segundos, de maiores dimensões, organizam-se em rosetas, parecendo induzir resposta inflamatória do tipo granulomatoso.

 Manifestações clínicas e tratamento

O sinal típico é o endurecimento lenhoso da pele, mais ou menos difuso. Observa-se palidez cérea da pele, em geral com início nas nádegas, com disseminação ulterior por todo o tegumento, poupando as palmas, as plantas e os genitais.

Não existe tratamento específico, dependendo a evolução do problema clínico subjacente.

2. NECROSE ADIPOSA SUBCUTÂNEA DO RECÉM-NASCIDO

 

Este tipo de paniculite, raro, auto-limitado, de causa desconhecida e de carácter benigno, manifesta-se em geral nas primeiras seis semanas de vida.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Admite-se que a etiopatogénese seja semelhante à do esclerema, com padrão histopatológico sobreponível. Como factores de risco apontam-se: parto distócico, asfixia perinatal, síndroma de aspiração meconial.

Distingue-se, no entanto, do esclerema pelo facto de as lesões serem circunscritas, surgindo como nódulos subcutâneos duros e mobilizáveis pela palpação. Os nódulos são bilaterais, múltiplos e dolorosos. Iniciando-se nas nádegas, pode haver disseminação que se pode manter durante semanas e, eventualmente, ulceração com ulterior cicatriz atrófica. Em certos casos, as alterações nos adipócitos poderão atingir a gordura visceral, o que agrava o prognóstico.

Esta patologia, embora não ligada nas doenças gerais, pode cursar com trombocitopénia, hipoglicémia e, mais tipicamente, a hipercalcémia. Nesta perspectiva o RN poderá evidenciar sinais descritos em tais circunstâncias, como irritabilidade, vómitos, tremores. Em casos extremos poderá verificar-se insuficiência renal e paragem cardiorrespiratória. Será prudente a determinação da calcémia dada a maior probabilidade desta alteração iónica.

Tratamento

Na maioria dos casos verifica-se evolução espontânea para a cura. No entanto, em função dos sinais clínicos verificados, poderá haver necessidade de proceder a doseamentos séricos, para além da calcémia e correcção das alterações laboratoriais encontradas.

3. ERITEMA NODOSO

Definição e importância do problema

O eritema nodoso (EN) é um processo inflamatório do tecido adiposo subcutâneo (paniculite septal granulomatosa perivascular), caracterizado por nódulos dolorosos à palpação, eritematosos, conferindo um aspecto macio e brilhante à pele; tais nódulos localizam-se, geralmente, na face anterior de ambas as pernas (região tibial).

Pouco frequente abaixo dos 6 anos de idade, torna-se progressivamente mais comum a partir da adolescência até à terceira década da vida; nalguns estudos epidemiológicos é apontado como mais frequente no sexo feminino.

Etiopatogénese

Embora possa surgir como entidade “primária”, na maioria das vezes o EN está associado a doenças inflamatórias ou infecciosas, ou à utilização prévia de fármacos.

As situações mais habitualmente associadas ao EN são determinadas infecções (estreptocócica, tuberculose, por Yersinia, histoplasmose, coccidioidomicose, lepra), doenças inflamatórias (doença inflamatória do intestino, espondilartropatia, sarcoidose) e exposição a fármacos (fenitoína, sulfonamidas, contraceptivos orais, etc.).

Como resultado duma reacção de hipersensibilidade de carácter inflamatório do tecido celular subcutâneo profundo, pode comprovar-se, através de exame histológico do nódulo, a existência de infiltrado de linfócitos, neutrófilos e macrófagos na zona dos septos do tecido adiposo subcutâneo. Estas células são activadas por componentes víricos ou bacterianos, imunocomplexos e citocinas.

Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial

Os nódulos subcutâneos são geralmente avermelhados, com bordos violáceos, ligeiramente elevados e muito dolorosos. São arredondados e medem entre 1 e 10 centímetros de diâmetro. Podem ser irregulares e coalescentes e têm duração variável, de semanas a meses. Localizam-se sobretudo na região pré-tibial (bilateral e simetricamente), embora possam ser observados nas coxas, nádegas e membros superiores. Durante a evolução (em cerca de 3 a 6 semanas), as lesões tornam-se violáceas e acastanhadas, assemelhando-se a hematomas, regredindo depois espontaneamente (Figura 1). Refira-se que a localização nos membros superiores sugere uma etiologia hoje inexistente no nosso país em idade pediátrica – a lepra.

O EN pode ter carácter recorrente, com evolução arrastada, na circunstância de associação a certas doenças crónicas, como rectocolite ulcerosa e lúpus eritematoso sistémico. De salientar que poderá haver manifestações músculo-esqueléticas tais como artralgia, artrite e dor muscular) e, também, sinais inespecíficos como febre e adinamia.

O diagnóstico diferencial faz-se fundamentalmente com eritema induratum, tromboflebite, poliarterite nodosa cutânea e sarcoidose subcutânea.

Exames complementares

O diagnóstico de EN é clínico. Determinados exames complementares, inspecíficos deverão ser fundamentados em função da anamnese e da suspeita da doença de base para determinar a etiologia e a actividade do processo inflamatório. Eis os fundamentais:

  • Hemograma: pode evidenciar leucocitose, com ou sem neutrofilia;
  • Provas de fase aguda (por ex. PCR, VS, alfa-1-glicoproteína, etc.): estão alteradas na maior parte dos casos;
  • Electroforese das proteínas: da presença de hipoalbuminémia poderá sugerir doença intestinal inflamatória (DII) em função da história clínica;
  • TASO: de modo seriado poderá confirmar antecedentes de infecção estreptocócica prévia;
  • Radiografia do tórax: poderá confirmar etiologia tuberculosa;
  • Prova tuberculínica (intradermorreacção de Mantoux) ou outro marcador: idem;
  • Detecção de autoanticorpos antinúcleo (ANA): negativa, excepto nos casos de lúpus associado ou doutras doenças do tecido conectivo;
  • Biópsia das lesões em determinados casos;
  • Colonoscopia e/ou trânsito intestinal: para esclarecimento de eventual DII nos casos de sintomatologia do foro digestivo, designadamente acompanhada de lesões perianais (úlceras e distensão abdominal).

FIGURA 1. Eritema nodoso em criança com quadro de tuberculose primária. (NIHDE)

Tratamento

O tratamento do EN consiste fundamentalmente no alívio da dor e no controlo do processo inflamatório:

  • Anti-inflamatórios não esteróides/AINE (naproxeno: 15 a 20 mg/kg/dia, ou indometacina: 1 a 3 mg/kg/dia);
  • Corticosteróides, indicados nos casos de dor e de processo inflamatório intensos – (prednisona ou prednisolona: 0,5 mg/kg/dia);
  • Penicilina benzatínica: 600.000 UI nas crianças com peso inferior a 20 kg (e 1.200.000 UI naquelas com peso igual ou superior a 20 kg) cada 3 semanas; indicada nos casos de EN recorrente com suspeita de infecção estreptocócica como factor desencadeante e na perspectiva de profilaxia secundária, com a duração de 6-12 meses;
  • Tuberculostáticos se se comprovar infecção tuberculosa;
  • Suspensão imediata de fármaco suspeito de desencadear o processo inflamatório.

Prognóstico

O prognóstico geralmente é bom; desde que tenha sido instituída a terapêutica adequada à doença de base, as lesões são autolimitadas e desaparecem.

O EN pode ser recorrente (vários surtos cuja intensidade se vai esbatendo ao longo do tempo). A recorrência persistente, ao longo de anos, deve evocar patologia associada, sendo a doença de Behçet uma das possibilidades a considerar.

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VASCULITES

Definição e importância do problema

As vasculites constituem um grupo heterogéneo de doenças, na sua globalidade raras, de etiopatogénese não totalmente esclarecida, caracterizadas por inflamação e necrose da parede dos vasos, do que resulta grau variável de isquémia e lesão teciduais ao nível de diversos territórios.

Todo e qualquer tipo de vaso e toda e qualquer estrutura do mesmo vaso podem ser afectados; salienta-se que diferentes estruturas podem ser afectadas de modo selectivo, o que condiciona manifestações clínicas muito variáveis.

Assim, tal patologia pode classificar-se atendendo a critérios diversos, compreendendo-se que determinada entidade possa estar incluída em mais do que uma categoria classificativa:

  1. Topográfica
    Localizadas (restritas à pele) ou sistémicas (envolvendo órgãos internos);
  2. Etiológica
    Primárias ou secundárias (associadas principalmente a infecções, a doenças reumáticas como artrite idiopática juvenil, lúpus eritematoso sistémico, dermatomiosite juvenil e a neoplasias);
  3. Histológica
    Leucocitoclástica (púrpura de Henoch-Schönlein, vasculite de hipersensibilidade), necrosante (poliarterite nodosa – PAN, doença de Kawasaki), granulomatosa (granulomatose com poliangeíte e granulomatose eosinofílica com poliangeíte), de células gigantes (arterite de Takayasu) e outras (doença de Behçet);
  4. Anátomo-fisiológica (calibre dos vasos)
    Afectando vasos grandes/aorta e ramos proximais (arterite de Takayasu), vasos médios/artérias renais, coronárias e vasculatura mesentérica (doença de Kawasaki, poliarterite nodosa) e vasos pequenos/capilares, arteríolas e vénulas pós-capilares (púrpura de Henoch-Schönlein, vasculite de hipersensibilidade, poliangeíte microscópica, granulomatose com poliangeíte e granulomatose eosinofílica com poliangeíte);
  5. Associadas ao anticorpo dirigido contra antigénio do citoplasma de neutrófilos (ANCA)
    Este grupo baseia-se na presença ou ausência de anticorpo dirigido contra antigénio do citoplasma de neutrófilos (ANCA, sendo pANCA-perinuclear, e cANCA- citoplásmico). As vasculites ANCA positivo são: granulomatose com poliangeíte, granulomatose eosinofílica com poliangeíte e poliangeíte microscópica.

O diagnóstico de vasculite baseia-se:

  1. Na anamnese e no exame objectivo pormenorizados (designadamente investigando eventual utilização de fármacos, palpação de pulsos, e medição da pressão arterial);
  2. Em exames complementares seleccionados em função da história clínica, os quais poderão culminar no exame histopatológico (biópsia) e no estudo de biologia molecular.

Existem vários achados clínicos sugestivos de vasculite (Quadro 1).

QUADRO 1 – Achados clínicos sugestivos de vasculite

    • Febre prolongada de origem indeterminada
    • Sintomas constitucionais: perda de peso, astenia, adinamia, anorexia
    • Lesões cutâneas: exantema urticariforme, necrose, úlceras, petéquias, nódulos subcutâneos, livedo reticularis
    • Artrite, artralgia, mialgia
    • Serosite
    • Manifestações neurológicas: cefaleia, alterações do sistema nervoso central, neuropatia periférica
    • Hipertensão arterial, ausência ou assimetria de amplitude dos pulsos
    • Infiltrado pulmonar, lesão do septo nasal
    • Hemorragia digestiva

O Quadro 2 integra alguns parâmetros laboratoriais que, embora inespecíficos, sugerem a presença de vasculite.

QUADRO 2 – Parâmetros laboratoriais possivelmente associados a vasculite

    • Velocidade de sedimentação ou PCR elevadas
    • Anemia
    • Leucocitose
    • Eosinofilia
    • Presença de ANCA (anticorpos anticitoplasma dos neutrófilos)
    • Factor de von Willebrand elevado
    • Crioglobulinémia
    • Presença de imunocomplexos circulantes
    • Hematúria

A actual classificação das vasculites em idade pediátrica, validada em 2010 após período anterior em que era feita extrapolação a partir da dos adultos, consta do Quadro 3.  

QUADRO 3 – Classificação das vasculites na idade pediátrica

Adaptado de Ozen et al, 2006

I – Predominantemente de vasos de grande calibre

    • Arterite de Takayasu

II – Predominantemente de vasos de médio calibre

    • Poliarterite nodosa da infância
    • Poliarterite cutânea
    • Doença de Kawasaki

III – Predominantemente de vasos de pequeno calibre

A. Granulomatosas

    • Granulomatose de Wegener
    • Síndroma de Churg-Strauss

B. Não Granulomatosas

    • Poliangeíte microscópica
    • Púrpura de Henoch- Schönlein
    • Vasculite leucocitoclástica cutânea isolada
    • Vasculite urticariforme associada a diminuição do complemento

IV – Outras vasculites

    • Doença de Behçet, vasculites secundárias a infecções, vasculites associadas a doenças do colagénio, vasculite isolada do sistema nervoso central, síndroma de Cogan, inclassificáveis

Seguidamente são abordadas as vasculites com maior relevância na idade pediátrica, salientando-se que a doença de Kawasaki (DK) integra capítulo próprio na Parte sobre Cardiologia.

1. PÚRPURA de HENOCH-SCHÖNLEIN

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A púrpura de Henoch-Schönlein (PHS), também designada púrpura alérgica ou anafilactóide, é uma vasculite de pequenos vasos (capilares, arteríolas e vénulas), caracterizada por infiltração leucocitária na parede dos vasos sanguíneos, do que resulta aumento da permeabilidade vascular com hemorragia, edema e isquémia teciduais consequentes.

Trata-se da vasculite mais comum da idade pediátrica. A incidência anual oscila entre cerca de 9 e 18/100.000 crianças e adolescentes. É mais frequente no sexo masculino (1,5/1), sobretudo entre os 2 e 7 anos de idade (média de idade de 6 anos). Não existindo predilecção por raça, surge sobretudo no inverno e primavera. O aparecimento de casos familiares sugere componente genético. Os alelos HLA-B34 e HLA-DRB1*01 estão associados à nefrite de PHS.

Etiopatogénese

A etiopatogénese não está completamente esclarecida; admite-se o papel importante da hipersensibilidade a bactérias ou vírus (hipersensibilidade do tipo 3). Com efeito, a PHS surge geralmente após infecção do tracto respiratório superior (em cerca de 80% dos casos), sendo o Streptococcus b-hemoliticus do grupo A o agente mais frequentemente implicado. São também apontados como desencadeantes de PHS, infecções víricas, (Parvovírus, Adenovírus) ingestão de medicamentos (penicilina, ampicilina, eritromicina, quinino), alergénios alimentares e picadas de insectos.

Foi comprovada reacção antigénio-anticorpo no endotélio vascular levando a alteração da membrana capilar e a tendência hemorrágica. O mecanismo mais provável de indução da vasculite, com a intervenção do factor de necrose tumoral (TNF-a) e interleucina 6 (IL-6), é o depósito local de imunocomplexos (sobretudo IgA) nas paredes dos pequenos vasos sanguíneos da pele, glomérulos renais e mucosa gastrintestinal; o papel da activação do sistema do complemento é controverso. Não existe predisposição familiar, mas pode haver associação a deficiência congénita das fracções C2 e C4 b do complemento.

Como consequência deste processo verifica-se, através do exame histológico, a presença de infiltrados de leucócitos polimorfonucleares e mononucleares. Observam-se também trombos plaquetários, hemorragia e edema endotelial e, eventualmente, evolução para necrose fibrinóide de pequenos vasos sanguíneos.

Manifestações clínicas

O início da doença pode ser súbito ou gradual com aparecimento progressivo das respectivas manifestações. Em cerca de 50% dos doentes surge febre e mal-estar associados a infecção das vias aéreas superiores.

Sinais cutâneos

A pele é afectada em todos os casos (púrpura). A hemorragia cutânea manifesta-se inicialmente como exantema maculopapular ou urticariforme, raramente pruriginoso, indolor, na face dorsal das pernas junto à região maleolar dos tornozelos.

Ao cabo de 24-48 horas, as lesões tornam-se maiores, confluentes, purpúricas, não desaparecendo à compressão digital – com áreas concomitantes de petéquias confluentes e de equimoses de apresentação simétrica, principalmente na superfície de extensão dos membros inferiores e nádegas, menos frequentemente nos membros superiores e face, e raramente no tronco.

No mesmo doente poderão ser observados vários estádios evolutivos do exantema, sendo que as lesões mais antigas adquirem uma tonalidade mais escura, acastanhada, que tende a desaparecer em 4 semanas; no entanto, tais lesões poderão persistir durante meses (Figuras 1 A e B, e 2).

Em casos graves aparecem lesões necróticas e infecção secundária. Em cerca de 30-50% dos casos, principalmente em crianças com menos de 3 anos, ocorre edema não depressível de mãos, pés, região periorbitária, coiro cabeludo e, eventualmente, angioedema.

Poderá verificar-se uma ou mais recorrências (5-40% dos doentes) durante os primeiros meses de doença. Em casos de recorrência, as lesões tendem a aparecer nos mesmos locais das lesões prévias. O aparecimento de cicatrizes cutâneas é raro.

Sinais articulares

O compromisso articular (artrite e/ou artralgia) – que pode preceder as lesões cutâneas – constitui a segunda manifestação mais frequente, ocorrendo em 60 a 90% dos doentes. É geralmente agudo, migratório, oligoarticular, ao nível das grandes articulações, principalmente dos membros inferiores (joelhos, tornozelos), com duração de alguns dias em cada articulação. A artrite não deixa sequelas; porém, na fase aguda pode ser bastante dolorosa e incapacitante, de modo semelhante ao compromisso articular que surge na febre reumática. Poderá verificar-se raramente o aparecimento de mialgias associadas.

Sinais gastrintestinais     

Em cerca de 30 a 70% dos casos ocorrem manifestações gastrintestinais no primeiro mês após o início da doença. Elas traduzem-se por dor abdominal periumbilical (tipo cólica de forte intensidade, exacerbada durante as refeições), náuseas, vómitos, hematemese, melena ou enterorragia; e, menos frequentemente, pancreatite aguda hemorrágica, colite ulcerosa, colite pseudomembranosa, enteropatia com perda de proteína, hidropisia da vesícula biliar e esteatorreia. A hemorragia gastrintestinal não ocorre na ausência de dor abdominal.

Complicações como invaginação intestinal, perfuração com peritonite, enfarte da parede intestinal ou estenose ileal podem aparecer no decurso da doença: as regiões mais acometidas são jejuno e íleo.

A invaginação intestinal (de localização ileoileal e ileocólica respectivamente em 65% e 35% dos casos) ocorre em 1 a 5% dos pacientes, traduzindo-se por dor abdominal intensa e súbita, hemorragia, e massa abdominal palpável. A dor abdominal intensa e o edema escrotal podem preceder o quadro de púrpura em cerca de 20% dos casos levando a confusão diagnóstica e, em muitos casos, a intervenção cirúrgica desnecessária; salienta-se que existe um risco maior de doença renal nos pacientes com hemorragia intestinal. Outra manifestação rara e tardia é a estenose esofágica.

O diagnóstico das situações que estão na base dos sinais gastrintestinais é realizado através de estudos radiológicos, ultrassonografia, endoscopia ou observação intra-operatória das lesões intestinais.

As lesões mais encontradas na endoscopia são áreas de hemorragia, erosões gástricas e jejunais, duodenite e lesões múltiplas de cólon e recto. Os exames contrastados são contra-indicados. As alterações histopatológicas cutâneas com evidência de vasculite (nas amostras obtidas por biópsia) confirmam o diagnóstico de PHS.

FIGURA 1. Púrpura de Henoch-Schönlein – Exantema maculopapular: A) localização nas nádegas; B) localização nas coxas e antebraços. (NIHDE)

FIGURA 2. Púrpura de HS com localização de exantema predominante nas pernas

Sinais nefro-urológicos

De todos os sistemas orgânicos envolvidos, o rim é o principal responsável pela mortalidade, morbilidade e prognóstico a longo prazo. Com efeito, o compromisso renal está presente em 20 a 100% dos casos, sendo raro o seu início antes do quadro cutâneo. Em 80% dos pacientes esta manifestação surge nas primeiras 4 semanas de doença, e no restante contingente nos primeiros 2 meses, ou mais tarde. Verifica-se micro ou macro-hematúria em 25 a 30% dos pacientes. A proteinúria isolada é rara.

Hipertensão arterial, insuficiência renal aguda, síndromas nefrítica ou nefrótica são alguns dos determinantes de mau prognóstico. Pacientes com síndroma nefrítica e/ou nefrótica no início do quadro progridem para insuficiência renal crónica em 20% dos casos. A doença renal grave manifesta-se principalmente em crianças com idade superior a 5 anos e ocorre em 1 a 5% de todas as crianças com PHS. Factores como idade (crianças maiores), púrpura persistente, dor abdominal grave e recorrências, são apontados como preditivos do aparecimento e da gravidade de doença renal. A biópsia renal está indicada nos casos com síndroma nefrítica, síndroma nefrótica, insuficiência renal aguda ou crónica e proteinúria persistente. Em 10 a 20% dos casos a nefrite pode progredir, apesar da regressão das outras manifestações. Outras manifestações do foro nefro-urológico, mais raras, incluem: orquiepididimite com edema e dor escrotal, torção testicular, etc..

Outras manifestações associadas

Citam-se, neste contexto: febre, vasculite em sistema nervoso central (com cefaleias, convulsões, parésias, neuropatia periférica, hemorragia intracraniana, nevrite óptica, polirradiculonevrite, acidente vascular cerebral isquémico, alterações do comportamento ou coma), epistaxe, parotidite, compromisso ocular (hemorragia subconjuntival), hepatosplenomegalia, colecistite, tiroidite, linfadenopatia e alterações cardiopulmonares (enfarte do miocárdio, pleurite, pericardite, tamponamento cardíaco, doença pulmonar intersticial, edema ou hemorragia pulmonar, e diminuição da difusão pulmonar do monóxido de carbono, etc.).

A PHS pode acompanhar outras formas de vasculite ou de doença auto-imune, como por exemplo a febre mediterrânica familiar e a doença inflamatória do intestino.

Exames complementares

Os resultados dos exames laboratoriais são em geral inespecíficos.

A anemia, quando ocorre, é devida a perdas gastrintestinais. Leucocitose moderada com desvio à esquerda e eosinofilia são observadas nalguns pacientes. O número de plaquetas está geralmente normal, embora possa surgir hiperplaquetose relacionada com a gravidade da doença.

A velocidade de sedimentação (VS), a proteína C reactiva (PCR) e o complemento (C) podem apresentar-se normais ou discretamente elevados.

O coagulograma é normal. O antigénio relacionado com o factor de Von Willebrand encontra-se aumentado na fase activa da doença, assim como o tempo de tromboplastina parcial activado (TTPa), reflectindo lesão endotelial vascular. Os níveis de factor XIII, também conhecido como factor estabilizador da fibrina, podem estar diminuídos durante a fase aguda, principalmente nos casos com compromisso gastrintestinal grave. A fragilidade capilar poderá ser evidenciada pela prova do “garrote”.

O sedimento urinário está alterado nos casos de compromisso renal, mostrando hematúria com dismorfismo eritrocitário, com ou sem proteinúria, leucocitúria e, eventualmente, cilindros hemáticos.

A creatinina sérica pode estar elevada nos casos de insuficiência renal. A pesquisa de sangue oculto nas fezes pode ser positiva.

A imunoglobulina A sérica está aumentada em 50% dos casos; surge normalização ao cabo de 3 meses da doença, não havendo relação com o compromisso renal. A detecção de auto-anticorpos não tem valor na PHS.

O resultado da biópsia renal poderá evidenciar, através da técnica de imunofluorescência, deposição de imunocomplexos contendo IgA nos glomérulos renais, o que constitui factor importante no prognóstico. O quadro histopatológico é geralmente o de glomerulonefrite com lesões focais e/ou segmentares, culminando com a formação de imagens em “meia lua”.

A ecografia abdominoscrotal poderá ter interesse em situações acompanhadas de dor abdominal para confirmar ou infirmar diagnóstico de invaginação intestinal e/ou de torção testicular.

Diagnóstico

O diagnóstico da PHS é essencialmente clínico e é realizado quando a criança apresenta lesão purpúrica principalmente nos membros inferiores associada a artrite/artralgia, dor abdominal e hematúria/proteinúria.

Critérios de classificação para a PHS foram desenvolvidos pela European League Against Rheumatism (EULAR), Rheumatology International Trials Organisation (PRINTO) e Paediatric Rheumatology European Society (PRES) e ajudam na elucidação diagnóstica. (Quadro 4)  

QUADRO 4 – Critérios de diagnóstico da Púrpura de Henoch Schönlein

(Adaptado de Ozen et al, 2006)

Púrpura palpável (critério obrigatório) na presença de, pelo menos, 1 dos seguintes achados:

    • Dor abdominal difusa
    • Depósito de IgA (biópsia)
    • Artrite ou artralgia aguda
    • Compromisso renal (proteinúria ou hematúria)

No que respeita ao diagnóstico diferencial há que atender aos seguintes pontos:

  1. É importante afastar infecções graves como meningococcémia, septicémia e coagulação intravascular disseminada;
  2. O exantema hemorrágico, que ocorre ocasionalmente no sarampo, na varicela e na escarlatina, faz parte do diagnóstico diferencial da PHS;
  3. A vasculite de hipersensibilidade tem muitas semelhanças com a púrpura de Henoch-Schönlein. Em geral, a vasculite de hipersensibilidade provoca mais importante compromisso orgânico (pleurite, pericardite, insuficiência cardíaca), salientando-se que o predomínio de infiltrado de células mononucleares é frequentemente encontrado no exame anátomo-patológico. A ocorrência predominante em indivíduos maiores de 16 anos, característica da vasculite de hipersensibilidade, também diferencia as duas entidades. Outros tipos de vasculite e causas de glomerulonefrite e de diátese hemorrágica devem ser afastados;
  4. A síndroma hemolítica-urémica também pode simular alguns sinais e sintomas da PHS. A nefrite pós-estreptocócica pode ser diferenciada da púrpura pela diminuição dos níveis de complemento e ausência de sinais cutâneos;
  5. A nefropatia por IgA apresenta as mesmas alterações glomerulares detectadas por imunofluorescência e microscopia electrónica, embora com evolução clínica diferente da PHS. Refira-se que tal entidade (nefropatia por IgA) não apresenta o quadro cutâneo; por outro lado, evidencia sinais de lesão glomerular lentamente progressiva e crónica que pode levar à insuficiência renal crónica independente da apresentação, ao contrário da PHS que é uma doença aguda com lesão renal associada, geralmente não progressiva;
  6. Distúrbios da coagulação e trombocitopénia podem causar lesões purpúricas;
  7. Outros diagnósticos diferenciais nas situações acompanhadas de compromisso gastrintestinal incluem a doença inflamatória intestinal e a enterocolite por Yersinia;
  8. Os quadros de abdómen agudo aparente surgindo antes das lesões cutâneas podem ser confundidos com apendicite, adenite mesentérica, úlcera gastroduodenal, diverticulite e, eventualmente, levar à laparotomia exploradora;
  9. O chamado edema hemorrágico agudo, forma isolada de vasculite leucocitoclástica que afecta sobretudo crianças com < 2 anos, tem semelhanças com PHS. Verifica-se em tal situação bom estado geral com: febre, edema da face, escroto, mãos e pés; equimoses (maiores que na PHS) na face e extremidades; e petéquias nas mucosas. O tronco é poupado. Nos casos duvidosos pode recorrer-se à biópsia da pele.

Tratamento

Na maioria dos casos de PHS não existe necessidade de tratamento medicamentoso, uma vez que as manifestações são geralmente autolimitadas. Haverá, como medidas gerais, que providenciar a hidratação adequada. O tratamento específico, quando indicado, é de acordo com as manifestações clínicas apresentadas.

Em casos acompanhados de febre, edema ou sinais de compromisso articular, está indicado o uso de analgésicos-antipiréticos e de anti-inflamatórios. O ácido acetilsalicílico não deve ser usado pela possibilidade de provocar alterações gástricas e promover disfunção plaquetária. A ranitidina pode ser utilizada em pacientes com sintomas gastrintestinais, para redução da dor abdominal e da hemorragia digestiva.

O uso de glicocorticóides está indicado nos casos de lesão cutânea grave, com hemorragia, bolhas ou necrose; quadros gastrointestinais graves; orquite; comprometimento renal grave, com proteinúria intensa; e outras manifestações sisté

micas graves, como pancreatite, hemorragia pulmonar e vasculite do sistema nervoso central.

Nalguns casos de nefrite é necessário associar um imunossupressor, como azatioprina, ciclosporina, micofenolato ou ciclofosfamida. Na presença de glomerulonefrite rapidamente progressiva está indicada a plasmaférese. Os inibidores da enzima conversora de angiotensina são utilizados nos quadros renais com proteinúria.

Vale a pena ressaltar que o uso de glicocorticóides precocemente não previne o aparecimento do quadro renal e não devem ser utilizados para este fim.

Complicações e prognóstico

Geralmente a PHS regride ao cabo de 3-4 semanas, havendo, no entanto, a possibilidade de recorrências, como foi referido antes. A artrite também evolui favoravelmente, sem sequelas e sem recorrências.

No que respeita às manifestações do foro gastrintestinal há que contar com a possibilidade de hiperperistaltismo anómalo transitório com risco de invaginação intestinal e complicações inerentes, caso não seja feito diagnóstico atempado.

A mortalidade na fase aguda resulta de complicações gastrintestinais e de insuficiência renal aguda (rara).

A progressão para insuficiência renal crónica é inferior a 1% dos casos de PHS; no entanto, havendo antecedentes desta patologia na fase aguda, está indicado o seguimento da criança para avaliação periódica da função renal.

Em suma, o prognóstico é bom, em geral. Todas estas eventualidades deverão ser explicadas à família.

2. POLIARTERITE NODOSA

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A poliarterite nodosa (PAN) é uma vasculite sistémica segmentar de tipo necrosante, atingindo sobretudo as artérias musculares de médio calibre, o que poderá levar a formação de aneurisma e estenose de artérias viscerais em qualquer órgão.

Os órgãos predominantemente afectados são: pele, vísceras abdominais, rins, sistema nervoso periférico e central e músculos.

Embora se trate de doença rara na infância e na adolescência, a PAN é a terceira vasculite mais frequente nesta faixa etária em alguns países, seguindo-se à PHS e à DK.

Apresenta dois subtipos: PAN cutânea e sistémica. A forma cutânea (limitada à pele) pode ser acompanhada de sintomatologia músculo-esquelética.

No grupo etário pediátrico verifica-se maior incidência entre aqueles de 7 a 11 anos, igualmente nos dois sexos; pode, no entanto, ocorrer em crianças muito pequenas. A sua distribuição é uniforme mundialmente, salientando-se maior número de casos descritos na Turquia e no Japão.

Etiopatogénese

A etiopatogénese da PAN é desconhecida, admitindo-se a hipótese de implicação de mecanismo imune ou de determinados agentes infecciosos (tais como Streptococcus dos grupos A e B, Parvovírus B19, Citomegalovírus, Vírus das hepatites B e C). Entre 10 e 50% dos casos associam-se ao vírus da hepatite B no adulto, contra cerca de 4% na idade pediátrica. Diversos estudos descreveram a associação da forma cutânea de PAN à infecção estreptocócica.

Recentemente foi descoberta a mutação com perda de função do gene CECR1, resultando na diminuição dos níveis da enzima adenosina deaminase 2 (ADA2), o que leva à vasculopatia e características clínicas semelhantes à da PAN.

A lesão arterial pode causar dilatação aneurismática (microaneurismas múltiplos de cerca de 1 mm) e nalguns vasos podem observar-se macroscopicamente nódulos; daí o termo de “nodosa”. Podem também ocorrer estenose, trombose e enfartes localizados. A necrose inicial é substituída posteriormente por tecido fibroso levando ao espessamento da adventícia, o que caracteriza a doença. Através da imunofluorescência é possível demonstrar depósitos vasculares de imunocomplexos (complemento e/ou imunoglobulinas).

Manifestações clínicas

O espectro de manifestações é muito variável, oscilando entre formas oligossintomáticas e graves e progressivas, por vezes fatais.

Nas formas mais frequentes, a doença tem início insidioso com sintomas inespecíficos como febre, perda de peso, astenia, mialgia e cefaleia.

Na PAN sistémica qualquer órgão interno pode estar comprometido, salientando-se que as áreas mais afectadas correspondem aos sistemas digestivo, renal e nervoso central (SNC) e periférico (SNP).

As manifestações clínicas mais frequentes integram as duas formas clínicas:

  • PAN cutânea: sinais cutâneos, como livedo reticular, nódulos subcutâneos, necrose de extremidades, podendo haver mialgia e artralgia/artrite associadas;
  • PAN sistémica, em que se verifica além do quadro cutâneo e músculo-esquelético, hipertensão, atingimento neurológico e gastrointestinal, podendo ainda afectar outros sistemas.

Globalmente as manifestações podem ser sistematizadas como se segue:

Sinais cutâneos

Nódulos subcutâneos (mais frequentes nos pés e face posterior das pernas, em geral no trajecto dos vasos sanguíneos); exantema máculo-papular, livedo reticularis, sinais de isquémia digital (edema, gangrena periférica, ulcerações, etc.); aos casos em que predominam os sinais cutâneos (PAN cutânea) podem estar associados outros sinais, adiante descritos (Figuras 3, 4 e 5).

FIGURA 3 – PAN e livedo reticularis intenso em membros

FIGURA 4 – PAN e necrose de 2° e 4° dedos do pé direito

Sinais músculo-esqueléticos

  • Dor músculo-esquelética com fraqueza muscular gradual; artralgia, artrite (localizada ou difusa) e, por vezes, paniculite (inflamação do tecido adiposo subcutâneo).

Sinais abdominais

  • Dor abdominal inespecífica relacionada com isquémia da artéria mesentérica ou outra artéria intra-abdominal; enfartes do intestino e pâncreas, assim como perfurações do tubo digestivo são também alterações possíveis.

Sinais renais

  • Proteinúria, cilindrúria, síndroma nefrótica, hipertensão renovascular, insuficiência renal aguda, são alguns dos sinais de compromisso renal; a hipertensão arterial poderá, em certos casos, constituir uma manifestação isolada da doença.

Sinais neurológicos

  • SNP: neuropatia periférica sensorial ou motora, sendo a manifestação característica a mononeurite múltipla, que evolui com “mão caída”ou “pé caído”.
  • SNC: cefaleias, sinais focais, convulsões, hemiparésia, disfunção do cerebelo, paralisia de nervos cranianos e acidente vascular cerebral são manifestações raras. Os achados do SNC mais típicos são a presença de aneurismas e de micro-enfartes cerebrais múltiplos.

Sinais cardiovasculares

  • Regurgitação das válvulas mitral ou tricúspide; diminuição da ejecção sistólica do ventrículo esquerdo, etc..

Sinais genitais

  • Edema e dor testiculares, nódulos testiculares (raros).

Sinais oftalmológicos

  • Episclerite

FIGURA 5 – Lesão ulcerada na região medial de membro inferior

Exames complementares

Face à anamnese e exame objectivo sugerindo vasculite com elevada probabilidade de PAN, são justificados determinados exames complementares (a solicitar criteriosamente e em função de cada caso particular), podendo afirmar-se que, de modo genérico, os respectivos resultados traduzem o carácter inflamatório da doença, sendo comum a alteração de parâmetros da fase aguda.

  • Hemograma: anemia, leucocitose, trombocitose, etc.;
  • VS elevada;
  • PCR com valores elevados;
  • Electroforese das proteínas séricas: hipergamaglobulinémia reflectindo activação policlonal das células B;
  • Análise sumária da urina: proteinúria, hematúria;
  • Doseamento da creatinina e ureia no sangue: elevação dos valores;
  • Detecção do antigénio do factor VIII e da tromboglobulina: positividade reflectindo actividade da inflamação vascular – com interesse também na avaliação do resultado da terapêutica;
  • Electrocardiograma: sinais possíveis de isquémia;
  • Electromiograma: em caso de neuropatia periférica identifica os locais afectados;
  • Angiografia/angiorressonância/angiotomografia: podendo demonstrar sinais de pequenos aneurismas mais frequentemente encontrados nas artérias mesentéricas, hepáticas e renais. Indicadas quando há compromisso de órgãos internos e, em função do contexto clínico de cada paciente, substituem eventualmente a biópsia;
  • Biópsia da pele, incluindo nódulos subcutâneos, ou doutros órgãos: podendo identificar sinais de compromisso vascular (por ex. músculo, nervo, rim ou fígado: 1- inflamação destruindo a parede dos vasos, sendo característico o compromisso predominante das zonas de bifurcação; 2- presença de vasos com diversos estádios de lesão: alguns com sinais de inflamação aguda com infiltrado de neutrófilos, outros com infiltrado de mononucleares e, ainda outros e no mesmo território, com sinais de necrose e trombose, ao lado de vasos sem anomalias).

De realçar que o exame anátomo-patológico da região afectada ou a imagem angiográfica são fundamentais na confirmação diagnóstica da PAN, uma vez que os achados clínicos e laboratoriais são inespecíficos e podem ser semelhantes aos observados noutras vasculites e doenças reumáticas autoimunes.

Diagnóstico

O diagnóstico da PAN é feito através duma clínica compatível com a doença associada a biópsia ou angiografia características. Os critérios de classificação validados na infância pelos grupos internacionais European League Against Rheumatism (EULAR)/ Paediatric Rheumatology European Society (PRES)/ Paediatric Rheumatology International Trials Organisation (PRINTO) podem auxiliar no diagnóstico. (Quadro 5)

QUADRO 5 – Adaptação dos critérios de classificação da PAN na infância

Critério obrigatório

Exame histopatológico com evidência de vasculite necrosante em pequenas e médias artérias.
ou
Angiografia evidenciando aneurisma, estenose ou oclusão de artérias de médio ou pequeno calibres, excluindo displasia fibromuscular ou outras causas não inflamatórias

1. Envolvimento cutâneo

Livedo reticularis
Nódulos cutâneos dolorosos
Úlcera cutânea
Necrose de extremidades

2. Sintomas músculo-esqueléticosMialgia ou miosite
3. Hipertensão arterial sistémicaPressão sistólica/ diastólica maior que o percentil 95 para altura
4. Neuropatia periférica

Neuropatia periférica sensorial
Mononeurite múltipla motora

5. Envolvimento renal

Proteinúria > 0,3g/24h ou 30 mmol/mg de amostra isolada de albumina/creatinina
Hematúria ou cilindros hemáticos
Insuficiência renal

(Adaptado de Ozen et al, 2008)
Nota É necessária a presença do critério obrigatório (achado compatível na biópsia ou angiografia) associado a, pelo menos, mais 1 dos 5 critérios restantes.

O quadro clínico diversificado da PAN implica o diagnóstico diferencial com um conjunto de entidades clínicas, destacando-se:

  • Lúpus eritematoso sistémico, dermatomiosite e esclerodermia, tendo em consideração que estas entidades podem cursar com lesões cutâneas vasculíticas, sendo que as restantes manifestações clínicas destas doenças permitem, em princípio, a distinção;
  • Doença inflamatória do intestino ou neoplasias, tendo em consideração as manifestações do foro gastrintestinal que poderão acompanhar a PAN.

Tratamento

O tratamento da PAN inclui fundamentalmente:

  • Corticoterapia: prednisolona PO, até máximo de 60 mg/dia; nos casos graves está indicado iniciar a corticoterapia com metilprednisolona EV em pulsos de 30 mg/kg/dia (até máximo de 1 g/dia) durante 3 dias, seguindo-se prednisolona PO com redução progressiva em função da resposta clínica e laboratorial do processo inflamatório;
  • Imunossupressores em casos de falência da corticoterapia (persistência ou reactivação: ciclofosfamida PO, azatioprina PO, ou micofenolato; nas formas mais graves poderá estar indicado iniciar o tratamento com pulsos EV de ciclofosfamida (0,5-1 g/m2) segundo esquema que ultrapassa os objectivos do livro;
  • Plasmaférese nos casos mais graves;
  • Imunoglobulina EV, de utilização limitada, apenas em situações de falência da corticoterapia e antes de serem usados agentes citotóxicos;
  • Terapia biológica para os casos graves e refractários, com terapia anti-TNF e anti-CD20 (rituximab);
  • Profilaxia secundária de recorrência de infecção estreptocócica com penicilina benzatínica cada 21 dias nos casos de antecedentes de infecção estreptocócica prévia;
  • Fisioterapia em função da sintomatologia músculo-esquelética;
  • Regime alimentar adequado, com eventual suplemento de cálcio e vitamina D, evitando a iatrogenia.

Prognóstico

Com os recursos terapêuticos actualmente disponíveis e o diagnóstico precoce, o prognóstico desta doença tem melhorado, considerando-se dum modo geral bom. De referir, no entanto, que a possibilidade do compromisso dos órgãos atingidos e a iatrogenia, poderão agravar o prognóstico.

3. DOENÇA DE BEHÇET

Definição e aspectos epidemiológicos

A doença de Behçet (DB) é uma perturbação inflamatória sistémica que cursa com vasculite crónica e recorrente afectando grande variedade de vasos (vasculite variável primária), quer em calibre, quer em tipo – artérias e veias. Afecta principalmente a mucosa oral e genital, olhos e pele, mas o sistema músculo-esquelético, o gastrintestinal, o neurológico e o vascular também podem estar comprometidos.

Mais frequente na idade adulta (sobretudo segunda década) sem predomínio de sexo, é mais frequente nalgumas regiões do mundo, área mediterrânica, Japão e China (ao longo da Rota da Seda).

Na idade pediátrica atinge sobretudo pré-adolescentes e adolescentes (com uma incidência de cerca de 1/20.000 indivíduos; de salientar que se descreve hoje uma forma no recém-nascido e lactente.

Etiopatogénese

A classificação de doença autoinflamatória da DB é sugerida pela natureza episódica das manifestações, por se ter provado o papel preponderante da activação do sistema imune inato, pela ausência de autoanticorpos identificáveis, e pela associação com a febre Mediterrânica (MEFV).

