INFECÇÕES FÚNGICAS SUPERFICIAIS E SISTÉMICAS

Nomenclatura e importância do problema

Os fungos são seres vivos eucarióticos (estruturas somáticas filamentosas) que, por definição, e ao contrário das bactérias, possuem parede celular composta de quitina, núcleo e organelos (ou organitos) intracelulares.*

A classificação dos fungos não é um assunto fácil. Entre os estudiosos e especialistas existem diferentes opiniões, o que traduz que ainda muito se desconhece sobre a estrutura e fisiologia destes seres vivos. Assim, a interpretação que cada um faz conduz a uma falta de uniformidade nos critérios de definição de determinadas espécies fúngicas.

De acordo com literatura científica, os fungos integram o reino Eumycota; os fungos, também designados Eumycetes (Eumicetas ou fungos verdadeiros), dividem-se em três classes de acordo com o tipo de reprodução sexuada: antigo Zycomycetes (actual Mucorales e Entomophthorales), Ascomycetes e Basidiomycetes. A classificação dos fungos tem sido modificada pela aplicação de novas técnicas moleculares e de espectrofotometria. De facto, hoje em dia a taxonomia baseia-se não só no modo de reprodução sexuada, mas também na concordância das sequências de DNA de zonas hipervariáveis. Surgiu assim a noção de espécies morfologicamente semelhantes, distintas apenas geneticamente e com padrões distintos de susceptibilidade aos antifúngicos, as espécies crípticas, com implicações clínicas importantes.

*Células eucarióticas são aquelas em que há uma divisão nítida entre o núcleo (com membrana nuclear e mais que 1 cromossoma) e o citoplasma (com organitos específicos, por ex. mitocôndrias). Estas células variam muito em tamanho [por ex. diâmetro entre 6-10 um (levedura pequena), até 2 mm de diâmetro e 3-5 cm de comprimento (por ex. a alga unicelular Acetabularia)]. Células procarióticas, são aquelas em que não há divisão entre núcleo e citoplasma; são de menores dimensões e menos complexas estrutural e funcionalmente que as eucarióticas – por ex. são do tamanho dos organitos destas – As bactérias são células procarióticas.

De uma forma geral, de acordo com a morfologia e tipo de crescimento, os fungos podem ser classificados em 3 tipos:

  • Leveduriformes, unicelulares, reproduzindo-se por gemulação, processo pelo qual a célula mãe origina outra, idêntica a si própria (por ex. Cryptococcus);
  • Filamentosos, multicelulares, sendo designados por hifas os filamentos longos, os quais, no conjunto formam um micélio; os tecidos são parasitados como filamentos, ou como filamentos e esporos;
  • Dimorfos; possuem características completamente diferentes in vivo e in vitro; nos tecidos revelam-se como células leveduriformes (Histoplasma, Blastomyces, Sporotrichum), esferas cheias de endosporos (Coccidioides imitis) ou células fumagóides (agentes de cromomicose); e em meios de cultura correntes e a 24ºC, originam colónias

Das particularidades biológicas poderá resultar alguma confusão dos nomes atribuídos às diferentes formas; por ex., à forma unicelular de determinado fungo dá-se o nome de Cryptococcus neoformans, e de Filobasidiella neoformans à forma hifa. O agente Pneumocystis jiroveci (ex- carinii), anteriormente considerado protozoário, é hoje englobado na categoria dos fungos.

Das cerca de 100.000 espécies de fungos existentes, apenas uma pequena minoria é patogénica para o ser humano, designando-se por micoses as infecções causadas por fungos.

Numa perspectiva simples, de prática clínica, uma das classificações considera os seguintes tipos, de acordo com a localização da infecção: 1 – superficiais (cutaneomucosas); 2 – subcutâneas; 3 – sistémicas ou profundas.

Na criança saudável, as infecções sistémicas graves por fungos são pouco frequentes. Nas últimas duas décadas, tem-se verificado um aumento de infecções fúngicas graves em crianças imunodeprimidas, o que pode estar relacionado com estratégias terapêuticas cada vez mais agressivas, podendo levar a neutropénia prolongada.

Com efeito, cerca de 8% a 10% dos episódios febris em doentes imunocomprometidos são devidos a infecções invasivas por fungos. Os agentes etiológicos mais frequentes nestas situações são Candida albicans, Aspergillus fumigatus e Cryptococcus neoformans.

Contudo, mais recentemente, em parte devido à utilização profiláctica de fármacos antifúngicos, têm emergido outros fungos como causa de doença invasiva.

