Definição e importância do problema

A endocardite infecciosa é uma doença infecciosa do endocárdio, atingindo válvulas e/ou estruturas relacionadas. Rara na idade pediátrica, representa globalmente cerca de 0,08% dos internamentos hospitalares.

Até 1970, a endocardite estabelecia-se em lesões de cardite reumática prévia; actualmente, devido ao aumento considerável da sobrevida dos doentes com cardiopatia congénita e à diminuição de casos de febre reumática nos países desenvolvidos, a maioria dos doentes com endocardite tem anomalias cardíacas congénitas e, em cerca de 50% dos casos, antecedentes de cirurgia cardíaca (em particular, implantação de material protésico quer por via cirúrgica ou de cateterismo de intervenção).

A proporção de endocardite em doentes com permanência prolongada em unidades de cuidados intensivos, associada a linhas endovenosas, tem igualmente aumentado, o que se relaciona com tromboembolismo venoso. Em cerca de 8% não são identificados factores de risco nem anomalias cardíacas estruturais.

Etiopatogénese e manifestações clínicas

Os agentes envolvidos na infecção nidificam no endotélio anormal, geralmente danificado por diversas razões: malformações cardíacas; cicatrizes de correcções cirúrgicas; implantação de material exógeno (próteses ou remendos); intervenções cirúrgicas; cateterismo de intervenção e tromboembolismo venoso; e traumatismo provocado por cateteres endovenosos centrais.

Dos mecanismos descritos têm particular importância as lesões do endocárdio causadas pela implantação de heteroenxertos (condutos valvulados de tecido biológico não humano), e de próteses metálicas expansíveis (stents) em estruturas danificadas pela proliferação tecidual e calcificação. No que se refere aos homoenxertos a relevância é menor.

A apresentação clínica é geralmente insidiosa, com febre prolongada e manifestações sistémicas variadas como consequência da bacteriémia (ou fungémia), valvulite, resposta imunológica e embolias. A bacteriémia (ou fungémia) é responsável pela disseminação do agente e pela febre. As lesões valvulares manifestam-se pela alteração nos achados auscultatórios e desenvolvimento de sintomas e sinais de insuficiência cardíaca. As manifestações extracardíacas de endocardite (petéquias, hemorragias, manchas de Roth, lesões de Janeway, nódulos de Osler ou esplenomegália) são mais raras em crianças do que em adultos, e não descritas no período neonatal.

As alterações renais (glomerulonefrite) podem ser secundárias a fenómenos autoimunes ou embólicos. Podem registar-se embolias para outros órgãos, nomeadamente sistema nervoso central, onde podem provocar aneurismas micóticos cuja ruptura pode ser catastrófica (ver Glossário Geral).

Exames complementares

O diagnóstico é feito pela presença de vários parâmetros descritos por Duke – critérios de Duke (Quadro 1). Consideram-se critérios major: o isolamento em hemocultura de microrganismo típico e a demonstração ecocardiográfica de lesões (vegetações) características de endocardite; e são critérios minor: a existência de lesões predisponentes, febre, fenómenos vasculares derivados de lesão imunológica ou embólica, e a identificação de alterações microbiológicas e ecocardiográficas sugestivas, mas indirectas, de endocardite.

O diagnóstico pressupõe necessariamente a verificação de dois critérios major; ou um major e dois minor; ou, ainda, cinco minor.

As bactérias mais frequentemente implicadas são cocos Gram (+), com destaque para estreptococos viridans, estafilococos, enterococos e, mais raramente, bactérias Gram (-) do grupo HACEK (acrónimo de: Haemophilus aphrophilus, Actino-bacillus, Cardiobacterium, Eikenella e Kingella. A endocardite fúngica, habitualmente por Candida, tem sido mais frequente nas últimas décadas. Ocasionalmente, registam-se endocardites “estéreis”, em que não é possível isolar o agente.

A ecocardiografia é o método padrão dourado/gold standard para o diagnóstico; evidencia uma sensibilidade elevada e pode demonstrar, além das vegetações (típicas da endocardite), alterações indirectas como, perfuração valvular, ruptura de cordas tendinosas, formação de abcessos perivalvulares ou fístulas miocárdicas, e deiscência de material protésico. Em idade pediátrica a ecocardiografia transtorácica é geralmente esclarecedora e tem acuidade para a identificação destas lesões. No entanto, é por vezes necessário recorrer à ecocardiografia transesofágica para o diagnóstico, em particular nos doentes com cardiopatia operada e material protésico implantado.