Têm sido implicados, como prováveis desencadeantes, certos agentes infecciosos (vírus Herpes simples tipo 1, Parvovírus B 19, Streptococcus) induzindo respostas aberrantes do sistema imune inato. Por outro lado, diversos estudos têm demonstrado títulos elevados de anticorpos contra os respectivos agentes em determinados doentes e desencadeamento da doença pela exposição a organofosforados.

A distribuição geográfica, a frequência de aparecimento em familiares e a associação estatisticamente significante entre presença de antigénios do sistema HLA B5, B51, e doença de Behçet, sugerem predisposição genética.

A lesão patológica de base é vasculite das artérias de pequeno e médio calibre, com infiltração celular e consequentes necrose fibrinóide, estreitamento e obliteração dos lumes vasculares.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas são recorrentes com periodicidade muito variável. Por vezes o intervalo entre o primeiro episódio e o segundo pode ser de vários anos.

As úlceras orais são a manifestação mais frequente, ocorrendo em 50% a 80% dos casos. As úlceras são dolorosas, múltiplas, de 2 a10 mm de diâmetro, com centro necrótico e localizadas nos lábios, palato, língua, amígdalas, laringe e qualquer local do tubo digestivo. (Figura 6A)

Sendo a estomatite aftosa muito comum na primeira infância, as úlceras orais são consideradas como manifestação da doença de Behçet quando aparecem de forma recorrente (pelo menos 3 episódios por ano). Na maioria dos casos as úlceras regridem entre 7 e 14 dias, reaparecendo após períodos variáveis sem sequelas cicatriciais.

A presença de úlceras orais pode preceder durante anos uma segunda manifestação da doença, o que comporta dificuldade no diagnóstico.

As úlceras genitais, menos comuns na primeira infância, geralmente aparecem na puberdade; muito dolorosas e recorrentes, surgem no pénis (glande e prepúcio), escroto, vulva, vagina e região perianal com as mesmas características que as úlceras orais; contudo, esta localização deixa habitualmente cicatrizes.

O espectro de manifestações cutâneas é muito variado, incluindo: foliculite, púrpura, pústulas, vesículas, ulcerações, pápulas, furúnculos, abcessos, lesões acne-símile, eritema multiforme e eritema nodoso (este último em cerca de 50% dos casos).

As referidas lesões cutâneas desaparecem espontaneamente ao cabo de 7 a 14 dias. (Figuras 6-A, B e C)

FIGURA 6. Jovem de 14 anos de idade, sexo masculino, com doença de Behçet diagnosticada aos 12 anos de idade. São evidentes úlceras orais e necróticas, estas últimas dificultando a abertura da boca (A); lesões papulopustulosas (acneiformes, pseudofoliculite) no antebraço (B) e na mão direita (C)

Uma manifestação cutânea considerada  típica da doença – embora não patognomónica – é a chamada reacção patérgica (reacção do tipo pápula dura eritematosa superior a 2 mm, evoluindo para pústula estéril e úlcera em cerca de 2-3 dias) após picada com agulha. 

As manifestações oculares, mais raras, são geralmente bilaterais caracterizando-se por alterações de segmento anterior (iridociclite) ou posterior (coriorretinite, papilite óptica, tromboflebite retiniana, arterite, etc.); também poderão surgir conjuntivite, episclerite e ceratite. O olho pode apresentar-se vermelho e doloroso. Poderão surgir complicações tardias como glaucoma, catarata e perda da visão.

As manifestações articulares, caracterizadas por oligo ou poliartrite ou artralgia, em geral das grandes articulações, não costumam deixar sequelas.

O compromisso vascular traduzindo-se por trombose de veias e artérias, corresponde à única vasculite que afecta os sistemas venoso e arterial. As manifestações mais comuns são a trombose de veias profundas (safenas, ilíacas, veia cava, veias dos membros superiores, supra-hepáticas – síndroma de Budd Chiari e cerebrais) e a tromboflebite superficial.

O compromisso arterial inclui aneurismas arteriais na aorta ou noutros vasos (inclusivamente artérias retiniana e pulmonar) com possível ruptura. A trombose arterial pulmonar constitui uma das manifestações associadas a mortalidade elevada.

A alteração mais grave da doença de Behçet é a neurológica, caracterizada principalmente por meningoencefalite asséptica, encefalomielite, hipertensão intracraniana secundária a trombose do seio dural, doença cerebelosa, hemiparésia, paralisia de pares cranianos, neuropatia periférica e alterações psiquiátricas. A cefaleia é um sintoma habitual.

As manifestações gastrintestinais podem ser inespecíficas (dor abdominal do tipo cólica, náuseas, vómitos e diarreia) ou semelhantes às verificadas nas doenças inflamatórias crónicas intestinais. Salienta-se o aparecimento de úlceras esofágicas e intestinais que causam dor e podem levar a quadros de melena e perfuração. Os quadros de estenose são mais frequentes do que os de perfuração, ao contrário do que acontece nos adultos. Por vezes existe hepato e/ou esplenomegália.

O Quadro 6 sintetiza os critérios de diagnóstico para a DB pediátrica.

QUADRO 6 – Critérios de classificação para a doença de Behçet (DB)*

*A presença de 3 dos 6 critérios permite a classificação de DB na idade pediátrica.
Sinais Pontuação
Afta oral recorrente (pelo menos 3/ano)1
Úlcera genital1
Envolvimento cutâneo (foliculite, lesão acneiforme, eritema nodoso)1
Envolvimento ocular (uveíte anterior, posterior ou vasculite retiniana)1
Envolvimento neurológico (com excepção de cefaleia)1
Trombose venosa, trombose arterial e aneurisma arterial1

Exames complementares

Determinados exames complementares têm utilidade para avaliar a actividade da doença, o diagnóstico diferencial e a exclusão de colagenoses. Eis os fundamentais:

  • Hemograma: pode evidenciar anemia, discreta leucocitose e, raramente, neutropenia;
  • Provas de actividade inflamatória como VS, PCR e alfa 2 globulina podem evidenciar valores aumentados na fase aguda da doença. As concentrações séricas de IgA e IgM encontram-se elevadas. O nível de complemento pode estar aumentado na fase aguda;
  • Pesquisa de ANA e factor reumatóide: negativa;
  • Pesquisa do antigénio de histocompatibilidade HLA-B51: positiva em cerca de 50 a 80% dos casos, segundo alguns estudos (associação frequente a compromisso ocular);
  • Angiografia: importante para caracterizar as lesões vasculares;
  • RM: importante para avaliar os efeitos da doença no sistema nervoso central.

Diagnóstico diferencial

Um vez que alguns doentes poderão não preencher os critérios da doença (doença de Behçet incompleta), a avaliar pela sensibilidade e especificidade dos critérios anteriormente descritos, doenças como lúpus eritematoso sistémico, artrite idiopática juvenil do tipo sistémico, doença de Reiter, doença inflamatória intestinal, eritema nodoso, estomatite aftosa e infecções herpéticas devem ser consideradas no diagnóstico diferencial.

Igualmente, a doença de Behçet deve fazer parte do diagnóstico diferencial doutras vasculites sistémicas, e de três outras entidades: síndroma de Stevens Johnson, eritema multiforme e necrólise epidérmica tóxica.

São referidas, a propósito, algumas características das três últimas:

1) A síndroma de Stevens Johnson integra quadro cutâneo vésico-bolhoso; inicia-se por máculas eritematosas com ulterior necrose central, formando-se consequentemente vesículas e bolhas que originam o aspecto de pele “desnudada” ou “descolada”, sobretudo na face, tronco e extremidades.
As lesões cutâneas, mais disseminadas que no eritema multiforme, são acompanhadas de lesões de duas ou mais mucosas, nomeadamente olhos, boca, via respiratória superior e tracto gastrintestinal, incluindo região anorrectal. Surge edema, eritema da mucosa bucal, bolhas e úlceras hemorrágicas. A referida síndroma está associada a infecções por Mycoplasma pneumoniae e certos fármacos como sulfonamidas, AINE, anticonvulsantes, antibióticos, etc..

2) O eritema multiforme consta fundamentalmente de lesões cutâneas de aspecto variável e aparecimento abrupto: máculas eritematosas, pápulas, vesículas, bolha ou lesões símile placas urticariformes confluentes ao nível da face, tronco e membros (rebordo eritematoso em coroa circular policíclica, centro pálido que evolui para arroxeado/necrótico). Quanto às mucosas apenas a boca é por vezes afectada: rubor dos lábios e boca. De etiopatogénese não esclarecida, está frequentemente associado a infecção por HSV.

3) A necrólise epidérmica tóxica, relacionável com os mesmos factores etiológicos da síndroma de Stevens Johnson, é considerada por alguns autores como uma forma mais grave de eritema multiforme. Relacionando-se com apoptose dos queratinócitos, traduz-se por áreas confluentes de eritema e “descolamento” da epiderme, associadas a inflamação das mucosas, das conjuntivas, boca e genitais (por vezes precedendo as lesões cutâneas). O sinal de Nikolsky é positivo: “descolamento” da pele após pressão tangencial da mesma.

FIGURA 7. Síndroma de Stevens Johnson. (NIHDE)

Tratamento

Para além de aspectos gerais que incluem regime alimentar equilibrado e suplementos de cálcio e vitamina D, em função da idade, o tratamento da DB inclui determinadas medidas a seguir descritas:

  • Para as úlceras orais extensas, úlceras genitais, manifestações cutâneas e articulares, a colchicina está indicada como primeira opção, e a penicilina benzatina pode ser associada nos quadros resistentes. Nos casos refractários, usa-se azatioprina e/ou glicocorticóides por curto período de tempo e, nos casos mais graves e resistentes, pode usar-se anti-TNF e apremilast (no contexto de úlceras orais e genitais). A talidomida é uma opção para o quadro mucocutâneo e os AINE para o quadro articular. Agentes tópicos, como glicocorticóides e sucralfato, podem ser usados nas úlceras orais;
  • Para o comprometimento oftalmológico, as opções dependem da localização. Na uveíte anterior, colírios de glicocorticóide e midriáticos geralmente são suficientes para o controle da inflamação. Na uveíte posterior deve utilizar-se glicocorticóide sistémico e azatioprina. Nos casos de maior gravidade, associa-se a ciclosporina. Na doença refractária está indicado o uso de anti-TNF ou de interferon alfa 2a (IFN-α). No caso de utilização do IFN-α, a azatioprina deve ser suspensa;
  • Para as manifestações intestinais está indicada a corticoterapia sistémica associada a sulfassalazina, azatioprina ou talidomida. E, nos casos graves, o anti-TNF;
  • Para o comprometimento do SNC deve proceder-se a pulsoterapia de glicocorticóides, seguida por azatioprina. No caso de doença parenquimatosa refractária, os agentes anti-TNF e a pulsoterapia com ciclofosfamida são alternativa;
  • Para o comprometimento vascular (trombose venosa profunda e trombose cerebral), utilizam-se glicocorticóides associados à azatioprina. Nos casos graves de trombose, como trombose de veia cava ou de supra-hepática, ou nos aneurismas, utiliza-se pulsoterapia com ciclofosfamida, seguindo-se terapia de manutenção com azatioprina. A anticoagulação, controversa, está contraindicada na presença de aneurismas de artérias pulmonares.

Prognóstico

Os casos fatais, raros (cerca de 3%), estão geralmente associados a perfuração gastrintestinal, doença neurológica e trombótica. Oclusões ou aneurismas de artérias são manifestações potencialmente fatais. De salientar que as sequelas oftalmológicas e as manifestações do sistema nervoso central são extremamente incapacitantes.

4. VASCULITES ASSOCIADAS A ANTICORPOS ANTICITOPLASMA DE NEUTRÓFILOS (ANCA)

As vasculites associadas ao ANCA (pANCA ou padrão perinuclear – ver atrás) são caracterizadas por: envolvimento dos pequenos vasos e presença de ANCA circulantes.

Actualmente considera-se que as vasculites associadas ao ANCA integram três formas distintas: granulomatose com poliangeíte/GPA (anteriormente designada granulomatose de Wegener), poliangeíte microscópica/PAM e granulomatose eosinofílica com poliangeíte/GEPA (anteriormente chamada Síndroma de Churg-Strauss).

Nesta alínea é dada ênfase às duas primeiras entidades.

 4.1 GRANULOMATOSE com POLIANGEÍTE

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A GPA é uma vasculite necrosante dos pequenos e médios vasos com formação de granulomas atingindo o tracto respiratório superior e inferior, e os rins (glomerulonefrite). Pode ocorrer de forma sistémica ou limitada, esta última podendo evoluir para sistémica.

Trata-se duma patologia rara na idade pediátrica, sobretudo antes dos 15 anos; na maioria dos casos surge entre a 4ª e a 6ª décadas de vida, sobretudo na raça caucasiana, e com predomínio no sexo feminino (~3/1). Estima-se uma prevalência entre 8 a 30 casos/1.000.000/ano, respectivamente no Reino Unido e nos Estados Unidos da América.

Etiopatogénese

A etiologia da GPA é desconhecida, admitindo-se que, devido à frequência do compromisso das vias aéreas, um antigénio inalado, (alergénio ou agente infeccioso), possa ser desencadeante dum processo inflamatório de mediação imune.

Algumas bactérias (nomeadamente Staphylococcus aureus) produzindo os chamados superantigénios (antigénios com capacidade para desencadear resposta inflamatória desproporcional ao estímulo), têm sido implicadas na iniciação do processo inflamatório ao nível dos capilares (capilarite).

A este poropósito, foi relatado o papel de um gene (CTLA-4 ou um gene próximo a este) codificando o antigénio 4 dos linfócitos T (linfócitos T citotóxicos) susceptíveis de maior activação no processo inflamatório.

Verificou-se que a proteinase-3 (PR3), em condições de normalidade integrada no interior dos grânulos – alfa dos neutrófilos, se encontra à superfície dos neutrófilos em doentes com GPA, sugerindo um papel etiopatogénico da expressão anormal de PR3 na doença.

O antigénio de histocompatibilidade HLA B8 parece estar associado à GPA; contudo outros haplótipos têm sido identificados em casos familiares de GPA associada a PAN (HLA A2, B7, DRw12, A31, Bw60 e DR4).

A marca histológica cardinal da afecção é a de vasculite necrosante, comum à PAM. Por biópsia renal demonstra-se a existência de sinais de glomerulonefrite com imagens de crescentes, e escassa (ou inexistente) deposição de complexos imunes (quadro pauci-imune), ao contrário do que se verifica em doentes com lúpus eritematoso sistémico. A biópsia evidencia inflamação granulomatosa, tal como na GEPA; porém não mostra infiltrados eosinofílicos perivasculares, achados característicos da última.

A razão pela qual o tracto respiratório e os rins constituem os alvos preferenciais na GPA é desconhecida.

Manifestações clínicas e diagnóstico

A sintomatologia respiratória está presente geralmente desde o início do quadro, podendo ser atribuída a infecções ou a alergia, principalmente quando estão ausentes as manifestações sistémicas. A persistência e/ou o agravamento dos sintomas, como rino-sinusite e otite média aguda recorrente, apesar da terapêutica para a alergia ou para a infecção, ou ainda o surgimento de complicações, como ulcerações da mucosa, perfuração do septo nasal ou deformidades nasais, levam à suspeita do diagnóstico.

As manifestações otorrinolaringológicas (rinite, otite, hipoacúsia, laringite, etc.) têm elevada prevalência (~70%), tanto no início do quadro clínico, como no decurso da doença. A obstrução laríngea e estenose subglótica surgem em geral como complicação tardia da GPA.

As manifestações pulmonares mais observadas são o infiltrado pulmonar e/ou nódulos, hemoptises, enfisema e pleurite.

O compromisso renal – que pode conduzir a insuficiência renal, surge em geral com a progressão da doença; traduz-se essencialmente por hematúria e proteinúria (na maioria dos casos). Hipertensão arterial e hematúria macroscópica são pouco frequentes.

Poderão surgir ainda alterações oculares (conjuntivite, esclerite ou proptose). Como manifestações menos específicas da GPA, citam-se febre, perda de peso, alterações cutâneas (púrpura palpável, úlceras, vesículas e nódulos subcutâneos), músculo-esqueléticas, e alterações do sistema nervoso (paralisia dos nervos cranianos, convulsões e neuropatia periférica).

Lesões papulares e nodulares do tipo acneiforme na face e membros superiores podem corresponder à manifestação inicial da doença em adolescentes.

 O Quadro 7, adaptado de Ozen S, et al (EULAR/PRINTO/PRES, 2010), discrimina os critérios de classificação da doença (obrigatoridade de presença de, pelo menos, 3 em 6).

QUADRO 7 – Critérios de classificação da Granulomatose com Poliangeíte (GPA) em idade pediátrica

    • Histopatologia evidenciando inflamação granulomatosa
    • Envolvimento das vias respiratórias superiores
    • Envolvimento pulmonar
    • Envolvimento laringo-tráqueo-brônquico
    • Positividade de ANCA
    • Proteinúria, hematúria, eritrocilindrúria, glomerulonefrite pauci-imune

O diagnóstico deve ser suspeitado em crianças com sinusite grave associada a padrão radiográfico do tórax evidenciando sinais de granulomas/padrão de “infiltrado”, ou com quadro de glomerulonefrite. A TAC de alta resolução pode evidenciar outros sinais sugestivos como imagens de compromisso intersticial ou hemorragia pulmonar.

Diagnóstico diferencial

Os ANCA estão ausentes noutras doenças granulomatosas como sarcoidose ou tuberculose. A GEPA, vasculite que pode originar rino-sinusite crónica, distingue-se fundamentalmente da GPA pelos antecedentes de asma, eosinofilia no sangue periférico circulante e vasculite; por outro lado, na GEPA não se verificam lesões destrutivas na via aérea superior (Quadro 8). Noutras vasculites não se identificam os característicos granulomas ao nível de diversos órgãos, identificados na GPA por biópsia.

QUADRO  8  –  Critérios de classificação da Granulomatose Eosinofílica com Poliangeíte/GEPA

(sensibilidade de 85% e especificidade de 99,7%); Ozen et al, 2006

Verificação obrigatória de, pelo menos, 4 dos 7 critérios:

    1. Asma
    2. Eosinofilia em sangue periférico superior a 10%
    3. História de alergia
    4. Mononeuropatia ou polineuropatia
    5. Infiltrado pulmonar evidenciado em radiografia de tórax convencional
    6. Alterações dos seios da face (rino-sinusite)
    7. Biópsia evidenciando abundância de eosinófilos em tecidos extravasculares

Exames complementares

Em cerca de 75% dos casos de GPA verifica-se anemia, elevação da VS, da PCR e das plaquetas. Os anticorpos da classe IgG c-ANCA dirigidos contra PR3 e identificados por imunofluorescência (padrão citoplasmático) são característicos da doença, porém a imunofluorescência também pode identificar padrão perinuclear em uma menor percentagem dos pacientes (p-ANCA).

Tratamento

Não há evidências científicas para o tratamento da GPA na faixa etária pediátrica; não provado cientificamente, é baseado em estudos em adultos.

A terapia de indução da remissão é feita com glicocorticóide associado à ciclofosfamida ou ao rituximab nos casos mais graves, e ao metotrexato nos casos leves de GPA localizada ao tracto respiratório. O rituximab é mais frequentemente utilizado nos casos refractários à ciclofosfamida e nas recidivas; porém está a ser cada vez mais utilizado como terapia de primeira escolha, considerando a sua menor toxicidade.

A plasmaférese é reservada para os casos de hemorragia alveolar difusa e glomerulonefrite rapidamente progressiva. Na terapia de manutenção da remissão usa-se azatioprina, metotrexato ou rituximab.

Prognóstico

Sem tratamento, a GPA é quase sempre letal (~ 82% de mortalidade no primeiro ano). O tratamento adequado e precoce permitiu melhorar o prognóstico, sendo este mais reservado em situações de hemorragia pulmonar e de insuficiência renal.

4.2 POLIANGEÍTE MICROSCÓPICA

Definição, aspectos epidemiológicos e importância do problema

A PAM é uma vasculite necrosante, predominantemente dos pequenos vasos, com características semelhantes às da GPA. Trata-se também duma patologia rara na idade pediátrica, sem predilecção de género. Entre as três vasculites antes referidas, é a forma mais grave.

Etiopatogénese

Em complemento do que foi referido a propósito da GPA, e das características histopatológicas distintivas dos três tipos de vasculite associadas a ANCA, cabe reforçar a ideia de que a respectiva etiopatogénese continua desconhecida, embora se tenha demonstrado o envolvimento de monócitos, neutrófilos e células endoteliais no processo.

Neutrófilos e monócitos são activados:

  • pelos ANCA, especialmente contra antigénios citoplásmicos proteinase-3 (PR3) e mieloperoxidase (MPO); e
  • pela libertação de citocinas proinflamatórias como TNF-alfa e IL-8.

Estas células inflamatórias, actuando sobre o endotélio, provocam a lesão vascular característica das vasculites associadas ao ANCA. Glomerulonefrite necrosante com presença de crescentes e capilarite pulmonar constituem dois achados histopatológicos relevantes. A razão pela qual o tracto respiratório e os rins constituem os alvos preferenciais na PAM é desconhecida.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas são semelhantes às da GPA, embora o quadro de afecção sinusal seja menos comum. Os sinais e sintomas de vasculite dos pequenos vasos incluem púrpura, artralgias, artrite e sinais gerais como febre, mal-estar, mialgias e perda de peso. A PAM afecta predominantemente o rim e pulmões; menos frequentemente outros sistemas são atingidos: SNC, pele, coração e globo ocular.

Exames complementares

Para além da elevação da VS e da PCR, o achado laboratorial típico é a presença de títulos elevados de ANCA, padrão perinuclear (p-ANCA, mieloperoxidase/MPO positiva por método ELISA).

Diagnóstico diferencial

Considerando as três vasculites necrosantes GPA, GEPA e PAM, para destinção, são utilizados os critérios:

  • presença e teores séricos de ANCA-PR3 e ANCA-MPO; e
  • verificação positiva ou negativa de inflamação granulomatosa.

Pode estabelecer-se o seguinte esquema:

Nota:
– Os anticorpos ANCA estão presentes em cerca de 90% de crianças com GPA (e em 70% dos casos com GEPA);
– A presença de anti-PR3 aumenta a especificidade do teste.
VasculiteGPAGEPAPAM
ANCAPR3MPO > PR3MPO
Inflamação granulomatosa++

Tratamento

O tratamento da PAM na idade pediátrica também é baseado em estudos derivados da população adulta e segue o mesmo algoritmo feito para a GPA, levando em conta a gravidade de cada caso.

Importa realçar a importância do uso do trimetoprim-sulfametoxazol em pacientes com doença pulmonar para prevenção da infecção por Pneumocystis jiroveci, tanto na GPA quanto na PAM.

Prognóstico

A evolução é variável em função do grau de compromisso multiorgânico. Poderá haver recaídas em 60% dos casos. A evolução para insuficiência renal determina mau prognóstico.

5. ARTERITE DE TAKAYASU

Definição e importância do problema

A arterite de Takayasu (AT), também chamada doença sem pulso, é uma vasculite crónica progressiva de etiologia desconhecida que atinge grandes artérias, levando à formação de estenoses, dilatações e aneurismas.

Rara na idade pediátrica, afecta sobretudo o sexo feminino (4-10 F/ 1M), com uma incidência mundial entre 2,3 a 2,6 casos/1.000.000 habitantes/ano, sendo mais frequente em países asiáticos. A taxa de mortalidade é elevada (~40% na idade pediátrica).

Em casuísticas provenientes da Ásia, comprovou-se associação da doença a tuberculose.

Etiopatogénese

Na faixa etária pediátrica, a AT atinge principalmente a aorta e seus ramos primários, especialmente aorta abdominal e artérias renais.

Os achados imuno-histoquímicos sugerem um mecanismo de resposta imune a um antigénio, mediado por células T cujos receptores evidenciam disfunção. Por outro lado, demonstrou-se nalguns estudos a formação de imunocomplexos, a activação do complemento e o papel de anticorpos antiendoteliais. Verifica-se elevação de IL-6 e diminuição de IL-10.

Os achados histopatológicos evidenciam infiltrado linfo-monocitário, alterações granulomatosas e ulterior fibrose; este processo desenvolve-se da adventícia para a íntima.

No que respeita a antigénios de histocompatibilidade, verifica-se associação da doença ao HLA B-52 e HLA DR-2 no Japão, ao HLA B-52 e HLA B-5 na Coreia, e ao HLA B-39 no México.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Numa fase precoce, com queixas inespecíficas de mal-estar geral, são notórios suores nocturnos, anorexia, perda de peso, fadiga, mialgia, artrite, seguindo-se por vezes hipertensão inexplicada.

A fase subsequente relaciona-se com sinais e sintomas de insuficiência vascular por múltiplas estenoses/oclusões arteriais. Essas manifestações clínicas dependerão da localização da artéria afetada, podendo ocorrer: acidente vascular encefálico, amaurose, dor torácica, dor abdominal, hipertensão e claudicação de extremidades.

Na idade pediátrica, relativamente ao adulto, é:

  • mais evidente a diminuição ou ausência de pulsos periféricos; e
  • menos evidente a claudicação da marcha por isquémia dos membros inferiores.

A presença do quadro descrito, assim como a verificação de VS e de PCR elevadas, obrigarão à auscultação periódica das grandes artérias, à palpação dos pulsos periféricos e à medição da pressão arterial nos quatro membros. (Quadro 9)  

QUADRO 9 – Critérios de classificação da arterite de Takayasu

Ozen e col., 2010

Presença de alterações angiográficas (critério obrigatório) e de, pelo menos, um dos cinco critérios:

    • Diminuição do pulso arterial periférico e/ou claudicação de extremidades
    • Diferença de pressão arterial > 10 mmHg
    • Sopro na aorta e/ou nos seus ramos maiores (artéria subclávia, artéria renal)
    • Hipertensão arterial
    • Aumento de reagentes de fase aguda 

A complicação mais temível da doença é a ruptura de aneurisma.

Os exames laboratoriais não são específicos e traduzem apenas o carácter inflamatório da doença. Assim pode-se observar anemia, leucocitose com neutrofilia e trombocitose; e elevação das provas de inflamação da fase aguda (VS e PCR). Poderá também verificar-se positividade do teste tuberculínico.

  • O electrocardiograma permite evidenciar sinais de hipertrofia ventricular esquerda.

Os exames de imagem da árvore arterial são essenciais para o diagnóstico da AT e para o seguimento dos pacientes:

  • A arteriografia, considerada “de padrão-ouro”, para delinear a alteração luminal do vaso;
  • A angiotomografia (aTC) e angiorressonância (aRM), para avaliar a alteração luminal com a mesma precisão da arteriografia, assim como a parede arterial;
  • A ultrassonografia com Doppler, para avaliação dos vasos cervicais, como artérias carótidas e vertebrais (Figura 8);
  • A radiografia do tórax para detectar cardiomegalia ou contorno irregular do arco aórtico ou da aorta descendente.

FIGURA 8. Imagens de angio-RM em criança de 9 anos de idade, com arterite de Takayasu diagnosticada aos 7 anos. Nestas imagens podem ser observadas várias estenoses arteriais, designadamente da artéria subclávia esquerda (A), da aorta abdominal e das artérias renais (B)

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da AT na idade pediátrica inclui um amplo espectro de situações, designadamente:

  • Doenças que cursam com sintomas constitucionais prolongados, como tuberculose, neoplasias e algumas infecções víricas;
  • Doenças que acarretam alteração estrutural da aorta ou de seus grandes ramos, tais como coarctação de aorta, displasia fibromuscular e doenças infecciosas;
  • Doenças hereditárias, tais como neurofibromatose tipo I, síndromas de Ehlers Danlos tipo IV, e de Marfan; e
  • Outras doenças inflamatórias, como febre reumática, doença de Kawasaki, espondilite anquilosante, de Behçet e lúpus eritematoso sistémico.

Tratamento

Os princípios básicos do tratamento da AT incluem medicação imunossupressora, com glicocorticóides, drogas sintéticas modificadoras do curso da doença (metotrexato é o mais utilizado na pediatria), ciclofosfamida e medicações imunobiológicas, como anti-TNF (adalimumab e infliximab) e anti-IL-6 (tocilizumab).

As estratégias terapêuticas dependem da gravidade e da refractariedade da doença em causa.

Em função do contexto clínico de cada caso, poderão também ser utilizados antiagregantes plaquetários, considerando o estado de hipercoagulabilidade da doença, anti-hipertensores, cardiotónicos e anticoagulantes.

Nos casos de tuberculose associada, há que proceder ao respectivo tratamento antes do tratamento específico da AT.

O tratamento cirúrgico, através de intervenção endovascular ou cirurgia aberta, está indicado nos casos de insuficiência valvar, estenoses significativas com lesão do órgão irrigado e hipertensão renovascular, entre outros

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ESCLERODERMIAS JUVENIS

Definição e importância do problema

As Esclerodermias Juvenis constituem um grupo de doenças raras do tecido conjuntivo que se traduzem globalmente no endurecimento e espessamento das camadas profundas da pele, com ou sem envolvimento visceral associado. Na idade pediátrica, as formas predominantes são as Esclerodermias Localizadas. A Esclerose Sistémica Juvenil (ESJ) é incomum. A distinção entre estas duas entidades é essencial, dadas as marcadas diferenças entre evolução clínica, abordagem terapêutica e prognóstico, mais grave e reservado nas formas sistémicas. As síndromas de sobreposição são mais comuns na criança que no adulto.

ESCLEROSE ou ESCLERODERMIA SISTÉMICA JUVENIL (ESJ)

A ESJ é uma doença crónica e multissistémica rara que causa fibrose cutânea, envolvimento de órgãos internos (esofágico, intestinal, cardíaco, pulmonar ou renal) e vasculopatia.

Aspectos epidemiológicos

O início juvenil é muito raro, sendo que as crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos constituem menos de 5% do total de casos de Esclerose Sistémica. O pico de incidência é entre os 10 e os 16 anos. A doença é quase 4 vezes mais frequente no sexo feminino, não havendo diferenças entre raças. A incidência anual estimada é 0,45 a 1,9 por 100.000 habitantes e a prevalência aproxima-se de 15 a 24 por 100.000.

Etiopatogénese

A causa da ESJ é desconhecida. A doença pode ser representada como um processo tripartido que origina um fenótipo predominantemente fibrótico. Neste estão envolvidos a disfunção do sistema imunitário (documentada pela presença de autoanticorpos específicos), a disfunção endotelial (associada à vasculopatia e fenómeno de Raynaud) e a disfunção dos fibroblastos (com aumento da síntese e deposição de proteínas da matriz extracelular e consequente fibrose). Estudos adicionais colocam a hipótese de alterações no tipo e metabolismo do colagénio, assim como na imunidade celular, estando aumentadas várias citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-2, IL-4, IL-6 e IL-8).

Manifestações clínicas

As manifestações mais comuns na apresentação da ESJ são o fenómeno de Raynaud e a induração (esclerose) cutânea. O fenómeno de Raynaud é o sintoma mais frequente, estando presente em cerca de 70% dos casos no início da doença e pode preceder outras manifestações em muitos anos. A localização mais típica são os dedos das mãos, mas pode ser observado também nos pés, orelhas, lábios, língua e extremidade do nariz. Dez por cento dos casos complicam-se de úlceras digitais. As alterações cutâneas estão presentes em 40% dos casos na apresentação. Evoluem frequentemente em 3 estádios: edema (com duração de meses), induração que resulta no espessamento cutâneo com progressão proximal e nas contracturas (duração de 3 a 5 anos) e, por fim, atrofia (a pele torna-se esclerótica, fina e dura). Esta última fase é particularmente notória nos dedos e face, com a fácies característica que pode ser a primeira pista para o diagnóstico.

As Figuras 1 e 2 documentam  sucintamente a tipologia das manifestações clínicas.

QUADRO 1 – ESJ: manifestações clínicas

in Juvenile Systemic Sclerosis – Review of 15 patients. Sousa S, Fernandes S, Estanqueiro P, Zilhão C, Resende C, Ramos F, Salgado Mª Guedes M, Melo Gomes J, Santos MJ . Apresentado sob a forma de poster no congresso PRES, em Belgrado, Setembro 2014.

FIGURA 1. ESJ: manifestações clínicas

O envolvimento músculo-esquelético pode surgir no início ou com a evolução da doença sob a forma de artralgias, artrite, contracturas articulares (sobretudo nas articulações interfalângicas proximais e cotovelos), miosite (com mialgias, fraqueza muscular e elevação dos níveis de creatinocinase) ou calcinose subcutânea e periarticular. O envolvimento gastrintestinal pode ocorrer entre 30 a 70% das crianças e traduzir em disfunção esofágica (com queixas de refluxo gastro-esofágico e disfagia) e, mais raramente, alterações intestinais com alternância de padrão intestinal diarreia/obstipação, dor abdominal ou síndromas de malabsorção. O envolvimento pulmonar, com frequência assintomático, pode cursar com tosse seca e dispneia; ao contrário da ES do adulto, não cursa habitualmente com a devastadora fibrose intersticial. O envolvimento cardíaco é incomum mas é uma causa de morbilidade significativa nas crianças com ESJ (em caso de cardiomiopatia ou hipertensão pulmonar). O envolvimento renal, podendo ocorrer em 10% dos casos com proteinúria, hematúria ou insuficiência renal, habitualmente não é tão grave como nos adultos. As principais causas de morte na criança são as complicações cardiopulmonares.

FIGURA 2. Fenómeno de Raynaud e lesões isquémicas das polpas digitais em jovem de 13 anos de idade com esclerodermia sistémica difusa iniciada cerca de 4 semanas antes. Note-se as lesões isquémicas já presentes ao nível das polpas digitais dos 3º e 5º dedos da mão direita e dos 2º e 3º dedos da mão esquerda, as quais regrediram completamente com a terapêutica instituída

Diagnóstico

O diagnóstico da ESJ é frequentemente atrasado pela raridade da doença. É estabelecido pela esclerose não confinada apenas a uma área (não localizada) acompanhada de envolvimento visceral e de auto-anticorpos. Os critérios seguintes foram elaborados pela Paediatric Rheumatology European Society (PRES), American College of Rheumatology (ACR) e European League Against Rheumatism (EULAR) em 2007. O diagnóstico de ESJ é feito se estiverem presentes o critério major + 2 dos 20 critérios minor. (Quadro 1)

A forma anteriormente considerada como “limitada” da doença geralmente apresenta Calcinose mais grave (que na forma difusa), fenómeno de Raynaud (que habitualmente complica com insuficiência vascular, ulcerações digitais e isquémia crítica levando a gangrena e por vezes necessidade de amputação de dedos), envolvimento Esofágico, eSclerodactilia e Telangiectasias, denominando-se por isso como Síndroma de CREST. Esta apresentação é muito rara na criança. Nos critérios de diagnóstico do PRES, ACR e EULAR, a forma limitada não surge como entidade distinta da forma difusa.

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de ESJ

Critério Major
· Esclerose cutânea proximal/induração da pele
Critérios Minor

Pele

    • Esclerodactilia

Vascular

    • Fenómeno de Raynaud
    • Alterações sugestivas na capilaroscopia do leito ungueal
    • Úlceras digitais

Gastrintestinal

    • Disfagia
    • Refluxo gastresofágico

Renal

    • Crise renal
    • Hipertensão arterial de novo

Cardíaco

    • Arritmia
    • Insuficiência cardíaca

Respiratório

    • Fibrose pulmonar (avaliada em radiografia de tórax ou TC torácica)
    • Anomalias da capacidade de difusão de monóxido de carbono (nas provas de função respiratória)
    • Hipertensão pulmonar

Músculo-esquelético

    • Contracturas tendinosas
    • Artrite
    • Miosite

Neurológico

    • Neuropatia
    • Síndroma do canal cárpico

Exames serológicos

    • Anticorpos antinucleares
    • Auto anticorpos (anticentrómero, anti Scl-70, antifibrilharina, anti-PM/Scl, antifibrilhina, antRNA polimerase I ou III)

Como resultado dos exames complementares verifica-se que a ESJ cursa com anemia de doença crónica (um quarto dos doentes), macrocitose (por má absorção), eosinofilia (15% dos doentes), leucocitose (relacionada com o grau de envolvimento visceral/muscular) e elevação de creatinocinase (se existir miosite). As crianças têm habitualmente títulos elevados de anticorpos antinucleares (ANA) (encontrados em 80-90% dos casos) mas a presença de anticorpos anticentrómero (em 7%) e anti-Scl 70 (em 34%) é muito menos frequente que nos adultos. A capilaroscopia do leito ungueal (CLU) é um exame não invasivo e fácil de realizar, fornecendo pistas importantes no diagnóstico e no seguimento dos doentes com ESJ. O padrão típico da capiraloscopia cursa com dilatações (precoce), dilatações e áreas avasculares (padrão activo) e tortuosidades e áreas avasculares (padrão tardio). A biópsia cutânea por vezes é importante para distinguir a ESJ de outras síndromas. Para avaliar o envolvimento esofágico – refluxo gastresofágico e diminuição da pressão no esfíncter esofágico inferior – está preconizada a realização de manometria e pHmetria de 24h. Para o rastreio e seguimento de envolvimento cardiopulmonar dever-se-á incluir radiografia de tórax (apesar de só permitir diagnosticar alterações consistentes com fibrose pulmonar numa fase avançada), TC torácica de alta resolução (demonstrando padrão em vidro despolido, “favo de mel”, opacidades lineares ou micronódulos subpleurais).

Provas de função respiratória com avaliação de difusão de monóxido de carbono (DLCO) que podem mostrar o padrão habitualmente restritivo com diminuição da DLCO e ecocardiograma transtorácico com Doppler e avaliação indirecta da pressão da artéria pulmonar para detectar hipertensão pulmonar, são outros exames a realizar em função do contexto clínico de cada caso.

Como suspeitar?

O diagnóstico precoce da ESJ é essencial dada a possibilidade de envolvimento de órgão que pode progredir rapidamente para complicações potencialmente fatais. Dada a raridade da doença e a subtileza que podem ter as manifestações iniciais, o diagnóstico é habitualmente atrasado em meses ou anos. O conhecimento do quadro clínico e elevado índice de suspeição podem ajudar no sentido de promover uma referenciação rápida para a Reumatologia Pediátrica.

A presença de fenómeno de Raynaud (mãos, pés ou outras localizações menos típicas), edema das mãos (“puffy hands”- mãos inchadas), úlceras digitais, diminuição da perfusão digital, atrofia da pele, contracturas de tecidos moles, calcinoses subcutâneas, fraqueza muscular, dispneia ou disfagia são sinais de alarme que deverão ser prontamente investigados.

Situações de crianças e adolescentes com fenómeno de Raynaud, padrão precoce ou activo típico na capilaroscopia do leito ungueal e presença de autoanticorpos específicos, incluídas numa forma “Pré-Esclerodermia”, deverão ter um seguimento rigoroso pelo risco de progressão para ESJ.

Tratamento

Dada a raridade da ESJ, pouca informação validada existe no que diz respeito ao tratamento. As medidas não farmacológicas incluem Medicina Física e Reabilitação e servem para ajudar a manter a função e a força musculares e ajudar a prevenir as contracturas. Outras medidas como protecção com luvas para o frio e hidratação da pele também são importantes.

Para o fenómeno de Raynaud, os bloqueadores do canal de cálcio são utilizados como fármacos de primeira linha (habitualmente a nifedipina). Nos casos graves de isquemia digital, com o Iloprost (prostanóide) demonstrou-se eficácia e segurança em crianças com ESJ, havendo alguma indicação para antagonista dos receptores da endotelina (Bosentan) em casos refractários de isquemia e úlceras digitais.

Para o envolvimento músculo-esquelético (artrite, miosite, tenossinovite) está indicada prednisolona em dose 0,3 a 0,5 mg/kg/dia (com o devido controlo da função renal e valores tensionais pelo risco de crise renal com a utilização de corticóides).

Para o envolvimento cutâneo e articular utiliza-se Metotrexato na dose de 15 mg/m2/semana, oral ou subcutâneo, em associação a corticoterapia. Para a ESJ com doença do interstício pulmonar, a Ciclofosfamida é normalmente considerada, em associação a corticoterapia.

Prognóstico

O prognóstico não é animador mas é melhor que nas formas do adulto. As contracturas articulares e o endurecimento cutâneo levam a morbilidade significativa. A taxa de mortalidade aos 5 anos é de 6 a 15%. As principais causas de morte nas crianças (em valores percentuais) são a cardiomiopatia (67%), a insuficiência renal terminal (13%), a insuficiência respiratória (10%), as infecções (7%), e a encefalopatia hipertensiva (3%).

ESCLERODERMIAS LOCALIZADAS JUVENIS (ELJ)

As ELJ englobam um variado número de quadros clínicos caracterizados pelo endurecimento cutâneo com aumento da deposição de colagénio. As lesões ao nível das estruturas anteriormente sistematizadas podem variar, de pequenas placas, até doença extensa com envolvimento de tecido celular subcutâneo, músculo e osso; como consequência, pode verificar-se evolução para deformidades funcionais e estéticas, mas sem envolvimento de órgãos internos. Na literatura dermatológica, os vários subtipos de EL também se denominam de “morfeia”. (Figuras 3 e 4)

 

FIGURA 3. Jovem de 11 anos de idade com esclerodermia linear localizada, iniciada aos 7 anos de idade. São bem evidentes no membro superior esquerdo as lesões cutâneas escleróticas, com zonas de despigmentação e outras de hiperpigmentação, bem como a contractura digital devida às atrofias de partes moles da região palmar da mão esquerda, acompanhadas de melorreostose (atrofia do tecido ósseo adjacente)

FIGURA 4. Esclerodermia linear do membro inferior esquerdo, em jovem de 9 anos de idade. Após 12 meses de terapêutica com corticóides e metotrexato subcutâneo, associada a fisioterapia adequada, conseguiu-se a melhoria marcada das lesões e correcção da contractura em flexão, mantendo uma adequada capacidade funcional (o jovem foi jogador de futsal durante todo este período)

Aspectos epidemiológicos

Apesar de incomum, a ELS é dez vezes mais comum que a ESJ. A incidência anual estima-se em 1 por milhão, com uma predominância do género feminino. O subtipo mais comum na criança é a Esclerodermia Linear, seguida da Esclerodermia em Placas. O pico de incidência verifica-se na idade escolar, com média nos 7,3 anos, havendo 6 descrições de casos no recém-nascido, todos com apresentação de Esclerodermia Linear (quatro deles “en coup de sabre”).