Etiopatogénese

Estão descritos três mecanismos principais pelos quais é adquirida a doença infecciosa por fungos:

  1. Inoculação/contaminação; em geral, o fungo afecta o hospedeiro imunocompetente, sendo a infecção resultante da contaminação cutânea ou inoculação, como por exemplo as dermatofitoses ou dermatofitias (por fungos filamentosos com afinidade específica para as estruturas ceratinizadas) e as candidíases mucocutâneas;
  2. Doença sistémica (primária); nesta categoria estão incluídas as infecções por fungos com virulência suficiente para infectar um hospedeiro imunocompetente. São exemplos: histoplasmose, coccidioidomicose, blastomicose e paracoccidioidomicose;
  3. Doença/micose oportunista; neste tipo de mecanismo estão englobados agentes com menor virulência que raramente causam doença invasiva no hospedeiro imunocompetente. São exemplos: candidíase invasiva, aspergilose e criptococose.

Neste capítulo é dada ênfase às infecções fúngicas superficiais e sistémicas.

As infecções subcutâneas: a – Esporotricose (por Sporothrix schenckii); b – Micetomas (por Madurella micetomi e outras espécies); c – Cromomicose (por Fonsecae pedrosoi); d – Rinosporidiose (por Rinosporidium seeberi) são habitualmente do domínio do Dermatologista.

1. INFECÇÕES FÚNGICAS SUPERFICIAIS

1.1 Dermatofitoses mais comuns

Os fungos dermatófitos alojam-se na camada superficial da epiderme, unhas e cabelo, onde proliferam. Não invadem as camadas inferiores da epiderme ou derme. Os agentes mais frequentemente implicados são Trichophyton, Microsporum e Epidermophyton.

No que respeita à epidemiologia, verifica-se distribuição mundial. A infecção é adquirida por contacto directo com humanos ou animais infectados ou, no caso de dermatófitos geofílicos, por contacto com o solo.

Nesta alínea são abordadas as dermatofitias mais frequentes, a pitiríase versicolor e as candidíases mucocutâneas.

Tinea capitis

Esta dermatofitia é causada por fungos do género Trichophyton e Microsporum, tais como M. canis, M. audouinii, M. mentagrophytes e T. tonsurans (90% dos casos nos EUA). Os agentes causais variam consoante a área geográfica.

É muito frequente em idade pediátrica, sobretudo em crianças com 3-7 anos. As crianças e os adultos podem ser portadores assintomáticos. A incidência é maior em afro-americanos, condições de higiene deficitárias e baixo nível socioeconómico.

Pode atingir o couro cabeludo, sobrancelhas e pestanas, sendo a apresentação clínica variável: dermatose descamativa não inflamatória, inflamação com lesões eritematosas e descamativas acompanhadas de alopécia, podendo progredir para lesões mais acentuadas, tipo foliculite (kerion); pode manifestar-se igualmente por nódulos supurativos ou por lesões tipo favo (escútula fávica/tinha favosa, com crostas e escamas amareladas e aderentes); por vezes acompanha-se de febre e adenopatias satélites. Após cicatrização, pode haver alopécia definitiva. A evolução depende da interacção agente-hospedeiro. (Figura 1)

FIGURA 1. Tinea capitis. (NIHDE)

O diagnóstico é clínico, mas deve ser confirmado através da observação do fungo por microscopia óptica, sobretudo na tinha do couro cabeludo. O exame cultural é o meio de identificação do agente específico.

O tratamento é feito com griseofulvina PO, 10-20 mg/kg/dia, em 1 dose diária, durante 6 a 12 semanas; terbinafina (< 20 Kg, 62,5 mg/dia; 20-40 kg, 125 mg/kg; > 40 kg, 250 mg/dia), 2 a 6 semanas, itraconazol 3 a 5 mg/kg/dia 2 a 4 semanas ou fluconazol 6 mg/kg/dia 2 a 4 semanas. Os champôs com sulfureto de selénio a 2,5% ou à base de cetoconazol a 2% reduzem a propagação da infecção.

Tinea unguium

A tinha das unhas deriva da invasão das lâminas ungueais por dermatófitos, sendo que a designação de onicomicose é mais lata do que a de tinha das unhas; com efeito, aquela inclui toda a distrofia ungueal causada por qualquer espécie de fungos, sejam dermatófitos, Candida, ou outros.

Os agentes mais frequentes da tinha das unhas são T. rubrum e T. interdigitale.

As manifestações clínicas variam entre pequenas manchas esbranquiçadas até espessamento com destruição da lâmina da unha e hiperceratose subungueal. Distinguem-se dois tipos clínicos: o distal, mais frequente, e o proximal, iniciado na prega peri-ungueal, em regra perto da lâmina. Observa-se discromia (cor esbranquiçada ou amarelada), superfície irregular, por vezes baça, fendilhação e descolagem que chega a separar a unha em duas lâminas. A onicólise total é rara. A doença atinge uma ou várias unhas. É raro que todas estejam alteradas, o que constitui elemento de diagnóstico em relação a outras afecções como a psoríase.