QUADRO 1 – Critérios de Duke

Major
    • Isolamento em cultura de microrganismo típico
    • Evidência ecocardiográfica de endocardite
Minor
    • Predisposição (lesão cardíaca, cateteres endovenosos, utilização de drogas endovenosas)
    • Febre
    • Fenómenos vasculares (embolias, enfartes sépticos, aneurismas micóticos, hemorragias conjuntivais, lesões de Janeway)
    • Evidência microbiológica (que não cumpra as especificidades para critério major)
    • Achados ecocardiográficos (consistentes com endocardite, mas que não cumpram as especificidades para critério major)

Profilaxia, tratamento e prognóstico

A profilaxia da endocardite bacteriana está indicada pontualmente nas situações de potencial bacteriémia em doentes com anomalias cardíacas susceptíveis de endocardite. A mesma obedece a recomendações internacionais, recentemente revistas. (Quadros 2 e 3)

As últimas recomendações limitam a profilaxia da endocardite bacteriana aos doentes de alto risco, excluindo outras formas de cardiopatia, como a comunicação interauricular isolada, prolapso da válvula mitral ou válvula aórtica bicúspide não complicadas.

Além da profilaxia medicamentosa em doentes de risco, é fundamental promover medidas gerais, como higiene oral adequada, higiene e integridade das mucosas e pele, e precauções especiais no caso de doentes aderindo a certos hábitos e modas, como o piercing e a tatuagem.

Nesta perspectiva, torna-se fundamental o esclarecimento por parte dos clínicos assistentes.

QUADRO 2 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – I

Intervenções envolvendo a boca/orofaringe/aparelho respiratório superior
Esquema padrão
Amoxicilina* 50 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

Se alergia à penicilina
Clindamicina** 20 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

* Não exceder a dose máxima de 2 g
** Não exceder a dose máxima de 600 mg

Intervenções envolvendo o aparelho digestivo/tracto urogenital
Esquema padrão
Ampicilina 50 mg/kg* IM ou IV + Gentamicina 3 mg/kg IM ou IV 30-60 minutos antes do procedimento e Ampicilina 50 mg/kg* IM ou IV 6 horas depois

Se alergia à Penicilina
Vancomicina 10 mg/kg IV** 30-60 minutos antes + Gentamicina 3 mg/kg IV ou IM 1-2 horas antes (perfusão)

* Não exceder a dose máxima de 2 g de Ampicilina
** Não exceder a dose máxima de 1 g de Vancomicina

Intervenções envolvendo o tecido cutâneo infectado (abcesso/furúnculos)
Esquema padrão
Flucloxacilina 50 mg/kg* PO/IV/IM 30 minutos antes, repetir 6 horas depois

Se alergia à penicilina
Clindamicina 20 mg/kg (PO) 1 hora antes do procedimento

* Não exceder a dose de 2 g de Fluocloxacilina

QUADRO 3 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – II

Cuidados gerais e recomendações
    1. Higiene oral cuidada.
    2. Vigilância regular em consulta de Estomatologia.
    3. Tratar amigdalites, otites e todas as infecções purulentas com antibióticos durante dez dias.
    4. Deve ser feita profilaxia sempre que haja:
      1. Intervenções estomatológicas: extracções dentárias; brocagens; limpeza profissional; todos os procedimentos que envolvam sangramento gengival.
      2. Luxações traumáticas ou avulsões dentárias.
      3. Cirurgia ORL, excepto timpanostomia.
      4. Cirurgia digestiva ou urológica.
      5. Intervenções envolvendo tecido cutâneo infectado.
Cardiopatias de alto risco de endocardite bacteriana
    1. Prótese valvular ou material protésico utilizado na reparação valvular.
    2. Endocardite prévia.
    3. Cardiopatia congénita:
      1. cardiopatia cianótica não operada, operada com lesões residuais ou paliada com shunt ou conduto.
      2. cardiopatia corrigida com material protésico, colocado por cirurgia ou por intervenção percutânea, durante os primeiros 6 meses após o procedimento.
      3. cardiopatia operada com lesões residuais adjacentes ao material protésico

O tratamento, variando de acordo com o agente identificado, tem uma duração habitual de quatro a seis semanas. As indicações cirúrgicas são empíricas e incluem insuficiência cardíaca por disfunção valvular, persistência de vegetações após fenómenos embólicos (particularmente se aumentarem de dimensão apesar do tratamento), embolias recorrentes e extensão perivalvular da infecção (formação de abcesso, fístula, deiscência protésica).

A terapêutica médica é habitualmente ineficaz na endocardite fúngica, sendo necessária cirurgia, na maioria dos casos.

A mortalidade, variando entre 20% e 30%, é mais elevada na endocardite fúngica e nos casos que atingem material protésico.

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