Etiopatogénese

A causa das ELJ é desconhecida. Há descrições de casos em associação com traumatismos locais, infecções víricas e bacterianas (Epstein-Barr e Borrelia burgdorferi) e vacinação (BCG e tríplice viral). Em termos histológicos, a esclerodermia é caracterizada por fibrose e espessamento de fibras de colagénio. Existe uma fase inflamatória inicial em que os feixes de colagénio da derme reticular se encontram espessados e há um infiltrado inflamatório intersticial e perivascular predominantemente linfocítico, ao nível da periferia das lesões. Na fase esclerótica tardia, ao nível do centro das lesões, há redução do infiltrado inflamatório e espessamento e agregação dos feixes de colagénio na derme, atrofia de glândulas exócrinas, sebáceas e folículos pilosos.

Manifestações clínicas

A doença é habitualmente autolimitada, com progressão variável consoante o subtipo clínico (mais rápida na Esclerodermia Linear dos membros, e mais gradual na Esclerodermia ou Morfeia em Placas). A ELJ divide-se em 5 subtipos: em placas ou circunscrita, linear (dos membros e da face/ “en coup de sabre”), generalizada, pansclerótica ou mista, sendo esta última uma combinação de dois ou mais subtipos dos anteriores. São apresentados de seguida os subtipos com base nos Critérios de Classificação de ELJ (Consensus Conference, Padua, 2004).

QUADRO 2 – Critérios de classificação da ELJ

Esclerodermia em Placas
Superficial
Áreas de induração redondas ou ovóides, únicas ou múltiplas, a nível da epiderme e derme, com halo violáceo à volta. A placa evoluiu infiltração nacarada e bordos mal definidos, de 2 a 15 cm, denominada de “iliac ring”. Localização preferencial nas cristas ilíaca, tórax, abdómen e membros inferiores.
Profunda ou Subcutânea
Envolvimento subcutâneo e das camadas profundas da pele, com aspecto de “pele em casca de laranja” e, por vezes, ulceração. Localização preferencial no tórax superior e membros.
Esclerodermia Linear
Membros e Tronco
Subtipo mais frequente em crianças e adolescentes, correspondendo a 60% dos casos e mais frequente em raparigas em idade escolar. Faixas lineares de esclerose que se podem estender à derme, tecido celular subcutâneo, músculos e ossos, com consequente deformidade. Habitualmente unilateral.
Face e Calote Craniana/ “En coup de sabre”
Forma unilateral da face, de localização frontoparietal, com uma depressão central linear que se assemelha a um golpe de sabre e que pode levar a hemiatrofia da face. Pode acompanhar-se de complicações neurológicas (convulsões, cefaleia, hemiparésia e paralisia facial), oculares (uveíte e vasculite) ou problemas do maxilar/dentários. A síndroma de Parry-Romberg ou hemiatrofia facial progressiva cursa com alterações ósseas, musculares ou do tecido subcutâneo, com ou sem esclerose cutânea. (Figura 4)
Morfeia Generalizada
Subtipo raro. Induração da pele que se inicia na forma de Esclerodermia em Placas e que evolui para 4 ou mais lesões, com dimensões superiores a 3 cm, que se podem tornar confluentes e envolvem pelo menos 2 regiões anatómicas. Distingue-se da ESJ por não apresentar fenómeno de Raynaud nem alterações na capilaroscopia de leito ungueal.
Morfeia Pansclerótica
Subtipo extremamente raro mas muito grave. Envolvimento generalizado de toda a espessura da pele, tecido celular subcutâneo, músculo, osso a nível de tronco, extremidades, face e calote. Envolvimento de articular cursando com contracturas e retracções dos membros incapacitantes.
Esclerodermia Mista
Associação de subtipos. É frequente na criança, nomeadamente a associação entre a forma linear e em placas.

O envolvimento extracutâneo na ELJ é sobretudo articular, neurológico, ocular e gastrointestinal. O envolvimento articular é o mais frequente (em 19%) e presente sobretudo nas crianças com Esclerodermia Linear (sob a forma de contracturas). As manifestações neurológicas estão presentes em 4% dos casos, nomeadamente na Esclerodermia Linear da face/ “en coup de sabre” e traduzem-se em epilepsia/crises convulsivas do tipo parciais complexas, cefaleias, alterações do comportamento e dificuldades na aprendizagem. Alterações evidenciadas através de ressonância magnética também foram documentadas (calcificações, anomalias na substância branca, malformações vasculares e vasculite do sistema nervosos central). O envolvimento ocular, presente em cerca de 3% dos casos, pode traduzir-se em alterações dos supracílios, uveíte anterior, episclerite, estrabismo, pseudopapiledema e distúrbios de refracção. As manifestações gastrintestinais ocorrem em cerca de 2% dos doentes e correspondem habitualmente a queixas de refluxo gastresofágico. (Figura 5)

Exames complementares

Procedendo a análises laboratoriais, pode observar-se eosinofilia nos doentes com Esclerodermia Linear e Generalizada, a qual se relaciona com a extensão da doença. Em cerca de metade dos casos graves verifica-se hipergamaglobulinémia IgM e IgG. A frequência com que são detectados ANA varia de estudo para estudo, (23% a 73%), sem correlação com o subtipo de doença; contudo, os referidos anticorpos /ANA são mais vezes encontrados na Esclerodermia Generalizada, seguindo-se a Esclerodermia Linear. Níveis elevados de anti-ss-DNA foram documentados na ELJ, sobretudo nos doentes com Esclerodermia Generalizada com envolvimento muscular; tal facto relaciona-se com a actividade e extensão da doença, assim como com a presença de contracturas articulares e deformidades. Os anticorpos anti-centrómero, anti-Scl 70, anti-Ro/la e anti-U1RNP surgem em 2-3% da ELJ, mas o seu significado prognóstico ainda é desconhecido. A presença de Factor Reumatóide correlaciona-se com a presença de artrite. A Termografia permite distinguir as lesões activas de inactivas (lesões novas ou activas têm uma diferença de +0,5ºC em relação à área adjacente ou membro contralateral); com uma sensibilidade de 92% e uma especificidade de 62%, poderá servir para o seguimento de Esclerodermia Linear. A Ressonância Magnética, permitindo visualizar as alterações estruturais e documentar a progressão da atrofia do tecido conjuntivo e ósseo, tem grande utilidade nos doentes com Esclerodermia Linear dos membros e “en coup de sabre” sobretudo na suspeita de envolvimento do sistema nervoso central. A Ecografia de alta frequência (20 MHz) permite determinar a profundidade e extensão da esclerose, assim como a perda de tecido adiposo subcutâneo e músculo. Outras técnicas em estudo são a Fluxometria por laser Doppler e a Imagem por laser Doppler.

Tratamento

A escolha do tratamento deve ter em conta a extensão, severidade e taxa de progressão da doença. O seu objectivo é prevenir o desenvolvimento de complicações funcionais e estéticas. A fisioterapia regular é essencial, sobretudo nos casos de Esclerodermia Linear para prevenir o desenvolvimento de contracturas e o prejuízo da capacidade funcional. Os corticóides tópicos estão indicados para a Esclerodermia em Placas (sobretudo se única) e fases precoces da doença, associados a hidratação diária da pele. Alguns estudos utilizaram a triancinolona injectada nas margens da lesão (com bons resultados apesar de aumentar o risco de necrose e lipodistrofia). Esta forma de ELJ responde ao tratamento tópico com corticóides, análogos de vitamina D3 e/ou fototerapia. A terapia com PUVA, indicada para os estádios iniciais da inflamação, assim como a terapia com UVA 1, são mais benéficas nos estádios de fibrose. O calcipotriol 0,005% tópico em associação a UVA1 leva à redução do espessamento e hiperpigmentação cutâneas. O tratamento com imiquimod, imunossupressor utilizado para tratamento de quelóides e carcinoma espino e basocelular, também se mostra promissor na ELJ. Os corticóides orais são utilizados quando existe exuberante inflamação local, rápida progressão da lesão, prejuízo funcional, risco de interferência no crescimento e presença de lesão muscular. O metotrexato subcutâneo (15-20 mg/m2/semana) tem sido utilizado com benefício na ELJ grave que afecta tecido celular subcutâneo, músculo, fáscia e/ou ossos (nomeadamente formas de Esclerodermia Linear e Generalizada); por vezes tem sido associado a pulsoterapia mensal com metilprednisolona (500 mg/m2), reduzindo o espessamento cutâneo. A associação de metotrexato e corticoterapia também se mostrou eficaz como primeira linha nos casos graves de ELJ. Em casos de doença refractária, a cirurgia poderá ser equacionada.

FIGURA 5. Síndroma de Parry-Romberg – (A) note-se a assimetria facial e em (B) note-se a zona de alteração da medular do frontal à esquerda; Eslerodermia Linear “en coup-de-sabre” em dois doentes diferentes: em (C) é visível uma lesão bilateral e em (D) note-se o a atrofia da aba nasal e o hipodesenvolvimento do 1º incisivo esquerdo, localizados no mesmo meridiano da lesão da região frontal

Prognóstico

A ELJ não evolui para ESJ, sendo a sobrevida sobreponível à da população geral. As formas de Esclerodermia Linear apresentam potencialmente maior risco de incapacidade física e deformidades estéticas. Na apresentação segmentar dos membros inferiores, em cerca de 20% das crianças desenvolve-se atrofia significativa dos tecidos adjacentes, podendo levar a uma diferença até cm no comprimento dos membros. Na apresentação de tipo “en coup de sabre” pode haver uma evolução para atrofia óssea da calote, deformidade do maxilar superior, posições anormais da dentição e envolvimento do sistema nervoso central.

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DERMATOMIOSITE E POLIMIOSITE JUVENIS

1. DERMATOMIOSITE JUVENIL

Definição, importância do problema e aspectos epidemiológicos

A dermatomiosite juvenil (DMJ) é uma doença multissistémica rara, de etiologia multifactorial, caracterizada fundamentalmente por inflamação, aguda ou crónica não supurativa dos pequenos vasos, principalmente do músculo esquelético, da pele e do tracto digestivo.

Trata-se duma vasculopatia sistémica originando predominantemente lesão do músculo esquelético; na prática clínica pediátrica corresponde à miopatia inflamatória mais comum. Está associada a alterações cutâneas na quase totalidade dos casos.

Como características distintivas relativamente à DMJ do adulto cabe referir: 1) a vasculite é frequente e de gravidade variável; 2) poderão ulteriormente surgir calcinose subcutânea ou calcificações difusas das massas musculares envolvidas.

A incidência anual da DMJ, de acordo com diversos estudos epidemiológicos, oscila entre 1 a 4/1.000.000 de crianças entre 1 e 16 anos de idade, com pico de incidência entre 10-14 anos. É mais frequente no sexo feminino (2/1); nalguns grupos étnicos, como os judeus asiáticos e as crianças de raça negra, parece existir maior probabilidade de aparecimento.

No cômputo geral das doenças do foro reumático é menos frequente que a febre reumática, a artrite idiopática juvenil e o lúpus eritematoso sistémico.

Etiopatogénese

A causa da DMJ é desconhecida. Admite-se como hipótese para a génese da doença a comparticipação de determinados factores ambientais actuando num indivíduo imunogeneticamente predisposto. São raros os casos familiares, mas

estudos diversos demonstraram que a doença é mais frequente em determinados indivíduos portadores de certos antigénios de histocompatibilidade (HLA) determinados por genes no cromossoma 6; por exemplo: HLAA1, HLA B8, HLA DR3 e HLA DQ* 0501, sendo este último antigénio mais frequente na raça caucasiana.

Entre os factores ambientais mais implicados citam-se: agentes infecciosos actuando cerca de 3 meses antes do início da doença (Coxsackievirus B, Parvovírus, ECHO vírus, VEB, CMV, Streptococcus, Mycoplasma, Borrelia, Toxoplasma), imunizações (rubéola, BCG), reacções alérgicas, exposição ao sol, determinados fármacos, etc..

Diversos estudos apontam a autoimunidade como base etiopatogénica da doença: activação de linfócitos B, T e do complemento, por determinados antigénios, com deposição de IgG e IgM e imunocomplexos, (ou seja, produtos de reacção antigénioanticorpo associados a compostos de complemento) nas células endoteliais dos vasos e nos músculos, originando um processo de vasculite. A favor de lesão endotelial induzida por imunocomplexos está a demonstração de níveis plasmáticos aumentados de C3, de factor VIII e de fibrinopéptido A. Como resultado deste processo inicial surge um conjunto de lesões anátomo-patológicas com expressão especialmente relevante ao nível do músculo estriado, dos vasos e da pele.

O exame histológico do músculo estriado evidencia fundamentalmente: sinais de atrofia, degenerescência e necrose das fibras musculares; concomitantemente existe processo de regeneração das referidas fibras; com a evolução, as áreas de necrose são substituídas por áreas de tecido conjuntivo e de tecido adiposo.

No que respeita ao exame histológico dos vasos sanguíneos verifica-se, (como consequência da deposição de imunocomplexos) um processo de vasculite necrosante com infiltrado perivascular de células mononucleadas nos capilares, arteríolas e vénulas do músculo estriado, do tracto gastrintestinal, pele, e do tecido celular subcutâneo. A vasculopatia sistémica conduz a coagulação intravascular, com oclusão e enfarte consequentes.

Ao nível da pele, como consequência das lesões endoteliais capilares, surge atrofia da epiderme, degenerescência das células basais e infiltrado linfocitário

na derme. Na fase de cicatrização verifica-se deposição de sais de cálcio (calcinose). Em todo o trajecto do tracto gastrintestinal o epifenómeno mais marcante da vasculopatia é a ulceração e perfuração.

Manifestações clínicas

A DMJ tem geralmente início insidioso e progressivo, com aparecimento de mialgias e fraqueza muscular; no entanto, em cerca de 30% dos casos pode desenvolver-se de forma aguda e com rápida evolução das manifestações clínicas.

No início da doença prevalecem os chamados sinais e sintomas constitucionais como febre, anorexia, adinamia, astenia, perda de peso.

Na fase de doença estabelecida as principais características clínicas dizem respeito às manifestações cutâneas e musculares, sendo que as cutâneas podem ou não preceder as musculares; no primeiro caso, tais manifestações poderão ser interpretadas como “alergia ou outra dermatose”.

Como manifestações musculares citam-se: mialgias, contracturas e atrofia muscular, fraqueza muscular progressiva, principalmente proximal (cinturas escapular e pélvica, e flexores do pescoço e dorso), com dificuldade de subir e descer escadas, levantar-se da cadeira, levantar-se do chão, etc.. É nítido o sinal de Gower: o doente, ao levantar-se do chão uma vez sentado, na tentativa de se endireitar, tem de apoiar progressivamente as mãos sobre as pernas e coxas, de baixo para cima, alternadamente dum lado e doutro, como que servindo de alavanca ou suporte.

Se os músculos das vias respiratórias superiores e faringe forem afectados, poderá haver dificuldade na deglutição e voz nasalada.

As manifestações mucocutâneas, especialmente representativas da DMJ, são as seguintes:

  • Exantema heliotrópico simétrico violaceoeritematoso circundando as pálpebras e podendo estender-se até ao dorso do nariz, regiões malares, ombros e dorso (em xaile ou manta); o exantema malar assemelha-se ao do lúpus eritematoso (Figura 1);
  • Pápulas ou sinal de Gottron: elevações avermelhadas, lisas ou descamativas evoluindo para zonas atróficas e despigmentadas; localizam-se na superfície de extensão interfalângica, metcarpofalângica, região periungueal, cotovelos, joelhos, coxas e tórax (Figura 2); nos casos de vasculite disseminada pode verificar-se fotossensibilidade, livedo reticularis, etc. (Figura 3);
  • Calcinose sob a forma de placas ou nódulos superficiais, geralmente nas extremidades, podendo ulcerar e infectar secundariamente;
  • Eritema e/ou telangiectasia e espessamento periungueal, edema subcutâneo, nódulos subcutâneos, púrpura, alopécia e lipodistrofia (perda de tecido adiposo subcutâneo) localizada ou generalizada;
  • Na mucosa oral: enantema, gengivo-estomatite com ulceração e odinofagia, associados a anticorpos anti-RNAt sintetase.

Outras manifestações incluem artrite (em cerca de 10-15% dos casos, em geral das pequenas articulações), tenossinovite, hepatomegália, esplenomegália, vómitos, diarreia, hematemeses, melenas, alterações cardiovasculares (pericardite, miocardite, hipertensão arterial, fenómenos de Raynaud), doença pulmonar restritiva associada a fibrose relacionada com a presença de anticorpos, exantema inespecífico, linfadenopatia, retinopatia associada a atrofia óptica, nefropatia podendo evoluir para insuficiência renal, etc..

FIGURA 1. Exantema heliotrópico

FIGURA 3. A) Caso de dermatomiosite em criança de 3 anos. São notórias as pápulas de Gottron no cotovelo e o livedo reticularis do antebraço e nádegas. B) A radiografia do braço mostra sinais de calcinose dos tecidos moles

FIGURA 2. Pápulas de Gottron

Exames complementares

Face à suspeita de DMJ com base na anamnese e exame objectivo, certos exames complementares estão indicados para avaliar a repercussão do processo inflamatório em diversos territórios, nomeadamente ao nível do músculo. Os mais úteis são:

  • Determinação de enzimas musculares, designadamente creatinofosfocinase (CK), desidrogenase láctica (LDH), aldolase, aminotransferases (ALT, AST), etc., as quais evidenciam valores elevados;
  • Electromiografia (EMG), evidenciando anomalias do tipo fasciculações e descargas de alta frequência, padrão de miopatia e de desnervação, etc.;
  • Biópsia muscular mostrando sinais de necrose e inflamação crónica.

Como critérios de diagnóstico de DMJ são considerados os seguintes parâmetros:

  1. Sinais cutâneos (exantema heliotrópico ou pápulas de Gottron ou telangiectasias ou espessamento periungueais);
  2. Fraqueza muscular proximal simétrica;
  3. Elevação dos valores das enzimas musculares;
  4. EMG evidenciando anomalias (padrão de miopatia e de desnervação);
  5. Biópsia muscular evidenciando anomalias (necrose e inflamação).

Assim, o diagnóstico definitivo de DMJ implica a observância de, pelo menos 4 critérios entre os 5 descritos, de -1) a -5). No entanto, desde que a clínica seja sugestiva, não deverá ser excluído o diagnóstico com menor número de critérios presentes.

Para além dos exames atrás descritos, outros poderão ser justificados em função do tipo de manifestações, ponderados caso a caso: hemograma (geralmente normal exceptuando nos casos de anemia por perda hemorrágica); VS e PCR (aumentadas somente em 50% dos casos); capilaroscopia (realizado com capilaroscópio ou oftalmoscópio de boa resolução) evidenciando por vezes sinais de dilatação capilar e de trombose; determinação do factor de von Willebrand que, como marcador de lesão endotelial, poderá indiciar actividade da doença ou recidiva; endoscopia digestiva; estudos imagiológicos (TAC, RMN,

etc.). Os indicadores da activação imunológica na DMJ incluem linfopénia, diminuição de: células circulantes memória CD8 ICAM-1, número absoluto de células natural killer (NT) CD56+, CD3, CD16+ no sangue periférico.

Diagnóstico diferencial

Admitindo a possibilidade de formas clínicas raras de DMJ sem manifestações cutâneas, ou cujas manifestações cutâneas não constituem sinal precoce, o diagnóstico diferencial faz-se com situações acompanhadas de fraqueza muscular como miosite pós-infecções por vírus (influenza A e B, coxsackievirus), miopatias primárias, miosites inflamatórias associadas a doenças do tecido conectivo, polimiosite (causa importante de “bebé hipotónico”, mais rara que a DMJ), etc.. Em determinados casos a biópsia muscular permitirá fazer a destrinça.

Tratamento

As bases gerais da actuação na DMJ (salientando-se que deverá ser levada a cabo em centro especializado com o apoio de subespecialista) pressupõem:

  • O facto de se tratar duma doença crónica com possibilidade de remissão ao cabo de 2 a 3 anos de evolução;
  • O facto de que não existe tratamento curativo;
  • A possibilidade de ser possível suprimir a resposta inflamatória e, até certo ponto, preservar a mobilidade articular e o crescimento e desenvolvimento adequados.

Para o tratamento da miopatia com sinais inflamatórios mínimos estão indicados os corticosteróides; em geral utiliza-se a prednisolona PO na dose de 1-2 mg/kg/dia; em função da resposta clínica e laboratorial e tendo em conta os efeitos secundários da corticoterapia de longa duração, procede-se depois à diminuição gradual da prednisolona para a 0,5 mg/kg/dia até suspensão.

Nos casos acompanhados de sinais inflamatórios acentuados, vasculite, de valor acentuado baixo (nº absoluto) de células CD56+ NH e de valor elevado das enzimas musculares, inicia-se a corticoterapia com doses mais elevadas (pulsos de metilprednisolona IV -30 mg/kg/dia durante 3 dias até máximo de 1 g/dia). Com a melhoria clínica e laboratorial reduz-se progressivamente a dose da metilprednisolona até 3, 2 ou 1 vez/semana, passando depois, a administrar prednisolona oral em dose de 0,5 mg/kg/dia nos dias de não pulsoterapia e após paragem da pulsoterapia.

A hidroxicloroquina na dose de 4 mg/kg/dia está indicada para as formas de manifestações cutâneas exuberantes, não tendo efeito na doença muscular.

O metrotrexato PO (15-20 mg/m2/semana acompanhado de suplemento de ácido fólico), outros imunossupressores (ciclosporina, ciclofosfamida ou azatioprina) ou IGIV, ou ainda agentes biológicos (etanercept) estão indicados nos casos refractários à corticoterapia (minoria).

Nos casos de miosite e manifestações sistémicas mais graves, deve ser utilizada terapêutica combinada, com corticosteróides, ciclosporina A (3 mg/Kg/dia) e metotrexato (15 mg/m2/semana).

Na fase aguda está indicado o repouso no leito; entretanto, o doente deve ser hospitalizado se houver sinais de vasculite, disfagia ou disfunção respiratória.

Uma vez que os raios solares provocam exacerbação dos sinais cutâneos, deverá providenciar-se o uso de protector solar.

Outras medidas incluem fisioterapia, cuidados cutâneos, suplementos de cálcio e vitamina D, regime alimentar adequado e protectores gástricos (estes últimos em situações com manifestações digestivas atrás descritas).

Complicações

A complicação mais grave, já descrita, é a calcinose da pele e tecidos moles, a qual pode ser generalizada.

Outra complicação descrita é a resistência à insulina evoluindo para diabetes do tipo 2, sendo de referir que o controlo de tal resistência é acompanhado de melhoria da doença muscular.

Prognóstico

A evolução da DMJ é variável: poderão surgir surtos de manifestações com duração de 6 a 8 meses (na maioria dos casos), de evolução benigna e seguidos de remissão total, ou surtos de duração superior a 2 anos, de evolução crónica, sem remissão, com sequelas (calcinose, atrofia muscular, contracturas, etc.) implicando corticoterapia prolongada.

Com a terapêutica actualmente disponível a mortalidade foi reduzida extraordinariamente (antes cerca de 40%, hoje cerca de 5%). As situações que comportam maior risco são: vasculopatia que afecta o tubo digestivo, provocando hemorragias e perfuração; miosite progressiva refractária à terapêutica e levando ao aparecimento ou ao agravamento da calcinose; infecções intercorrentes explicadas pelos efeitos da terapêutica imunossupressora; e, ainda, fraqueza muscular e insuficiência respiratória com risco de síndroma aspirativa.

2. POLIMIOSITE JUVENIL

Definições e sistematização

A polimiosite juvenil (PM) é uma miopatia inflamatória idiopática crónica muito rara, ainda menos comum que a dermatomiosite juvenil (DMJ), sendo que classicamente as referidas entidades clínicas se incluem no mesmo grupo; diferenciam-se apenas pela presença ou ausência de alterações cutâneas.

Trata-se de doenças musculares inflamatórias (miosites) crónicas que se traduzem clinicamente por diminuição da força muscular.

Outras miopatias inflamatórias incluem as miosites associadas às doenças do tecido conjuntivo e as pós-infecciosas.

Etiopatogénese

A etiopatogénese é sobreponível à da dermatomiosite juvenil; na PM não existem alterações cutâneas e o aparelho músculo-esquelético é acometido, em geral, de forma simétrica e proximal; por vezes existe localização focal e processo inflamatório mais ligeiro.

Manifestações clínicas

Apesar da raridade, a PM pode ser observada na primeira infância, constituindo uma das causas de “bebé hipotónico” por hipotonia generalizada.

Diagnóstico diferencial e exames Complementares

O diagnóstico diferencial da PM faz-se com outras miopatias e com perturbações neuromusculares não inflamatórias tais como:

  • Distrofia muscular congénita;
  • Distrofia muscular de Duchenne;
  • Glicogenoses;
  • Miopatias mitocondriais;
  • Miopatias por drogas ou toxinas (D-penicilinamina, corticóides, hidroxicloroquina, etc.);
  • Miopatias inflamatórias pós-infecciosas, mais frequentes em idade pediátrica (por vírus influenza A e B, coxsackievirus B, Mycoplasma, Salmonella, Serratia, Schistosoma, Toxoplasma, );
  • Miosite eosinófila.

Tal como foi referido a propósito da DMJ, a biópsia muscular assume a maior importância.

Tratamento

Aplicam-se os mesmos princípios enunciados a propósito da DMJ. Quer nesta, quer na PM, quer ainda nas esclerodermias, em formas clínicas recorrentes ou resistentes à terapêutica convencional, alguns centros especializados têm aplicado com êxito imunoglobulina (IgG) por via subcutânea (sc/SCIG) em alternativa à IgG iv/IGIV, verificando-se menos efeitos adversos relativamente a esta última modalidade (IV).

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LÚPUS ERITEMATOSO SISTÉMICO INFANTIL E JUVENIL

Definição e importância do problema

O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma doença inflamatória crónica caracterizada pela formação de autoanticorpos com consequente lesão inflamatória de diversos órgãos-alvo como SNC, rins, articulações e sistema hematopoiético.

Com manifestações clínicas e laboratoriais semelhantes às observadas na idade adulta e evolução imprevisível, a criança evidencia habitualmente uma forma de início mais grave, e com compromisso de órgão também mais frequente e mais grave que no adulto.

Os estudos epidemiológicos têm demonstrado diferentes incidências da doença nas diferentes populações, havendo uma influência étnica. Assim, as crianças negras e índio-americanas têm uma maior incidência da doença. A gravidade também é diferente. As crianças negras têm uma maior prevalência de compromisso renal, neuropsiquiátrico, cardíaco.

Nos últimos anos, o prognóstico melhorou. A taxa de sobrevivência é actualmente ~95% ao fim de 11 anos de seguimento nalgumas séries. O diagnóstico precoce, a intervenção terapêutica atempada, a utilização de novos tratamentos, assim como o controlo adequado das complicações, contribuíram para a maior sobrevivência.

A abordagem terapêutica não inclui apenas a lesão do órgão envolvido pelo LES; com efeito, existem muitos outros aspectos que necessitam de especial atenção, nomeadamente o impacte negativo, uma vez que se trata de doença crónica num organismo em desenvolvimento.

Aspectos epidemiológicos

A prevalência do LES em crianças e adolescentes (1-6/100.000) é inferior à dos adultos (20-70/100.000).

Na infância e adolescência o LES é raro, correspondendo a cerca de 15% dos casos em todas as idades (sendo raro antes da puberdade). O sexo feminino é mais afectado em todos os grupos etários; todavia, a relação sexo feminino/sexo masculino acentua-se após a puberdade.

Etiopatogénese

O LES é uma doença de etiopatogénese desconhecida; possivelmente multifactorial, admite-se predisposição genética (identificado gene de susceptibilidade no cromossoma 1.

Fundamentalmente existe produção de autoanticorpos e activação policlonal de linfócitos B com consequente elevação dos níveis de imunoglobulinas que também contribuem para a elevação do teor em autoanticorpos.

Os estudos epidemiológicos têm demonstrado uma maior frequência da doença entre gémeos e familiares directos e em certos tipos HLA como HLA-B8, HLA-DR2, e HLA-DR3. A influência das hormonas sexuais também tem sido sugerida, a par de determinados estímulos antigénicos como factores infecciosos, designadamente vírus, os quais originam respostas inespecíficas (por ex. VEB).

Outros resultados da investigação permitiram demonstrar que determinados fármacos podem induzir lúpus: minociclina, procainamida, hidralazina, isoniazida, penicilamina, interferão-alfa, metildopa, clorpromazina, etanercept, infliximab, adalimumab, etc.. Nalguns casos foi verificada também associação a outros fármacos como amiodarona, fenitoína, betabloqueantes, estatinas, etc..

O lúpus tem sido associado também a anomalias dos macrófagos quanto à fagocitose, a anomalias do complemento incluindo défice de C1q , C2, C4, e a anomalias dos receptores do mesmo.

Dados obtidos em histopatologia identificaram “corpos de hematoxilina” correspondendo a degenerescência dos núcleos celulares.

A exposição a raios ultra-violeta da luz solar exacerba as manifestações do lúpus através de possível lesão das células da pele com libertação de material dos respectivos núcleos sob a forma de ADN contra o qual actuam anticorpos anti ADN, formando complexos.

Manifestações clínico-laboratoriais

O LES em idade pediátrica tem frequentemente um início crónico, insidioso, com sintomas imprecisos durante longos períodos, o que contribui para retardar o diagnóstico.

A artrite, a febre, o eritema malar em “asa de borboleta”, as aftas orais e a alopécia são as manifestações iniciais mais frequentes. Outra forma de apresentação característica do LES iniciado em idade pediátrica é a anemia hemolítica ou a trombocitopénia. No Quadro 1 estão descritos os sintomas ou sinais característicos antes do diagnóstico do LES juvenil.

QUADRO 1 – Manifestações clínicas iniciais no LES infantil e juvenil

PTI: púrpura trombocitopénica idiopática

Sintomas e SinaisCoorte Portuguesa Literatura
Febre, fadiga, perda de peso58-12,5%55-90%
Artrite/Artralgia84-41,1%60-80%
Hepatoesplenomegália18%16-42%
Nefropatia36-1,8%20-80%
Eritema malar67-10,7%22-60%
Anemia hemolítica9-1,8%10%
PTI18-12,5%14%
Linfadenopatia36%13-45%
Neuropsíquicos20-1,8%5-30%
Cardiovasculares22-1,8%5-30%
Pulmonares13%18-40%
Gastrintestinais 14-30%

Durante o curso da doença podem surgir diversas manifestações, descritas a seguir, agrupando-as por compromisso de órgão. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Manifestações clínicas cumulativas do LES infantil e juvenil

Sintomas e SinaisCoorte Portuguesa Literatura
*De acordo com os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO)
Sistémicos ou Gerais84-75% 
Febre
Fadiga
Emagrecimento
Anorexia
80-55%
69-50%
38-30%
36%
67-100%
Muco-Cutâneos98-80,3%50-90%
Eritema malar
Aftas orais
Vasculite
Fenómeno de Raynaud
Fotossensibilidade
Alopécia
Lúpus discóide
69-54%
69-25%
42-18%
47-27%
42-25%
69-38%
0-1,8%
40-80%
10-30%
10-20%
10-39%
35-50%
20-41%
5-13%
Músculo-esqueléticos91 – 88% 
Artralgia/Artrite
Mialgia/Miosite
Tenossinovite
Necrose asséptica
84-86%
24-11%
18%
2%
60-90%
20-42%

10%

Cardíacos29-41%17-60%
Pericardite
Miocardite
Valvulopatia
Coronariopatia
Anomalias silenciosas
29-25%
2%
0-1,8%
0-1,8%

15-25%

16%

Pulmonares27-14%5-77%
Pleurite
Pneumonite
Hipertensão pulmonar
D. intersticial difusa
Hemorragia pulmonar
Embolia pulmonar
Shrinking lung syndrome
22-13%
2%

0-1,8%
2%

19-60%
1-4%
5-14%
3-8%
2%
30%
Raro
Renal*49-46%29-80%
Classe I WHO
Classe II WHO
Classe III WHO
Classe IV WHO
Classe V WHO
6-5%
23-25%
18-20%
47-45%
0-5%
15-25%
10-24%
40-64%
8-28%
Neuropsíquicos62-21%24-62%
Cefaleia
Convulsões
Psicose
Neuropatia periférica
Mielopatia
D. cerebral vascular
Distúrbios cognitivos
Distúrbios do humor
Meningite asséptica
D. do movimento/coreia
40-13%
9-5,4%
2-5,4%
7%

7-7,1%
11-7,1%
20%

0-1,8%

22-95%
10-42%
12-50%
3-30%
1-8%
12-30%
20-57%
13-57%

3-15%

Hematológicos89-75%50-75%
Trombocitopenia
Leucopenia
Linfopenia
Anemia
29-38%
47-52%
49-81%
76-48%
15-45%
20-64%
30-68%
72-84%
Gastrintestinais33%20-40%
Dor abdominal
Peritonite
Pancreatite
Alt. da função hepática
Malabsorção intestinal
7%
0-4%

18%

 

1. Sistémicas ou gerais

A febre é um sintoma frequente, quer na apresentação da doença, quer durante os surtos de agudização; pode ser intermitente ou contínua, e de grau variável. A fadiga é extremamente comum, assim como a perda de peso. Estes sintomas sistémicos ou constitucionais estão geralmente associados às outras manifestações da doença.     

2. Mucocutâneas

A manifestação mucocutânea mais característica do LES é o eritema malar em asa de borboleta. Esta lesão cutânea eritematosa localiza-se na região malar e dorso do nariz, poupando as pregas nasolabiais. (Figura 1).

Mas outras manifestações também podem ocorrer, como as aftas orais indolores, o enantema do palato, a fotossensibilidade cutânea, a alopécia, o fenómeno de Raynaud (Figuras 2 e 3), o eritema palmar e as lesões de vasculite dos pequenos vasos localizadas nas polpas digitais (púrpura palpável); ou, nas formas mais graves, as ulcerações. O lúpus discóide observa-se mais raramente que no adulto, assim como o lúpus cutâneo subagudo.

A exposição solar pode exacerbar o eritema malar e ainda desencadear o aparecimento de máculas eritematosas noutras áreas expostas, ou causar exacerbação sistémica da doença. 

FIGURA 1. Eritema facial “em asa de borboleta” em adolescente com LES. (NIHDE)

FIGURA 2. Alopécia difusa em adolescente com LES

FIGURA 3. Fenómeno de Raynaud observado nos pés de criança de 10 anos com LES (A e B)

3. Músculo-esqueléticas

A maioria das crianças tem manifestações músculo-esqueléticas. A artrite é, na sua forma característica, uma poliartrite simétrica que evolui sem deformações ou erosões. As grandes e as pequenas articulações podem ser afectadas.

A mialgia e a fraqueza muscular proximal podem também ocorrer. A miosite, quando presente, associa-se a vasculite cutânea e a lesão de órgão.

A necrose asséptica ocorre preferencialmente nas articulações de carga como a coxofemoral ou o joelho, e tem sido descrita como uma consequência do tratamento com corticosteróides ou secundária à doença.

4. Cardíacas

O compromisso cardíaco constitui uma importante causa de morbilidade e mortalidade no LES; estudos demonstram que cerca de 16% das crianças têm cardiopatia isquémica assintomática. Os factores de risco de desenvolvimento de aterosclerose precoce são os descritos no Quadro 3.

A pericardite é a manifestação mais frequente e raramente pode complicar-se por tamponamento cardíaco. No entanto, todas as estruturas cardíacas podem ser afectadas; ou seja poderá surgir qualquer dos seguintes quadros clínicos: miocardite, cardiomiopatia, endocardite verrugosa e alterações da condução. Alguns autores descreveram uma associação entre detecção sérica de anti-Ro/SSA e anti-La/SSB e compromisso cardíaco. (ver adiante)

QUADRO 3 – Factores de risco de doença cardiovascular precoce no LES

Níveis elevados de homocisteína
Hiperinsulinémia
Hipertensão arterial
Proteinúria nefrótica
Dislipidémia
Vasculite arterial
Anticorpos antifosfolípidos
Anticoagulante lúpico
Obesidade induzida pelos esteróides

5. Pulmonares

O pulmão está afectado em percentagem variável (5-77%) das crianças, sendo as manifestações semelhantes às observadas no adulto. A pleurite é a mais comum; todavia a pneumonite intersticial aguda ou crónica, a hemorragia pulmonar, o tromboembolismo pulmonar, a disfunção diafragmática e a hipertensão arterial pulmonar também têm sido descritas nas crianças. A tríade clássica (hemoptises, diminuição súbita da hemoglobina e infiltrado pulmonar característico da hemorragia pulmonar) não está sempre presente.

A síndroma do pulmão encarcerado é rara na criança, traduzindo-se pela instalação súbita de dispneia relacionável com restrição dos movimentos diafragmáticos.

A alteração das provas de função respiratória tem sido descrita em crianças assintomáticas, o que sugere a presença de doença subclínica. A diminuição da difusão do monóxido de carbono é a anomalia mais frequentemente detectada, descrita em cerca de 26% dos casos. A TAC de alta resolução é um método muito sensível para o diagnóstico precoce de doença intersticial.

Takada e colaboradores descreveram em 2005 o primeiro caso de BOOP no LES de início juvenil que respondeu a doses elevadas de corticosteróides. (ver Abreviaturas)

6. Renais

A nefrite lúpica é uma das principais apresentações clínicas do LES na criança, determinando o prognóstico da doença. A sua frequência é cerca de 80%, superior à do adulto. Em 90% dos casos a nefropatia lúpica inicia-se nos dois primeiros anos de doença. As manifestações clínicas variam desde alterações no sedimento urinário assintomáticas, até síndroma nefrótica ou insuficiência renal. As manifestações iniciais são, na maioria das crianças, proteinúria e/ou hematúria microscópica persistente. A hipertensão arterial tem sido descrita em 40% dos doentes, verificando-se, em cerca de metade, deterioração da função renal.

Os factores associados às formas mais graves de lesão renal são: níveis de proteinúria, hematúria, hipoalbuminémia, valor sérico elevado de creatinina e número de fármacos usados para controlo da pressão arterial. (Quadro 4)

A biópsia renal é útil na orientação do prognóstico e da terapêutica. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) utiliza-se a seguinte classificação histológica para a nefrite lúpica: classe I – normal; classe II – proliferação mesangial; classe III – glomerulonefrite focal segmentar; classe IV – glomerulonefrite proliferativa difusa; classe V – glomerulonefrite membranosa; classe VI – glomerulosclerose.

As classes III e IV traduzem as lesões histológicas mais frequentes, ocorrendo em cerca de 65% dos doentes, enquanto as classes I e II têm menor frequência (25%). A classe V é mais rara na criança, descrita em aproximadamente 9% dos casos.

A biópsia renal fornece-nos outras informações úteis para o prognóstico, nomeadamente as alterações tubulointersticias em associação com as utilizadas na determinação do índice de actividade ou cronicidade.

QUADRO 4 – Factores de prognóstico da nefrite lúpica na criança

Sexo masculino
Raça negra
Início antes da puberdade
Anemia
Hipertensão arterial persistente
Insuficiência renal
Síndroma nefrótica
Nefrite da classe IV
Elevado índice histológico de actividade

7. Neuropsíquicas

O compromisso do sistema nervoso central, comum na criança com LES, comporta elevada taxa de morbilidade e mortalidade. A sua frequência varia entre 20% e 60% dos doentes, de acordo com as diferentes séries. O seu início é precoce e, por vezes, não se acompanha doutras manifestações de exacerbação do LES.

As convulsões são as manifestações mais frequentes; todavia o espectro é vasto e inclui, nomeadamente, cefaleia, psicose, depressão, neuropatia periférica, doença cerebrovascular, distúrbios cognitivos, coreia, meningite asséptica ou mielite transversa.

A cefaleia persistente e intensa não cedendo à terapêutica analgésica usual deverá ser considerada no contexto do LES.

Os anticorpos antifosfolípidos são identificados em cerca de 70% das crianças com manifestações neuropsiquiátricas do LES. Todavia, a associação entre anticorpos antifosfolípidos e manifestações não-trombóticas do neurolúpus não tem sido confirmada em diversas séries. A única correlação com significado estatístico é a descrita na doença cerebrovascular. O compromisso do sistema nervoso central é por vezes difícil de diagnosticar; com efeito, muitas das suas manifestações são subtis e poderão dever-se a outras causas, tais como: infecção, efeitos dos corticosteróides, ou dificuldade psíquica na adaptação à doença crónica. A punção lombar, a ressonância magnética e os testes neurocognitivos são úteis na orientação diagnóstica.