O diagnóstico faz-se através da identificação do agente por microscopia óptica e exame cultural. O tratamento da tinha das unhas é feito com griseofulvina, durante 6 a 12 meses ou terbinafina 6-12 semanas. Outras opções terapêuticas são o itraconazol e o fluconazol, de modo contínuo ou cíclico. Geralmente os antifúngicos tópicos são ineficazes pois não atingem as camadas inferiores do leito ungueal, mas poderão ser utilizados em associação com a terapêutica sistémica.

O tratamento da onicomicose por Candida é abordado na alínea 1.2.

Tinea corporis

A tinha do corpo ou tinea corporis atinge as áreas de menor pilosidade e não apenas a verdadeira pele glabra, como a das palmas das mãos e a das plantas dos pés. Pode atingir a face, tronco e extremidades.

Os agentes etiológicos são fungos do género Trichophyton (espécies T. rubrum, T. mentagrophytes, T. tonsurans), Microsporum (M. canis) e Epidermophyton (E. floccosum).

A lesão mais comum é a impigem, pruriginosa. Após período de incubação de 3 a 30 dias, o fungo desenvolve-se dentro e paralelamente à superfície da camada córnea. A lesão inicia-se por algumas vesículas com aspecto herpético. Estas vesículas passam por vezes despercebidas. Atenuam-se e surge em seguida a figura anular/circular designada classicamente como “herpes circinado”, com bordo vesiculoso, mais ou menos inflamatório, centro descamativo, e crescimento centrífugo. Da confluência de várias lesões resulta por vezes um aspecto policíclico. O prurido na zona da impigem é factor de disseminação pela coceira que origina, sobretudo em indivíduos com alteração imunológica local ou geral, congénita ou devida a terapêutica imunossupressora. (Figura 2)

FIGURA 2. Tinea corporis: impigem. (NIHDE)

Tinea pedis (pé de atleta)

As lesões dos pés (tinha dos pés ou “pé de atleta”) são provocadas por fungos do género Epidermophyton (E. floccosum) e Trichophyton (T. rubrum, T. mentagrophytes). Situam-se nos espaços interdigitais, na planta e no bordo. São constituídas por vesículas e pústulas que rebentam, secam e descamam, às quais sucedem maceração, fissuras, hiperceratose e alterações das unhas. A evolução é geralmente cíclica, com exacerbação no tempo quente e tendência para a cronicidade. O quadro clínico pode ser complicado por agentes piogénicos. Por vezes aparece linfangite.

A designação de “pé de atleta” deve o seu nome ao facto de ser muito comum entre desportistas praticando em ginásios, balneários e piscinas, assim como nos casos de uso prolongado de calçado favorável à acumulação de humidade. Contudo, este tipo de micose pode afectar qualquer indivíduo.

Tinea cruris

Certos factores predisponentes (pele fina, obesidade, atrito/roupa apertada, temperatura e humidade), agravados por certos tipos de vestuário, condicionam as características clínicas e a evolução da tinha das virilhas, também chamada tinea cruris.

Esta micose é provocada por fungos do género Epidermophyton (E. floccosum) e Trichophyton (T. rubrum, T. mentagrophytes).

As manifestações clínicas iniciam-se por pápula ou pequena área eritematosa, elevada, a qual invade as pregas das virilhas, períneo, e por vezes nádegas, onde a expressão clínica é a de impigem. O centro das lesões das virilhas é habitualmente castanho-avermelhado. Por vezes verifica-se descamação ou maceração e mesmo fissura; em certos casos há apenas descamação. É mais frequente em rapazes após a puberdade. Pode haver transmissão interpessoal.

O tratamento antifúngico indicado nas situações de tinea corporis, tinea pedis e tinea cruris é tópico (nistatina, terbinafina, clotrimazol ou miconazol) durante 4 semanas; contudo, nas lesões crónicas, por vezes múltiplas e recidivantes de tinea corporis da pele glabra, em que se perde o carácter de impigem e a dermatose passa a assemelhar-se a eczema ou psoríase, ou assume forma difusa granulomatosa (rara) com invasão da profundidade dos tecidos e dos gânglios, torna-se necessário tratamento sistémico e, em casos específicos, incisão e drenagem de lesões supuradas.

Pitiríase versicolor (Tinea versicolor)

Trata-se de uma micose muito comum devida a Malassezia furfur. Tem distribuição mundial, mas aparece com maior frequência nas regiões tropicais e subtropicais, e afecta sobretudo adolescentes e adultos jovens; pode verificar-se transmissão interpessoal quando em fase de descamação.

Como manifestações clínicas, referem-se lesões maculares hipo ou hiperpigmentadas, policíclicas, com descamação furfurácea; a sua patogénese não está esclarecida (a descamação não parece funcionar como filtro solar, sendo que se admite um defeito no transporte dos grânulos de melanina, secundário à infecção). As referidas máculas discrómicas têm dimensões variadas, de contornos nítidos ou difusos, por vezes confluentes; localizam-se sobretudo na metade superior do tronco, braços e região cervical, mais ou menos simetricamente.