8. Hematológicas

Os distúrbios hematológicos são comuns no LES pediátrico. A anemia normocrómica normocítica, característica de doença inflamatória crónica, é a mais frequente; quando persiste durante longos períodos pode tornar-se microcítica e hipocrómica. A hemólise é uma causa menos frequente de anemia; todavia a prova de Coombs pode ser positiva em 30 a 40% dos doentes. A trombocitopénia observa-se em cerca de 30% das crianças e é a forma de apresentação da doença em 15% dos casos. A síndroma de Evans poderá ocorrer no contexto de LES, como forma de apresentação ou no decurso da doença.

A presença de púrpura trombocitopénica trombótica, caracterizada por anemia hemolítica microangiopática, distúrbios neurológicos e renais, impõe a exclusão de LES. Alguns autores sugerem que a púrpura trombocitopénica trombótica é mais comum no LES iniciado em idade pediátrica.

A leucopénia e a linfopénia ocorrem em cerca de metade das crianças com LES.

Os anticorpos antifosfolípidos estão presentes em cerca de 70% dos casos e existe correlação entre o respectivo teor e o desenvolvimento de fenómenos trombóticos. (ver alínea 7)

A síndroma de anticorpos antifosfolípidos catastrófica é uma complicação rara: caracteriza-se por fenómenos de trombose em múltiplos órgãos dando origem a um quadro de falência multi-órgão.

9. Gastrintestinais e hepáticas

A dor abdominal pode resultar da inflamação da membrana serosa peritoneal, pancreatite, vasculite mesentérica ou enterite com concomitante má-absorção.

A pancreatite também pode ocorrer no contexto do tratamento com corticosteróides ou azatioprina.

As alterações da função hepática são detectadas em cerca de 25% das crianças e associadas por vezes a hepatomegália no contexto do processo inflamatório. Mais raramente poderá surgir quadro de hepatite lúpica.

A esplenomegalia, assim com as adenomegalias, ocorrem em cerca de 25% dos casos; também reflectem as alterações inflamatórias generalizadas, características desta doença.

10. Endócrinas

As alterações da função tiroideia ocorrem no LES pediátrico, sendo o hipotiroidismo a alteração mais frequentemente detectada. Cerca de 20% dos doentes têm anticorpos antitiroideus e, mais raramente, tiroidite.

Atraso na puberdade e irregularidade menstrual são frequentes e relacionam-se com a actividade da doença; todavia, também podem ser secundários ao tratamento (por exemplo, com corticosteróides).

11. Autoimunológicas

O LES é acompanhado de fenómenos de autoimunidade a que será dada ênfase a seguir, no âmbito dos exames complementares, dada a sua importância para o diagnóstico.

Exames complementares

A principal marca do lúpus é a formaçção de auto-anticorpos contra antigénios nucleares (ADN, ribossomas), proteínas ribonucleares citoplásmicas (Ro, La) e nucleares (Sm), plaquetas, factores de coagulação, Ig, eritrócitos, leucócitos, etc..

Os anticorpos antinucleares (ANA) estão presentes na maioria dos casos, assim como os anti-DNA de dupla hélice. Outros anticorpos (anti-RNP, anti-SSA e anti-SSB) ocorrem com igual frequência à do adulto, sendo de salientar que na raça negra se detectam títulos mais elevados de anti-DNA e anti-SSA.

O anticorpo anti-Sm tem uma especificidade superior ao anti-DNA para o diagnóstico de LES.

Por outro lado, o factor reumatóide pode ser observado numa pequena percentagem de doentes.

O anticorpo antirribonucleoproteína tem sido associado a risco elevado de fenómeno de Raynaud e de hipertensão pulmonar.

Os anticorpos antifosfolípidos (incluindo anticardiolipina) associam-se a risco elevado de eventos trombóticos venosos e arteriais.

Os autoanticorpos são úteis no diagnóstico e na monitorização da doença, nomeadamente o anti-dsDNA. Títulos elevados ocorrem durante os períodos activos da doença, especialmente na nefrite lúpica. Outros parâmetros serológicos de doença activa são redução das fracções do complemento C3 e C4, e do complemento hemolítico total (CH50).

Reitera-se a importância doutros (exames imagiológicos, laboratoriais, ECG, ecocardiograma, etc.) face ao contexto clínico discriminado nas alíneas anteriores de 1. a 10.

O Quadro 5 sintetiza os critérios de diagnóstico habitualmente aceites para o diagnóstico de LES.

QUADRO 5 – Critérios de diagnóstico de LES

Nota: A presença de 4 (quatro) ou mais critérios legitima o diagnóstico de LES; a sensibilidade e especificidade deste método é respectivamente 96% e 100%.
    • Eritema da face em “asa de borboleta”
    • Lesão discoide (eritematodescamativa com região central atrófica evoluindo para cicatriz e alteração pigmentar)
    • Lúpus discóide
    • Fossensibilidade
    • Ulceração na mucosa oral ou nasofaringe
    • Artrite não erosiva
    • Serosite (pericardite, pleurite, etc.)
    • Sedimento urinário alterado: proteinúria (> 0,5 g/dia e/ou hematúria e/ou cilindrúria)
    • Sintomatologia neuropsíquica (convulsões e/ou doença psicótica)
    • Achados hematológicos: anemia hemolítica ou leucopénia (< 4.000/mm3) ou linfopenia (< 1.500/mm3) ou trombocitopénia (< 100.000/mm3)
    • Presença de anticorpos antinucleares (ANA)
    • Achados imunológicos: anti-DNA de dupla hélice positivo, ou anti-antigénio Sm e/ou anticorpo antifosfolípido positivo, ou reacção serológica para a sífilis falsa-positiva durante, pelo menos, 6 meses; ou anticorpos anticardiolipina IgM ou IgG

Diagnóstico diferencial

O LES deve ser considerado no diagnóstico diferencial com muitas situações clínicas, desde síndroma febril indeterminada a artralgias, anemia e nefrite. O diagnóstico diferencial da sintomatologia relaciona-se com o órgão afectado; citam-se designadamente GN pós-estreptocócica, FR, anemia hemolítica idiopática, PTI, leucemia, endocardite infecciosa. O quadro clínico inicial poderá constar apenas de parotidite, dor abdominal, mielite transversa ou vertigem.

Recorda-se, a propósito, que os ANA podem ser detectados noutras situações para além do LES e lúpus induzido por fármacos: AJ, dermatomiosite juvenil, vasculites, esclerodermia, mononucleose infecciosa e hepatite crónica activa.

Deverá ter-se em conta que certos fármacos (ver Etiopatogénese – sulfonamidas, anticonvulsantes e agentes antiarrítmicos) poderão originar quadro simile LES, que regredirá após suspensão dos mesmos. O Quadro 5 sintetiza os critérios de diagnóstico classicamente aceites para o LES.

Tratamento

O tratamento do LES iniciado em idade pediátrica é semelhante ao do adulto, todavia com algumas particularidades relativas ao grupo etário (doença crónica que se inicia num período de desenvolvimento físico e emocional).

A criança e a família devem ser devidamente informadas sobre a doença e o seu tratamento. As decisões terapêuticas devem ser tomadas em conjunto e sempre com o objectivo de permitir uma evolução física e emocional plena para que a criança possa ser um adulto independente.

A exposição solar deve ser evitada, usando sempre protector solar e roupas adequadas de forma a reduzir ao mínimo a área corporal exposta.

As crianças com fenómeno de Raynaud beneficiam de medidas protectoras para o frio, bloqueantes dos canais de cálcio ou outros vasodilatadores.

Os corticosteróides utilizados em doses variáveis são a base do tratamento, dependendo do órgão afectado. Os corticosteróides têm importantes efeitos adversos que podem afectar negativamente o desenvolvimento físico e psíquico da criança. Eles são responsáveis por inibição do crescimento linear, atraso da puberdade, fácies cushingóide, obesidade do tronco, hirsutismo, acne e estrias cutâneas. Existem ainda outros efeitos adversos igualmente graves, como por exemplo cataratas, osteoporose, hipertensão arterial, hiperglicémia, dislipidémia e miopatia.

Para reduzir estes efeitos secundários devem usar-se os corticosteróides na menor dose eficaz e durante o mínimo de tempo necessário. Algumas medidas ajudam a reduzir ou a prevenir estas consequências tais como, dieta equilibrada com restrição de hidratos de carbono e de sal, e suprimento adequado de cálcio e vitamina D.

Os AINE (e a hidroxicloroquina na dose de 5 mg/kg/dia) estão indicados no tratamento das manifestações cutâneo-articulares do LES. A administração de hidroxicloroquina tem o risco de retinopatia, pelo que se requer uma observação oftalmológica regular.

O metotrexato é outra alternativa para o tratamento da artrite refractária, permitindo reduzir a dose de corticosteróides.

Os imunossupressores (azatioprina, ciclofosfamida, micofenolato de mofetil) são usados quando existe compromisso de órgão major, como o rim ou SNC. O tratamento imunossupressor inclui duas fases: a fase indutora e a fase de manutenção.

Na fase indutora a abordagem terapêutica tem como objectivo induzir a remissão clínica, utilizando para isso, fármacos imunossupressores em dose máxima. Na fase seguinte de manutenção, a terapêutica imunossupressora é mais ligeira, mas processa-se durante um longo período e tem por objectivo manter a remissão clínica.

A azatioprina é usada nas formas ligeiras a moderadas de LES, ou para manter a remissão clínica após terapêutica com ciclofosfamida.

A ciclofosfamida é usada em pulsos endovenosos mensais durante seis meses, seguidos por uma periodicidade trimestral, completando no total 24 meses. A dose recomendada é de 500 mg/m2 superfície corporal até uma dose máxima de 1500 mg.

A fase de indução comporta risco de esterilidade por efeito tóxico ao nível das gónadas. A falência ovárica prematura, rara na idade pediátrica, está descrita em situações de exposição à ciclofosfamida em função da respectiva dose total administrada (o uso de ciclofosfamida por via oral numa dose total inferior a 200 mg/kg não provoca toxicidade gonadal).

Em todos os casos devem ser ponderadas estratégias para preservar a fertilidade, incluindo a utilização de agonistas de hormona gonadotrófica, ou a criopreservação de óvulos ou de esperma, conforme o género.

Mais recentemente, foi introduzido para o tratamento da nefrite lúpica, o micofenolato de mofetil. A dose recomendada é de 600 mg/m2 (dividido em duas tomas diárias), atendendo à dose máxima de 1500 mg duas vezes/dia. Recomenda-se fazer o aumento gradual da dose nas primeiras 4 semanas de tratamento até dose máxima recomendada.

Torna-se obrigatório proceder a vigilância clínica constante para detecção dos efeitos adversos, e laboratorial (de 15 em 15 dias, durante o primeiro mês e, depois, mensal, através do hemograma, provas de função hepática e creatinina).

A associação de ciclofosfamida e metotrexato administrados por via endovenosa foi utilizada com sucesso nos casos de nefrite refractária a outras terapêuticas, como foi demonstrado por Lehman e colaboradores.

Nos casos de citopénias renitentes à corticoterapia, a gamaglobulina endovenosa é uma alternativa terapêutica.

O rituximab, um anticorpo monoclonal anti-CD20, é outra opção eficaz no controlo da nefrite lúpica ou da citopénia grave.

O transplante autólogo de células estaminais é também utilizado nos casos de extrema gravidade e refractários ao tratamento convencional.

Prognóstico

O prognóstico das crianças com lúpus tem melhorado nas últimas décadas, sendo a taxa de sobrevivência aos 10 anos superior a 85%. Vários factores têm contribuído para esta mudança, tais como: o diagnóstico precoce, a identificação de formas menos graves, a instituição atempada de terapêutica, e a utilização de novas terapêuticas que permitem um melhor controlo de formas graves da doença.

Nas crianças com nefrite lúpica têm sido descritas taxas de sobrevivência de 97% e 94%, ao fim de 5 e 11 anos respectivamente (casos de nefrite lúpica comprovadas por biópsia renal e tratados com azatioprina ou ciclofosfamida).

A melhoria da esperança de vida acompanha-se de maior morbilidade relacionada com a lesão de órgão provocada pela doença, com as consequências dos tratamentos, ou ainda com outras complicações que surgem no decurso da doença (infecções recorrentes, aterosclerose prematura, osteoporose e hipertensão).

A avaliação da criança e adolescente com LES requer, deste modo, não só a determinação da actividade da doença, como também da lesão de órgão e das consequências no bem-estar físico e psíquico.

Os métodos actuais mais utilizados na avaliação da doença e validados na criança são o SLEDAI (Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index) e o SLICC (Systemic Lupus Erythematosus International Collaborating Clinics) os quais nos permitem estimar o compromisso dos vários órgãos. Todavia existem outros métodos, que também permitem analisar a repercussão da doença na qualidade de vida da criança.

Recentemente foram publicados consensos sobre a avaliação do LES Juvenil e da nefrite lúpica, da resposta à terapêutica.

Comorbilidade

As complicações infecciosas são actualmente a principal causa de morte no doente com LES. Os agentes mais frequentes são as bactérias Gram negativas, os fungos e as infecções oportunistas (Pneumocystis, citomegalovírus, e herpes vírus). Diversos factores são responsáveis por este maior risco infeccioso, nomeadamente a linfopénia, a redução da acção fagocitária dos polimorfonucleares, a hipocomplementémia e o asplenismo funcional.

A aterosclerose prematura é responsável pelas complicações cardiovasculares que determinam maior morbilidade e mortalidade. Os factores envolvidos são múltiplos como foi descrito anteriormente.

Tem sido demonstrada a relação entre actividade da doença e dislipidémia: os triglicéridos estão aumentados no início da doença e existe uma relação entre os seus níveis e a actividade da doença. Os níveis de colesterol total e de colesterol-LDL estão também elevados no momento do diagnóstico; a sua diminuição relaciona-se com a dose de corticóide e não com a actividade da doença. Por outro lado, os níveis baixos de colesterol-HDL estão associados com a actividade da doença, enquanto os níveis altos correlacionam-se com a dose de corticóide.

Em suma, o controlo da doença acompanha-se de melhoria do perfil lipídico; e a terapêutica com corticosteróides é também benéfica.

A massa óssea aumenta ao longo da infância e adolescência, atingindo um pico no início da idade adulta. O pico de massa óssea é geneticamente determinado, mas outros factores também o influenciam tais como factores hormonais, actividade física e factores nutricionais. A incapacidade em atingir o pico de massa óssea aumenta o risco de osteoporose e de fracturas na idade adulta.

Foi demonstrada redução da densidade mineral óssea na coluna lombar e colo do fémur nos doentes com LES juvenil comparativamente aos controlos saudáveis.

As complicações da osteoporose, designadamente fracturas vertebrais, são frequentes neste grupo de doentes. A redução da densidade mineral óssea pode surgir no contexto da corticoterapia, mas também associada à inactividade e a pouca exposição solar.

O uso de bifosfonatos na criança é controverso, pelos possíveis efeitos no crescimento ósseo ou mineralização óssea. O seu uso tem sido preconizado após uma fractura induzida pela osteoporose. O alendronato na dose de 1 a 2 mg/kg/semana suprime a reabsorção óssea induzida pelos corticosteróides sem interferir no crescimento ósseo da criança.

Notas importantes

    1. A criança com LES tem indicação para cumprir o programa nacional de vacinação, com a excepão das vacinas com microrganismo vivo, contra-indicadas durante os períodos de imunossupressão. Salienta-se a recomendação especial da vacina anti-HPV, pneumococo e vírus influenza.
    2. Dado que foram definidas estratégias para preservação da fertilidade, os jovens adolescentes devem ser informados sobre os métodos anti-conceptivos. A utilização de contraceptivos com estrogéneos deve ser evitada pelo risco de exacerbação da doença ou nos casos associados anticorpos antifosfolípidos pelo risco de fenómenos trombóticos. Todavia o uso de anticonceptivos com baixa dose de estrogéneos pode ser uma opção.

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SÍNDROMAS AUTO-INFLAMATÓRIAS

Definição e importância do problema

As síndromas auto-inflamatórias são um conjunto de patologias caracterizadas por episódios recorrentes de febre e inflamação localizada ou sistémica, sem envolvimento de agentes infecciosos, mecanismos autoimunes ou linfócitos T autorreactivos. Após a classificação inicial que incluía apenas as síndromas auto-inflamatórias com transmissão familiar, várias outras patologias foram, entretanto, incluídas sob a mesma denominação auto-inflamatória incluindo, não só certas doenças de transmissão mendeliana como a síndroma de Blau, mas também de transmissão mais complexa como a doença de Behçet.

Uma classificação possível das síndromas auto-inflamatórias é apresentada no Quadro 1.

O projecto Eurofever constitui um registo internacional para as afecções com características auto-inflamatórias com a finalidade de promover e disseminar o conhecimento sobre tal rara patologia, que é rara. Apesar da raridade, é importante para o pediatra geral saber reconhecê-las, uma vez que o atraso no diagnóstico e instituição de terapêutica podem levar a danos permanentes, assim como a morbilidade e mortalidade significativas.

QUADRO 1 – Síndromas auto-inflamatórias

Síndromas (OMIM) Transmissão Gene Clínica
Síndromas de febre periódica hereditárias
Febre Mediterrânica Familiar – FMF (249100) AR MEFV Febre, serosite (peritonite, pleurite, pericardite), artralgias ou artrite, lesão Símile-erisipelas nos membros inferiores, vasculite, amiloidose nos doentes não tratados
TNF receptor-associated periodic syndrome – TRAPS (142680) AD TNFRSF1A Febre, mialgias migratórias, exantema, artralgia/artrite, dor abdominal e/ou torácica, vómitos, serosite (pleurite, pericardite), hiperémia conjuntival e edema peri-orbitário, amiloidose
Síndroma Hiper IgD com febre periódica – HIDS (260920) AR MVK Febre, exantema polimorfo, artralgias, dor abdominal de gravidade variável, diarreia, adenomegálias, aftose oral, esplenomegália
Familial Associated Cold Autoinflammatory Syndrome – FCAS (120100) AD CIAS1/NALP3/PAF1 Febre, exantema urticariforme desencadeado pelo frio, conjuntivite, artralgias
Síndroma Muckle-Wells (MWS) (191900) AD CIAS1/NALP3/PAF1 Febre, exantema urticariforme, conjuntivite, artralgias, surdez neurossensorial, amloidose
Chronic Infantile Neurologic Cutaneous and Articular syndrome (CINCA) (607115) Esporádico e AD CIAS1/NALP3/PAF1 Exantema urticariforme, meningite asséptica crónica, papiledema, atrofia nervo óptico, surdez neurossensorial, osteoartropatia deformante de grandes articulações (com crescimento anómalo das rótulas), amiloidose
Familial Associated Cold Autoinflammatory Syndrome 2 – FCAS2 (609648) AD NLRP12 Febre, exantema urticariforme desencadeado pelo frio, adenomegálias, aftose oral, dor abdominal
Síndromas Febris Idiopáticas
Síndroma de febre periódica, aftas, faringite e adenopatias (PFAPA) Não familiar __ Início idade pré-escolar, febre periódica, amigdalite, aftas e adenomegálias. Boa resposta toma única corticoesteróide. Remissão até adolescência.
Artrite Idiopática Juvenil – Sistémica (AIJ-S) Doença de Still do adulto Complexa AR Complexa Polimorfismos IL-6, MIF LACC Polimorfismos IL-6, MIF Febre prolongada, artrite, exantema evanescente, adenomegálias, hepato-esplenomegália, serosite; risco síndroma de activação macrofágica
Doenças Granulomatosas
Doença de Chron Complexa NOD2/CARD15, ABCB1 (Ala893) Diarreia com sangue e/ou muco, perda de peso, aftas, fístulas peri-anais
Síndroma de Blau (186580) e Sarcoidose de início precoce AD e Esporádica e AD (respectivamente) NOD2/CARD15 Exantema acastanhado, poliartrite simétrica e uveíte granulomatosas
Doenças Piogénicas
Síndroma de artrite piogénica, pioderma gangrenoso e acne – PAPA (604416) AD PSTPIP1 Artrite piogénica estéril recorrente de início na infância, pioderma gangrenosum e acne quística de início na adolescência; abcessos estéreis nos locais de punção
Osteomielite Crónica Não Bacteriana (259680) Esporádica LPIN (associado a síndroma de Majeed); PSTPIP2(?) Osteomielite crónica ou recorrente sem isolamento de agente, habitualmente multifocal, podendo ser unifocal; associação história pessoal ou familiar de outras patologias imunes como psoríase, doença inflamatória do intestino, ou pustulose palmo-plantar
Síndroma de Majeed (609628) LPIN2 Início precoce de anemia diseritropoiética e osteomielite crónica não bacteriana multifocal; pode ter manifestações cutâneas como pustulose e dermatose neutrofílica
Interleukin 1 receptor antagonist deficiency – DIRA (612852) AR Antagonista do receptor da Interleucina-1 Osteomielite não bacteriana multifocal com início neonatal, periosteíte costelas e ossos longos, rash pustular com transformação ictiosiforme
Síndromas Associadas ao Imunoproteossoma
Autoinflammation, lipodystrophy, and dermatosis syndrome (256040)
    • Chronic atypical neutrophilic dermatosis with lipodystrophy and elevated temperature syndrome – CANDLE
    • Nakajo-Nishimura Syndrome – NNS
    • Joint contractures, muscular atrophy, microcytic anemia, and panniculitis -induced lipodystrophy syndrome -JMPS
AR PSMB8 Febre recorrente, artralgia, lesões cutâneas purpuralike, lipodistrofia, condrite nariz e pavilhão auricular, calcificações gânglios da base, clubbing dedos mãos e pés, contracturas musculares, atrofia muscular, anemia microcítica
Síndromas com Exantema Cutâneo Pustular sem Envolvimento de Órgão
CARD14-mediated pustular psoriasis CAMPS (177900) AR CARD14 Psoríase pustular, pitiríase rubra pilaris
IL-36 receptor antagonist deficiency-DITRA (614204) AR IL36RN Pustulose palmo-plantar, cansaço, febre; pode haver envolvimento inflamatório articular e mucosas
Doenças com Hemofagocitose
Autoinflammation with infantile enterocolitis-AIFEC (616050) AD NLRC4 Febre, artralgias, hepatoesplenomegália, enterocolite início precoce, coagulopatia, pancitopenia, aumento ferritina e triglicéridos
Síndromas com Imunodeficiência e/ou Imunodesregulação
Autoinflammation and PLCG2-Associated Antibody Deficiency, and Immune Dysregulation – PLAID (614468) PLCG2 Urticária com o frio, infecções recorrentes (imunodeficiência variável incluindo humoral e das células B), fenómenos autoimunes
PLCG2-Associated Antibody Deficiency, and Immune Dysregulation – APLAID (614878), AD PLCG2 Placas eritematosas e lesões vesicopustulares desencadeadas pelo calor e exposição solar, celulite, erosões córneas, hipertensão ocular, cataratas, envolvimento articular e gastrointestinal variável. Imunodeficiência humoral ligeira associada a infecções sino-pulmonares recorrentes
HOIL 1 Deficiency AR HOIL1 Infecções bacterianas invasivas, febre recorrente e amilopectinose muscular
Sideroblastic anemia with B-cell Immunodeficiency, periodic fevers, and developmental delay – SIFD (616084) AR TRNT1 Anemia sideroblástica grave neonatal ou infância; atraso DP Neurodesenvolvimento secundário a alterações neurodegenerativas variáveis; febre recorrente sem causa infecciosa; linfopénia B e hipogamaglobulinémia; surdez neurossensorial
Interferonopatias
STING-associated vasculopathy with onset in infancy – SAVI (615934) AD STING (TMEM173) Úlceras cutâneas graves com formação de escaras e necrose da face, pavilhão auricular, nariz e dedos; doença intersticial pulmonar
Síndromas Vasculíticas
Deficiência de ADA2-DADA2 (615688) AR CECR1 Poliarterite nodosa de início precoce (primeira década), AVCs recorrentes, livedo reticularis, febre recorrente, necrose por isquémia (vasculite) dedos
Doença de Behçet Complexa Úlceras orais e genitais, tromboses arteriais e venosas, uveíte, pseudofoliculite, eritema nodoso, doença neurológica

1. SÍNDROMAS AUTO-INFLAMATÓRIAS MONOGÉNICAS

As síndromas auto-inflamatórias hereditárias compreendem um grupo de doenças caracterizadas por episódios recorrentes de febre e inflamação sistémica, na ausência de causas infecciosas, neoplásicas ou autoimunes; as mesmas estão relacionadas com mutações de genes implicados na imunidade inata, na produção de citocinas pró-inflamatórias, e na apoptose.

Apesar de apresentarem um curso semelhante com episódios recorrentes de inflamação sistémica, distinguem-se entre si por variantes quanto a manifestações clínicas, por mutações genéticas específicas, e pelo modo de transmissão hereditária indicados no Quadro 1. As opções terapêuticas para cada uma destas síndromas também são diferentes.

O diagnóstico diferencial é feito através de exame clínico exaustivo seguido da análise genética específica para a síndroma (ou síndromas) mais provável. No que diz respeito a outros grupos nosológicos, é importante excluir a patologia inflamatória crónica, neoplasia e infecção. As características clínicas, genéticas e a súmula breve da terapêutica das síndromas de febre periódica hereditárias constam do Quadro 2.

QUADRO 2 – Síndromas auto-inflamatórias com febre periódica

 MKD/HIDS FMF TRAPS CIASPFAPA
Idade de Início 1º anoVariável3 – 20 ANeonatal a primeira infância< 5 A
Duração da Febre 3 – 7 dias1 – 4 dias≥ 1 semanaFCAS: 12 h (30 min- 3 dias)
MWS: 24-65 h)
CINCA: curto a contínua
4 – 5 dias
Intervalo Intercrise Irregular (4 – 6 semanas)IrregularIrregular (semanas a meses)VariávelRegular
(4 – 6 semanas)
Características Específicas Linfadenopatia cervical
Vómitos/diarreia
Artralgias/artrite
Crises podendo ser desencadeadas por vacinas, estresse, infecções
Serosite
Artrite
Dor abdominal
Conjuntivite
Mialgias
Artralgias
Pleurisia
MWS: poliartrite/artralgias, mialgias, conjuntivite, surdez neurossensorial
FCAS: poliartralgias, mialgias, conjuntivite, frio desencadeia crises
CINCA: artropatia deformante, surdez neurossensorial, edema papilar, dismorfia facial, meningite asséptica
Estomatite aftosa
Linfadenopatia cervical
Faringite
Envolvimento Cutâneo Exantema polimorfo
(máculo-papular, purpúrico, petequial)
Exantema erisipelóide dos membros inferioresEritema migratório/placas de edemaExantema urticariforme não pruriginosoRaro

Uma vez que o tópico em análise constitui uma área do conhecimento em franca expansão, com várias novas síndromas a serem descritas todos os anos, neste capítulo precede-se a uma descrição não exaustiva das principais.

 Febre mediterrânica familiar (FMF)

A FMF é uma doença de transmissão autossómica recessiva, frequente em populações da bacia mediterrânica, nomeadamente judeus sefarditas, turcos e descendentes de povos islâmicos. O gene envolvido, MEFV, codifica uma proteína denominada pirina ou marenostrina.

Esta afecção é caracterizada por episódios recorrentes de febre e serosite (peritonite, pleurite ou artrite) de início súbito e curta duração, entre 6 horas a 4 dias.

As manifestações mais frequentes são a dor abdominal, geralmente muito intensa e acompanhada de prostração, com ou sem sinais de peritonite franca (sendo frequente a dor à descompressão na palpação abdominal), artralgias e artrites. A dor torácica surge como manifestação de pleurite.

As alterações cutâneas são características: exantema erisipelóide nos pés e zona pré-tibial. O envolvimento de outras serosas, com pericardite ou inflamação do escroto é pouco comum.

Os resultados de exames laboratoriais revelam leucocitose, aumento da Proteína C reactiva, do fibrinogénio e da proteína amilóide A sérica.

O tratamento com colchicina é eficaz na prevenção das crises, diminuindo a sua frequência e, também, a probabilidade de aparecimento de amiloidose secundária; esta última constitui a complicação mais grave e temível desta doença.

O diagnóstico precoce e a adesão à terapêutica com colchicina são os aspectos fundamentais para garantir o correcto tratamento da FMF e a prevenção da amiloidose secundária, a qual se associa a morbilidade (principalmente a síndroma nefrótica, insuficiência renal e eventual transplante renal) e mortalidade significativas.

Nos raros casos de insucesso terapêutico com colchicina, poderá obter-se melhoria através da terapêutica anti-IL1 com anakinra.

TRAPS – Síndroma periódica associada ao receptor do TNF
(TNF Receptor Associated Periodic Syndrome)

É causada por mutações no gene TNFRSF1A e apresenta uma transmissão autossómica dominante. Os dados clínicos mais úteis para distinguir esta síndroma das outras febres periódicas são: o carácter prolongado dos episódios febris, que podem chegar a ter várias semanas de duração, a conjuntivite e as mialgias localizadas. O edema periorbitário é considerado patognomónico, mas nalgumas séries está presente em apenas 20% dos casos. Outros sinais e sintomas frequentes são a dor abdominal, o exantema macular eritematoso com placas de edema e as artralgias.

A avaliação laboratorial na crise revela neutrofilia, aumento da PCR e estimulação policlonal de imunoglobulinas, em especial IgA e IgD.

O tratamento consiste na administração de corticóides em altas doses na crise, podendo ser útil terapêutica com etanercept em casos de maior gravidade. No entanto, a resposta clínica ao etanercept diminui ao longo do tempo. O uso de anticorpos monoclonais anti-TNF como o infliximab deve ser evitado, uma vez que pode levar a um aumento paradoxal da actividade inflamatória. A terapêutica anti-IL1 com anakinra parece ser mais promissora, com melhores taxas de eficácia, mesmo em doentes que não respondem ao etanercept.

Actualmente estão a decorrer ensaios clínicos para avaliar a eficácia do canakinumab.

Síndroma Hiper-IgD (ou de deficiência de mevalonato cinase) (HIDS – “Hyper IgD Syndrome” )

O gene implicado é o da mevalonatocinase (MVK), enzima que nestes doentes apresenta uma actividade de 5 a 15% do normal. O modo de transmissão é autossómico recessivo. Esta afecção caracteriza-se por episódios de febre recorrente, os quais geralmente se iniciam no primeiro ano de vida, com cerca de 4-6 dias de duração, seguindo-se diminuição gradual da febre. Os episódios febris tendem a recorrer a cada 4-6 semanas, podendo ser desencadeados por vacinações, traumatismos mínimos, cirurgias ou estresse.

A clínica engloba adenopatias cervicais, dor abdominal, vómitos e diarreia. As manifestações cutâneas e articulares (artralgias ou artrites de grandes articulações, exantema máculo-papular eritematoso ou púrpura petequial) quando presentes, desaparecem lentamente após a regressão da crise.

A associação do quadro clínico característico a duas determinações de IgD superiores a 100U/ml com um mês de intervalo sugere o diagnóstico. No entanto, como os valores de IgD não se encontram elevados numa percentagem considerável de casos, actualmente considera-se mais correcta a designação de “deficiência de mevalonato-cinase”. Os valores de IgA também se encontram frequentemente elevados.

Corticóides em alta dose na fase de crise podem encurtar a duração do episódio febril. Uma vez que esta enzima faz parte da via de síntese do colesterol, alguns estudos avaliaram a eficácia das estatinas nesta patologia, com resultados desapontantes.

Estão descritos bons resultados com o etanercept nalguns casos, enquanto outros respondem melhor ao anakinra (anti-IL1). É sugerido que os doentes que não apresentem resposta favorável ao etanercept possam beneficiar de anakinra e vice-versa.

Síndromas periódicas associadas à criopirina

Três síndromas – Urticária familiar ao frio (FCAS – Familial Cold Auto-inflammatory Syndrome), síndroma de Muckle-Wells (MWS) e síndroma CINCA – compõem o grupo das síndromas periódicas associadas à criopirina. Estas síndromas resultam de várias mutações diferentes no gene NLRP3 (NLR family, Pyrin domain containing 3) que dão origem a anomalias na criopirina, um dos componentes do inflamassoma NLRP3, com transmissão autossómica dominante. No entanto, em cerca de 50% dos casos não são detectadas mutações no gene NLRP3 por sequenciação convencional. Estudos recentes mostraram que o mosaicismo somático para mutações NLRP3 pode ser responsável, numa proporção até 70%, por estes casos aparentemente “sem mutação”.

Clinicamente, as três síndromas representam um espectro contínuo da mesma entidade nosológica, sendo a FCAS a forma mais ligeira, e a síndroma CINCA a mais grave.

O critério de avaliação clínica designado por CAPS disease activity score (CAPS-DAS) é usado para monitorizar a actividade clínica da doença e resposta à terapêutica.

As manifestações clínicas da FCAS iniciam-se no primeiro ano de vida, com episódios recorrentes de febre, exantema urticariforme não pruriginoso e artralgia, precipitados pela exposição ao frio. As mialgias, cefaleias, sudação, sede intensa e náuseas são outros sintomas frequentes.

Na MWS a clínica é semelhante à da FCAS; no entanto, há algumas diferenças: os sintomas tendem a ser contínuos, em vez de episódicos; a existência de factores precipitantes pode ser menos comum, nomeadamente a exposição ao frio; as manifestações articulares são mais marcadas, podendo haver sinovite recorrente das grandes articulações. É frequente haver compromisso oftalmológico (conjuntivite, episclerite, iridociclite), surdez neurossensorial e amiloidose secundária.

A síndroma CINCA caracteriza-se pelo aparecimento dos sintomas pouco após o nascimento, com envolvimento cutâneo, articular e neurológico permanentes.

Geralmente a primeira manifestação da doença é o exantema máculo-papular ou urticariforme, não pruriginoso, cuja intensidade varia com o tempo e o grau de actividade da doença. (Figura 1)

FIGURA 1. Doente de 6 anos de idade com história de exantema urticariforme e máculo-papular eritematoso, não pruriginoso, iniciado durante a 1ª semana de vida, ao nível da face (A), tronco e membros (B), que se manteve de forma praticamente contínua até aos 21 anos (idade actual). O doente sofre também de períodos frequentes de febre alta (39-40ºC) intermitente, oligoartrites recorrentes, predominantes ao nível dos joelhos, cefaleias crónicas, uveíte crónica recorrente com algum grau (intermitente) de edema da papila, e surdez neurossensorial moderada. Os resultados dos exames laboratoriais evidenciaram, ao longo do tempo, anemia (Hb: 8-10 g/dL), leucocitose (20-30000/mm3), trombocitose (500 a 800000/mm3) e VS elevada (80-100 mm/1ª hora). Um estudo do líquido cefalorraquidiano, a que foi submetido cerca dos 9 anos de idade, revelou pleiocitose (C) e ligeiro aumento das proteínas.
A doença foi resistente a todas as terapêuticas instituídas – AINEs, corticosteróides, MTX – estando o doente actualmente (isto é, nos últimos 6 meses) apenas com analgésicos em SOS (devido às cefaleias) e sem sinais inflamatórios articulares ou oculares

Segue-se o envolvimento ósseo e articular, que pode surgir em 2 tempos diferentes, com implicações prognósticas importantes:

  • Durante o primeiro ano de vida – poliartrite simétrica afectando preferencialmente as grandes articulações, com deterioração rápida, perda de função e deformidade articular resultante de um hipercrescimento ósseo nas epífises e cartilagens de crescimento com ossificação irregular, sendo típica a deformação esferoidal das rótulas (Figura 2);
  • Após os 2 anos de vida (50%) – artrite não destrutiva ligeira.

Practicamente todos os pacientes sofrem uma deterioração neurológica progressiva em resultado de meningite asséptica crónica (90%) (Figura 1-C). Podem ainda desenvolver diplegia espástica e epilepsia.

É típico verificar-se macrocrânia, bossa frontal, nariz em sela, mãos e pés curtos e grossos, palmas e plantas enrugadas.

A RM-CE pode ser normal ou mostrar sinais de atrofia cerebral e ventriculomegalia, achados associados à presença de hipertensão intracraniana e hidrocefalia, e que podem tambem estar relacionados com a presença de atraso cognitivo (75%).

É também frequente haver inflamação ocular (panuveíte, papiledema, papilite ou atrofia óptica) que pode levar à cegueira; a surdez neurossensorial é também uma complicação frequente.

Enquanto a utilização de corticóides e AINEs proporciona alguma melhoria clínica temporária, a terapêutica de primeira linha com agentes biologicos anti-IL1 (anakinra e canakinumab) constitui uma opção muito eficaz no tratamento deste grupo de síndromas.

FIGURA 2. Alterações típicas das rótulas, com deformação esferoidal, em menina com síndroma de CINCA. Note-se a acentuada procidência na face anterior do joelho, que na radiografia se verifica ser devida a uma deformação da rótula, em que os seus diâmetros vertical e ântero-posterior são quase iguais

Síndroma periódica associada ao NLRP12

A síndroma periódica associada ao NLRP12 caracteriza-se por episódios recorrentes de artralgia-mialgia associados a febre e exantema urticariforme. A surdez neurossensorial está também descrita nalguns casos. Devido à semelhança clínica com as criopirinopatias, incluindo o facto de a exposição ao frio ser um factor precipitante, esta síndroma é também conhecida por FCAS2.

Esta afecção resulta de mutações esporádicas e/ou de transmissão autossómica dominante no gene NLRP12 (NLR family, Pyrin containing 12), o qual pertence à mesma família do gene NLRP3.

O tratamento consiste na administração de anti-inflamatórios não esteróides e corticóides na crise (casos mais ligeiros), ou por terapêutica anti-IL1 com anakinra.

Artrite granulomatosa pediátrica

O termo artrite granulomatosa pediátrica engloba a síndroma de Blau e sarcoidose de início precoce, situações correspondentes à forma familiar com transmissão autossómica dominante e esporádica da mesma doença auto-inflamatória granulomatosa.

Esta entidade clínica está associada a mutações heterozigóticas no gene NOD2, com um papel importante na imunidade inata e reconhecimento de patogénios.

A tríade clássica compreende a existência de artrite, uveíte e exantema. No entanto, a criação de bases de registo internacionais e a maior facilidade na realização de testes genéticos permitiu concluir que esta tríade pode não estar completa numa percentagem significativa de casos; de facto, poderá integrar um espectro clínico bastante mais alargado, incluindo manifestações sistémicas, vasculite e compromisso de vários órgãos e sistemas.

A artrite é geralmente crónica, poliartcular e simétrica, com envolvimento de grandes e pequenas articulações, podendo apresentar um aspecto tufado e estar asssociada a tenossinovite. A ocorrência de campto dactilia é frequente.

As manifestações cutâneas variam desde um exantema máculo-papular até ictiosiforme, podendo apresentar um aspecto eczematiforme com pele de aspecto bronzeado. O eritema nodoso é frequente e estão também descritos casos de vasculite leucocitoclástica.

O envolvimento ocular caracteriza-se por uveíte bilateral recorrente que pode atingir o segmento anterior e posterior. Outras manifestações oculares que podem surgir no decurso da doença incluem sinéquias, cataratas e hipertensão intraocular.

Embora menos típicas, as manifestações sistémicas incluem febre recorrente, hepatoesplenomegália e adenopatias, pelo que o quadro pode inicialmente ser confundido com AIJ sistémica. A hipertensão arterial sistémica pode estar presente em cerca de 20% dos casos.

Relativamente ao envolvimento de órgãos, o mais comum é o renal, que se manifesta por nefrite intersticial e/ou glomerular, nefrocalcinose e, eventualmente, insuficiência renal. O acometimento cardíaco pode manifestar-se por pericardite e as manifestações neurológicas incluem envolvimento dos pares cranianos e papiledema. O envolvimento pulmonar é muito menos frequente do que na sarcoidose de tipo adulto. Está também descrita a associação com vasculite de grandes vasos.

Os resultados dos exames laboratoriais revelam leucocitose com predomínio de polimorfonucleares, trombocitose ligeira, e elevação dos valores dos parâmetros inflamatórios e reagentes de fase aguda, incluindo proteína amilóide sérica; de referir, no entanto, que não estão descritos casos de amiloidose secundária. A nível histopatológico é característica a presença de granulomas não-caseosos.

Para o tratamento utiliza-se corticoterapia sistémica e agentes biológicos. Os mais usados são os anti-TNF, salientando-se que existem casos descritos de resposta favorável a anti-IL1 (anakinra e canakinumab).

Síndroma PAPA (artrite piogénica, pioderma gangrenoso, acne)

A síndroma PAPA é uma afecção transmitida de modo autossómico dominante, causada por mutações no gene PTSTPI1 (Proline-Serine-Threonine Phosphatase Interacting Protein1).

É caracterizada por episódios recorrentes de inflamação que afectam preferencialmente as articulações e a pele:

  • Artrite piogénica estéril, de início na infância;
  • Pioderma gangrenoso;
  • Acne quística grave, de início na adolescência e persistindo na idade adulta.

Apesar de os episódios de inflamação serem auto-limitados, a sua recorrência leva à acumulação de material piogénico estéril (rico em neutrófilos) nas articulações afectadas, do que resulta numa destruição significativa dessas mesmas articulações. Os episódios recorrentes de artrite estéril ocorrem geralmente após traumatismos mínimos, mas também podem surgir espontaneamente.

Outras manifestações menos frequentes são a diabetes mellitus insulinodependente de início na idade adulta, proteinúria, e formação de abcessos no local de injecções.

Alguns casos respondem à administração de corticóides. Nos casos refractários, estão descritas duas alternativas terapêuticas:

  • Anti-TNFα, que também parece ser eficaz no tratamento do pioderma gangrenoso;
  • Antagonistas do receptor da IL-1, administrados continuamente ou de forma intermitente, apenas no tratamento das crises de artrite.

Interferonopatias (doenças do proteossoma e CANDLE)

O grupo das interferanopatias engloba as doenças do proteossoma ou do “factor de degradação proteica” (PRAAS – PRoteasome-Associated Autoinflamatory Syndromes e CANDLE – Chronic Atypical Neutrophilic Dermatosis with Lipodystrophy and Elevated temperature), para além das mais raras síndromas de Aicardi-Goutieres (AGS) e síndroma SAVI (STING-Associated Vasculopathy with onset in Infancy). No seu conjunto são caracterizados por desregulação da sinalização e/ou produção de interferão (IFN) tipo 1.

As doenças do proteossoma e a síndroma CANDLE são causadas por mutações de transmissão autossómica recessiva (AR) no gene PSMB8 e/ou outros componentes do proteossoma. Algumas mutações apresentam efeito fundador, contribuindo para um relativo aumento de prevalência em certas populações. E o caso da mutação T75M na população portuguesa, espanhola e latino-americana, ou a mutação G201V na população japonesa, sendo a doença associada descrita como síndroma de Nakajo-Nishimura.

Estas afecções apresentam-se com um quadro de dermatose neutrofílica atípica generalizada, lipodistrofia, contracturas articulares e atrofia muscular, inflamação sistémica e anemia microcítica. A morbilidade e mortalidade associadas são significativas, especialmente em doentes não tratados.

A terapêutica anti-IL6 (tocilizumab) não é totalmente eficaz. Actualmente encontram-se em curso estudos-piloto para testar a eficácia do bloqueio IFN com inibidores da JAK-cinase.

Síndroma vasculítica. Deficiência de adenosina desaminase 2 (DADA2)

Recentemente foi descrito uma síndroma vasculítica monogénica causada por mutações AR no gene CECR1, conduzindo a deficiência da enzima adenosina desaminase 2 (ADA2).

As manifestações clínicas de tal síndroma são muito semelhantes à poliarterite nodosa: acidente vascular cerebral nos primeiros anos de vida, e/ou vasculite sistémica com livedo reticularis, febre recorrente, hepatoesplenomegália, mialgia, e alterações oftalmológicas (tais como, atrofia do nervo óptico ou oclusão da artéria central da retina). A nível cutâneo, observam-se também frequentemente úlceras nos membros inferiores (que podem levar a amputação), fenómeno de Raynaud, nódulos subcutâneos, púrpura e necrose digital.

Os resultados de exames laboratoriais indicam dos parâmetros de fase aguda da inflamação, anemia, e hipo ou hipergamaglobulinemia. Anticorpos antinucleares podem ser detectados nalguns doentes, o que não acontece com os anticorpos anti-fosfolípidos. Alguns casos podem apresentar sinais de imunodeficiência associada, com citopenias e baixos níveis de IgM.

Estão descritos resultados satisfatórios do tratamento com agentes anti-TNF. Outras terapêuticas sugeridas passam pela utilização de plasma fresco congelado, ADA2 recombinante e transplante de medula óssea nos casos refractários.

2. SÍNDROMAS AUTO-INFLAMATÓRIAS NÃO HEREDITÁRIAS

Seguidamente são descritas algumas das síndromas auto-inflamatórias sem transmissão mendeliana conhecida.

Síndroma PFAPA (febre periódica, estomatite aftosa, faringite e adenopatias).
PFAPA (Periodic Fever, Aphtous Stomatitis, Pharyngitis and Adenopathy)

Os surtos de PFAPA têm o seu início entre os 2-4 anos e recorrem em intervalos de 3-6 semanas. Uma importante característica é a precisão do intervalo inter-crise em cada doente (a vida é programada de acordo com o dia em que se prevê que a criança vai ter febre). Após um pródromo de mal-estar geral e anorexia, a febre inicia-se com picos 38-41ºC, muitas vezes com calafrio, persistindo por 3-6 dias. A febre é acompanhada por mal-estar geral, amigdalite, e adenomegálias cervicais dolorosas e, muitas vezes, úlceras orais dolorosas. De notar que não é necessária a presença de todas as manifestações em todas as crises para se admitir o diagnóstico. Outras manifestações associadas podem ser cefaleias, náuseas e vómitos, dor abdominal moderada e, mais raramente, artralgias e/ou mialgias. Nos períodos inter-crise as crianças estão assintomáticas, não havendo repercussão sobre o crescimento nem sobre o neurodesenvolvimento. (Quadro 3)

A sua etiologia, forma de transmissão hereditária e eventual predilecção étnica são desconhecidas. Durante as crises IL-6, IL1B, TNF-alfa e INF-gama estão elevados.

QUADRO 3 – Critérios de diagnóstico de PFAPA

    • Febre recorrente de forma regular com início antes dos 5 anos
    • Sintomas constitucionais na ausência de uma infecção respiratória da via superior com, pelo menos, um dos seguintes:
      • Estomatite aftosa
      • Linfadenite cervical
      • Faringite
    • Exclusão de neutropenia cíclica, HIDS, TRAPS
    • Paciente assintomático inter-crise
    • Crescimento e neurodesenvolvimento normais

O diagnóstico é clínico. Os critérios de diagnóstico avançados por Thomas em 1999 permitem a inclusão de alguns doentes com HIDS e TRAPS. Assim, nos doentes com suspeita de PFAPA devem ser excluídas, preferencialmente por estudo genético, estas patologias, bem como, a FMF em populações com alta prevalência desta patologia.

Apesar de não incluída nos critérios de diagnóstico, o cessar imediato de uma crise com a toma de corticóide no início da febre é utilizado, em muitos centros, como ajuda ao diagnóstico.

O tratamento recomendado é prednisona ou prednisolona 1 mg/Kg no início da crise e, se necessário, repetida, no dia seguinte. Os efeitos secundários dos corticóides devem ser ponderados sobre o benefício, já que as crises são auto-limitadas e não deixam sequelas. Alguns doentes têm beneficiado de terapêutica profiláctica com cimetidina ou com colchicina.

A realização de amigdalectomia (com ou sem adenoidectomia) tem taxas de sucesso variáveis que podem rondar os 80%. No entanto, é importante salientar que se trata dum procedimento invasivo, com riscos (anestésicos, hemorragia) e que, sendo o PFAPA uma doença benigna e auto-limitada, a cirurgia deve ser reservada para doentes seleccionados refractários ou intolerantes à terapêutica médica.

Osteomielite crónica não bacteriana – CNO (Chronic Non bacterial Osteomyelitis)

A CNO foi descrita pela primeira vez em 1972 por Giedion e colaboradores. Desde então foram descritas centenas de casos na literatura com uma predominância do sexo feminino sobre o masculino (4/1).

A CNO tem manifestações clínicas sobreponíveis às da osteomielite infecciosa. Os sinais e sintomas são insidiosos. Os doentes apresentam dor óssea multifocal, por vezes unifocal, acompanhada ou não de febre baixa. A sintomatologia local é a de um processo inflamatório com dor, tumefacção, rubor e impotência funcional. A zona metafisária dos ossos longos, como a tíbia, é mais frequentemente envolvida; no entanto, costelas, clavícula e corpos vertebrais também o podem ser. Ao contrário da osteomielite bacteriana, não existe repercussão sobre o estado geral do doente.

A evolução da doença é habitualmente caracterizada por crises dolorosas periódicas com posterior remissão. A maioria dos doentes, embora apresente várias lesões simultâneas, apenas uma é sintomática em cada crise. Foi descrita a associação de CNO a outras patologias tais como doença inflamatória do intestino, psoríase, pustulose palmoplantar e síndroma de Sweet.

Embora a etiologia seja desconhecida, está provado que pode existir susceptibilidade genética. Embora na maioria dos casos se verifique manifestação esporádica, existe uma forma da doença de transmissão autossómica recessiva, denominada síndroma de Majeed que se deve a mutações homozigóticas do gene LPIN2. Diversos estudos apontam para a localização de mutações no gene PSTPIP2 que partilha uma homologia sequencial significativa com o PSTPIP1, que é responsável pelo PAPA.

A suspeita do diagnóstico é clínica. As alterações analíticas mostram uma velocidade de sedimentação ligeiramente menos elevada do que na osteomielite infecciosa e o hemograma é habitualmente normal. As alterações radiográficas, dependendo da fase da doença, são sobreponíveis às encontradas na osteomielite: lesões osteolíticas no início da doença que gradualmente são rodeadas por esclerose marginal com alargamento do osso afectado. A RM pode proporcionar informação relativamente às articulações e tecidos moles envolventes, sendo os achados ósseos sobreponíveis aos da osteomielite infecciosa. A RM de corpo inteiro, quando possível realizar, ou a cintigrafia óssea, nessa impossibilidade, são úteis para a detecção de outros focos ósseos assintomáticos. (Figura 3)

FIGURA 3. Alterações cintigráficas (A) e radiográficas esqueléticas (B) de doente com CNO

Os achados histopatológicos são inespecíficos, salientando-se, no entanto, que a biopsia óssea é necessária, sobretudo nos casos unifocais, de localização atípica ou com sintomas gerais associados para excluir um processo infeccioso. Haverá que efectuar igualmente culturas para bactérias aeróbias e anaeróbias, fungos e micobactérias típicas e atípicas, ou outras de acordo com epidemiologia. Os exames histopatológicos e microbiológicos são fundamentais na perspectiva do diagnóstico diferencial com doenças neoplásicas.

Os anti-inflamatórios, em doses anti-inflamatórias adequadas, constitui a terapêutica de eleição, com boa resposta na grande maioria dos doentes. Outros fármacos utilizados nos casos refractários são os corticosteróides em cursos curtos (1-2 semanas), o pamidronato endovenoso e, mais recentemente, os bloqueadores do TNFa, com boa resposta à semelhança de alguns doentes com síndroma SAPHO

Artrite idiopática juvenil – sistémica (AIJ-S)

Incluir a AIJ-S nas síndromas auto-inflamatórias não é tão estranho quanto possa parecer. Clinicamente a AIJ-S é passível de confusão com síndromas HIDS, TRAPS (especialmente na sua forma cíclica e quando os sintomas sistémicos precedem a artrite), e CINCA.

Por outro lado, a AIJ-S pode ser considerada uma entidade clínica única, diferente, mesmo na sua forma clínica típica, das restantes AIJ. Tal sugere diferentes mecanismos etiopatogénicos, tal como é referido no artigo original de George Frederic Still. Os ANA e FR são geralmente negativos, bem como não foi consistentemente demonstrada a presença de outros auto-anticorpos ou células T auto-reactivas. A associação genética a polimorfismos dos genes das citocinas inflamatórias IL-6, TNF-alfa e MIF (macrophage migration inibition factor) evidenciam de forma indirecta a possibilidade de inclusão da AIJ-S nas síndromas auto-inflamatórias. Alguns destes polimorfismos têm significado funcional já que estão associados a uma maior expressão das citocinas inflamatórias a eles associados. A boa resposta aos anti-IL1 (anakinra e canakinumab), à semelhança de outras síndromas auto-inflamatórias (por exemplo as síndromas periódicas associadas à criopirina) poderá bem constituir outra prova da sua natureza auto-inflamatória.

A clínica, terapêutica e prognóstico da AIJ-S estão descritos no capítulo dedicado à Artrite Idiopática Juvenil.

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DOENÇAS REUMÁTICAS JUVENIS ENGLOBADAS NO GRUPO DAS ARTRITES IDIOPÁTICAS JUVENIS

Sistematização

No conjunto de títulos que integram este capítulo, são descritas várias doenças reumáticas juvenis que estão classificadas sob a designação geral de artrites idiopáticas juvenis, salientando as respectivas características clínicas e laboratoriais, a forma de suspeitar ou confirmar o diagnóstico, e as especificidades da terapêutica.

Desta forma, são abordadas sucessivamente a artrite reumatóide (AIJ poliarticular com factores reumatóides Ig M presentes no soro, iniciada antes dos 16 anos e, por isso, designada juvenil), as doenças juvenis do grupo das espondilartropatias (espondilite anquilosante juvenil, artrite reactiva/síndroma de Reiter, espondilartropatias indiferenciadas), a artropatia associada à doença inflamatória crónica do intestino, a artrite psoriásica (a oligoartrite com anticorpos antinucleares presentes no soro e alto risco de uveíte crónica), e a doença de Still ou AIJ sistémica.

No capítulo seguinte, são abordadas as síndromas autoinflamatórias, nas quais provavelmente se integrará uma parte dos doentes com doença de Still (AIJ sistémica) com predomínio de manifestações extra-articulares.

1. ARTRITE REUMATÓIDE JUVENIL COM FR IgM PRESENTES NO SORO

Manifestações clínicas

A AR juvenil constitui cerca de 8-10% dos casos de AIJ. Trata-se duma doença caracterizada pelo início na pré-puberdade, ou mesmo já na puberdade, de poliartrite periférica extensa, geralmente envolvendo as pequenas articulações das mãos e punhos (Figura 1), muitas vezes com tenossinovite ao nível do dorso das mãos e punhos. Ocasionalmente, embora tal seja muito raro, pode iniciar-se antes dos 6 anos. Há nítido predomínio do sexo feminino (4F/1M).

A evolução é rápida, com incapacidade progressiva e repercussão sobre a capacidade funcional articular se a terapêutica adequada não for instituída precocemente. As erosões e deformações ósseas e articulares estabelecer-se-ão em poucos anos, como acontece na AR do adulto.

Exames laboratoriais

Do ponto de vista laboratorial a doença caracteriza-se pela presença de sinais de anemia moderada, trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação elevada, proteína C reactiva elevada e factores reumatóides IgM (FR IgM) presentes no soro. Salienta-se que os referidos FR IgM no soro poderão não ser identificados, tal como acontece em cerca de 30% dos casos de artrite reumatóide do adulto.

Em cerca de 50% dos doentes são detectados anticorpos antinucleares no soro e o doseamento do complemento sérico revela valores normais ou elevados.

Os anticorpos antipéptidos citrulinados cíclicos estão também presentes em cerca de 60% destes doentes, marcando um subgrupo com tendência acentuada para cronicidade e destruição articular.

FIGURA 1. Poliartrite periférica, simétrica e aditiva, típica em jovem adolescente: AIJ poliarticular com factores reumatóides IgM presentes no soro, classificável como a verdadeira forma de artrite reumatóide de início juvenil pelo facto de o prognóstico articular e evolução clínica serem sobreponíveis aos da doença iniciada em idade adulta

Como suspeitar?

  • Poliartrite periférica extensa, com envolvimento de várias pequenas articulações dos dedos das mãos (MCF e IFP);
  • Início na pré-puberdade ou puberdade;
  • Predomínio do sexo feminino;
  • FR IgM presentes no soro;
  • Deformações articulares de evolução rápida;
  • Erosões radiológicas precocemente;
  • Tendência para continuar com doença activa na idade adulta.

Tratamento

O reconhecimento de um doente com as características descritas deve orientar o reumatologista para uma abordagem terapêutica agressiva, incluindo todos os princípios gerais atrás enunciados para as AIJ, com prescrição de AINE associado ao metotrexato (MTX).

Se a doença se mantiver activa após 6 meses de MTX, deve ser prescrito um agente biológico em associação. Actualmente o único agente biológico aprovado é o etanercept, que deve ser administrado semanalmente, por via subcutânea, na dose de 0,8 mg/kg/semana (dose máxima de 50 mg/semana). Nas formas refractárias tem sido utilizado o tocilizumab (8 mg/kg IV de 2-2 semanas).

2. ESPONDILITE ANQUILOSANTE E OUTRAS ESPONDILARTROPATIAS JUVENIS, INCLUINDO AS ESPONDILARTROPATIAS INDIFERENCIADAS

Manifestações clínicas

As espondilartropatias juvenis caracterizam-se pelo início das queixas após os 8 anos de idade em crianças ou adolescentes, com predomínio do sexo masculino (5M/1F).

A doença começa geralmente por uma oligoartrite ou poliartrite, predominante ao nível dos membros inferiores, com envolvimento frequente das coxo-femorais, joelhos e tíbio-társicas. É relativamente frequente o envolvimento das enteses (isto é, dos locais das inserções tendinosas nos ossos); os locais mais frequentemente atingidos são as inserções calcaneanas do tendão de Aquiles e da aponevrose plantar, pelo que as talalgias posteriores e inferiores são características nestes casos. Os dedos dos pés “em salsicha”, (isto é, com tumefacção difusa desde a raiz do dedo acompanhada de rubor, que se deve a uma extensa tenossinovite) são muito típicos.

Em cerca de 25% dos doentes são verificados episódios de uveíte anterior aguda, com dor intensa e marcada inflamação ocular, cedendo rapidamente à terapêutica; geralmente, não deixam sequelas se tratadas precocemente.

Após períodos variáveis de doença activa, pode haver remissão clínica prolongada, reactivando-se cerca dos 20 anos de idade ou um pouco mais tarde. Quando a doença se mantém activa após a adolescência, há frequente envolvimento do esqueleto axial (coluna e sacroilíacas).

Não é rara a história familiar de espondilartropatia e/ou de uveíte.

Exames laboratoriais

Existe a possibilidade de anemia ligeira, velocidade de sedimentação variável (entre normal, pouco ou muito elevada), proteína C reactiva elevada e HLA B27 presente (60% dos casos).

Como suspeitar?

  • Oligoartrite periférica, com envolvimento predominante de grandes articulações dos membros inferiores;
  • Início após os 8 anos de idade;
  • Predomínio do sexo masculino;
  • Presença do HLA B27;
  • Talalgias inferiores e posteriores; dedos dos pés “em salsicha”;
  • Ocasionalmente o quadro inicial é de síndroma de Reiter (pós-disentérica até aos 12 anos; e pós-venérea após o início da vida sexual activa), com diarreia ou uretrite, conjuntivite e/ou uveíte e artrite;
  • Sacroileíte clínica (dores glúteas) e radiológica (Figura 2) mais frequentemente após a adolescência;
  • Tendência para a remissão, com evolução para espondilite anquilosante na idade adulta, nalguns casos.

Tratamento

As doenças classificadas como espondilartropatias têm um espectro clínico muito variável, sendo na maior parte dos casos relativamente benignas e permitindo, com algum desconforto, uma vida de relação praticamente normal.

O exercício físico regular, incluindo a natação em piscina aquecida, devem fazer parte do plano terapêutico destes doentes.

FIGURA 2. Sinais radiológicos de sacroileíte unilateral, à esquerda, típica de doente com espondilartropatia; caso de 16 anos de idade com AIJ oligoarticular iniciada aos 13 anos por artrite de 3 articulações dos membros inferiores

Os AINE e as terapêuticas locais (sinovectomia química) são muitas vezes suficientes para permitir uma actividade normal. Nos casos mais graves, que evoluem para poliartrite, é por vezes útil o recurso ao metotrexato (MTX). Se a doença se mantiver activa após 6 meses de MTX, pode ser prescrito um agente biológico em associação, preferencialmente o etanercept nas mesmas doses, como nos outros casos acima referidos.

3. ARTROPATIA DA DOENÇA INFLAMATÓRIA CRÓNICA DO INTESTINO

Manifestações clínicas

Menos frequente que as duas doenças anteriormente descritas, esta entidade clínica pode iniciar-se por oligoartrite predominante ao nível dos membros inferiores ou poliartrite ligeira; nalguns casos verifica-se evolução de tipo espondilítico, após a adolescência.

Não há predomínio de sexo nítido, excepto nos casos com evolução de tipo espondilítico, em que domina o sexo masculino. Salienta-se que em cerca de 10-15% das crianças com doença inflamatória crónica do intestino se verifica associação a artrite.

As manifestações articulares e intestinais podem ocorrer quase simultaneamente. Contudo, não sendo raro que a artrite preceda a diarreia durante meses ou anos, o oposto poderá acontecer (selection bias).

Pode haver entesite como nas restantes espondilartropatias; a presença de eritema nodoso, pioderma gangrenoso (que é raro) ou uveíte anterior aguda constituem suspeita diagnóstica. A diarreia crónica (eventualmente com sangue, muco e pus) deve levar à realização de colonoscopia com biópsia ou doutros exames complementares apropriados à localização intestinal da doença.

Embora a doença de Crohn e a colite ulcerosa sejam os diagnósticos associados mais comuns, é possível a associação a colite inespecífica.

Exames laboratoriais

Do ponto de vista laboratorial, a doença caracteriza-se pela presença de anemia moderada (ferropénica em relação com inflamação crónica), trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação elevada, proteína C reactiva positiva, e presença de HLA B27, em especial nos casos raros de evolução de tipo espondilítico.

A pesquisa de sangue oculto nas fezes é frequentemente positiva. O anticorpo anticitoplasma dos neutrófilos de destribuição perinuclear (ANCA-p) pode ser positivo e orientar a investigação diagnóstica.

Como suspeitar?

  • Oligoartrite periférica, com ou sem entesite;
  • Emagrecimento, ou falta de progressão ponderal, desproporcionada com a gravidade da artrite;
  • Eritema nodoso ou pioderma gangrenoso;
  • Diarreia crónica ou episódios curtos e frequentes de diarreia;
  • Uveíte anterior aguda, associada a diarreia.

Tratamento

Geralmente há boa resposta clínica aos corticóides em baixas doses, quer por via oral, quer por injecção intra-articular, e à sulfassalazina. Nos casos resistentes, a adição de metotrexato, na dose de 15 mg/kg de peso/semana, pode revelar-se muito eficaz.

Em casos pontuais de doença de Crohn com fistulização pode estar indicada a terapêutica com infliximab, um agente biológico (anticorpo anti-TNFα) particularmente eficaz nesta complicação da doença de Crohn.

4. ARTRITE PSORIÁSICA JUVENIL

Manifestações clínicas

A artrite psoriásica juvenil constitui cerca de 2-5% dos casos de AIJ.

A doença inicia-se desde idades pré-escolares, com predomínio no sexo feminino, havendo um segundo pico de início por volta dos 10 anos de idade.

Habitualmente, o quadro é de oligoartrite periférica com envolvimento de grandes articulações, quer dos membros superiores, quer dos inferiores. Por vezes, também envolvidos os dedos das mãos e/ou dos pés, de forma assimétrica, dactilite (“dedos em salsicha”) e entesite.

Na maior parte dos casos (cerca de 60%) a artrite precede a psoríase, por vezes de anos ou mesmo décadas; em menor proporção (cerca de 10 a 30% dos casos) as duas manifestações surgem simultaneamente ou a psoríase precede o aparecimento da artrite.

Exames laboratoriais

Do ponto de vista laboratorial não existem achados específicos da artrite psoriásica juvenil. Estão geralmente presentes anemia moderada, trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação elevada, proteína C reactiva positiva, típicos da inflamação crónica.

Os anticorpos antinucleares são evidenciados em 40-50% dos casos. Um número apreciável de doentes (25%) pode evidenciar marcadores inflamatórios de fase aguda (VS e proteína C reactiva) com valores normais, o que não deve levar à exclusão do diagnóstico clínico de artrite.

Como suspeitar?

  • Oligoartrite periférica assimétrica, com envolvimento de pequenas articulações dos dedos das mãos ou pés (IFP e IFD);
  • Presença de lesões ungueais típicas de psoríase (picotado ungueal, distrofia ungueal, onicólise);
  • Dactilite (dedos “em salsicha”);
  • História familiar de psoríase, confirmada;
  • Psoríase cutânea em doente com artrite.

Tratamento

O tratamento da artrite psoriásica juvenil é, de um modo geral, o que se indica para a artrite de que a criança sofre, somado ao tratamento das lesões cutâneas de psoríase, quando elas estão presentes.

Os AINE são administrados em associação ao metotrexato (MTX), na dose de 15 mg/m2 de superfície corporal/semana, por via oral durante o máximo de 3 meses, devendo depois ser instituída a via subcutânea, em caso de ineficácia. A “sino-vectomia” química com hexacetónido de triancinolona está indicada especialmente nos casos de oligoartrite das grandes articulações.

Se a doença se mantiver activa após 6 meses de MTX, deve ser prescrito um agente biológico em associação, preferencialmente o etanercept administrado semanalmente, por via subcutânea, na dose de 0,8 mg/kg/semana (dose máxima de 50 mg/semana). Esta associação é muito eficaz, tanto para a artrite como para a psoríase.

5. ARTRITE IDIOPÁTICA JUVENIL OLIGOARTICULAR COM ANTICORPOS ANTINUCLEARES E UVEÍTE CRÓNICA

Manifestações clínicas

A AIJ oligoarticular com anticorpos antinucleares positivos e risco elevado de uveíte crónica inicia-se habitualmente antes dos 6 anos de idade. Há nítido predomínio do sexo feminino (7F/1M).

O quadro é dominado por mono ou oligoartrite (até 4 articulações atingidas), sendo o joelho a articulação mais frequentemente atingida.

Embora as queixas articulares sejam ligeiras de início, a doença deve ser cuidadosamente avaliada, quer pelo risco de uveíte crónica associada, quer pelo problema de diagnóstico diferencial constituído pelos casos de monoartrite.

A uveíte crónica, também chamada “uveíte branca” por não causar a inflamação ocular típica dos casos de uveíte anterior aguda, é a complicação mais temível da doença pois, pelas suas complicações possíveis (queratite em banda). (Figura 3)

FIGURA 3. Queratite em banda (A) e sinéquias posteriores (B) em doentes com AIJ oligoarticular de início em idade inferior a 6 anos, com anticorpos antinucleares presentes no soro e uveíte crónica

Exames laboratoriais

Do ponto de vista laboratorial, a doença caracteriza-se pela presença de anticorpos antinucleares, geralmente em título baixo (inferior ou igual a 1/640).

Pode haver também alterações inespecíficas devidas à inflamação crónica: anemia e trombocitose ligeiras, velocidade de sedimentação pouco elevada e proteína C reactiva positiva.

Como suspeitar?

  • Oligoartrite periférica iniciada antes dos 6 anos de idade;
  • Anticorpos antinucleares presentes no soro;
  • Predomínio do sexo feminino (7F/1M);
  • Presença de uveíte anterior crónica (assintomática) ou suas sequelas, detectadas no exame oftalmológico com lâmpada de fenda.

Tratamento

O tratamento articular privilegiará as medidas locais, eventualmente com “sinovectomia” química (com hexacetónido de triancinolona) das articulações atingidas.

A prescrição de AINE é a regra, para alívio das queixas articulares.

Nos casos evoluindo para mais de 4 articulações afectadas, e/ou com episódios repetidos de uveíte crónica, deve associar-se o metotrexato, na dose de 15 mg/m2 de superfície corporal/semana, por via oral durante o máximo de 3 meses, podendo ulteriormente ser instituída a via subcutânea em caso de ineficácia.

O tratamento da uveíte crónica exige muitas vezes a administração de midriáticos de acção curta, associados a corticosteróides tópicos (colírio ou via subconjuntival) ou sistémicos, nos casos mais graves e resistentes de uveíte crónica. A ciclosporina A (3 mg/kg/dia, em 2 tomas) pode ser adjuvante nos casos de uveíte resistente à restante terapêutica.

A cirurgia oftalmológica pode assumir particular importância na resolução das complicações da uveíte crónica, acima indicadas. (Parte XXVI)

6. DOENÇA DE STILL OU ARTRITE IDIOPÁTICA JUVENIL SISTÉMICA

Manifestações clínicas

A AIJ sistémica ou doença de Still constitui cerca de 20% dos casos de AIJ, com prevalência idêntica nos dois sexos.

Trata-se duma doença caracterizada pelas suas manifestações sistémicas que dominam o quadro, pelo menos nas semanas ou meses iniciais da doença. Nesta fase, as alterações articulares são mínimas e a clínica é dominada pelas manifestações extra-articulares.

A febre alta intermitente pode ter um ou dois surtos diários (de 39-40ºC ou mais) e períodos de apirexia ou temperaturas subfebris matinais. Este tipo de febre constitui critério de classificação obrigatório: por definição, todos os doentes têm um período mínimo de 2 semanas com este tipo de febre. O exantema eritematoso pálido, cor de salmão, é característico, podendo ser muito fugaz e estar presente nalguns períodos do dia, e ausente noutros (Figura 4). A febre e os locais de atrito cutâneo podem ser factores desencadeantes.

A hepatosplenomegalia e as adenomegalias generalizadas (Figura 5), geralmente assintomáticas, podem atingir 50 a 60% dos doentes. Sendo a pericardite rara (5% dos casos – Figura 6), o exame ecocardiográfico revela sinais de derrame pericárdico em cerca de 20% dos casos.

FIGURA 4. Exantema macular eritematoso típico da forma sistémica de Artrite Idiopática Juvenil, observado em criança de 5 anos de idade, durante pico febril

FIGURA 5 – Adenomegalias generalizadas em criança com AIJ sistémica; note-se que, além de facilmente palpáveis, os gânglios linfáticos eram visíveis, quer na região axilar (A) quer na inguinal (B), devido ao seu volume.

Podem surgir casos com evolução febril policíclica e predomínio das alterações extra-articulares, os quais são classificados por alguns autores como formas de síndroma autoinflamatória; noutros casos, mais raros, a doença poderá ter um curso monocíclico febril após o qual o doente entra em remissão prolongada.

Na maior parte das situações (cerca de 60%) a fase sistémica extingue-se em semanas ou meses, passando a clínica a ser dominada por poliartrite periférica extensa e incapacitante. (Figura 7)

FIGURA 6. Ecocardiograma: pericardite em criança de 12 meses de idade com AIJ sistémica. Note-se a presença de sinais de derrame pericárdico relativamente volumoso

FIGURA 7. Criança com AIJ de início sistémico que evoluiu como poliartrite extensa, com deficiente posicionamento articular. Note-se o micrognatismo devido ao compromisso grave das articulações temporomandibulares

Exames laboratoriais

Do ponto de vista laboratorial, a doença caracteriza-se pela presença de anemia moderada a grave (hemoglobina com valores de 5-6 g/dL não são excepcionais), leucocitose com neutrofilia, trombocitose, velocidade de sedimentação elevada e proteína C reactiva positiva. Em mais de metade dos casos, o doseamento do complemento sérico revelará valores elevados.

Como suspeitar?

  • Início com febre alta (>39ºC), intermitente, e repercussão no estado geral;
  • Exantema eritematoso pálido (cor de salmão), em 80% dos casos, predominante durante os picos febris;
  • Adenomegalias generalizadas e hepatosplenomegalia;
  • Pericardite (sinais clínicos e ecocardiográficos, respectivamente em 5 e 25% dos casos);
  • Evolução para poliartrite extensa em cerca de 60% dos casos.

Tratamento

O diagnóstico de AIJ sistémica exige uma abordagem terapêutica agressiva, incluindo os AINE associados ao metotrexato (MTX), na dose de 15 mg/m2 de superfície corporal/semana, por via oral, durante o máximo de 3 meses, devendo depois ser instituída a via subcutânea em caso de ineficácia.

Se a doença se mantiver activa após 3 a 6 meses de MTX, deve ser prescrito um agente biológico em associação.

Quando a artrite é o quadro clínico predominante, o etanercept é o fármaco de escolha, administrado semanalmente, por via subcutânea, na dose de 0,8 mg/kg/semana (dose máxima de 50 mg/semana).

Se as manifestações sistémicas predominarem, deve ser dada preferência ao anakinra (IL-1ra – antagonista do receptor da interleucina 1), na dose de 2 mg/kg de peso/dia (dose máxima de 100 mg/dia), em administração subcutânea diária. O efeito do anakinra sobre as manifestações extra-articulares é habitualmente rápido e decisivo, fazendo por vezes desaparecer todos os sintomas nos 2-3 primeiros dias do tratamento.

O tocilizumab é também muito eficaz para o tratamento das manifestações articulares e extra-articulares de AIJ sistémica.

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(Em conjunto com a dos 2 capítulos anteriores)

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ARTRITES IDIOPÁTICAS JUVENIS (AIJ)

Introdução histórica

Do ponto de vista histórico, o primeiro estudo de casos de artrite juvenil com as características do grupo de doenças que estamos a considerar foi publicado em 1864, por Cornil, numa doente de 29 anos, com doença iniciada aos 12 anos de idade. A primeira publicação de casos em idade pediátrica é de 1881 por Moncorvo, autor brasileiro que fez a sua “thèse de doctorat” em Paris, sobre uma doente de 2 anos de idade, não se sabendo se voltou a publicar algum outro estudo sobre o mesmo tema.

A primeira série bem estudada foi publicada em 1891, também como thèse de doctorat em Paris, por Diamant-Berger, médico francês que reviu 38 casos clínicos, 4 dos quais da sua observação pessoal.

Este autor passou o resto da sua vida clínica como obstetra na cidade de Lyon, não se conhecendo nenhuma publicação posterior sua sobre o mesmo assunto. A primeira análise criteriosa da doença reumática crónica da criança foi publicada por George Frederic Still no Reino Unido 1897, tendo sido este mesmo trabalho lido por Sir Alfred Garrod, outra figura ímpar dos primórdios da Reumatologia inglesa, que estabeleceu pela primeira vez a relação entre hiperuricémia e gota. Nesse estudo, Still não só identifica e caracteriza bem a forma sistémica de artrite idiopática juvenil (AIJ), como chama a atenção para a sua potencial gravidade (com mortalidade, nessa altura, superior a 10% num seguimento de cerca de 5 anos) e a distingue de outra forma de AIJ em que a doença é predominantemente articular, chegando a propor que se trataria de duas doenças diferentes, quer clínica, quer patogenicamente.

Seguindo a tradição dos autores que no século XIX publicaram sobre as AIJ, Still nunca mais voltou a abordar este tema, apesar de uma actividade editorial extensa, ligada à Medicina e à Pediatria, tendo mesmo publicado várias edições de um tratado de doenças da criança, no qual nunca se referiu às doenças reumáticas crónicas juvenis. Já no século XX e no Reino Unido, duas figuras se destacam na história da evolução de conceitos relativos às artrites juvenis. São elas Eric Bywaters, Reumatologista de mérito universalmente reconhecido, com trabalhos de importância fundamental na histopatologia das doenças reumáticas e nas doenças reumáticas crónicas juvenis, que começou a trabalhar este assunto numa altura (1948, após o fim da II Guerra Mundial) em que a doença reumática juvenil mais comum em todas as enfermarias do Canadian Memorial Red Cross Hospital, em Taplow – Inglaterra, era a febre reumática.

Classificação e evolução de conceitos

No início dos anos 60, Barbara Margareth Ansell juntou-se à equipa médica de Taplow e ajudou este centro a atingir o topo da reumatologia pediátrica mundial, centro de referência e formação para muitos dos que agora dirigem conceituados serviços e unidades de Reumatologia Pediátrica em todo o Mundo. A estes autores se devem os primeiros critérios de classificação da EULAR (European League Against Rheumatism), bem como a designação de Artrite Crónica Juvenil, que durante algumas décadas foi a mais prevalente segundo reumatologistas e pediatras europeus.

As patologias reumáticas crónicas da infância e adolescência que originam maior número de consultas (cerca de 60% do total das consultas externas de Reumatologia Pediátrica) encontram-se no grupo das doenças crónicas anteriormente designadas por artrite crónica juvenil (ACJ), na Europa, e artrite reumatóide juvenil (ARJ) nos Estados Unidos da América e grande parte do continente Americano. Recentemente, numa tentativa séria de uniformização de critérios, estabeleceu-se a designação de artrites idiopáticas juvenis (AIJ), através de um grupo de trabalho de nomenclatura e classificação das doenças reumáticas crónicas juvenis, patrocinado pela ILAR (International League Against Rheumatism).

A denominação descritiva de ACJ pressupõe que não se trata de uma doença, mas sim de um grupo de patologias caracterizadas pela presença de doença inflamatória articular, respetivamente:

  • Artrite – que cursa com duração superior ou igual a 3 meses;
  • Crónica – num grupo etário bem definido;
  • Juvenil – tendo início antes de se completar o 16º ano de vida.

Este diagnóstico obriga à exclusão de um largo grupo de doenças da infância que podem ter sintomas semelhantes aos da ACJ. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de artrite crónica juvenil, formas de início e lista de exclusões a que este diagnóstico obriga*

* “Nomenclature et classification de l’arthrite chez l’enfant”. EULAR Bulletin. 1977; 6:101-105.

Formas de Início

    • Sistémica
    • Poliarticular
    • Oligoarticular

Lista de Exclusões

    • Artropatias com características específicas
      • Infecciosas (bacterianas maltratadas, tuberculose)
      • Alterações imunológicas não reumatológicas (agamaglobulinemia)
      • Doenças hematológicas (hemofilias, leucoses)
      • Neoplasias (neuroblastoma, etc.)
      • Psicogénicas
      • Doenças distintas do sistema músculo-esquelético
      • Polimiosite e dermatomiosite
      • Esclerodermia
      • Síndroma de Sjögren
      • Doença mista do tecido conjuntivo
      • Vasculites necrosantes (Schönlein-Henoch, etc.)
      • Doença de Behçet
      • Doenças não reumáticas (condromalácia, epifisites de crescimento, epifisiólises, etc.)
    • Doenças específicas que podem causar problemas no diagnóstico
      • Febre reumática
      • Lúpus eritematoso sistémico
      • Artrites reactivas

Critérios de Diagnóstico

    • Artrite de 1 ou mais articulações
    • Duração mínima de 3 meses
    • Início antes dos 16 anos de idade
    • Exclusão de outras causas de artrite

A ACJ foi subdividida em três formas distintas, classificadas de acordo com a evolução clínica durante os primeiros 6 meses de doença: a forma Sistémica, a forma Poliarticular e a forma Oligoarticular, representando provavelmente doenças diferentes.

Na forma Sistémica predominam as manifestações extra-articulares:

  • Febre alta intermitente (presente em 100% dos casos) com picos febris vespertinos (≥39ºC) e apirexia ou temperaturas subfebris matinais;
  • Exantema macular eritematoso (80% dos casos), de cor rósea ou salmão, por vezes muito fugaz, que pode estar presente apenas durante os picos febris e se pode associar a fenómeno de Koebner;
  • Hepatosplenomegalia (60% dos casos);
  • Adenomegalias generalizadas (50% dos casos);
  • Serosite (20% dos casos) – geralmente sob forma de pericardite, que tem expressão clínica em 5% dos casos e pode ser detectada ecocardiograficamente em cerca de 20% dos doentes; a pleurite e a peritonite asséptica são muito mais raras.

As manifestações articulares, indispensáveis para o diagnóstico, podem ser muito escassas, ou estar mesmo ausentes (20% dos casos), nas primeiras semanas ou meses de doença. A médio-longo prazo cerca de 40% dos doentes com esta forma de doença vêm a sofrer de poliartrite extensa, e muitas vezes incapacitante. A amiloidose secundária, embora rara (< 2%), é um risco a considerar nos doentes com doença contínua por período superior a 5 anos.

Nas formas Oligoarticulares, ou pauciarticulares, são atingidas apenas uma a quatro articulações nos primeiros 6 meses de doença; quando apenas uma articulação é atingida, trata-se de uma monoartrite, cuja investigação diagnóstica deve levar em consideração a possibilidade de artrite infecciosa.

As formas oligoarticulares precoces, iniciadas antes dos 6 anos de idade, atingem predominantemente o sexo feminino (6/1), e acompanham-se com frequência de uveíte crónica assintomática ou oligossintomática (40%) e anticorpos antinucleares presentes no soro (70%).

As formas oligoarticulares tardias, que se iniciam habitualmente após os 10 anos de idade, atingem predominantemente o sexo masculino (3/1) e acompanham-se frequentemente de entesite ou processo inflamatório na zona de inserção dos tendões e ligamentos (25%) e de uveíte anterior aguda (20%), sendo o antigénio de histocompatibilidade HLA B27 detectável em cerca de 60% destes doentes.

Se o período de acompanhamento for suficientemente prolongado (≥10 anos), muitos destes doentes virão a evoluir de forma a poderem ser classificados como sofrendo de doenças do grupo das espondilartropatias.

Outros doentes com início oligoarticular não têm características específicas e, após um lapso de tempo maior ou menor, entram em remissão sem sequelas articulares significativas.

Nas formas Poliarticulares são atingidas 5 ou mais articulações no decurso dos primeiros 6 meses de doença, sendo nestas formas de ACJ mais comum a incapacidade articular se o tratamento não for precoce e agressivo.

Na ACJ Poliarticular com FR IgM presentes no soro a evolução clínica, laboratorial e radiológica é sobreponível à da AR do adulto. Há nítido predomínio do sexo feminino (5/1) e, por regra, o início é mais tardio (após os 10 anos de idade) que nos outros casos de ACJ poliarticular. É comum a poliartrite periférica extensa, com envolvimento bilateral, simétrico e com carácter aditivo, das pequenas articulações das mãos, punhos e pés, entre outras. As erosões ósseas radiológicas são frequentes e precoces. (Figuras 1 e 2)

FIGURA 1. ACJ poliarticular: notória tumefacção das articulações interfalângicas dos dedos das mãos

FIGURA 2. ACJ poliarticular. Compromisso das pequenas articulações das mãos (A), sendo evidentes na radiografia (B) sinais de erosão óssea

Nos doentes com ACJ Poliarticular sem FR IgM, reconhecem-se vários tipos diferentes de evolução clínica: alguns com doença articular progressiva e grave, como a AR do adulto; outros que alguns anos depois virão a sofrer de psoríase, podendo então ser classificados como tendo artrite psoriásica; outros que evoluem como espondilartropatias, com entesite e envolvimento do esqueleto axial (coluna dorso-lombar e sacroilíacas); e ainda outros que virão a entrar em remissão ou a evoluir com menor número de articulações atingidas, chegando à idade adulta sem sequelas articulares significativas.

Como se torna fácil perceber, sob a classificação de ACJ encontram-se numerosas doenças reumáticas crónicas da infância e adolescência, cujo diagnóstico e classificação definitivos exigem muitas vezes a passagem de anos, ou mesmo décadas. Nesta classificação reconhece-se como Artrite Reumatóide Juvenil um subgrupo de doentes, com início de forma poliarticular e factores reumatóides IgM presentes no soro, que têm clínica, laboratório, radiologia e prognóstico sobreponíveis aos da AR do adulto.