Muitas vezes, a doença é detectada poucos dias após a exposição da pele ao sol porque nas áreas da pele afectadas pela micose a pele não se bronzeia. No Inverno, as lesões tomam uma coloração escurecida, castanho-avermelhada. É característica desta micose a cor variável (versicolor) associada à descamação que se torna mais nítida por raspagem com a unha – sinal clássico no diagnóstico diferencial com outras alterações discrómicas da pele.

O diagnóstico é habitualmente fácil. Apoia-se nos factos clínicos, na pesquisa do agente nas escamas por microscopia óptica e no exame da pele com radiação ultravioleta negra – luz de Wood. O exame cultural raramente é necessário.

Está indicado tratamento antifúngico tópico (hipossulfito de sódio a 20%, ou cetoconazol a 1%, ou derivados tópicos do imidazol, entre outros); em função do contexto clínico poderá estar indicada terapêutica com antifúngico oral (cetoconazol na dose de 3 mg/kg/dia durante 10 dias). As recaídas são frequentes.

1.2 Candidíase

A candidíase (ou candidose) é um tipo de micose provocada pelo fungo do género Candida. O habitat natural é o tubo digestivo e génito-urinário, onde vive como comensal. C. albicans encontra-se raramente na pele sã, embora seja habitual em mucosas sem alterações.

Mais de 150 espécies foram descritas, e pelo menos 17 podem causar doença invasiva. Na idade pediátrica a estirpe mais frequente é C. albicans, responsável por cerca de metade (44% a 49%) dos casos, logo seguida por C. parapsilosis (22,2% a 34%) que tem aumentado nos últimos anos. C. glabrata e C. krusei são menos frequentes em pediatria, mas estão associadas a resistência aos triazóis.

Os principais factores de virulência são: – as adesinas, que permitem a adesão e colonização; – a produção de enzimas proteolíticas; – a formação de biofilmes (associados ao aparecimento de resistência aos antifúngicos); e – a capacidade de evolução para as formas invasivas (hifas).

As respostas inata e adaptativa são fundamentais no combate à infecção. A resposta inata inicial do hospedeiro envolve o reconhecimento de padrões moleculares dos microrganismos (PAMP) pelos receptores de reconhecimento de padrões (PRR). Esta resposta é fundamental para desencadear a resposta do hospedeiro, nomeadamente através de neutrófilos, macrófagos e monócitos, impedindo a disseminação da infecção.

Também o sistema adaptativo, em especial as células T, são importantes. Em 2005 foi identificado um subtipo de células TCD4+Th17 cruciais para o controlo de C. albicans ao nível da mucosa. De facto, admite-se que os doentes com candidíase crónica mucocutânea (CMC), seja autossómica dominante (por defeito STAT1), por síndroma de hiperIgE (defeito STAT3) ou por produção de autoanticorpos contra a citocina 17, como na poliendocrinopatia autoimune com candidíase (APECED), têm um defeito nesta via.

Candidíase oral

Também vulgarmente conhecida como “sapinhos”, monilíase oral (Monilia sinónimo de Candida na taxonomia clássica), é a mais frequente de todas as formas de candidíase, sobretudo nos primeiros meses de vida; pode ocorrer entre 2%-5% de RN considerados saudáveis. É muito frequente nos doentes com infecção por VIH, neoplasias e outras imunodeficiências, embora possa ocorrer em crianças saudáveis, sobretudo após corticoterapia inalada e antibioticoterapia sistémica.

Como manifestações clínicas há a referir pequenas pápulas ou placas brancas “leitosas” (assemelhando-se a ”restos de leite”) com base eritematosa, confluentes, muito aderentes, dispersas por toda a mucosa (gengivas, língua, e particularmente na mucosa jugal). Quando removidas deixam a descoberto superfície vermelha e sangrenta.

O tratamento pode ser efectuado com antifúngicos tópicos:

  • Nistatina em suspensão oral (100 000 U/mL), PO, 1-2 mL no lactente e 4-6 mL na criança mais velha, 4 vezes/dia, durante 7-10 dias; ou
  • Miconazol a 20% em gel, PO, 1-2 mL no lactente; 3 a 5 mL na criança mais velha, 3-4 vezes/dia; a duração do tratamento é 7-10 dias, salientando-se a conveniência de prolongar o tratamento alguns dias após cura clínica para evitar recidivas.

A prevenção implica a execução de algumas medidas de higiene como esterilização de chupetas e biberões; nos lactentes alimentados ao peito, deve ser observada a glândula mamária (mamilo/aréola) no sentido de detectar eventuais sinais de candidíase, a qual deve ser tratada.

Na doença grave a moderada, sobretudo no doente imunodeprimido, pode ser necessário antifúngico oral, habitualmente fluconazol 3 a 6 mg/kg/dia, 7 a 14 dias.

Candidíase perineal

Surge tipicamente na região do períneo. Caracteriza-se por lesões eritematosas, de bordos elevados, por vezes com pápulas, vesículas ou pústulas na região perianal. Pode estar associada a candidíase oral. O tratamento consiste em antifúngico tópico (por ex. clotrimazol a 1%, miconazol, cetoconazol), 2-3 vezes/dia, durante 7-10 dias.

Uma vez que esta situação pode estar associada a dermatite das fraldas, está indicada a aplicação, em alternância, de pasta de óxido de zinco. Como medidas preventivas, e em complemento, cabe salientar: mudança frequente de fraldas (na idade das fraldas) e secagem cuidadosa da pele.

Outras infecções superficiais por Candida

Citam-se, de modo sucinto:

  1. Glossite (que pode surgir após antibioticoterapia);
  2. Boqueira (sinónimos: ângulo infeccioso ou perlèche) ou lesões de eritema e pequenas fissuras nas comissuras bucais, havendo por vezes factores predisponentes como atopia, imunodepressão, irritação local com pasta dentífrica, elixir, taninos, etc.. Nestas duas situações (glossite e boqueira) aplicam-se os princípios enunciados para o tratamento da candidíase oral;
  3. Dermatoses eritematosas maculovesiculares, por vezes papulares ou em placas, em zonas de pele húmida ou tapada (espaços interdigitais, axilas, virilhas);
  4. Onicomicose (rara, muito difícil de erradicar), a qual pode ser observada em adolescentes manuseando água com frequência. Este quadro poderá associar-se a candidíase mucocutânea.

Candidíase esofágica

Geralmente observada nas crianças imunodeprimidas, é uma doença que pode surgir nas situações de síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA). São factores de risco da citada candidíase a imunossupressão por neoplasia, transplante, imunodeficiência primária, exposição a corticóides e antibioterapia de largo espectro.

Os sintomas mais comuns incluem odinofagia, dor retroesternal ou epigástrica e disfagia. Está frequentemente associada a candidíase da orofaringe. Na endoscopia observam-se placas brancas, eritematosas, com edema, ulceração e por vezes estenose da mucosa esofágica. O diagnóstico histológico é fundamental, evidenciando invasão dos tecidos pelo fungo. O tratamento implica antifúngico sistémico, geralmente fluconazol durante 14 a 21 dias.

2. INFECÇÕES FÚNGICAS SISTÉMICAS

Nesta alínea são descritas algumas formas clínicas de infecção fúngica sistémica, salientando-se (dentro da raridade) a sua ocorrência mais frequente nos doentes em estado grave, em geral hospitalizados, e portadores de imunodeficiência de etiologia diversa.

2.1 Candidíase sistémica ou invasiva

Etiopatogénese e importância do problema

Na idade pediátrica, a incidência de candidíase invasiva tem aumentado nos últimos anos, variando entre 35 a 50/100 000 internamentos. A disseminação surge em 8,3% a 17% dos casos e está associada a uma mortalidade elevada (7,7% a 26%).

Merecem referência como grupos mais afectados: o RN pré-termo MBP e os doentes com infecção por VIH/SIDA, cancro e os transplantados com compromisso do estado imunitário.

Mais recentemente, em crianças com patologia gastrintestinal, nomeadamente síndroma do intestino curto ou submetidos a intervenções cirúrgicas complexas, verifica-se incremento do risco.

São poucos os estudos que definem os factores de risco de doença invasiva por Candida na idade pediátrica. A presença de cateter venoso central, alimentação parentérica, prescrição prévia de vancomicina ou de antibióticos com espectro de acção para anaeróbios, e a terapêutica imunossupressora em doentes transplantados ou com doença oncológica, foram alguns dos factores identificados.

Manifestações clínicas

Os sinais clínicos de candidíase sistémica são os de sépsis por outros agentes. No lactente e RN é mais frequente a meningite, o choque séptico e a candidémia persistente. A candidíase congénita é rara, mas pode surgir no recém-nascido de termo, manifestando-se como eritema difuso e neutrofilia nas primeiras 24 horas de vida. A candidíase disseminada pode afectar meninges, olhos, coração, pulmões, rins ou ossos. É muito frequente no doente oncológico, sobretudo após transplante de medula óssea. Se não tratada, pode evoluir para um quadro de choque séptico (forma aguda) ou para candidíase crónica disseminada (forma crónica).

A doença renal é manifestada por candidúria; contudo, o isolamento de Candida na urina poderá traduzir eventual colonização, cistite ou pielonefrite com ou sem micetomas (bolas de fungos). Poderão surgir microabcessos, necrose papilar, distorção dos cálices e obstrução da via excretora (do lume ou exterior ao lume).

A meningoencefalite é mais comum no RN, a endocardite surge habitualmente em crianças com valvulopatia e a osteomielite, rara, é mais frequente em lactentes e crianças pequenas. O envolvimento ocular pode surgir no contexto de candidémia e doença disseminada, como endoftalmite/retinopatia.