A designação de ARJ – Artrite Reumatóide Juvenil, do American College of Rheumatology, embora não seja sobreponível à de ACJ (Quadro 2) (pois a duração mínima da artrite é 6 semanas e a lista de exclusões é diferente, nomeadamente no que respeita à exclusão de todas as doenças do grupo das espondilartropatias), envolve uma população de doentes em grande parte sobreponível.

QUADRO 2 – Comparação das classificações de artrite crónica juvenil (ACJ), artrite reumatóide juvenil (ARJ) e artrites idiopáticas juvenis (AIJ)

 ARJACJAIJ
Idade de início< 16 anos< 16 anos< 16 anos
Duração≥ 6 semanas≥ 3 meses≥ 6 semanas
Tipos de início
    • Pauciarticular: < 5
    • Poliarticular: > 4
    • Sistémico: Febre+Artrite
    • Oligoarticular: < 5
    • Poliarticular: > 4
    • Sistémico: Febre+Artrite
    • Oligoartrite: < 5
    • Poliartrite: > 4
    • Sistémico: Febre+Artrite
Subgrupos de classificaçãoNenhum
    • ARJ: Poliartrite e FR IgM(+)
    • Espondilite anquilosante
    • Artrite psoriásica
    • Sistémica: Febre+Artrite
    • Oligoartrite:
      • Persistente
    • Estendida
    • Poliartrite FR IgM(-)
    • Poliartrite FR IgM(+)
    • Artrite psoriásica
    • Artrite com entesite
    • Outras
      • Não classificáveis
      • Classificáveis em mais de um subgrupo
ComentáriosO nome é enganador, fazendo pensar que se trata de uma só doençaDesignação descritiva, não se confunde com uma doença
Considera 3 doenças distintas
Definições de tipo de doença semelhantes às restantes
Reconhece e valoriza heterogeneidade clínica como podendo significar doenças diferentes

As designações ACJ ou ARJ não se referem a uma doença específica, mas sim a um grupo de patologias que surgem num determinado grupo etário; por isso, o conceito de Artrite Reumatóide Juvenil dos autores americanos é inaceitável por todos os que conhecem bem a AR do adulto e compreendem que a maior parte das crianças que sofre de ARJ tem uma doença distinta da AR. Acresce que, cada vez mais, os pais e os próprios adolescentes recorrem a enciclopédias médicas familiares e tomam conhecimento do que pode significar sofrer de artrite reumatóide, sem que lhes seja informado que a doença em questão pode ser completamente distinta. Tal circunstância gera, assim, ansiedade e receios muitas vezes injustificados.

Os critérios de classificação da ILAR, criados em Santiago do Chile e revistos em Durban e Edmonton constituem uma abordagem mais actual e orientada para a definição de características clínicas, laboratoriais e imunogenéticas que permitam, no futuro, identificar doenças reumáticas diferentes com características clínicas semelhantes iniciadas neste grupo etário.

Estas três classificações das doenças reumáticas juvenis, embora com diferenças importantes entre elas, envolvem uma população de doentes largamente sobreponível, estando estes conceitos em plena evolução. Enfermam do defeito comum de não atribuir às doenças da infância o nome que as mesmas doenças têm quando surgem na idade adulta (apenas a classificação da ACJ em subgrupos o faz, ainda que de forma incompleta).

Para obviar a diferenças regionais, entre a Europa e os Estados Unidos da América, decidiu-se optar por uma designação genérica que não fosse igual a nenhuma das duas anteriormente utilizadas, e que indicasse sem dúvidas que se tratava de doenças da infância de causa desconhecida. Daí o termo Artrites Idiopáticas Juvenis (AIJ).

Estes critérios de classificação das AIJ consideram os seguintes grupos:

  • Artrite sistémica
    Caracterizada pela presença de artrite, precedida ou acompanhada de febre diária, intermitente, com o mínimo de duas semanas de duração, acompanhada de uma ou mais das seguintes manifestações:
    1. Exantema eritematoso fugaz;
    2. Linfadenopatias generalizadas;
    3. Hepatomegália e/ou esplenomegália;
    4. Serosite.
Exclusões:
      • Psoríase ou história de psoríase, no doente ou em familiares de 1º grau.
      • Artrite iniciada após os 6 anos no sexo masculino, e associada ao HLA B27.
      • Espondilite anquilosante, artrite relacionada com entesite, sacroileíte com doença inflamatória do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior aguda, ou história de uma destas doenças num familiar de 1º grau.
      • Presença de FR IgM em duas determinações com o mínimo de 3 meses de intervalo.
  • Oligoartrite
    Artrite afectando uma a quatro articulações durante os primeiros 6 meses de doença. Reconhecidas duas subcategorias:
    1. Oligoartrite persistente – não atinge mais de 4 articulações durante todo o curso da doença;
    2. Oligoartrite estendida – atinge 5 ou mais articulações após os primeiros 6 meses de doença
Exclusões:
      • Psoríase ou história de psoríase no doente ou familiar de 1º grau, ou doença associada ao HLA B27, confirmada por médico.
      • Artrite iniciada após os 6 anos no sexo masculino, e associada ao HLA B27.
      • Espondilite anquilosante, artrite relacionada com entesite, sacroileíte com doença inflamatória do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior aguda, ou história de uma destas doenças num familiar de 1º grau.
      • Presença de FR IgM em duas determinações com o mínimo de 3 meses de intervalo.
      • Presença de artrite sistémica, conforme definida acima. (Ver Glossário)
  • Poliartrite (Factores Reumatóides IgM negativos)
    Artrite afectando 5 ou mais articulações durante os primeiros 6 meses de doença, com pesquisa de FR IgM persistentemente negativa.
Exclusões:
      • Psoríase ou história de psoríase no doente ou familiar de 1º grau, ou doença associada ao HLA B27, confirmada por médico.
      • Artrite iniciada após os 6 anos no sexo masculino, e associada ao HLA B27;
      • Espondilite anquilosante, artrite relacionada com entesite, sacro-ileíte com doença inflamatória do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior aguda, ou história de uma destas doenças num familiar de 1º grau;
      • Presença de FR IgM em duas determinações com o mínimo de 3 meses de intervalo.
      • Presença de artrite sistémica, conforme definida acima.
  • Poliartrite (Factores Reumatóides IgM positivos)
    Artrite afectando 5 ou mais articulações durante os primeiros 6 meses de doença, com pesquisa de FR IgM positiva, pelo menos em 2 determinações efectuadas com o mínimo de três meses de intervalo.
Exclusões:
      • Psoríase ou história de psoríase no doente ou familiar de 1º grau, ou doença associada ao HLA B27, confirmada por médico.
      • Artrite iniciada após os 6 anos no sexo masculino, e associada ao HLA B27.
      • Espondilite anquilosante, artrite relacionada com entesite, sacroileíte com doença inflamatória do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior aguda, ou história de uma destas doenças num familiar de 1º grau.
      • Presença de artrite sistémica, conforme definida acima.
  • Artrite Psoriásica – definida como:
    1. Artrite e psoríase;
    2. Artrite associada a pelo menos 2 das seguintes manifestações:
      1. Dactilite
      2. Alterações ungueais (picotado ou onicólise)
      3. História familiar de psoríase, confirmada por um dermatologista, em pelo menos um familiar de 1º grau.

Exclusões:

      • Presença de FR IgM no soro.
      • Presença de artrite sistémica, conforme definida acima.
      • Artrite iniciada após os 6 anos no sexo masculino, e associada ao HLA B27.
      • História de espondilite anquilosante, artrite relacionada com entesite, sacroileíte com doença inflamatória do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior aguda num familiar de 1º grau.
  • Artrite relacionada com entesite – definida como:
    1. Artrite e entesite;
    2. Artrite ou entesite com o mínimo de 2 manifestações seguintes:
      1. Dor sacro-ilíaca e/ou dor inflamatória da coluna
      2. Presença do HLA B27
      3. História familiar, em pelo menos um familiar de primeiro ou segundo grau de doença associada ao HLA B27, confirmada por médico
      4. Uveíte anterior aguda, associada a dor, inflamação ocular e fotofobia
      5. Início da artrite no sexo masculino, após os 8 anos de idade.
  1.  

Exclusões:

      • História familiar de psoríase, confirmada por um dermatologista em, pelo menos, um familiar de primeiro ou segundo grau.
      • Presença de artrite sistémica, conforme definida acima.
  • Outras Artrites – crianças com artrite de causa desconhecida, que persiste no mínimo 6 semanas, mas que:
    1. Não preenche critérios para nenhuma das restantes categorias;
    2. Preenche critérios para mais que uma das restantes categorias.

Exclusões:

      • Doentes que preenchem critérios para apenas uma das outras categorias.

Como pode ser facilmente avaliado, estes critérios continuam a enfermar de alguns problemas relacionados com a sua filosofia de base. Nomeadamente é de salientar que:

  1. Não identificam, de forma coerente, os vários grupos da classificação como doenças, quando tal poderia ser feito em relação aos seguintes:
    1. Artrite sistémica – situação que tem a designação de doença de Still do adulto, quando se inicia após os 16 anos de idade;
    2. Poliartrite com FR IgM positivos – corresponde à Artrite Reumatóide, deveria por isso ser classificada como Artrite Reumatóide Juvenil;
    3. Artrite relacionada com entesite – corresponde, quase sempre, a formas de espondiloartropatia juvenil, sendo por vezes necessário esperar muitos anos, ou mesmo décadas, até à total eclosão do quadro clínico, o qual (tal como sucede por vezes no adulto) pode ser bastante benigno;
    4. Oligoartrite, persistente ou estendida – com ANA positivos e/ou uveíte crónica – trata-se duma forma de doença reumática crónica exclusivamente encontrada em crianças (não há casos idênticos descritos na idade adulta);
    5. Não aplicam os critérios de diagnóstico da AR do adulto, que permitiriam identificar casos de AR entre as crianças com Poliartrite e FR IgM negativos;
    6. Apenas identificam como doença a Artrite Psoriásica, com critérios de diagnóstico muito semelhantes aos publicados previamente pelos dois autores que redigiram o Editorial e o artigo sobre os critérios da AIJ de Durban.
  1. Não reconhecem explicitamente que em muitos casos de AIJ o diagnóstico definitivo só pode ser conseguido na idade adulta, por muito cuidadosos e competentes que sejam os Reumatologistas Pediatras;
  2. Não realçam a existência de doenças reumáticas crónicas próprias da infância, para as quais se poderia propor uma designação;
  3. Parecem desconhecer o verdadeiro significado do termo “idiopático”, recusando-se a considerar como tal doenças melhor caracterizadas, como por exemplo o lúpus eritematoso sistémico (LES) e a dermatomiosite juvenil (DMJ), em que esta designação também é aplicável. Obviamente que não se propõe que o LES e a DMJ façam parte deste grupo de doenças, contudo são também doenças idiopáticas e o LES é muitas vezes juvenil;
  4. Os critérios não estão validados por nenhum estudo prospectivo.

Assim sendo, é fácil compreender que as várias tentativas de classificação atrás expostas não são definitivas e têm vindo a evoluir no sentido de aproximar a comunidade médica internacional em torno de uma forma de classificação que possa ser partilhada por todos.

É assim previsível que, a curto-médio prazo, a designação passe a ser de Artrite Juvenil e os vários sub-grupos iniciais sejam considerados, sempre que possível, como doenças independentes, tais como a doença de Still ou AIJ sistémica, a Artrite Reumatóide Juvenil (isto é, AIJ poliarticular ou Oligoarticular estendida com factores reumatóides IgM presentes no soro e evolução clínica sobreponível à da artrite reumatóide do adulto), e as Espondiloartropatias, incluindo a espondilite anquilosante, a síndroma de Reiter e as espondiloartropatias indiferenciadas, bem como a artrite psoriásica juvenil e as artrites associadas à doença inflamatória crónica do intestino.

As maiores vantagens desta classificação consistem no facto de, por um lado, se poder aliviar a ansiedade dos pais com a atribuição de uma designação provisória nos casos, nada raros, em que um diagnóstico definitivo não é possível, ou demora muitos meses ou mesmo anos a concretizar-se e, por outro lado, ao atribuir-se uma designação única a estas várias patologias (cada uma por si pouco comum) consegue-se uma massa crítica de doentes e vontades que podem auxiliar a defender estas crianças nos ambientes escolar, vocacional, de apoio social e outros.

O Quadro 3 sintetiza a correspondência entre os grupos de classificação das AIJ e a classificação actual das doenças reumáticas do adulto. Do ponto de vista da abordagem diagnóstica destas doenças é óbvio que só poderemos evocar uma suspeita de AIJ se uma criança ou adolescente tiver artrite pelo menos numa articulação, iniciada em idade inferior a 16 anos.

QUADRO 3 – Correspondência entre os grupos de classificação das AIJ de Durban e a classificação actual das doenças reumáticas do adulto

Classificação das AIJ – ILAR/DurbanGrupo nosológico correspondente nos adultos
Artrite sistémicaDoença de Still
Poliartrite com FR IgM presentesArtrite reumatóide
Poliartrite com FR IgM negativosArtrite reumatóide sem FR IgM (deveriam ser utililizados na criança os critérios do ACR)
Espondiloartropatias
Oligoartrite com ANA+ e/ou uveíte crónicaSem correspondência no adulto
Oligoartrite extendida com FR IgM +Artrite reumatóide
Oligoartrite tardia/HLA B27Espondiloartropatias
Artrite relacionada com entesiteEspondiloartropatias
Artrite psoriásica juvenilArtrite psoriásica
Outras/InclassificáveisDiagnóstico preciso a definir na idade adulta

Ter artrite significa não apenas existir dor articular, mas esta associar-se a tumefacção, aumento da temperatura local (menos comum nas artrites crónicas que nas agudas) e/ou limitação de movimentos das articulações atingidas.

É importante salientar que muitas vezes as crianças mais pequenas podem verbalmente negar a existência de dor articular, sendo esta apenas confirmada pela observação da expressão facial, enquanto se explora a mobilidade das articulações envolvidas. (Quadro 4)

  • QUADRO 4 – Artrites idiopáticas juvenis

Como suspeitar do diagnóstico?
    • Presença de artrite (pelo menos 2 das três manifestações seguintes: dor articular/ tumefacção articular/ limitação da mobilidade articular) de uma ou mais articulações
      +
    • Duração superior ou igual a 6 semanas
      +
    • Início das queixas antes dos 16 anos de idade

O diagnóstico de AIJ pressupõe também a exclusão de várias doenças juvenis que podem causar artrite no mesmo grupo etário. No Quadro 5 estão indicadas as principais doenças que podem causar dificuldades no diagnóstico diferencial das AIJs.

QUADRO 5 – Exclusões para o diagnóstico de AIJ

    • Lúpus eritematoso sistémico juvenil
    • Dermatomiosite juvenil
    • Esclerodermia juvenil
    • Vasculites sistémicas juvenis
    • Febre reumática
    • Doenças infecciosas juvenis (tuberculose e brucelose articulares, mononucleose infecciosa, osteomielite, hepatite B, rubéola, varicela, entre outras)
    • Neoplasias (leucoses, tumores da sinovial, sarcoma de Ewing, linfomas, osteoma osteóide, entre outras)

Epidemiologia

Os dados publicados referentes à epidemiologia das artrites juvenis permitem-nos afirmar que não se trata de situações raras, mas que ocorrem com grandes diferenças de prevalência nos vários países em que são estudadas.

Incidência e prevalência – A incidência destas doenças oscila entre 6 e 18 casos/100 000 crianças em risco/ano, mostrando, tal como os seus limites sugerem, grandes variações em regiões diferentes do globo. A prevalência mais aceite ronda os 100 casos/100 000 jovens em risco, ou seja cerca de 1/1000, havendo locais em que este valor pode mesmo ser superior.
Uma das razões óbvias para a disparidade de números dos vários estudos epidemiológicos das artrites juvenis é a utilização de distintos critérios de diagnóstico das doenças, e diferentes formas de identificar os doentes atingidos nas diversas comunidades estudadas. Claro está que a diferente constituição genética dessas comunidades também terá contribuído para as diferenças detectadas.

Idade de início – A definição do limite de idade para o início de uma artrite juvenil como inferior a 16 anos é totalmente arbitrária e tem a ver com a idade limite de internamento de doentes nos serviços de pediatria de países do norte da Europa e dos EUA, em meados do século passado – foi, pois, uma razão de ordem administrativa que pôs todos os clínicos de acordo com este limite etário!
A idade de início é diferente para as várias doenças que fazem parte do grupo das AIJ, como veremos abaixo, aceitando-se que o grupo total tem um pico de início entre os 1 e os 3 anos de idade, no qual existe nítida predominância do sexo feminino, distribuindo-se as restantes idades de início de forma mais ou menos equilibrada até aos 16 anos.

Sexo – No grupo total a relação entre sexos é de cerca de 2F/1M, sendo em todos os estudos publicados o sexo feminino o mais afectado. Contudo, esta diferença difere muito de acordo com o tipo de AIJ que se considera. Assim, nas espondiloartropatias juvenis o sexo masculino é afectado mais vezes (3M/1F) que o feminino, na AIJ oligoarticular de início precoce (em idade < 6 anos) com anticorpos antinucleares presentes no soro o sexo feminino é atingido com muito maior frequência (5F/1M) e na forma sistémica a frequência é praticamente igual nos dois sexos.
Em cerca de 50-60% dos casos, a AIJ tem início de forma oligoarticular, 20-25% de forma poliarticular e 15 a 20% de forma sistémica.

Influência geográfica e racial – As AIJ têm sido descritas em todas as latitudes e etnias, sendo a sua epidemiologia melhor conhecida nos países com serviços de saúde mais desenvolvidos e mais bem organizados.
Alguns estudos apontam para diferenças entre populações de origem europeia e africana, enquanto outros detectaram números de acordo com a representação respectiva destas duas populações na comunidade em estudo, no mesmo país.

Em suma, estas doenças atingem todos os grupos étnicos, com diferenças que ainda não são bem conhecidas.

Etiopatogénese

Não constituindo uma única doença, é fácil compreender que as diversas AIJ têm igualmente etiologia e patogénese diversas. Nesta perspectiva, importa referir certos factos.

Com efeito, existe uma desregulação do sistema imunitário, com anomalia das células T, as quais infiltram a membrana sinovial das articulações afectadas; tal verificação sugere o papel destas células na patogénese da doença.

Algumas destas doenças têm alterações da imunidade humoral, incluindo presença de complexos imunes, vários autoanticorpos e activação do complemento, por vezes com aumento dos níveis séricos deste, que sugerem uma participação desta na patogénese.

Por outro lado, há seguramente uma participação genética múltipla oligogénica ou poligénica, provavelmente responsável pelas alterações imunológicas que causam a doença e que levam a aumento da incidência familiar de algumas das doenças classificadas sob a designação de AIJ.

Face à heterogeneidade, quer dos quadros clínicos que são classificados como AIJ, quer da expressão clínica variável de cada uma dessas doenças, será difícil ou impossível identificar um agente etiológico ou uma via patogénica única que expliquem o desencadear destas doenças.

O TNF-α e a IL-6 desempenham também um importante papel na patogénese de várias destas doenças, o que tem implicações terapêuticas que já são utilizadas ou se encontram em fase de implementação.

As infecções, os traumatismos físicos e os factores psicológicos têm sido também implicados na patogénese, embora surjam sempre dúvidas sobre o seu papel.

Como noutros aspectos das AIJ, a avaliação adequada dos factores etiológicos e patogénicos só terá sucesso quando forem estudados grupos homogéneos de doentes que sofram de uma só doença.

Os antigénios de histocompatibilidade do grupo HLA têm um papel em várias das doenças classificadas sob a designação comum de AIJ, sendo a razão para a agregação familiar que se verifica no grupo das espondiloartropatias, e provavelmente também noutras situações clínicas distintas.

É bem conhecida a frequência aumentada dos alelos A2, B27 e B35 dos antigénios HLA de classe I na AIJ. O aumento da frequência do HLA B27, detectado em vários estudos, é devido à inclusão de casos de espondilite anquilosante juvenil e doutras espondiloartropatias juvenis em certos subgrupos de AIJ. A presença deste último antigénio constitui, pois, um marcador para o diagnóstico de espondiloartropatia juvenil.

Também o HLA DR4, um antigénio HLA de classe II, é um marcador de prognóstico mais reservado para alguns tipos de artrite, nomeadamente de formas sistémica e poliarticular com factores reumatóides IgM presentes no soro.

Manifestações clínicas

As repercussões sobre o estado geral, nomeadamente a anorexia, a perda de peso ou a falta de progressão do crescimento, surgem em muitas crianças. Por vezes, a irritabilidade e a falta de vontade de socialização (nomeadamente de brincar com outras crianças ou de interagir com os adultos) surgem quando as queixas articulares impedem a mobilidade normal das crianças.

A febrícula pode surgir em várias formas da doença; contudo, a febre alta, intermitente e com surtos diários superiores a 39-40ºC é própria da forma sistémica da AIJ, ou doença de Still.

 Artrite

A característica clínica que é comum a todas as formas de AIJ é a artrite, cuja presença é indispensável para que possa ser admitido este diagnóstico.

Um dos sintomas mais frequentes da artrite é a dor; contudo, em muitos casos, particularmente em grupos etários mais baixos (< 5 anos de idade) não existem queixas de dor, a qual é apenas revelada quando se exploram os movimentos activos e passivos das articulações atingidas.

Este facto levou a que muitos clínicos tenham considerado que as crianças com artrite juvenil teriam menos dores que os adultos com artrite reumatóide (AR). De facto, por um lado, a AR do adulto é diferente da AIJ e, por outro lado, o desenvolvimento cognitivo e a maturação do adulto são diferentes dos da criança, o que leva a que o significado da dor seja também diferente nas respectivas circunstâncias. Assim, na opinião do autor, será abusivo inferir que as crianças com AIJ activa poderão não sofrer de dores articulares.

Além de dor articular que, quando isolada, se classifica como artralgia, para que possamos afirmar a presença de artrite é necessário que estejam presentes outros sinais de inflamação articular, nomeadamente tumefacção articular, limitação de movimentos e aumento da temperatura local. O rubor, muito raro nas AIJ, poderá ser visível nas pequenas articulações das mãos (IFP e IFD) de algumas crianças mais pequenas com pele clara e poliartrite extensa (ver adiante Glossário).

A rigidez matinal é uma manifestação frequente da artrite, sendo responsável pelas dificuldades escolares que as crianças têm durante as primeiras aulas da manhã, as quais podem melhorar bastante ao longo do dia e gerar, por isso, desconfiança e incompreensão dos professores não informados sobre esta característica da artrite.

A existência de dor nocturna pode contribuir para insuficiente período de sono nocturno e consequente fadiga. Ao longo do dia, se uma criança com artrite activa for forçada a ficar parada durante muito tempo (1-2 horas é por vezes suficiente), poderá ficar com rigidez articular, idêntica à rigidez matinal, mas habitualmente de menor duração.

Quanto à tumefacção articular, ela pode ser devida a edema dos tecidos moles periarticulares, à presença de derrame sinovial e à hipertrofia da membrana sinovial.

O aumento local de temperatura pode detectar-se pela palpação. Já o rubor franco de uma grande articulação (raro nas AIJ) deve evocar hipóteses diagnósticas alternativas, tais como as de artrite séptica ou febre reumática.

Por vezes, ao exame objectivo, uma articulação poderá evidenciar dimensões superiores às da controlateral sem que haja tumefacção. Tal acontece nos casos de doença oligoarticular em crianças de idade inferior a 5 anos, verificando-se uma maturação acelerada dos núcleos epifisários adjacentes à articulação, o que pode levar a um crescimento assimétrico do membro afectado.

Uma causa de tumefacção adjacente a uma articulação é a presença de tendinites ou tenossinovites – tais como as tenossinovites dos extensores dos dedos, ao nível da face dorsal da mão e da rádio-cárpica, ou a tendinite aquiliana. (Figura 3)

FIGURA 3. Tenossinovite dos extensores dos dedos da mão

Todas as articulações do corpo podem ser atingidas, sendo que, nas formas oligoarticulares, são atingidas sobretudo as grandes articulações (do joelho, mais frequentemente).

Os ombros, as rádio-cárpicas, as pequenas articulações das mãos (metacarpofalângicas e interfalângicas proximais), as ancas, tíbio-társicas e metatarso-falângicas são outras articulações atingidas com frequência, particularmente quando a doença evolui de forma poliarticular extensa.

O envolvimento de algumas articulações deve ser salientado, pois tal circunstância pode provocar dificuldades no diagnóstico diferencial com situações clínicas distintas.

De entre estas, chama-se a atenção para o possível envolvimento da coluna cervical, designadamente por artrite afectando as articulações interapofisárias posteriores e/ou da atloido-odontoideia: não se tratando de situações muito frequentes, em 2% dos casos o quadro clínico pode incluir torcicolo e outra sintomatologia obrigando a estabelecer o diagnóstico diferencial com clínica de inflamação meníngea. A subluxação atloido-odontoideia é também comum, não tendo, porém, repercussão neurológica na maior parte dos casos.

As articulações têmporo-mandibulares (AT-M) são também atingidas com alguma frequência nas formas poliarticulares e sistémica, havendo frequentemente envolvimento associado da coluna cervical. Assim, o envolvimento destas articulações pode causar problemas de diagnóstico diferencial com otite crónica.

Quadro 6 – Alterações de crescimento nas AIJ

Localizadas

    • Braquidactilia
    • Assimetria de crescimento (“overgrowth”)
    • Micrognatismo

Generalizadas

    • Baixa estatura
      (AIJ sistémica ou poliarticular extensa/ de início antes dos 8 anos/ corticodependente)

Neste caso, a dor é desencadeada ou agravada pela abertura da boca, que está habitualmente limitada, e a palpação da AT-M, com o 5º dedo do observador no canal auditivo externo, pressionando de trás para a frente, desencadeia dor viva no local. A destruição dos núcleos epifisários dos côndilos mandibulares, prejudicando o normal crescimento da mandíbula, poderá levar a micrognatismo.

O envolvimento das articulações esternoclaviculares, e do manúbrio com o corpo do esterno, pode causar dor na face anterior do tórax, susceptível de ser confundida com sinais de pericardite. A dor à pressão local e o agravamento com os movimentos respiratórios, inexistente na pericardite, ajudam no diagnóstico diferencial entre as duas entidades.

Quando o envolvimento poliarticular é muito extenso, como acontece por vezes nas formas poliarticulares e sistémica, o início se dá em idade baixa (geralmente inferior aos 6 anos), e a doença é corticodependente, pode resultar uma diminuição generalizada do crescimento, com consequente baixa estatura. (Quadro 6)

A determinação do número de articulações afectadas é fundamental para a avaliação inicial da doença, sua classificação em oligoarticular ou poliarticular, e comparação subsequente, bem como para a avaliação da eficácia terapêutica. Por este motivo, é utilizada a folha de registo representada no Quadro 7. O registo do envolvimento articular (que faz parte dos critérios de definição de melhoria clínica na AIJ) deve ser efectuado quando a doença está activa em todas as consultas ou, pelo menos, 2 vezes por ano.

A osteopenia e a osteoporose de desuso, relacionáveis com a corticoterapia, são relativamente comuns nos doentes com baixa estatura e envolvimento poliarticular muito extenso, por vezes com grandes incapacidades para a marcha. As fracturas de fragilidade, quer vertebrais, quer de ossos longos, não são raras nestes doentes.  

QUADRO 7 – Registo das articulações atingidas com: tumefacção (T), dor (D) ou movimentos limitados (ML)

T D ML Articulações T D ML
Temporo-Mandibular
Esterno-Clavicular
Acrómio-Clavicular
Ombro
Cotovelo
Punho
MCF I
MCF II
MCF III
MCF IV
MCF V
IFP I
IFP II
IFP III
IFP IV
IFP V
IFD II
IFD III
IFD IV
IFD V
Coxo-Femoral
Joelho
Tíbio-Társica
Tarso
Astrágalo-Calcaneana
MTF I
MTF II
MTF III
MTF IV
MTF V
IF I
IF II
IF III
IF IV
IF V
Coluna Cervical
Coluna Dorsal
Coluna Lombar
Sacro-Ilíacas
Dolorosas Tumefactas Com Movimentos Limitados
Número Total de Articulações
Legenda: MCF= Metacarpofalângicas (I a V – 1º a 5º dedo das mãos); IFP= Interfalângicas proximais (I a V – 1º a 5º dedo das mãos); IFD= Interfalângicas distais (II a V – 2º a 5º dedo das mãos); MTF= Metatarsofalângicas (I a V – 1º a 5º dedo dos pés); IF= Interfalângicas dos dedos dos pés (I a V – 1º a 5º dedo dos pés). Com uma cruz, ou preenchendo totalmente o respectivo quadrado, indicam-se as articulações atingidas e o tipo de envolvimento detectado.

Por estes motivos, o médico deve estar em alerta para esta complicação da doença e respectiva terapêutica nos doentes de maior risco. De realçar que, no adulto, a dose máxima, considerada “segura” para o osso, é de 5 mg/dia de prednisolona (ou equivalente, de outro corticóide), em toma única.

MANIFESTAÇÕES EXTRA-ARTICULARES

A pele é tipicamente envolvida na AIJ sistémica, com um exantema macular ou máculo-papular eritematoso, por vezes muito fugaz; pode surgir apenas durante os períodos de febre alta, e estar completamente ausente nas horas do dia em que o paciente está apirético.

Pode atingir o tronco e os membros, sendo raro na face. O exantema surge por vezes em zonas de atrito cutâneo (fenómeno de Kœbner) e pode ser desencadeado por um arranhão com a unha do observador; considerado um dos sinais de actividade da doença.

Claro que as manifestações de psoríase na pele ou no couro cabeludo e/ou o picotado ungueal típico podem ajudar no diagnóstico de artrite psoriásica juvenil. Porém, é bom recordar que na maioria das crianças com artrite psoriásica a artrite precede durante meses ou anos o aparecimento das lesões cutâneas típicas da psoríase.

Nas restantes formas de AIJ a pele pode evidenciar alterações devidas a toxicidade medicamentosa – vários AINE, os corticosteróides e várias terapêuticas modificadoras da doença (DMARD), como os sais de ouro, a sulfassalazina e os antipalúdicos, entre outros fármacos, podem provocar toxidermias variadas.

Quando a poliartrite é extensa, envolve as pequenas articulações das mãos (IFP e/ou IFD), e está activa por longos períodos de tempo, podem resultar fenómenos de hiperpigmentação cutânea ao nível dessas articulações.

Os nódulos subcutâneos são raros, ocorrendo em menos de 5% dos casos de AIJ, quase exclusivamente nos doentes que evoluem como uma AR do adulto (formas poliarticulares, com factores reumatóides IgM presentes no soro).

O linfedema dos membros e a vasculite cutânea são muito raros.

A atrofia muscular é frequente, particularmente nos casos com poliartrite extensa ou naqueles em que os posicionamentos articulares não são cuidadosos durante as fases de inflamação mais activa. Podem resultar encurtamentos músculo-tendinosos, os quais causam contracturas em flexão, por vezes de difícil resolução sem o recurso a técnicas cirúrgicas.

O envolvimento cardíaco não é muito comum, mas deve ser reconhecido. A pericardite surge em menos de 5% dos casos de AIJ, sendo quase exclusiva da forma sistémica; por estudos ecocardiográficos, cerca de 20% dos doentes com forma sistémica terão evidência de envolvimento pericárdico. O tamponamento cardíaco por este motivo é muito raro, mas encontra-se descrito.

A miocardite e a endocardite são muito mais raras. Esta última, como comorbilidade, pode colocar dificuldade no diagnóstico diferencial com febre reumática.

O envolvimento pleuropulmonar é bastante mais raro. Ocasionalmente, é detectável discreta pleurite em doentes com forma sistémica e sinais sugestivos de pericardite. O envolvimento do parênquima pulmonar, com fibrose intersticial grave, está descrito e pode ser causa de exitus letalis.

O sistema gastrintestinal pode ser envolvido na AIJ, quer pela doença, como acontece nos casos associados a doença inflamatória crónica do intestino (em que a típica diarreia com sangue, muco e pus pode surgir apenas meses ou anos após o início da artrite, só então sendo possível o diagnóstico definitivo), quer pelas terapêuticas utilizadas que podem causar iatrogenia a este nível, (particularmente os AINE que causam desconforto abdominal, anorexia, e mesmo úlcera péptica). Quando a diarreia e sinais de má-absorção estão presentes desde o início, as hipóteses diagnósticas de mucoviscidose e de doença celíaca devem ser excluídas.
A hepatomegália e a esplenomegália são comuns (50-60%) na AIJ sistémica, e muito menos comuns nas restantes formas.

As adenomegálias generalizadas (afectando mais de 3 territórios ganglionares distintos) são também muito frequentes na forma sistémica, detectando-se em cerca de 50% dos casos. Vale a pena chamar a atenção para uma forma particular de adenomegália, a adenite mesentérica; com efeito, esta modalidade pode observar-se também na AIJ sistémica e causar dor e distensão abdominal, levando por vezes à laparotomia com o falso diagnóstico de apendicite aguda. Tal é fácil de compreender se nos lembrarmos de que estas crianças podem evidenciar, também, febre alta e leucocitose com neutrofilia.

O envolvimento renal é relativamente raro, mas a iatrogenia (AINE, sais de ouro, D-penicilamina) pode provocar alterações a este nível. Os sais de ouro e a D-penicilamina, cuja utilização actual é escassa ou nula nestes doentes, foram já incriminados em casos de nefrotoxicidade, por vezes com síndroma nefrótica reversível. Outro tipo de envolvimento renal, raro mas grave, é a amiloidose, que deve ser suspeitada quando, numa criança com AIJ sistémica ou poliarticular, com doença continuamente activa por mais de 5 anos, surge edema dos membros inferiores e proteinúria, acompanhados ou não de hipertensão arterial. A amiloidose é uma complicação cada vez mais rara da AIJ, susceptível de ser tratada se identificada a tempo.

Exames laboratoriais

Sendo o diagnóstico de AIJ clínico, não existem alterações laboratoriais patognomónicas destas doenças que, relembramos, são um grupo heterogéneo de entidades clínicas.

As determinações laboratoriais de base, a realizar em todos os casos de AIJ, incluem o hemograma com plaquetas, as provas de função renal e hepática, a velocidade de sedimentação globular, a proteína C reactiva doseada, os anticorpos antinucleares (ANA), os factores reumatóides IgM séricos (FRIgM: RA teste e reacção de Waaler-Rose); e, nos casos de suspeita de espondilartropatia, a pesquisa de HLA B27.

Os FRIgM séricos estão presentes em cerca de 8% dos casos de AIJ, geralmente formas de início ou evolução poliarticular que, clinicamente, em nada se distinguem da AR do adulto.

Os ANA, positivos em cerca de 15% das crianças saudáveis, não servem, isoladamente, para diagnosticar doença autoimune. A sua positividade mais alta (60-70%) é atingida nas crianças com AIJ monoarticular associada a uveíte crónica.

Proceder a mais exames complementares só será justificado em casos de suspeita de outras alternativas diagnósticas; tal poderá acontecer, mas é raro, pois o diagnóstico de AIJ é muitas vezes relativamente fácil de se admitir.

O exame do líquido sinovial pode ser importante para tentar excluir o diagnóstico de artrite séptica. Contudo, os resultados das culturas são frequentemente negativos (cerca de 40% dos casos), mesmo na presença de artrite séptica; portanto este exame complementar pode confirmar, mas não excluir, essa hipótese diagnóstica.

Exames histopatológicos

Na maior parte dos casos de AIJ não se justifica efectuar uma biópsia da sinovial, método algo cruento (mesmo quando a biópsia é feita com trocarte de Parker & Pearson, por punção, com uma pequena incisão cutânea), pois as alterações detectadas na membrana sinovial são inespecíficas, revelando apenas infiltrado linfo-plasmocitário e espessamento da membrana sinovial compatível com a presença de sinovite crónica.

A única excepção será nos casos de monoartrite, em que a suspeita de artrite infecciosa (nomeadamente artrite tuberculosa), deve ser excluída cuidadosamente antes de se iniciar a terapêutica da AIJ. Do ponto de vista clínico, as duas situações podem ser indistinguíveis e a presença de granulomas tuberculóides com caseificação na membrana sinovial pode ser decisiva para o diagnóstico e tratamento adequados.

Poderão justificar-se outros exames tais como: biópsia da gordura abdominal ou da mucosa intestinal, ou rectal, para pesquisa de substância amilóide, na suspeita de amiloidose secundária, e/ou de doença inflamatória crónica do intestino associada a artropatia.

EXAMES IMAGIOLÓGICOS

A radiologia é um meio auxiliar de diagnóstico largamente acessível e a que se recorre com frequência para auxiliar no diagnóstico das doenças do aparelho locomotor.

A radiografia clássica permite identificar apenas alterações tardias devidas às AIJ, sendo habitualmente normal nas primeiras semanas ou meses de doença. Justifica-se a realização de radiografia das articulações afectadas e contralaterais:

  • Sempre que existe artrite de causa desconhecida e ainda sem diagnóstico bem estabelecido; para avaliação basal do estado da cartilagem (avaliado através da espessura da entrelinha articular);
  • Para verificação da não existência de lesões ósseas inesperadas – como poderia ser o caso de osteoma osteóide ou outro tumor ósseo;
  • Na suspeita de monoartrite; ou
  • Para pesquisa das linhas de osteólise paralelas às cartilagens de crescimento que se podem observar nas leucoses agudas.

Nos estádios precoces de investigação em caso de AIJ, nomeadamente se subsistirem algumas dúvidas relativamente à existência ou não de artrite, o exame complementar mais rentável é a ecografia articular, que pode e deve ser efectuada por quem tenha experiência específica de avaliação articular e de outras estruturas do aparelho locomotor. Tal acontece já em vários serviços de Reumatologia do nosso País. Esta abordagem diagnóstica, incruenta e sem radiações ionizantes, pode auxiliar na confirmação da existência de artrite, de tenossinovite, de quistos sinoviais e suas eventuais roturas (como pode acontecer com os quistos de Baker do escavado popliteu do joelho).

Nos estádios mais avançados da doença, poderá justificar-se a TAC, com as seguintes indicações específicas:

  • Para avaliar adequadamente o risco de compressão neurológica nos casos de subluxação atloido-odontoideia;
  • Para avaliar a gravidade do envolvimento das articulações têmporo-mandibulares;
  • Para diagnosticar uma sacroileíte em adolescente com suspeita de espondilartropatia.

Outro exame imagiológico – a RM – somente não é utilizada com maior frequência devido aos elevados custos e à necessidade de sedar as crianças mais pequenas; com efeito, pode também cumprir, às vezes com vantagem, os mesmos objectivos da ecografia.

Com a evolução da cronicidade das lesões osteoarticulares estabelecem-se, nos casos mais graves, lesões osteoarticulares que devem ser avaliadas adequadamente através da radiografia convencional (anual ou bienal) das articulações no contexto de doença activa.

As alterações radiológicas mais comuns são: a osteopenia justa-articular; a opacificação das partes moles adjacentes à articulação (indicativas de derrame sinovial e/ou espessamento da membrana sinovial e/ou edema das partes moles peri-articulares); o aumento de dimensões das epífises adjacentes às articulações afectadas (como acontece nos casos em que há crescimento assimétrico dos membros); a fusão precoce das cartilagens de crescimento (causadora de braquidactilia); e as erosões ósseas adjacentes às articulações afectadas, mais tardias e documentando a presença de sinovite crónica agressiva.

Nos casos mais graves, com vários meses ou anos de evolução da doença, surgem as deformações das epífises e as destruições graves da cartilagem articular, com redução da entrelinha articular, o que poderá exigir próteses articulares. Tal sucede principalmente nas formas poliarticulares com FR IgM presentes no soro (tipo AR do adulto) e nas formas sistémicas com evolução poliarticular extensa.

O estudo radiológico da coluna cervical, para detecção de artrite das interapofisárias posteriores e de subluxação atloido-odontoideia, exige que sejam feitas radiografias da coluna cervical em projecção de perfil neutro e em hiperflexão. Efectivamente, só com a hiperflexão é possível o diagnóstico da subluxação atloido-odontoideia, a qual se confirma quando a distância entre a face posterior do arco anterior do atlas (C1) e a face anterior da apófise odontoideia do axis (C2) é superior ou igual a 3 mm.

A radiografia clássica da bacia não é eficaz na detecção de sacroileítes até aos 14-15 anos, idade a partir da qual se dá a ossificação das vertentes articulares (até então formadas por cartilagem) destas articulações.

A cintigrafia articular com Tecnécio (99mTc), na opinião do autor, é um método usado excessiva e abusivamente nas crianças com suspeita de AIJ, pois uma contagem articular cuidadosa por quem a saiba e queira fazer, consegue obter informações sobreponíveis sobre a existência ou não de inflamação articular.

Embora se trate dum método sensível, tão sensível que um traumatismo articular recente pode resultar em hipercaptação local, a cintigrafia é muito inespecífica, não ajudando a distinguir as várias formas de artrite e, nomeadamente, não permitindo o diagnóstico diferencial com artrite séptica ou outras formas de artropatia da infância. Pode, contudo, ser útil nos casos de suspeita de osteoma osteóide ou outros tumores do osso, ou para detectar a presença de sacroileíte numa idade em que a radiografia não o permite, pelas razões atrás apontadas.