Diagnóstico

O diagnóstico de candidíase sistémica implica o isolamento de Candida de locais habitualmente estéreis. A hemocultura é o exame de eleição, com uma sensibilidade que se aproxima dos 50%. No caso de infecção disseminada, a cultura de tecidos por biópsia poderá ser fundamental para o diagnóstico. O isolamento de Candida nas secreções respiratórias indica colonização e raramente necessita de terapêutica antifúngica.

Nas infecções invasivas é fundamental determinar a susceptibilidade aos triazóis das estirpes isoladas. A detecção de antigénios (como β-D-gulcano) e as técnicas de biologia molecular (PCR) não estão ainda padronizadas para a idade pediátrica.

Em função do contexto clínico, outros exames devem ser realizados:

  • Exame oftalmológico para detecção de retinite ou outras alterações do sistema ocular; aliás, na infecção fúngica sistémica este exame torna-se obrigatório;
  • Hemoculturas seriadas até ficarem negativas;
  • Na suspeita de meningite deve ser analisado o LCR por punção lombar (em particular no RN), na ausência de contraindicação;
  • Sugere-se a avaliação renal, cardíaca e hepática nos doentes imunodeprimidos graves e nos doentes com fungemia persistente;
  • Outros exames de imagem (ecografia, TAC, RM, outros) devem ser ponderados em função do território afectado.

Tratamento

Nos últimos anos têm sido emitidas várias recomendações das sociedades americanas e europeias sobre a terapêutica da candidíase sistémica na idade adulta, com algumas indicações para a pediatria. Salienta-se, contudo, que a terapêutica deve ser sempre adaptada à epidemiologia local, nomeadamente ao tipo de doente, à estirpe isolada e à exposição prévia a antifúngicos.

Assim, de um modo geral, perante a suspeita de candidíase sistémica no doente não neutropénico, a terapêutica empírica inclui fluconazol (8 a 12 mg/kg/dia) ou anfotericina B (habitualmente a lipossómica, na dose de 3-5 mg/kg/dia), ou equinocandina (caspofungina 70 mg/m2/dia, seguida por 50 mg/m2/dia ou micafungina 2-4 mg/kg/dia).

Nos doentes hemodinamicamente instáveis, com doença grave, sob terapêutica profiláctica com fluconazol, ou com infecção prévia por C. krusei ou C. Glabrata, deve dar-se preferência a uma equinocandina ou a anfotericina B lipossómica. No doentes com infecção por C. parapsilosis é preferível optar por fluconazol ou anfotericina B lipossómica.

No período neonatal pode ser utilizada a anfotericina B convencional, uma vez que a toxicidade renal é menos frequente. Nos casos de infecção grave do SNC e endocardite deve associar-se à anfotericina B lipossómica a flucitosina (50-100 mg/kg/dia, em 4 doses com doseamento sérico bissemanal).

A terapêutica deve ser iniciada o mais precocemente possível e mantida durante 14 dias após candidémia negativa, desde que se exclua foco não resolvido ou não haja imunodeficiência grave. Havendo cateter venoso central, o mesmo deverá ser removido, se possível.

Nos casos de terapêutica empírica iniciada com equinocandina, com estabilidade hemodinâmica, estirpe isolada susceptível ao fluconazol e hemoculturas repetidas negativas, recomenda-se a transição para fluconazol.

No caso de disseminação, a terapêutica deverá ser prolongada de acordo com a focalização e doença de base.

Prognóstico

O prognóstico depende da focalização e do estado imunitário do doente, com uma mortalidade que varia entre 7,7% a 26% nas séries pediátricas.

Nos RN prematuros as infecções invasivas por Candida estão associadas a atraso no neurodesenvolvimento e elevada mortalidade (35% a 66%).

2.2 Aspergilose

Importância do problema

A aspergilose evidencia uma incidência crescente nos últimos anos, associada ao aumento de doentes com imunossupressão grave. A doença invasiva tem geralmente uma mortalidade elevada, sendo actualmente a causa mais frequente de morte por micose sistémica.

Trata-se duma infecção fúngica de larga distribuição mundial. Estão descritas aproximadamente 185 espécies de Aspergillus, das quais cerca de 19 estão associadas a doença humana, na sua maioria por Aspergillus fumigatus e, em menor grau a A. flavus, A. niger, A. terreus e A. nidulans; a identificação destas espécies é importante por motivos terapêuticos.

Aspergillus spp é um membro dos Eumicetas (fungos verdadeiros), produzindo micélio e esporos assexuados (conídias) que são libertados para a atmosfera, podendo ser encontrados em qualquer local, incluindo o ambiente hospitalar.

Etiopatogénese, manifestações clínicas e diagnóstico

Na maioria dos casos, a doença por Aspergillus afecta o pulmão na medida em que o primeiro evento para que aquela surja é a inalação do fungo. Em muitos casos verifica-se a circunstância de obras de construção civil com libertação de poeiras contaminadas com esporos do fungo.