Critérios de Referenciação das Artrites Idiopáticas Juvenis

A suspeita diagnóstica de AIJ, ou a simples manutenção de um quadro clínico de artrite com uma duração de seis ou mais semanas, deve levar à referenciação do doente a uma consulta de Reumatologia Pediátrica, por parte do pediatra ou do médico de família assistentes, pressupondo que estes tomem também parte na equipa terapêutica destes jovens.

Tratamento

Aspectos gerais

Embora o tratamento das AIJ tenha especificidades que são próprias de cada doença (ver capítulos seguintes), tem princípios comuns que se devem à necessidade de reduzir ao mínimo os efeitos de uma artrite crónica neste grupo etário. Os seus objectivos gerais básicos, a curto e a longo prazo, encontram-se expostos no Quadro 8.

QUADRO 8 – Objectivos do tratamento das AIJ

Iniciais e de Curto Prazo
    • Controlar a inflamação
    • Aliviar a dor articular
    • Preservar a função articular
    • Prevenir as deformações articulares
De Longo Prazo
    • Prevenir a iatrogenia
    • Proporcionar um crescimento e desenvolvimento normais
    • Promover a inserção social e fornecer apoio vocacional adequado
    • Corrigir eventuais deformações articulares que se tenham estabelecido

Para alcançar estes objectivos é indispensável a participação da família, tão coesa e interessada quanto possível, com grande importância no prognóstico, independentemente da gravidade da doença, tal como acontece em qualquer doença crónica juvenil.

A educação para a saúde é nestes casos fundamental; além do reumatologista pediátrico e do pediatra ou do médico de família assistentes, a família deve ser orientada sobre a melhor forma de obter informação adequada, caso a pretenda procurar. Actualmente há dois sítios da internet, com informação cuidadosa e bem preparada para apoiar os doentes com AIJ e seus familiares. São eles o da PRINTO – Pediatric Rheumatology International Trials Organization: www.printo.it/ pediatric-rheumatology e o da ANDAI – Associação Nacional de Doentes com Artrites Infantis e Juvenis: www.andai.sapo.pt.

Tendo o cuidado de não assustar indevidamente os doentes e/ou os seus familiares, estes locais transmitem conhecimentos válidos sobre as doenças reumáticas juvenis e seus tratamentos mais utilizados, tendo sido elaborados por reumatologistas pediatras de toda a Europa, incluindo Portugal, (o da PRINTO) ou só de Portugal (o da ANDAI).

Porque a educação do doente e a partilha de experiências é importante para estes e outros doentes e familiares de doentes com doenças crónicas, formou-se em Portugal, já há pouco mais de 15 anos a ANDAI, associação de doentes acima indicada, que tem desenvolvido as suas actividades com os objectivos de educar os doentes e seus familiares, lhes proporcionar local físico para a troca de experiências e esclarecimento de dúvidas, e de tentar ajudar os doentes junto ao poder político, além de proporcionar divulgação de conhecimentos sobre as doenças reumáticas juvenis à família alargada destas crianças, que inclui necessariamente os seus professores.

Um plano mínimo de exercícios deve ser aconselhado, o qual dependerá da doença em questão e do tipo de envolvimento articular de cada criança. Muitas vezes é também necessário proporcionar a estas crianças um repouso adequado, que pode exigir, nos casos de AIJ poliarticular ou sistémica mais graves, a necessidade de pequeno repouso a meio do dia (uma sesta), tantas vezes muito difícil de concretizar.

Com a duração da doença, torna-se necessário realçar junto dos doentes a necessidade de prevenção de atitudes viciosas das articulações, que podem gerar incapacidade e limitações articulares, não só indesejáveis como susceptíveis de prevenção.

Anti-inflamatórios não esteróides (AINE)

O tratamento farmacológico destina-se a alcançar os objectivos acima enunciados de controlar a inflamação, controlar ou eliminar a dor articular e preservar a função articular, para prevenir as deformações articulares. Claro que embora os anti-inflamatórios não esteróides (AINE) sejam fármacos eficazes, não conseguem alcançar todos estes objectivos.

Os mais utilizados em reumatologia pediátrica e as respectivas doses encontram-se indicados no Quadro 9.

Quadro 9 – Anti-Inflamatórios não esteróides (AINE) mais utilizados no tratamento das AIJ

AINEDOSE

Ibuprofeno

Indometacina

Naproxeno

Diclofenac

Meloxicam

Ácido acetilsalicílico

30-50 mg/Kg/dia

2,5 mg/Kg/dia

15-20 mg/Kg/dia

2,5 mg/Kg/dia

0,125-0,25 mg/Kg/dia

80-120 mg/kg/dia

Os doentes e familiares devem ser informados quanto aos objectivos deste tipo de abordagem terapêutica, que não é curativa e não constituirá mais que uma tentativa de alívio sintomático, na maioria dos doentes. Contudo, é possível que alguns doentes, com formas sistémicas monocíclicas ou com formas oligoarticulares ligeiras, possam ter o seu problema resolvido apenas com esta terapêutica.

Não está provada cientificamente a superioridade de um AINE em relação a outros, sendo que a maior parte destes fármacos começou a ser utilizada sem estudos clínicos em crianças com AIJ.

O ácido acetilsalicílico é o AINE usado há mais tempo, tendo sido durante largos anos o único aprovado nos EUA. Devido aos seus efeitos secundários, sobretudo nas doses anti-inflamatórias indicadas no Quadro 9, e ao facto de serem necessárias doses de 4-4 horas para manter o seu efeito nos casos de doença activa, o mesmo é cada vez menos prescrito com esta indicação.

A indometacina é particularmente eficaz para o tratamento da febre da AIJ sistémica, sendo também uma das melhores opções para as artrites das espondilartropatias, com ou sem envolvimento axial.

O naproxeno é também um anti-inflamatório eficaz, mais para as queixas articulares do que para o tratamento da febre; partilha com a indometacina o facto de necessitar apenas de 2 administrações diárias, o que é altamente conveniente para crianças que necessitam de manter a sua escolaridade normal.

O meloxicam é outro dos fármacos, tão potente como os outros, que tem a grande vantagem de poder ser administrado apenas uma vez por dia.

Neste momento o único AINE que está disponível em Portugal sob forma de suspensão é o ibuprofeno, o que constitui um determinante para a escolha deste eficaz fármaco para o tratamento da dor articular nas crianças mais jovens com AIJ.

O paracetamol, como analgésico, pode ser utilizado com vantagens, no controlo da dor articular e da febre quando, com os AINE não se conseguem alcançar isoladamente estes objectivos durante as 24 horas do dia. Esta opção terapêutica deve ser utilizada apenas em SOS e não como terapêutica de rotina, devendo os doentes e familiares ser instruídos no sentido de serem evitadas mais de 3 doses diárias.

Corticosteróides

Por vezes, quer a febre da forma sistémica, quer as queixas articulares, quer ainda a uveíte crónica, não cedem adequadamente aos AINE, o que leva à utilização de corticosteróides com a finalidade de permitir uma vida de relação normal e a assiduidade escolar que se pretende.

As indicações para a utilização de corticosteróides estão indicadas no Quadro 10, encontrando-se mais limitadas numa época em que os agentes biológicos se revelam muito eficazes na terapêutica das manifestações articulares e extra- articulares da AIJ; nas manifestações extra-articulares da AIJ sistémica serve de exemplo o antagonista do receptor da IL1 ou anakinra e o tocilizumab; e, nas manifestações articulares das AIJ poliarticulares, o etanercept (ver adiante).

O que verdadeiramente limita a utilização dos corticosteróides não é a sua eficácia, que é boa, mas sim os seus efeitos secundários, por vezes tanto ou mais graves que a própria doença que tratam.

Podemos dizer que, quando administrados durante tempo prolongado por via sistémica, não existe dose segura para estes fármacos: corticosteróide seguro, é apenas aquele que o doente não tomou!

Os efeitos secundários dos corticosteróides, variados e graves, são bem conhecidos de todos os médicos e incluem, entre outros: supressão do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal, restrição do crescimento, sinais cushingóides, estrias cutâneas violáceas, osteoporose, hipertensão, a redução da tolerância à glicose e diabetes, redução da defesa contra as infecções, ulceração péptica, cataratas, glaucoma, psicose, miopatia e necrose asséptica do osso.

Parte destes efeitos secundários pode ser muito reduzida ou mesmo prevenida com uma adequada restrição da ingestão de hidratos de carbono.

Relativamente à restrição do crescimento, ela pode ocorrer mesmo com doses muito baixas de prednisolona ou equivalente, (~ 0,4 mg/kg de peso/dia), sendo que existe uma grande variação individual na gravidade da supressão do crescimento e na dose mínima necessária para que tal aconteça; com efeito, a administração em dias alternados diminui muito a importância deste efeito adverso. Infelizmente, esta forma de administração é pouco eficaz para as formas de doença activa e grave em que os corticóides podem ter indicação.

O tratamento do hipocrescimento (anteriormente chamado nanismo “cortisónico”) com hormona de crescimento (GH) só deve ser considerado se a dose de prednisolona utilizada for inferior a 0,35 mg/kg de peso/dia de prednisona ou equivalente, pois com doses desta ordem ou superiores a GH é ineficaz.

O deflazacort é um corticosteróide que parece ter menor efeito cushingóide, menor efeito glico-corticóide, e também menor efeito supressor do crescimento.

Quadro 10 – Indicações para a utilização de corticosteróides em doentes com AIJ

AIJ Sistémica
· Febre resistente aos AINE
· Pericardite
· Poliartrite resistente à restante terapêutica (incluindo AINE + MTX + etanercept ou anakinra)

Formas Poliarticulares
· Poliartrite activa resistente a AINEs + MTX + Etanercept

Formas Oligoarticulares e/ou Espondiloartropatias
· Uveítes, aguda ou crónica, resistente à terapêutica local
· Doença inflamatória crónica do intestino (inflamação intestinal)

Qualquer forma de AIJ, quando 1 a 3 articulações activas são responsáveis pelas queixas ou limitações do doente
· Via intra-articular (sinovectomia química com hexacetonido de triancinolona)*

* só após cuidadosa exclusão de artrite infecciosa, particularmente nos casos de monoartrite

Metotrexato

Actualmente o metotrexato (MTX), devido à sua elevada e rápida eficácia, associada a uma boa tolerância a longo prazo, é considerado o medicamento de escolha gold standard para o tratamento da AIJ resistente aos AINE, qualquer que seja a forma da doença (dose: 0,5-1 mg/kg/semana PO ou SC).

Este fármaco revela-se útil para o tratamento da maior parte dos casos de AIJ, quer para a artrite, cuja remissão pode induzir, quer para algumas complicações da mesma, tal como a uveíte crónica resistente à terapêutica tópica.

Antes do início desta terapêutica deve ser fornecida aos pais dos doentes informação verbal e escrita sobre os potenciais efeitos adversos do fármaco e forma de os prevenir; tal inclui a administração, por via oral, de 10 mg semanais de ácido fólico, em toma única também, com o mínimo de 48 h de intervalo em relação à dose semanal de MTX.

Este tipo de informação é particularmente importante se nos lembrarmos de que este fármaco foi inicialmente produzido para tratamento da leucemia, em doses 20 a 40 vezes superiores às que se utilizam para tratar as AIJ.

Como medidas preventivas da iatrogenia, antes do início do MTX há que garantir que o doente esteja vacinado contra as hepatites A e B e que não sofra de tuberculose.

Habitualmente os resultados terapêuticos são obtidos nos primeiros 3 meses de administração do fármaco, mas ocasionalmente este será eficaz após algum tempo mais. Após 6 meses de administração do MTX nas doses acima indicadas, e após passagem da administração oral para parentérica, se a AIJ mantiver níveis de actividade considerados inaceitáveis, há que considerar outras alternativas terapêuticas, nomeadamente os agentes biológicos (anti-TNFα, abatacept, anakinra ou tocilizumab).

Mesmo na dose de 10 mg/m2/semana, cerca de 2/3 dos doentes tratados melhoram significativamente, o que deixa alguma margem de manobra para aqueles casos em que, devido à toxicidade do fármaco, a dose de 15 mg/m2/semana deve ser reduzida.

Entre as vantagens do MTX encontra-se a alta taxa de respondentes, com doses semanais relativamente baixas, da ordem dos 15 mg/m2 de superfície corporal/semana. Esta dose, actualmente considerada a mais eficaz, pode ser administrada por via oral e, em caso de ineficácia após 3 meses de tratamento, deve ser alterada para a via parentérica (subcutânea ou intramuscular) que conduzirá a melhoria significativa em > 50% dos doentes resistentes à administração por via oral.

Os efeitos adversos mais frequentes são a mucosite (atrofia das mucosas da boca, acompanhada ou não de queilose e aftas orais) e as náuseas e/ou vómitos. Embora se trate de efeitos adversos pouco graves, eles são comuns, atingindo perto de 10% dos doentes. A mucosite é eficazmente prevenida com a suplementação de folatos, e as náuseas poderão exigir terapêutica anti-emética.

A toxicidade hepática, outrora muito temida, é rara em crianças, sendo o seu risco agravado principalmente por ingestão de bebidas alcoólicas a considerar na adolescência, por hepatite vírica, por obesidade, má-nutrição e diabetes mellitus. A biópsia hepática de rotina não deve ser praticada nos doentes com AIJ submetidos a terapia continuada com MTX.

A pneumonite e a fibrose intersticial foram descritas muito raramente em crianças com AIJ a tomar MTX, o que corresponde a um efeito adverso grave. A aceleração da “nodulose” reumatóide, embora muito menos comum que na AR do adulto, foi descrita em doentes com AIJ submetidos a esta terapêutica.

Na hierarquização dos tratamentos das AIJ o MTX deve ser iniciado quando, com os AINE, não se consegue controlar adequadamente a doença, e antes de se considerar a utilização de corticosteróides ou de agentes biológicos. A excepção a esta regra será o tratamento das manifestações extra-articulares da AIJ sistémica, na qual os corticosteróides poderão desempenhar papel importante, enquanto o MTX não actua.

Outras terapêuticas incluindo medicamentos imunossupressores

Para além dos imunossupressores, muitos outros fármacos (designados genericamente pela sigla DMARD ou Disease Modifying Agents in Rheumatic Diseases) têm vindo a ser utilizados com a finalidade de controlar a actividade da doença ou induzir remissão clínica nas AIJ. Alguns serão mencionados apenas para informação histórica, pois pouco se usam actualmente.

Entre estes estão os sais de ouro e a D-penicilamina, praticamente afastados do plano terapêutico dos doentes com AIJ devido à falta de demonstração de eficácia e aos respectivos efeitos adversos na criança, potencialmente graves.

A hidroxicloroquina é também pouco eficaz, particularmente quando usada isoladamente.

A ciclosporina A tem a sua aplicação potencial na AIJ, associada ao MTX (doentes seleccionados por serem resistentes ao MTX). Trata-se de um fármaco com muitos efeitos adversos, que deve ser administrado na dose de 3 a 5 mg/kg/dia, repartida em duas tomas. Está indicada na síndroma de activação macrofágica, complicação rara, mas muito grave, da AIJ sistémica.

A sulfassalazina deve ser utilizada predominantemente em casos de espondilartropatias juvenis com poliartrite periférica, de preferência em associação ao MTX. A dose máxima é 2 g/dia, ou de 50 mg/kg/dia, dependendo do peso da criança, administrada em duas tomas diárias. A sulfassalazina não deve ser administrada nunca a doentes com AIJ sistémica por poder provocar efeitos adversos muito graves (hepatite tóxica e síndroma de activação macrofágica). Também não deve ser administrada a crianças com hipersensibilidade conhecida às sulfamidas ou aos salicilatos, com compromisso da função renal ou hepática, ou que sofram de porfíria ou carência de desidrogenase da glicose-6-fosfato.

A azatioprina pode ser útil no tratamento de poliartrites extensas resistentes ao MTX, podendo ser administrada em associação a este.

O clorambucil, agente alquilante, nas doses de 0,2 mg/kg/dia (1 mês de indução) e de 0,1 mg/kg/dia (como manutenção) é considerado como terapêutica eficaz para a amiloidose secundária à AIJ. O seu uso, contudo, é limitado a esta situação clínica.

A imunoglobulina humana intravenosa em altas doses (IGIV) foi utilizada para tratar as manifestações extra-articulares da AIJ sistémica e a AIJ com poliartrite resistente ao MTX. O seu elevado custo e a inconsistência dos resultados levaram a que a sua utilização actual seja muito escassa.

A leflunomida constitui outra alternativa terapêutica a utilizar perante falência do MTX.

Agentes biológicos

Os agentes biológicos, usados no tratamento das artrites crónicas (e doutras doenças em cuja patogénese a perpetuação de fenómenos inflamatórios desempenha um papel importante), começaram a ser utilizados em reumatologia para tratar a AR do adulto.

Trata-se de produtos desenvolvidos por via biotecnológica de elevada complexidade, a partir de conhecimentos básicos da fisiopatologia da inflamação em geral e, das alterações que levam à sua perpetuação. (ver Glossário Geral)

O único agente biológico actualmente aprovado para o tratamento das AIJ é o etanercept, a proteína de fusão do receptor solúvel p75 do TNFα, que tem efeito terapêutico rápido e potente em doentes com AIJ poliarticular resistente à terapêutica com doses eficazes de MTX. O etanercept é administrado, por via subcutânea, na dose mínima de 0,8 mg/kg uma vez por semana, na dose máxima de 50 mg/semana, devendo ser mantidas as terapêuticas prévias, com MTX e AINE.

O infliximab e o adalimumab, com acção anti-TNFα, evidenciaram eficácia semelhante ao etanercept nos doentes com formas poliarticulares de AIJ, mas não têm a aprovação para uso pediátrico.

Nalguns centros têm sido utilizados inibidores das cinases (designadamente da Janus activated Kinase, ou JAK), os quais têm efeito de bloqueio das citocinas pró-inflamatórias. Como exemplo cita-se o tofacitinib, de que, segundo a literatura, há experiência em adultos.

Com o advento da disponibilidade dos agentes biológicos para tratamento das AIJ, o principal objectivo da terapêutica é obter a remissão clínica da doença e permitir uma vida normal à criança ou adolescente afectados. Claro que este objectivo nem sempre é alcançado. A este propósito aconselha-se a leitura do documento “Consensos para Início e Manutenção da Terapêutica Biológica na AIJ”, do Grupo de Trabalho de Reumatologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Reumatologia.

Para além dos efeitos terapêuticos propriamente ditos, os agentes biológicos, pelo seu elevado custo e efeitos secundários potenciais, vieram gerar uma autêntica revolução (ou, no mínimo, aceleração de um processo já em marcha) na forma de avaliar a evolução da doença em jovens com AIJ.

Esta evolução gerou a necessidade de criar instrumentos objectivos de definição de melhoria na AIJ através de trabalho conjunto da PRINTO – Pediatric Rheumatology International Trials Organization (a nível Europeu) e do PRCSG – Pediatric Rheumatology Collaborative Study Group (a nível do American College of Rheumatology).

Mas, para que esta definição de melhoria pudesse ser aplicável de uma forma generalizada, com incorporação da opinião dos doentes adolescentes, ou dos seus familiares, tornou-se indispensável a utilização de instrumentos de avaliação da capacidade funcional, bem como de escalas visuais analógicas para a dor e para a avaliação global da doença pelos doentes ou pelos pais, uniformes em todos os países do Mundo. Tal veio a ser efectuado ao nível da PRINTO em 28 línguas incluindo a portuguesa.

De acordo com a Sociedade Portuguesa de Reumatologia  foram estabelecidas as seguintes normas relativamente ao início da terapêutica biológica:

    • Definições
        • Doença activa (5 ou mais articulações com artrite activa) e refractária à terapêutica convencional;
        • Definição de falência da terapêutica – doença activa refractária à terapêutica convencional, considerando principal factor da definição a ausência de resposta a uma dose mínima de MTX de 15 mg/m2/semana por via SC ou IM durante 3 a 6 meses.

Nota – No caso de toxicidade ou de contra-indicação impeditivas da utilização do MTX na dose mínima de 15 mg/m2/semana pode considerar-se, por opinião do especialista, a introdução de terapêutica biológica como primeira opção, ou de outro DMARD convencional em monoterapia ou em combinação com o MTX.

    • Monitorização dos doentes sob terapêutica biológica

Os doentes devem ser avaliados com uma frequência mínima trimestral. Da avaliação deve constar um conjunto de variáveis que permitam determinar a eficácia do tratamento:

        1. Avaliação global pelo doente/pais (Escala Visual Analógica de 0-10);
        2. Avaliação global pelo médico (Escala Visual Analógica de 0-10);
        3. Child Health Assessment Questionnaire (CHAQ, utilizado na sua versão portuguesa);
        4. Número de articulações activas (articulações tumefactas, excluindo tumefacção óssea, ou com limitação da mobilidade associada a dor, calor ou ambas);
        5. Número de articulações com limitação da mobilidade;
        6. Velocidade de sedimentação.
    • Critérios para manutenção da terapêutica biológica

Considera-se critério de resposta a melhoria de, pelo menos, 30% em 3 destas 6 variáveis, sem agravamento superior a 30% em mais do que uma das restantes variáveis, em duas avaliações separadas por 3 meses, tendo como base de comparação a avaliação efectuada antes do início do agente biológico.

    • Actuação na ausência de resposta

Se não ocorrer melhoria em 2 avaliações sucessivas, de acordo com opinião do especialista, deve suspender-se o fármaco biológico e considerar outras alternativas terapêuticas (doente não respondente).

Nota – Antes do início da terapêutica biológica deve ser efectuado um rastreio de tuberculose (ver capítulo sobre Tuberculose). A terapêutica biológica pode ser iniciada 1 mês após o início da terapêutica antituberculosa nos casos de tuberculose latente.

    • Contra-indicações absolutas da terapêutica biológica
      • Existência de infecção activa, nomeadamente tuberculose activa.
      • Insuficiência cardíaca.
      • Doenças desmielinizantes.
      • História recente (< 5 anos) de neoplasia.
      • Vacinas vivas: não devem ser administradas durante o tratamento com agentes biológicos; idealmente a sua administração deve ser efectuada até três meses antes do início do agente biológico.
    • Critérios para suspensão temporária ou para adiamento do início da terapêutica biológica
      • Infecção de novo.
      • Cirurgia major

De salientar que, pelo seu elevado preço e potenciais efeitos adversos, os agentes biológicos, embora muito eficazes, devem ser iniciados com precaução em doentes com AIJ; a sua prescrição deverá ser da responsabilidade de reumatologista pediátrico com experiência no tratamento da AIJ, seguindo os consensos do Grupo de Trabalho de Reumatologia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Reumatologia, acima indicados. Os doentes devem ser seguidos cuidadosamente, pressupondo garantia da continuidade da prescrição e da adesão estrita ao plano de avaliação continuada.

Transplante autólogo de medula óssea

O transplante autólogo de medula óssea foi iniciado na era “pré-agentes biológicos”, como método experimental (agressivo, caro e com muitos efeitos adversos) de tratar doenças autoimunes graves refractárias às terapêuticas convencionais.

De acordo com uma revisão recente dos casos de AIJ tratados desta forma no espaço europeu por Kleer IM et al, concluiu-se que, um ano após a intervenção, em 53% (18/34) dos doentes verificou-se remissão, e em 21% (7/34), resistência à terapêutica. Importa referir que os resultados, aplicando esta abordagem terapêutica, não são particularmente brilhantes, atendendo à morbilidade e aos custos inerentes à referida intervenção. Por outro lado, a mortalidade [de 15% (5/34)] aos 12 meses levou a refrear muito o entusiasmo relativo à mesma.

Agentes físicos e terapêutica ocupacional

A terapêutica com agentes físicos e a terapêutica ocupacional têm por objectivos contribuir para reduzir a dor articular, manter ou recuperar a função articular e prevenir as deformações articulares e a incapacidade daí resultante.

Deve sempre ter-se em consideração que a criança deve ser integrada no seu ambiente (familiar, social, escolar) motivo pelo qual (a não ser em casos excepcionalmente graves e pontuais) estas técnicas devem ser ensinadas ao doente e/ou aos pais de forma a poderem ser efectuadas no domicílio, sem que contribuam para aumentar o absentismo escolar.

Um período de descanso à tarde, após o regresso da escola, pode ser útil. Contudo, a maior parte das crianças limitará a sua actividade física, de acordo com a incapacidade. Exercícios físicos regulares, tais como andar de triciclo ou de bicicleta, devem ser encorajados.

Um plano de exercícios no domicílio, adequado ao tipo de compromisso articular da criança, deve ser ensinado aos pais. A este propósito, a ANDAI, a Associação Nacional de Doentes com Artrites Infantis e Juvenis, tem um guia para pais que é distribuído gratuitamente aos seus sócios, incluindo um plano geral de exercícios que podem ser seleccionados.

A natação, ou a hidrocinesiterapia (dependendo da gravidade da patologia articular) são actividades a privilegiar.

Por vezes, pode ser útil a aplicação de calor ou de frio, às articulações inflamadas; contudo, estas técnicas devem interferir o menos possível com a rotina diária da criança, por vezes sobrecarregada.

A utilização de talas para prevenir ou corrigir deformações articulares, nomeadamente ao nível das mãos, punhos e joelhos (sobretudo quando a criança surge já com flexo desta articulação) pode ser muito útil. É bom sublinhar que estas talas devem ter um aspecto apelativo e ser confortáveis.

Terapêutica cirúrgica

A cirurgia ortopédica pode desempenhar um papel importante nos estádios intermédios das AIJ, através da correcção das deformações e contracturas articulares, como os flexos dos joelhos, por vezes irredutíveis doutra forma.

A sinovectomia cirúrgica é cada vez menos utilizada, sendo muitas vezes vantajosamente substituída pela sinovectomia artroscópica ou pela sinovectomia química com hexacetonido de triancinolona. (Quadro 10)

No adolescente ou adulto jovem, em que pode haver lesões articulares limitativas ao nível dos joelhos, das ancas, dos ombros ou dos cotovelos, por exemplo, as próteses articulares constituem uma solução que pode contribuir para melhorar significativamente a qualidade de vida e a integração social e profissional dos doentes.

A cirurgia oftalmológica, ao resolver os problemas devidos às principais complicações da uveíte crónica – ceratite em banda, cataratas e glaucoma – pode ser fundamental na preservação ou recuperação da acuidade visual nas crianças ou adolescentes com AIJ oligoarticular. (Partes XXV e XXVI)

GLOSSÁRIO

Oligoartrite “estendida” > Nos primeiros 6 meses de doença há apenas 1 a 4 articulações atingidas e, posteriormente, passa a haver compromisso de 5 ou mais articulações.

Poliartrite extensa > A que atinge um número elevado de articulações.

BIBLIOGRAFIA

Anexada ao capítulo 233

INTRODUÇÃO À CLÍNICA DAS DOENÇAS REUMÁTICAS JUVENIS

Importância do problema e sistematização

As doenças reumáticas crónicas juvenis são constituídas por um amplo grupo de patologias da infância e juventude que têm a característica comum de envolverem estruturas do aparelho locomotor em particular, e do tecido conjuntivo em geral.

Por este motivo, estas doenças podem afectar, não só as estruturas específicas do aparelho locomotor (membrana sinovial articular, cartilagem articular, tendões, músculos, ossos), mas também outros órgãos e sistemas.

Surgindo numa fase da vida particular, na qual a experimentação física individual desempenha um papel tão importante no crescimento e maturação da criança e/ou do adolescente, estas doenças podem ter profundas repercussões sobre o desenvolvimento normal dos jovens por elas afectadas. Pelas suas repercussões sobre o olho, constituem também uma causa de perda de visão neste grupo etário. As manifestações clínicas iniciais dependerão sempre da doença em presença, podendo, por isso, ser muito diversas.

No Quadro 1 indica-se uma classificação possível das doenças reumáticas crónicas juvenis. Por ausência de espaço para englobar todas estas situações clínicas, algumas das quais serão motivo doutros capítulos deste livro, iremos abordar sucessivamente a classificação e evolução de conceitos das artrites idiopáticas juvenis (AIJ), as várias doenças englobadas sob a designação comum de AIJ, as síndromas auto-inflamatórias, as doenças difusas do tecido conjuntivo juvenis mais frequentes (incluindo as vasculites necrosantes juvenis) e a febre reumática.

QUADRO 1 – Classificação das Doenças Reumáticas Juvenis mais comuns

1. Artrites Idiopáticas Juvenis

*CIAS = cold induced autoinflammatory syndrome

    • Sistémica
    • Oligoarticular persistente
    • Oligoarticular estendida
    • Poliarticular com factores reumatóides (FR) IgM no soro
    • Poliarticular sem factores reumatóides (FR) IgM no soro
    • Artrite psoriásica
    • Artrite associada a entesite (alta probabilidade de espondilartropatia juvenil)
    • Outras formas (inclassificáveis; classificáveis em mais de um subgrupo)
2. Síndromas auto-inflamatórias (Ver adiante capítulo próprio)
    • Hereditárias
      • Relacionadas com CIAS*; Síndroma de Muckle Wells; Síndroma da urticária familiar ao frio; Síndroma de CINCA
      • Não relacionadas com CIAS: PAPA, Febre mediterrânica familiar; HIDS (síndroma de hiper IgD); TRAPS; Doença de Crohn familiar; Síndroma de Blau
    • Não Hereditárias
      • PFAPA; Osteomielite multifocal crónica recorrente; AIJ sistémica – alguns casos de forma sistémica persistente ou recorrente
3. Espondilatropatias juvenis
    • Espondilite anquilosante juvenil
    • Artrites reactivas/Síndroma de Reiter
    • Artrite psoriásica
    • Artrites associadas à doença inflamatória crónica do intestino
    • Espondilartropatias indiferenciadas
4. Febre Reumática/Reumatismo Pós-estreptocócico
5. Conectivites/Vasculites Juvenis (Doenças difusas do tecido conjuntivo)
    • Lúpus eritematoso sistémico
    • Doença mista do tecido conjuntivo
    • Síndroma anti-fosfolípidos
    • Esclerodermia
    • Dermatomiosite/Polimiosite
    • Vasculites necrosantes
      • Púrpura de Schonlein-Henoch
      • Poliarterite nodosa
      • Doença de Kawasaki
      • Poliarterite microscópica
      • Granulomatose de Wegener
      • Doença de Takayasu
      • Granulomatose de Churg-Strauss
6. Síndromas associadas a imunodeficiência
7. Dores “de crescimento”
8. Sinovite transitória da anca
9. Manifestações osteoarticulares de doenças não reumáticas da infância
10. Artrites infecciosas/Osteomielite
11. Osteocondroses idiopáticas juvenis
12. Epifisiólise proximal do fémur
13. Doenças hereditárias do tecido conjuntivo
14. Síndroma de hipermobilidade articular benigna

BIBLIOGRAFIA

Anexada ao capítulo 233.

CARDIOMIOPATIAS

Definição e importância do problema

O termo Cardiomiopatias designa um grupo heterogéneo de doenças do miocárdio associadas a disfunção, mecânica ou eléctrica, cursando habitualmente com hipertrofia ou dilatação ventricular, na ausência de anomalias estruturais anatómicas.

De acordo com a classificação mais recente, dividem-se em dois grupos:

  1. cardiomiopatias primárias (com envolvimento confinado ao miocárdio, de causa genética, adquirida ou mista); e
  2. cardiomiopatias (resultantes de doença sistémica com envolvimento cardíaco) (Quadro 1).

QUADRO 1 – Classificação das cardiomiopatias

Cardiomiopatias primáriasGenéticasCardiomiopatia hipertrófica, displasia arritmogénica do ventrículo direito, não compactação do ventrículo esquerdo, doenças do tecido de condução, doenças dos canais celulares (canalopatias)
AdquiridasMiocardite
MistasCardiomiopatia dilatada, cardiomiopatia restritiva não hipertrófica
Cardiomiopatias secundáriasInfiltrativas, doenças metabólicas de armazenamento, toxicidade, endócrinas, neuromusculares, neurofaciais, carências nutricionais, doenças autoimunes, desequilíbrios hidroelectrolíticos, secundárias a neoplasias

De acordo com uma classificação funcional, as cardiomiopatias incluem as formas hipertrófica, dilatada e restritiva. Considera-se ainda um quarto grupo não classificável de cardiomiopatias, susceptível de enquadramento nos três grupos anteriores. De acordo com o Registo Nacional de Cardiomiopatias dos Estados Unidos da América, a forma dilatada é a mais frequente (58%), seguida da hipertrófica (25%). As formas restritiva e as não classificadas representam 3% e 4%, respetivamente.

A incidência anual é de 1,1 a 1,2 por 100.000 indivíduos em idade pediátrica; os internamentos por cardiomiopatia não ultrapassam 1% do total de internamentos por doença cardíaca em crianças e jovens. Tratando-se duma doença grave, cabe salientar que cerca de 40% das crianças atingidas morrem ou necessitam de transplante cardíaco nos primeiros dois anos após o início dos sintomas.

A apresentação é mais frequente no primeiro ano de vida, registando-se um segundo pico durante a adolescência. Os estudos genéticos confirmam etiopatogénese hereditária numa percentagem elevada de casos.

Seguidamente procede-se a breve descrição das miocardiopatias mais comuns e clinicamente mais relevantes.

1. Cardiomiopatia dilatada

A cardiomiopatia dilatada é uma doença do músculo cardíaco caracterizada por dilatação ventricular com diminuição da contractilidade (primariamente disfunção sistólica).

Aspectos epidemiológicos

A incidência anual é cerca de 0,58 a 0,73 por 100.000 crianças e jovens. Existem múltiplas causas identificadas, sendo a causa vírica responsável por 9% a 13% dos casos.

As doenças neuromusculares, em particular a distrofia muscular de Duchenne, representam cerca de 12% dos casos. Os casos familiares constituem cerca de 6% do total.

Outras causas incluem alterações isquémicas (anomalias das coronárias, disritmias prolongadas), doenças hereditárias do metabolismo (mucopolissacaridoses, doenças de armazenamento de glicogénio/glicogenoses, esfingolipidoses), lesões por tóxicos (destacando-se os antineoplásicos), alterações endócrinas (por exemplo da tiróide) ou carências nutricionais (beribéri, kwashiorkor).

Em cerca de 65% a 70% dos casos considerados idiopáticos foram demonstrados defeitos genéticos e antecedentes de miocardite vírica por estudo PCR (Polymerase Chain Reaction).

Manifestações clínicas

A cardiomiopatia dilatada apresenta-se como insuficiência cardíaca congestiva que, nos recém-nascidos e lactentes, se manifesta por cansaço durante a alimentação e má progressão estaturo-ponderal.

O exame objectivo revela polipneia, má perfusão periférica, hepatomegália e edema. A auscultação cardíaca revela taquicardia, diminuição da intensidade dos ruídos cardíacos e ritmo de galope. Notam-se sinais de congestão venosa e diminuição do murmúrio vesicular nas bases pulmonares. Os casos mais graves apresentam-se com falência circulatória por choque cardiogénico.

Exames complementares

No electrocardiograma observam-se sinais de taquicardia sinusal, alterações da repolarização, e hipertrofia ventricular. A presença de ondas Q profundas em derivações esquerdas deve alertar para a possibilidade de anomalia coronária. A radiografia do tórax revela cardiomegália e congestão venosa pulmonar.

O ecocardiograma permite identificar a dilatação ventricular, detectar anomalias, avaliar a função valvular e a presença de derrame pericárdico ou de trombos.

Os métodos de diagnóstico etiológico devem incluir biópsia endomiocárdica, doseamento de enzimas musculares, estudos metabólicos, genéticos, víricos por PCR e rastreio familiar.

Tratamento e prognóstico

O tratamento é sintomático. Nos casos ligeiros, o tratamento consiste em facilitar o débito sistémico através da vasodilatação periférica com inibidores da enzima de conversão da angiotensina (captopril e outros) e beta-bloqueantes (propranolol e, mais recentemente, carvedilol).

O agravamento de sintomas requer uma actuação mais agressiva que inclui diuréticos e inotrópicos (digoxina, perfusão endovenosa de dopa e/ou dobutamina, milrinona). As arritmias devem ser controladas com medicação apropriada. Nos casos mais graves pode ser necessário recorrer a meios de suporte circulatório mecânico externo transitoriamente, ou a transplantação cardíaca.

O prognóstico é reservado: com os recursos atualmente disponíveis, cerca de um terço das crianças morre ou necessita de transplante cardíaco.

2. Cardiomiopatia hipertrófica

A cardiomiopatia hipertrófica consiste em hipertrofia ventricular assimétrica com função sistólica habitualmente conservada e disfunção diastólica.

Aspetos epidemiológicos

A incidência anual é cerca de 0,32 a 0,47 casos por 100.000 crianças e jovens. A cardiomiopatia hipertrófica pode ser primária ou secundária. A forma primária resulta de anomalias genéticas das proteínas contrácteis do sarcómero cardíaco.

Existem cerca de 200 anomalias identificadas na base de dados das mutações da Universidade de Harvard (USA) em cerca de 10 genes das proteínas do sarcómero. Destacam-se como mais frequentes e responsáveis pela maioria dos casos, as anomalias localizadas na cadeia pesada da miosina, na proteína C de ligação à miosina, e na troponina T.

Apesar de estar provada cientificamente a importância da genética para a clínica, não estão ainda generalizados os métodos de diagnóstico genético nesta área.

A cardiomiopatia hipertrófica pode ser secundária a múltiplas doenças ou síndromas de que se destacam: embriofetopatia diabética, síndroma de Noonan, défice de L-carnitina, doenças de armazenamento de glicogénio e da cadeia respiratória.

Manifestações clínicas

Do ponto de vista clínico, as cardiomiopatias hipertróficas são subdivididas em obstrutivas (gradiente de saída ventricular > 30 mmHg) e não obstrutivas. A presença e o grau de obstrução constituem um factor com influência no quadro clínico e no prognóstico.

As formas não obstrutivas são geralmente assintomáticas. Os sintomas na forma obstrutiva (diminuição da tolerância ao esforço, angina, dispneia, palpitações e síncope) resultam da combinação da disfunção diastólica e do obstáculo dinâmico. As manifestações clínicas da cardiomiopatia hipertrófica primária surgem habitualmente na adolescência (12-18 anos) sendo esta doença a causa mais frequente de morte súbita (por taquicardia ventricular e/ou isquémia aguda) em adolescentes.

Exames complementares

O electrocardiograma apresenta alterações como sinais de hipertrofia ventricular esquerda ou biventricular, alterações inespecíficas da repolarização ventricular e, mais raramente, prolongamento do intervalo QT e ondas Q anómalas.

A radiografia do tórax revela sinais de cardiomegália. O ecocardiograma permite identificar sinais de hipertrofia ventricular assimétrica (mais acentuada no septo interventricular), avaliar o grau de obstáculo da saída ventricular, a função miocárdica, e o grau de envolvimento da válvula mitral.

Os doentes devem ser seguidos com electrocardiograma (incluindo registos de Holter) e ecocardiogramas seriados.

Tratamento e prognóstico

A terapêutica está indicada nos casos sintomáticos ou quando existem factores de risco de morte súbita, tais como história familiar de morte súbita, evidência de taquicardia ventricular persistente e identificação de mutação de alto risco.

A terapêutica médica inclui o evitamento de esforços intensos e a utilização de beta-bloqueantes (com a finalidade de aliviar o obstáculo de saída do ventrículo esquerdo e melhorar a dinâmica diastólica ventricular esquerda).

A eficácia da utilização profiláctica de beta-bloqueantes em doentes assintomáticos, com a finalidade de alterar a progressão da doença, não está demonstrada. Nos casos de défice de L-carnitina, está indicada a administração oral deste nutriente. As indicações para colocação de dispositivos para cardioversão – desfibrilhadores implantáveis em crianças são controversas; justificam-se apenas como prevenção secundária nos doentes submetidos a ressuscitação após episódios de “morte aparente”, e como prevenção primária nos casos comportando múltiplos factores de risco de morte súbita.

Em casos refractários, está indicada a remoção cirúrgica do obstáculo subaórtico por miectomia. O transplante cardíaco é uma opção que deve ser cuidadosamente avaliada depois de excluídas causas extracardíacas da doença. A terapia génica dá, neste momento, os primeiros passos de um futuro promissor.

O prognóstico é variável devido à heterogeneidade genética e à variabilidade das causas secundárias. Estima-se, para a totalidade da população (crianças e adultos), um risco de morte súbita de 1% por ano. Nos doentes sintomáticos com menos de um ano de idade, o prognóstico é particularmente adverso e a causa de morte é habitualmente insuficiência cardíaca (90%).

3. Cardiomiopatia restritiva

As cardiomiopatias restritivas caracterizam-se por disfunção ventricular diastólica com função sistólica preservada, ausência de hipertrofia ou dilatação ventricular, e dilatação biauricular (primeiramente disfunção diastólica, muitas vezes combinada com disfunção sistólica).

Aspectos epidemiológicos

Constituem 2,5 a 5% dos casos de cardiomiopatia. Na maioria dos casos, não é possível identificar a causa (formas idiopáticas). Alguns casos são secundários a doenças infiltrativas miocárdicas, fibrose endomiocárdica ou miopatias familiares.

Manifestações clínicas

A restrição da drenagem venosa pulmonar (para a aurícula esquerda) e sistémica (para a aurícula direita) resulta em aumento das pressões de enchimento ventriculares (telediastólica) e hipertensão pulmonar.

A maioria dos doentes apresenta sinais discretos de compromisso cardíaco, sendo a doença detectada em exames “de rotina”. Alguns doentes referem intolerância e dispneia com o esforço e síncope. As manifestações da doença surgem habitualmente entre os cinco e oito anos de idade. Há uma incidência elevada de fenómenos tromboembólicos sistémicos e de perturbações do ritmo cardíaco (taquidisritmias e bloqueio auriculoventricular completo).