Os neutrófilos e macrófagos são fundamentais na defesa contra a doença invasiva. Os macrófagos alveolares, a primeira defesa, são responsáveis pela eliminação das conídias inaladas. Numa segunda fase os neutrófilos impedem a infecção invasiva.

Ao abordar o tema relacionado com este fungo, é importante falar nas micotoxinas, uma das quais, a aflatoxina, produzida por algumas espécies de A. flavus, que pode contaminar os cereais e outros alimentos; também é um potente carcinogénio cujo papel na doença humana não está esclarecido.

Salienta-se que o agente Aspergillus é altamente angiotrópico.

A infecção por Aspergillus spp pode manifestar-se como 3 síndromas distintas relacionadas com a imunocompetência do hospedeiro:

  • Duas formas de aspergilose não invasiva são observadas em doentes com sistema imune normal ou ligeiramente alterado: aspergiloma pulmonar e aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA); e
  • Outra forma, aspergilose invasiva, podendo a invasão ser local ou disseminada, afectando os hospedeiros gravemente imunossuprimidos.(#)

(#)Para além das formas descritas, descrevem-se ainda as chamadas síndromas não invasivas saprofíticas em crianças imunocompetentes, traduzidas essencialmente por colonização com o fungo ao nível do canal auditivo externo (otomicose) e aspergiloma pulmonar.

 

No caso da ABPA, existe uma resposta alérgica a Aspergillus spp (adquiridos por inalação), por hipersensibilidade de tipo I e III.

No aspergiloma, como o nome parece indiciar, existe acumulação de fungos (micélios) em forma de bola, ocupando uma cavidade pulmonar pré-existente.

A aspergilose invasiva, a forma de apresentação mais grave, ocorre no contexto de doentes com imunodeficiência grave primária (em particular doença granulomatosa crónica), ou adquirida (sobretudo imunossupressão pós-transplante, corticoterapia prolongada, e neutropénia).

A aspergilose pulmonar invasiva manifesta-se de forma subtil e heterogénea nos doentes imunodeprimidos, com tosse seca, febre, dificuldade respiratória, dor pleurítica e novos infiltrados pulmonares como sinais radiográficos; com a progressão da infecção pode associar-se hemoptise (por vezes maciça) e taquicárdia. Cerca de 2-3 semanas depois pode verificar-se cavitação pulmonar no contexto de imunodeficiência e de estado geral grave símile septicémia bacteriana e eventual disseminação. Ao contrário dos doentes neutropénicos em que a doença é aguda e rapidamente progressiva, nos doentes com doença granulomatosa crónica a apresentação é crónica e insidiosa, com astenia, presença ou não de febre, aumento da velocidade de sedimentação e sinais de pneumonia. Neste grupo particular de doentes não ocorre angioinvasão.

No contexto de imunodeficiência e de estado geral grave surge a possibilidade de formação de focos metastáticos em diversos órgãos [seios perinasais (sinusite recorrente, polipose)], pele (placas eritematosas que evoluem para escaras-ecthyma gangrenosum), globo ocular (retinite, celulite orbitária, etc.), SNC (meningite, enfartes e abcessos cerebrais), osso (osteomielite), e coração (endocardite).

O diagnóstico da infecção, considerada de modo global, implica a documentação histopatológica e com exames culturais.

Na prática clínica, para o diagnóstico da ABPA, considera-se imprescindível a verificação dos seguintes critérios: história de obstrução brônquica, eosinófilos no sangue > 500/mm3, IgE total sérica elevada, detecção de precipitinas para Aspergillus, aumento da IgE específicas para Aspergillus, prova cutânea positiva para Aspergillus, sinais radiográficos evidenciando infiltrados pulmonares e bronquiectasias centrais.

De salientar que o diagnóstico da doença invasiva é difícil. Considera-se este diagnóstico se houver identificação de Aspergillus por microscopia ou cultura em tecidos habitualmente estéreis, obtidos por biópsia (tendo em atenção que, encontrando-se no ambiente o Aspergillus, será preciso demonstrar a sua presença intratecidual. Importa referir que a hemocultura é geralmente negativa, mesmo na forma disseminada.