Exames complementares

O electrocardiograma apresenta sinais de dilatação biauricular. Na radiografia do tórax destacam-se sinais de cardiomegália e congestão pulmonar. A ecocardiografia mostra sinais de dilatação auricular sem alterações ventriculares evidentes. O cateterismo cardíaco revela pressões telediastólicas elevadas, hipertensão pulmonar e aumento da resistência vascular pulmonar.

Tratamento e prognóstico

A terapêutica médica anticongestiva (vasodilatadores sistémicos, diuréticos, inotrópicos) não altera o curso desta doença, considerando-se que o único tratamento adequado é o transplante cardíaco. A utilização de vasodilatadores pulmonares antes do transplante pode contribuir para melhorar o pós-operatório destes doentes.

O prognóstico dos doentes não transplantados é reservado, com sobrevida de 20 a 30% aos 10 anos. O tempo médio entre o diagnóstico e o transplante é ~ 2 a 3 anos. Como a história natural da doença é heterogénea, é difícil estabelecer momento ideal para o transplante cardíaco. No entanto, a descompensação hemodinâmica condiciona negativamente o prognóstico da cirurgia.

4. Outras cardiomiopatias

Ventrículo esquerdo não compactado

O ventrículo esquerdo não compactado é uma cardiomiopatia secundária a provável paragem na morfogénese endomiocárdica fetal, a qual resulta em múltiplas trabeculações ventriculares proeminentes e recessos intraventriculares profundos.

Aspectos epidemiológicos

Embora estejam descritas apenas algumas centenas de casos em idade pediátrica, publicações recentes sugerem que a doença corresponde a cerca de 10% do total das cardiomiopatias.

Regista-se uma incidência familiar de 20 a 50% e uma associação a malformações cardíacas simples, como comunicações interventriculares em cerca de 40% dos casos. Estudos referentes a populações adultas referem coexistência de doenças neuromusculares em 80% dos casos.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica é variável. Cerca de dois terços dos doentes apresentam insuficiência cardíaca no primeiro ano de vida; nos restantes, a doença é detectada em ecocardiogramas efectuados por sopro cardíaco ou por alterações electrocardiográficas minor. Estão descritos casos de embolias e arritmias ventriculares.

Exames complementares

As alterações electrocardiográficas, presentes em 75% dos doentes, consistem em hipertrofia ventricular, alterações da repolarização, vias de condução acessórias e extrassistolia.

O ecocardiograma identifica a anatomia característica, que inclui o aspecto “espongiforme” do ventrículo esquerdo, habitualmente no septo e parede posterior. A função ventricular sistólica está geralmente afectada. Os critérios ecocardiográficos quantitativos, propostos para doentes adultos, não são consensuais para a população pediátrica.

Tratamento e prognóstico

O tratamento é sintomático. A transplantação cardíaca é a única opção nos casos refractários. A evolução da doença é variável, registando-se melhoria da função ventricular nalguns casos. A mortalidade é ~ 25% aos 10 anos de seguimento.

Displasia arritmogénica do ventrículo direito

A displasia arritmogénica do ventrículo direito é uma cardiomiopatia geneticamente determinada que consiste na substituição do miocárdio do ventrículo direito por tecido fibroso e adiposo.

Aspectos epidemiológicos e genéticos

Verifica-se em geral hereditariedade autossómica dominante com penetrância variável. Descrita há três décadas, tem sido progressivamente reconhecida como causa importante de morte súbita em adultos.

Manifestações clínicas

As arritmias ventriculares são a forma predominante de apresentação da doença, habitualmente na idade adulta. A doença é rara em crianças, estando, no entanto, descrita em adolescentes. Os casos avançados apresentam-se com insuficiência cardíaca direita.

Exames complementares

O diagnóstico resulta da combinação de dados relativos à história familiar, alterações electrocardiográficas (ondas T invertidas nas derivações pré-cordiais direitas, taquicardia ventricular com bloqueio de ramo esquerdo, potenciais tardios, entre outros), detecção de arritmias (em registos de Holter ou provas de esforço) e alterações macro ou microscópicas do ventrículo direito. A RM tem sido recentemente sugerida como meio de diagnóstico morfológico não invasivo ideal.

Tratamento e prognóstico

O tratamento médico consiste na utilização de antiarrítmicos, estando a utilização de cardioversores-desfibrilhadores implantáveis reservada para casos refractários ou com história de síncope.

GLOSSÁRIO

Gradiente de saída ventricular > Gradiente de saída é o valor da diferença de pressão entre a cavidade ventricular, neste caso a esquerda e a aorta, avaliada por ecocardiografia ou invasivamente por cateterismo cardíaco.

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PERICARDITE

Definição, etiopatogénese e importância do problema

O pericárdio engloba duas membranas (visceral e parietal), separadas por uma pequena quantidade de fluido. A pericardite (inflamação do pericárdio) pode ser aguda ou crónica (constritiva).

A pericardite aguda é geralmente devida a causas infecciosas e coexiste frequentemente com miocardite (miopericardite). Outras causas (menos frequentes) incluem doenças do colagénio, cirurgia cardíaca, drogas, traumatismos e insuficiência renal crónica.

Cerca de um terço dos casos de pericardite infecciosa é de etiologia vírica, nomeadamente por vírus Cocksackie e Adenovírus. A infecção por vírus da imunodeficiência humana provoca pericardite em 25% dos doentes afectados. As pericardites bacterianas ou purulentas resultam de infecções por Staphylococcus aureus e Haemophilus influenza. Em 10% dos casos de febre reumática pode haver envolvimento pericárdio.

No âmbito das doenças de colagénio, destacam-se a artrite reumatóide juvenil e o lúpus eritematoso sistémico, as quais podem cursar com pericardite em 50% dos casos.

A pericardite pós-cirurgia cardíaca (síndroma pós-pericardiotomia) é relativamente frequente e surge, em geral, quatro a cinco dias após a intervenção. A doença de Kawasaki provoca pericardite discreta em cerca de um terço dos casos. Fármacos como anticoagulantes, hidralazina e procainamida podem também provocar a doença. A frequência da pericardite na insuficiência renal crónica tem vindo a diminuir com a utilização generalizada da diálise. O hipotiroidismo e a radioterapia podem ser também causa.

A pericardite constritiva, cuja causa mais importante continua a ser a tuberculose, resulta de um espessamento do pericárdio; com efeito, a perda de elasticidade restringe o enchimento diastólico cardíaco.

Manifestações clínicas

A pericardite vírica existe num pródromo de doença respiratória ou gastrenterológica autolimitada, seguindo-se precordialgia, habitualmente acompanhada de febre. A precordialgia é de início súbito, agravando-se com a tosse, inspiração profunda e os movimentos, e aliviando com a flexão anterior do tronco.

Na auscultação cardíaca destaca-se apagamento dos tons cardíacos e a presença de sinais de atrito pericárdico. A intensidade do choque da ponta está diminuída. Nos casos associados a tamponamento cardíaco (por derrame pericárdico significativo), verifica-se a presença de pulso paradoxal (resultante do exagero da variação fisiológica da amplitude dos pulsos: maior na expiração e menor na inspiração).

Nos casos de maior gravidade, incluindo as pericardites constritivas, os doentes apresentam sinais e sintomas de congestão a montante (edema, hepatomegália, distensão venosa jugular) e baixo débito cardíaco. A tríade de Beck, patognomónica de tamponamento cardíaco, consiste em ingurgitamento jugular, hipotensão e apagamento dos tons cardíacos.

O diagnóstico de pericardite é feito pela existência de 2 ou mais dos seguintes critérios:

  1. Dor torácica típica;
  2. Atrito pericárdico na auscultação cardíaca;
  3. Alterações características do ECG;
  4. Presença de derrame pericárdico no ecocardiograma.

Exames complementares

Como se referiu relativamente às miocardites, existem várias técnicas laboratoriais de identificação vírica (no sangue, secreções ou líquido pericárdico).

A etiologia tuberculosa (mais frequente nos imunodeprimidos) deve ser cuidadosamente investigada. Nos casos em que seja necessária a drenagem cirúrgica, deve ser feito estudo por anatomia patológica.

O electrocardiograma apresenta alterações da repolarização: elevação do segmento ST, com ondas T altas e pontiagudas, em várias derivações; aplanamento ou inversão da onda T localizada nas derivações direitas ou generalizada. (Figura 1 e 2) 

FIGURA 1. Alterações electrocardiográficas típicas na pericardite

A radiografia do tórax, nos casos agudos, não apresenta alterações. Nos casos com derrame pericárdico significativo, existem sinais de cardiomegália. (Figura 3)

FIGURA 2. Alterações electrocardiográficas no derrame pericárdico

FIGURA 3. Cardiomegália (por pericardite de etiologia tuberculosa) evidenciada em radiografia do tórax

O ecocardiograma é importante para a detecção e quantificação dos derrames pericárdicos e para avaliação das suas consequências hemodinâmicas. Outros meios complementares de diagnóstico como a RM e a TAC raramente têm interesse. O cateterismo cardíaco não tem indicação na avaliação da pericardite.

São indicação para observação em Cardiologia Pediátrica:

  • Clínica sugestiva, ECG (alterações de repolarização) ou elevação de enzimas cardíacas;
  • Suspeita de tamponamento cardíaco;
  • Suspeita de pericardite recorrente ou patologia predisponente (por ex. doenças inflamatórias).

Tratamento e prognóstico

O tratamento médico das pericardites consiste no alívio sintomático e na utilização de anti-inflamatórios não esteróides. Em casos refractários, utiliza-se a colchicina. A corticoterapia, muito eficaz na resolução dos processos inflamatórios pericárdicos, deve ser utilizada com precaução nos casos de etiologia infecciosa. Os casos de etiologia tuberculosa devem merecer tratamento com fármacos anti-BK. A drenagem pericárdica (pericardiocentese) tem indicação em situações de tamponamento e nas pericardites purulentas. Ocasionalmente poderá ser necessário criar uma “janela pericárdica” para facilitar a drenagem, em especial nas pericardites constritivas.

O prognóstico é mais reservado nas pericardites purulentas (mortalidade ~20%) e nas pericardites tuberculosas constritivas (mortalidade ~10%). Nos outros casos, o prognóstico é geralmente favorável.

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MIOCARDITE

Definição, etiopatogénese e importância do problema

A miocardite é uma doença inflamatória do músculo cardíaco caracterizada por infiltrado leucocitário associado a degenerescência e/ou necrose não isquémica dos miócitos.

Sendo a miocardite uma causa importante de morte súbita, regista-se uma diferença significativa entre a sua incidência em estudos clínicos (0,01 a 0,3%) e necrópsicos (1 a 4%).

Sob o ponto de vista etiológico, as miocardites consideram-se de causa infecciosa (representam mais de 2/3 dos casos), autoimune, tóxica, e de causa desconhecida. Os agentes infecciosos incluem bactérias, riquétsias, parasitas, fungos e vírus Cocksackie B, adenovírus, citomegalovírus e herpes vírus. Nas causas autoimunes incluem-se febre reumática, lúpus e artrite reumatóide, entre outras. Alguns fármacos (como penicilina, adriamicina e anfotericina B) e substâncias tóxicas (como álcool e metais pesados), podem ser responsáveis por miocardite. Descrevem-se ainda miocardites secundárias no contexto de esclerodermia e de sarcoidose.

Manifestações clínicas

A apresentação clínica da miocardite tem um espectro variável, secundário ao grau de lesão miocárdica e resposta autoimune subsequente. A doença inicia-se por um pródromo “simile gripal” incaracterístico que antecede os sintomas e sinais por um período de dias a semanas.

Nos casos mais ligeiros, a sintomatologia inclui principalmente precordialgia, a qual se intensifica com o esforço físico; nos casos mais graves, a apresentação clínica inclui queixas gástricas (secundárias a baixo débito intestinal) e cansaço fácil ou de instalação súbita, associados a outros sintomas e sinais de insuficiência cardíaca (má perfusão, pulso alternante, polipneia, edema, taquicardia, ritmo de galope ou choque cardiogénico). A miocardite pode apresentar-se ainda como arritmia ou morte súbita.

Exames complementares

Existem várias técnicas laboratoriais de identificação vírica (no sangue, secreções ou músculo cardíaco) sendo o diagnóstico definitivo de miocardite obtido por análise histopatológica de fragmentos miocárdicos. Se a biópsia for feita nos dois meses após o início do quadro clínico, a percentagem de doentes com alterações histológicas que cumprem os chamados critérios de Dallas pode atingir 40%.

A radiografia do tórax mostra sinais de congestão pulmonar e cardiomegália (que pode estar ausente nos casos de evolução aguda). O electrocardiograma está alterado em quase todos os doentes; os achados mais típicos são alterações da repolarização, baixa voltagem dos complexos QRS, podendo estar presentes hipertrofia ventricular, extrassistolia ventricular, arritmias, bloqueios de condução auriculoventriculares e padrões sugestivos de enfarte.

O ecocardiograma mostra sinais de dilatação ventricular esquerda com má função global ou alterações da mobilidade segmentar, insuficiência mitral e, por vezes, derrame pericárdico.

A ressonância magnética (RM) tem-se revelado recentemente um importante instrumento diagnóstico não invasivo, com as sequências de realce tardio a mostrarem áreas de inflamação miocárdica. A sensibilidade e especificidade da RM para o diagnóstico da miocardite são 100% e 90%, respectivamente.

Tratamento e prognóstico

O tratamento sintomático consiste em suporte inotrópico endovenoso, redução da pós-carga (com vasodilatadores), diuréticos e anticoagulação. Recentemente, têm sido propostas várias modalidades que interferindo nos mecanismos fisiopatológicos da doença, em particular na modulação da resposta autoimunitária do doente. Entre estas abordagens, que continuam controversas, destacam-se a administração endovenosa de gamaglobulina na fase aguda, na dose de 2 g/kg, e a terapêutica imunossupressora na fase aguda da doença (corticóides, ciclosporina). De salientar que se considera prudente a não utilização desta última na fase aguda da doença, por risco de agravamento da disseminação vírica.

A utilidade da terapêutica imunossupressora, passada a fase aguda, é apoiada em vários ensaios clínicos não controlados. A terapêutica específica antivírica tem sido aplicada nalguns centros (aciclovir para o VEB e pleconaril para os enterovírus). O desenvolvimento de uma vacina anti-enterovírus e adenovírus poderá contribuir decisivamente para o combate à miocardite vírica.

A sobrevida dos doentes com miocardite, hospitalizados, pode atingir 89%, graças à utilização de dispositivos externos de assistência ventricular, ou transplante. A idade mais jovem e a gravidade do quadro clínico são factores de mau prognóstico. Estima-se que um terço dos sobreviventes venha a necessitar de transplante cardíaco.

GLOSSÁRIO

Pulso alternante > Pulso em que há alternadamente uma sístole com onda de pulso de amplitude normal, e outra sístole com diminuição da referida amplitude.

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ENDOCARDITE INFECCIOSA

Definição e importância do problema

A endocardite infecciosa é uma doença infecciosa do endocárdio, atingindo válvulas e/ou estruturas relacionadas. Rara na idade pediátrica, representa globalmente cerca de 0,08% dos internamentos hospitalares.

Até 1970, a endocardite estabelecia-se em lesões de cardite reumática prévia; actualmente, devido ao aumento considerável da sobrevida dos doentes com cardiopatia congénita e à diminuição de casos de febre reumática nos países desenvolvidos, a maioria dos doentes com endocardite tem anomalias cardíacas congénitas e, em cerca de 50% dos casos, antecedentes de cirurgia cardíaca (em particular, implantação de material protésico quer por via cirúrgica ou de cateterismo de intervenção).

A proporção de endocardite em doentes com permanência prolongada em unidades de cuidados intensivos, associada a linhas endovenosas, tem igualmente aumentado, o que se relaciona com tromboembolismo venoso. Em cerca de 8% não são identificados factores de risco nem anomalias cardíacas estruturais.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Os agentes envolvidos na infecção nidificam no endotélio anormal, geralmente danificado por diversas razões: malformações cardíacas; cicatrizes de correcções cirúrgicas; implantação de material exógeno (próteses ou remendos); intervenções cirúrgicas; cateterismo de intervenção e tromboembolismo venoso; e traumatismo provocado por cateteres endovenosos centrais.

Dos mecanismos descritos têm particular importância as lesões do endocárdio causadas pela implantação de heteroenxertos (condutos valvulados de tecido biológico não humano), e de próteses metálicas expansíveis (stents) em estruturas danificadas pela proliferação tecidual e calcificação. No que se refere aos homoenxertos a relevância é menor.

A apresentação clínica é geralmente insidiosa, com febre prolongada e manifestações sistémicas variadas como consequência da bacteriémia (ou fungémia), valvulite, resposta imunológica e embolias. A bacteriémia (ou fungémia) é responsável pela disseminação do agente e pela febre. As lesões valvulares manifestam-se pela alteração nos achados auscultatórios e desenvolvimento de sintomas e sinais de insuficiência cardíaca. As manifestações extracardíacas de endocardite (petéquias, hemorragias, manchas de Roth, lesões de Janeway, nódulos de Osler ou esplenomegália) são mais raras em crianças do que em adultos, e não descritas no período neonatal.

As alterações renais (glomerulonefrite) podem ser secundárias a fenómenos autoimunes ou embólicos. Podem registar-se embolias para outros órgãos, nomeadamente sistema nervoso central, onde podem provocar aneurismas micóticos cuja ruptura pode ser catastrófica (ver Glossário Geral).

Exames complementares

O diagnóstico é feito pela presença de vários parâmetros descritos por Duke – critérios de Duke (Quadro 1). Consideram-se critérios major: o isolamento em hemocultura de microrganismo típico e a demonstração ecocardiográfica de lesões (vegetações) características de endocardite; e são critérios minor: a existência de lesões predisponentes, febre, fenómenos vasculares derivados de lesão imunológica ou embólica, e a identificação de alterações microbiológicas e ecocardiográficas sugestivas, mas indirectas, de endocardite.

O diagnóstico pressupõe necessariamente a verificação de dois critérios major; ou um major e dois minor; ou, ainda, cinco minor.

As bactérias mais frequentemente implicadas são cocos Gram (+), com destaque para estreptococos viridans, estafilococos, enterococos e, mais raramente, bactérias Gram (-) do grupo HACEK (acrónimo de: Haemophilus aphrophilus, Actino-bacillus, Cardiobacterium, Eikenella e Kingella. A endocardite fúngica, habitualmente por Candida, tem sido mais frequente nas últimas décadas. Ocasionalmente, registam-se endocardites “estéreis”, em que não é possível isolar o agente.

A ecocardiografia é o método padrão dourado/gold standard para o diagnóstico; evidencia uma sensibilidade elevada e pode demonstrar, além das vegetações (típicas da endocardite), alterações indirectas como, perfuração valvular, ruptura de cordas tendinosas, formação de abcessos perivalvulares ou fístulas miocárdicas, e deiscência de material protésico. Em idade pediátrica a ecocardiografia transtorácica é geralmente esclarecedora e tem acuidade para a identificação destas lesões. No entanto, é por vezes necessário recorrer à ecocardiografia transesofágica para o diagnóstico, em particular nos doentes com cardiopatia operada e material protésico implantado.

QUADRO 1 – Critérios de Duke

Major
    • Isolamento em cultura de microrganismo típico
    • Evidência ecocardiográfica de endocardite
Minor
    • Predisposição (lesão cardíaca, cateteres endovenosos, utilização de drogas endovenosas)
    • Febre
    • Fenómenos vasculares (embolias, enfartes sépticos, aneurismas micóticos, hemorragias conjuntivais, lesões de Janeway)
    • Evidência microbiológica (que não cumpra as especificidades para critério major)
    • Achados ecocardiográficos (consistentes com endocardite, mas que não cumpram as especificidades para critério major)

Profilaxia, tratamento e prognóstico

A profilaxia da endocardite bacteriana está indicada pontualmente nas situações de potencial bacteriémia em doentes com anomalias cardíacas susceptíveis de endocardite. A mesma obedece a recomendações internacionais, recentemente revistas. (Quadros 2 e 3)

As últimas recomendações limitam a profilaxia da endocardite bacteriana aos doentes de alto risco, excluindo outras formas de cardiopatia, como a comunicação interauricular isolada, prolapso da válvula mitral ou válvula aórtica bicúspide não complicadas.

Além da profilaxia medicamentosa em doentes de risco, é fundamental promover medidas gerais, como higiene oral adequada, higiene e integridade das mucosas e pele, e precauções especiais no caso de doentes aderindo a certos hábitos e modas, como o piercing e a tatuagem.

Nesta perspectiva, torna-se fundamental o esclarecimento por parte dos clínicos assistentes.

QUADRO 2 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – I

Intervenções envolvendo a boca/orofaringe/aparelho respiratório superior
Esquema padrão
Amoxicilina* 50 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

Se alergia à penicilina
Clindamicina** 20 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

* Não exceder a dose máxima de 2 g
** Não exceder a dose máxima de 600 mg

Intervenções envolvendo o aparelho digestivo/tracto urogenital
Esquema padrão
Ampicilina 50 mg/kg* IM ou IV + Gentamicina 3 mg/kg IM ou IV 30-60 minutos antes do procedimento e Ampicilina 50 mg/kg* IM ou IV 6 horas depois

Se alergia à Penicilina
Vancomicina 10 mg/kg IV** 30-60 minutos antes + Gentamicina 3 mg/kg IV ou IM 1-2 horas antes (perfusão)

* Não exceder a dose máxima de 2 g de Ampicilina
** Não exceder a dose máxima de 1 g de Vancomicina

Intervenções envolvendo o tecido cutâneo infectado (abcesso/furúnculos)
Esquema padrão
Flucloxacilina 50 mg/kg* PO/IV/IM 30 minutos antes, repetir 6 horas depois

Se alergia à penicilina
Clindamicina 20 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

* Não exceder a dose de 2 g de Fluocloxacilina

QUADRO 3 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – II

Cuidados gerais e recomendações
    1. Higiene oral cuidada.
    2. Vigilância regular em consulta de Estomatologia.
    3. Tratar amigdalites, otites e todas as infecções purulentas com antibióticos durante dez dias.
    4. Deve ser feita profilaxia sempre que haja:
      1. Intervenções estomatológicas: extracções dentárias; brocagens; limpeza profissional; todos os procedimentos que envolvam sangramento gengival.
      2. Luxações traumáticas ou avulsões dentárias.
      3. Cirurgia ORL, excepto timpanostomia.
      4. Cirurgia digestiva ou urológica.
      5. Intervenções envolvendo tecido cutâneo infectado.
Cardiopatias de alto risco de endocardite bacteriana
    1. Prótese valvular ou material protésico utilizado na reparação valvular.
    2. Endocardite prévia.
    3. Cardiopatia congénita:
      1. cardiopatia cianótica não operada, operada com lesões residuais ou paliada com shunt ou conduto.
      2. cardiopatia corrigida com material protésico, colocado por cirurgia ou por intervenção percutânea, durante os primeiros 6 meses após o procedimento.
      3. cardiopatia operada com lesões residuais adjacentes ao material protésico

O tratamento, variando de acordo com o agente identificado, tem uma duração habitual de quatro a seis semanas. As indicações cirúrgicas são empíricas e incluem insuficiência cardíaca por disfunção valvular, persistência de vegetações após fenómenos embólicos (particularmente se aumentarem de dimensão apesar do tratamento), embolias recorrentes e extensão perivalvular da infecção (formação de abcesso, fístula, deiscência protésica).

A terapêutica médica é habitualmente ineficaz na endocardite fúngica, sendo necessária cirurgia, na maioria dos casos.

A mortalidade, variando entre 20% e 30%, é mais elevada na endocardite fúngica e nos casos que atingem material protésico.

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CARDITE REUMÁTICA

Definição e importância do problema

A febre reumática (FR) é uma doença que resulta da reacção autoimune tardia provocada por infecção prévia das vias aéreas superiores por Streptococcus beta hemolítico do grupo A. Atingindo o tecido conjuntivo, igualmente afecta múltiplos órgãos e sistemas, nomeadamente coração e vasos, articulações, pele, tecido subcutâneo e o sistema nervoso central.

A faixa etária mais susceptível situa-se entre os 5 e os 15 anos de idade e, na maioria das populações, a incidência da doença é 1,5 a 2 vezes superior em raparigas.

As lesões cardíacas residuais provocadas pela inflamação aguda – doença cardíaca reumática – são responsáveis pela maior parte da morbilidade e mortalidade atribuída à doença.

Este capítulo, versando fundamentalmente uma das componentes da febre reumática – a cardite – não pode ser desligado da doença base, tópico abordado na perspectiva do reumatologista pediátrico (Parte XXIII).

Aspectos epidemiológicos

Esta patologia é a principal causa de doença cardíaca adquirida em crianças e jovens nos países em desenvolvimento.

Nos países industrializados verificou-se, a partir dos anos 50, uma redução drástica da sua incidência, explicável pela introdução da penicilina no tratamento e pela melhoria dos cuidados de saúde e das condições socioeconómicas das populações.

Em Portugal, a febre reumática aguda é actualmente inexistente; no entanto há que atender ao facto de o nosso país acolher, para tratamento, doentes em idade pediátrica provenientes dos países africanos de língua portuguesa onde a prevalência da cardite é relevante.

As mais recentes recomendações internacionais para o diagnóstico da febre reumática definem como população de baixo risco aquela em que a incidência de febre reumática aguda é < 2/100.000 crianças em idade escolar por ano ou a prevalência de doença cardíaca reumática ≤ 1/1.000 habitantes e por ano.

Etiopatogénese e relação com a clínica

A patogénese, multifactorial, tem como ponto de partida uma infecção amígdalo-faríngea causada por Streptococcus β-hemolítico do grupo A de Lancefield. A via de infecção cutânea (geralmente associada a lesões renais) raramente provoca febre reumática.

As estirpes reumatogénicas induzem reacções imunológicas cruzadas entre certos componentes do estreptococo e do organismo humano e, num hospedeiro geneticamente susceptível, lesam tecidos-alvo.

O período que medeia a infecção e a expressão da doença (período de latência) dura, em geral, entre 1 e 5 semanas, podendo ser mais longo (2-6 meses).

A prevalência de Streptococcus do grupo A na orofaringe de crianças saudáveis é ~ 10 a 30%. As infecções estreptocócicas recorrentes constituem o factor predisponente mais importante da ocorrência e recorrência de FR; esta última poderá surgir em cerca de 0,3 a 3% das referidas infecções. Nesta perspectiva, e não existindo vacina, os marcos importantes da prevenção primária são o diagnóstico e tratamento correctos da amigdalite estreptocócica.

Abaixo dos três anos de idade, apenas 10% das amigdalites são de origem estreptocócica; por outro lado, somente 0,5% dos primeiros surtos de febre reumática ocorrem nesta faixa etária. A amigdalite estreptocócica manifesta-se geralmente com início súbito, febre alta, mal-estar, odinofagia, cefaleias, vómitos e dor abdominal. A orofaringe evidencia eritema, muitas vezes com exsudado, e petéquias no palato mole; este quadro acompanha-se de adenomegálias submaxilares dolorosas.

A terapêutica antibiótica, quando iniciada precocemente, reduz a morbilidade e o tempo de evicção escolar.

Manifestações clínicas e exames complementares

As manifestações da febre reumática são variáveis, baseando-se o diagnóstico nos critérios de Duckett Jones, divulgados em 1944. Ao longo dos anos estes critérios têm sido revistos em função do contexto epidemiológico da doença.

Assim, devido à heterogeneidade geográfica da prevalência de febre reumática, as mais recentes recomendações da American Heart Association (AHA) definem critérios de diagnóstico específicos para as populações em que a doença é endémica. Estes critérios incluem sinais clínicos e resultados dos exames complementares de diagnóstico, os quais são seguidamente descritos de modo integrado.

1. Critérios de Duckett Jones

As manifestações major de FR aguda são, por ordem de frequência, a cardite (50%-70%), a poliartrite (35%-65%), a coreia (10%-30%), os nódulos subcutâneos (3%-10%) e o eritema marginado (< 6%).

As manifestações minor são a febre (muito frequente, em particular no primeiro surto), a elevação da velocidade de sedimentação e/ou da proteína C reactiva, e as alterações do ECG. (Quadro 1)

A presença de dois critérios major ou de um major associado a dois minor, tendo como base de prova uma infecção prévia por estreptococo do grupo A, indica uma alta probabilidade de febre reumática.

Em face de antecedentes pessoais de febre reumática ou doença cardíaca reumática estabelecida, o diagnóstico de recorrência apoia-se na evidência de infecção estreptocócica associada a 2 critérios major; 1 critério major e 2 minor ou 3 minor.

QUADRO 1 – Critérios de Jones Revistos (AHA)

Populações de baixo risco*Populações de alto risco

PCR – Proteína C reactiva; VS – Velocidade de sedimentação
*Considerando os seguintes parâmetros: Incidência de febre reumática aguda é < 2/100.000 crianças em idade escolar por ano; ou Prevalência de doença cardíaca reumática ≤ 1/1.000 habitantes e por ano

Critérios Major
CarditeCardite
PoliartriteMono/poliartrite
Poliartralgia
CoreiaCoreia
Eritema marginadoEritema marginado
Nódulos subcutâneosNódulos subcutâneos
Critérios Minor
PoliartralgiaMonoartralgia
Febre (≥ 38,5ºC)Febre (≥ 38ºC)
VS ≥ 60 mm na 1ª hora e/ou PCR ≥ 3,0 mg/dLVS ≥ 60 mm na 1ª hora e/ou PCR ≥ 3,0 mg/dL
Prolongamento do intervalo PR no ECGProlongamento do intervalo PR no ECG
Cardite

Surgindo precocemente, pode atingir em graus variáveis o pericárdio, miocárdio e endocárdio, sendo a manifestação predominante a valvulite. Na criança, o diagnóstico etiológico da regurgitação mitral pode ser difícil. Em idade pediátrica a probabilidade de uma lesão valvular ser de origem reumatismal é ~ 13% para a regurgitação aórtica isolada, ~ 76% para a regurgitação mitral isolada e ~ 97% para a associação das duas lesões. A cardite tem como sinais clínicos típicos a taquicardia e o sopro de regurgitação mitral, suave, holossistólico, mais audível na ponta e com irradiação para a axila. Na fase aguda, pode auscultar-se o rodado de Carey Coombs, um sopro diastólico suave, curto e de tonalidade grave, mais audível na ponta e axila. A avaliação clínica da cardite permite o diagnóstico em 75% dos casos; denomina-se cardite subclínica aquela em que os estudos de imagem revelam valvulite mitral ou aórtica, na ausência de semiologia compatível.

Nos casos suspeitos, o ecocardiograma com Döppler codificado por cor aumenta a acuidade diagnóstica para cerca de 90%. As alterações morfológicas da fase aguda relacionam-se com o edema da válvula mitral e do aparelho tensor e manifestam-se como alongamento ou rotura de cordas tendinosas, e prolapso ou evidência de nódulos dos folhetos valvulares.

A regurgitação mitral apresenta-se tipicamente como um jacto póstero-lateral verificado por Döppler codificado com cor. Na fase crónica de doença, podem evidenciar-se calcificações valvulares, engrossamento de folhetos e fusão das comissuras da válvula ou das cordas tendinosas, cursando com limitação da sua abertura. (Figuras 1 e 2)

Além do apoio no diagnóstico, o Doppler é importante no seguimento dos doentes com cardite, mediante a avaliação seriada das dimensões das estruturas cardíacas e da sua função.

O ecocardiograma transesofágico é útil no estudo pré-operatório da válvula mitral ou em situações de diagnóstico diferencial menos claro, como a demonstração de rotura de corda tendinosa ou de vegetações.

A lesão miocárdica pode levar a disfunção cardíaca importante, pelas alterações da contractilidade ventricular esquerda e pela regurgitação valvular que se agravam nos casos de surtos repetidos. A insuficiência cardíaca manifesta-se por ortopneia, tosse, edema pulmonar, hepatomegalia e estase venosa. Nas crianças mais novas estas manifestações podem ser subtis. A cardiomegalia é constante, podendo ser comparticipada por derrame pericárdico, frequente nos casos graves. Em 5-10% dos casos há apresentação com cardite grave que pode requerer cirurgia cardíaca urgente ou culminar na morte do doente.

FIGURA 1. Imagens ecocardiográficas de doença mitral reumática. É evidente a dilatação da aurícula esquerda, a limitação da abertura da válvula mitral e a turbulência do fluxo de entrada por Döppler codificado em cor

FIGURA 2. Imagens ecocardiográficas de regurgitação mitral de etiologia reumática. Verifica-se dilatação da aurícula esquerda, a incompleta coaptação dos folhetos da mitral e, por Döppler codificado em cor, o fluxo de regurgitação mitral grave

Artrite

Na sua forma mais característica, atinge várias articulações (poliartrite); rara antes dos cinco anos, é migratória, não supurativa, assimétrica e atinge as grandes articulações, nomeadamente joelhos, tornozelos, cotovelos e punhos. Geralmente autolimitada, com uma duração de cerca de 4 semanas, mesmo sem terapêutica, não provoca deformação sequelar das articulações. A resposta sintomática à administração de salicilatos e anti-inflamatórios não-esteróides é característica.

Coreia de Sydenham

Indica compromisso do sistema nervoso central e caracteriza-se por movimentos involuntários despropositados, e exacerbados pelo esforço e stress. É mais frequente no sexo feminino e tem um período de latência longo (1 a 6 meses), tornando difícil a documentação de infecção estreptocócica prévia. É autolimitada, e com recuperação em cerca de 6 meses, mesmo sem terapêutica.

Nódulos subcutâneos

Associam-se a cardite activa, são indolores, pequenos, duros e móveis; surgem na superfície extensora das articulações, ao longo da coluna e na região occipital.

Eritema marginado

É um exantema macular, confluente, não pruriginoso, de cor rosada e bordo serpiginoso, surgindo em geral no tronco e dorso, região proximal dos membros e nádegas mas nunca na face.

Febre

Geralmente presente na fase aguda, cede à terapêutica com salicilatos.

VS e/ou PCR

Muito elevadas na fase aguda, diminuem progressivamente com a melhoria clínica ou em presença de insuficiência cardíaca, voltando a aumentar com a melhoria da função miocárdica. Na coreia, a velocidade de sedimentação é normal. De salientar que o valor da proteína C reativa não sofre flutuações com a insuficiência cardíaca.

ECG

Evidencia intervalo PR aumentado, o qual normaliza com a melhoria clínica (cerca de 6-8 semanas após o início dos sintomas). Alterações inespecíficas do segmento ST e inversão da onda T significam, em geral, miocardite. As arritmias são raras e autolimitadas.

2. Evidência laboratorial

A análise antigénica rápida e o exame cultural do exsudado (faríngeos), se realizados na fase aguda da amigdalite, podem confirmar a etiologia estreptocócica. No entanto, a cultura do exsudado faríngeo é positiva em apenas 2/3 dos casos e não permite a distinção entre a infecção aguda e o estado de portador crónico.

A prova serológica constitui o “padrão de ouro”/gold standard do diagnóstico de infecção por Streptococcus do grupo A: pode ser negativa quando realizada precocemente no decurso da doença e necessita de repetição após 10 a 14 dias. As provas mais utilizadas são a determinação dos títulos de anti-estreptolisina O (TASO) e anti-DNAse B, com “picos” respectivos às 3-6 e às 6-8 semanas de doença.

O doseamento do título de TASO é positivo em mais de 85% dos casos. A associação do TASO à determinação do título de anti-DNAse B eleva a percentagem de detecção de infecção pelo Streptococcus do grupo A para quase 100%. O aumento do título dos anticorpos ao longo do tempo é mais específico que um único doseamento elevado.

Diagnóstico diferencial

Na fase aguda, sendo a febre reumática uma doença febril e inflamatória, essencialmente, há que fazer o diagnóstico diferencial com patologias como a miocardite e pericardite víricas, a doença de Kawasaki e a endocardite infecciosa.

Os casos em que predomina o componente articular, devem distinguir-se da artrite reumatóide juvenil. O modo assimétrico e migratório das lesões das grandes articulações e a rápida resolução da sintomatologia com doses baixas de ácido acetilsalicílico são a favor da febre reumática. Deve ainda fazer-se diagnóstico diferencial com outras artrites como as associadas a lúpus eritematoso sistémico, artrites infecciosas, doença do soro, doença de Lyme, hemoglobinopatias e leucemias.

A endocardite bacteriana que atinja uma válvula mitral com anomalia congénita é uma doença febril que pode simular febre reumática. A presença de baço palpável, petéquias e hematúria microscópica, são dados a favor de endocardite. A velocidade de sedimentação está aumentada nas duas situações, mas as flutuações descritas para a febre reumática em consequência da insuficiência cardíaca não se verificam na endocardite. As hemoculturas positivas são a chave do diagnóstico.

A análise detalhada da morfologia e função da válvula mitral pelo ecocardiograma é importante para o diagnóstico da febre reumática e para a detecção de vegetações em casos de endocardite.

A situação que mais dúvidas oferece é a presença de apenas um critério major, geralmente a artrite. Nestes casos poder-se-á manter o doente em vigilância sob profilaxia antibiótica secundária; se se verificar recorrência da artrite, sem evidência de infecção estreptocócica, fica excluída a etiologia reumatismal.

Prevenção primária

O tratamento mais seguro e eficaz da infecção aguda (ou prevenção primária) faz-se com penicilina benzatínica administrada por via intramuscular em dose única (600.000 UI nas crianças com peso inferior a 20 kg, e 1.200.000 UI nas crianças com peso igual ou superior a 20 kg). Nos raros casos de alergia à penicilina, utiliza-se eritromicina (40 mg/kg/dia) por via oral, administrada durante 10 dias.

Tratamento

Na fase precoce da febre reumática, os anti-inflamatórios, se iniciados intempestivamente, podem mascarar os sinais de inflamação, modificar a velocidade de sedimentação e os aspectos clínicos e ecocardiográficos. Por este motivo, deve privilegiar-se nesta fase o uso de paracetamol como analgésico.

Após o diagnóstico de febre reumática deve iniciar-se terapêutica com ácido acetilsalicílico (80-100 mg/kg/dia), cuja dose deverá ser reduzida lentamente (ao longo de 4-6 semanas), à medida que se verifique melhoria clínica e diminuição da velocidade de sedimentação.

A corticoterapia é indicada nos casos de cardite grave com insuficiência cardíaca, resistente à terapêutica. Utiliza-se a prednisolona na dose de 1-2 mg/kg/dia durante duas a quatro semanas, reduzindo-se durante as duas semanas seguintes (25% por semana). No período de desmame, deverá reiniciar-se ácido acetilsalicílico para evitar recaídas.

Continua a ser preconizado o repouso absoluto no leito, como medida de redução do trabalho cardíaco.

O tratamento cirúrgico, raramente necessário na fase aguda, está indicado nos casos com lesões valvulares importantes. No entanto, a reparação valvular nesta fase pode ser tecnicamente difícil e está associada a necessidade frequente de reoperação tardia.

O Quadro 2 sintetiza o esquema de tratamento da cardite de acordo com as manifestações clínicas.

QUADRO 2 – Tratamento de acordo com as manifestações clínicas

 ArtriteCardite ligeiraCardite moderadaCardite graveCoreia
ICC – Insuficiência cardíaca congestiva
Repouso no leito1 – 2 semanas3 – 4 semanas4 – 6 semanasEnquanto ICCRedução de stress físico e emocional
Penicilina G benzatínica< 20 kg – 600.000 U
≥ 20 kg – 1.200.000 U
Ácido acetilsalicílicoInício com 50 – 60 mg/kg/dia 4id, aumentando até 80 – 100 mg/kg/dia 4id
1 – 2 semanas3 – 4 semanas6 – 8 semanas2 – 4 meses0
Prednisolona1 – 2 mg/kg/dia 4id (max. 80 mg)
0002 – 4 semanas0
Carbamazepina6 – 20 mg/kg/dia 3id (max. 1500 mg/dia)
0000Continuar 2 – 4 semanas após cessação de sintomas

Prevenção secundária

A prevenção secundária é tão importante quanto a prevenção primária. Na ausência de novos surtos, a maioria das alterações cardíacas resultantes da febre reumática melhora, e a função cardíaca pode normalizar. Por outro lado, as sequelas dos surtos subsequentes, sempre mais graves do que as do primeiro surto, produzem lesões quase sempre irreversíveis. Por estas razões, a prevenção secundária, importante no prognóstico da doença, é feita com penicilina benzatínica administrada por via intramuscular nas mesmas doses que para a prevenção primária, com intervalos de quatro semanas.

Na presença de sequelas, a profilaxia deverá durar toda a vida (mesmo após eventual cirurgia). Nos casos sem sequelas, nomeadamente doença valvular persistente, a profilaxia é feita até à idade adulta. Nos doentes com lesões valvulares, está indicada profilaxia da endocardite bacteriana mesmo após cirurgia. (Quadro 3)

Nos países endémicos (como os de África, América do Sul, Índia, Filipinas) o intervalo deve ser encurtado para três semanas. Nos raros casos de alergia à penicilina, está indicada a profilaxia por via oral (eritromicina ou sulfonamidas – sulfadiazina ou sulfisoxazol), em que a adesão e a eficácia são menores. A penicilina V (oral) não está comercializada em Portugal.

QUADRO 3 – Duração da profilaxia secundária preconizada pela OMS

OMS – Organização Mundial de Saúde
Categoria do doenteDuração da profilaxia
Ausência de cardite comprovada5 anos após o último surto de doença ou até aos 18 anos (o que for mais longo)
Cardite ligeira (regurgitação mitral/aórtica ligeiras)10 anos após o último surto de doença ou até pelo menos aos 25 anos
Doença valvular graveVitalício
Após cirurgia valvularVitalício

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