Tratamento

  • Nas síndromas de hipersensibilidade estão indicados corticóides sistémicos: prednisona oral (0,5 a 1 mg/kg/dia durante 14 dias, e depois em dias alternados durante 6 a 8 semanas, com redução progressiva). A remissão clínica e radiológica, assim como a redução dos nível de IgE sérico, determinam a interrupção do tratamento.
    Nos doentes que necessitam de uma dose elevada de corticóides recomenda-se a associação de itraconazol 5 mg/kg durante 16 semanas, com monitorização dos níveis séricos.
    Dado que a doença se correlaciona com níveis elevados de IgE relacionada com a carga fúngica, está em investigação o emprego de anticorpos anti-IgE (omalizumab) associados a antifúngicos na forma broncopulmonar alérgica.
  • Em situações específicas de aspergiloma está indicada ressecção cirúrgica associada a antifúngicos, ponderados os riscos.
  • Na aspergilose invasiva, o voriconazol (PO ou IV) é considerado o agente de primeira linha:
    • IV: dose de carga 9-14 mg/kg/dose, seguido de 8 mg/kg de 12/12h; nos adolescentes a dose será semelhante aos adultos (dose de carga 6 mg/kg/dose de 12/12h, seguidas de 4 mg/kg/dose de 12/12h); oral: 9 mg/kg/dose 12/12h (acima dos 50 kg, dose de adulto 200 mg 12/12h).

Este tratamento requer monitorização do nível sérico “em vale” com valores superiores a 1,0 μg/mL). Como agentes alternativos de segunda linha emprega-se a anfotericina B lipossómica (3-5 mg/kg/dia), posaconazol, caspofungina ou micafungina.

A duração do tratamento depende da gravidade da imunossupressão, da localização da doença e da evolução clínica; o mesmo pode ser iniciado IV, passando a PO à medida que se verifica a melhoria.

Prognóstico

O prognóstico é reservado nas formas invasivas, comportando mortalidade ~ 70%; o mesmo está também condicionado pela doença de base.

Prevenção

Nos doentes de alto risco (com cancro, neutropénia e submetidos a quimioterapia) tem sido preconizada a administração de anfotericina B em aerossol, ou de itraconazol PO (2,5-5 mg/kg/dia em duas doses diárias) como quimioprofilaxia. Tendo em conta a etiopatogénese, tais doentes deverão ser afastados de zonas de obras e de poluição.

2.3 Criptococose

Importância do problema 

A criptococose é uma doença fúngica invasiva provocada por C. neoformans, uma levedura monomórfica capsulada. Cursa habitualmente com meningoencefalite e pneumonia e afecta tanto doentes imunodeprimidos como imunocompetentes, sendo menos frequente em crianças.

O agente, de distribuição mundial, tem 4 serótipos (A, B, C, D): os serótipos B e C, antes conhecidos por C. neoformans var. gatti e actualmente designados por C. gattii, relacionam-se com infecções prevalentes nas regiões tropicais e subtropicais, designadamente em certas regiões da Austrália e afectam mais frequentemente imunocompetentes; os serótipos A (C. neoformans var. grubii) e D (C. neoformans var. neoformans) são geralmente considerados agentes oportunistas e estão associados a infecções em doentes com imunodeficiência congénita, ou adquirida, sobretudo em relação com infecção por VIH/SIDA e terapêutica imunossupressora em doenças linfoproliferativas.

Etiopatogénese

Admite-se que, na maior parte dos casos, a infecção seja adquirida por inalação de esporos, não se verificando transmissão de pessoa a pessoa. Raramente a infecção pode ser adquirida por via cutânea ou ocular.

As estirpes virulentas de C. neoformans possuem uma cápsula espessa constituída por polissacáridos, que protege o agente infeccioso da fagocitose por macrófagos e neutrófilos. A imunidade celular T é fundamental na defesa contra a infecção, sendo a resposta Th1 protectora e a resposta Th2 facilitadora da infecção. Atingidos os pulmões, pode surgir um quadro de pneumonia com formação de granulomas contendo leveduras, em geral de localização subpleural. Nas circunstâncias de falência do sistema imune para conter a infecção, o agente ultrapassa a barreira alvéolo-capilar e atinge, por via hematogénica, outros órgãos e sistemas (meninges, cérebro, pele, globo ocular, próstata e sistema esquelético). Ou seja, a infecção disseminada pode ocorrer secundariamente a doença pulmonar em doentes com disfunção imunitária de células T, incluindo crianças com leucémia ou linfomas, submetidas a transplante de órgãos sólidos ou com imunodeficiência congénita ou adquirida (SIDA).

Manifestações clínicas

As principais manifestações são:

  • Meningite subaguda ou crónica com cefaleias intensas associadas a alterações inespecíficas como febre, astenia, náuseas e vómitos. Podem surgir alterações do comportamento e personalidade, sinais neurológicos focais e, por vezes, sinais de hipertensão intracraniana; trata-se da forma mais grave e frequente (~ 50% dos casos);
  • Pneumonia, geralmente assintomática ou ligeira, com sintomas inespecíficos como tosse, toracalgia, dificuldade respiratória, perda ponderal e fadiga (~ 30% dos casos);
  • Doença grave disseminada (em geral nos doentes com SIDA), assumindo um quadro clínico símile septicémia com disfunção multiorgânica e prognóstico reservado;
  • Infecção cutânea (lesões nodulares, podendo ulcerar, pústulas ou celulite) (Figura 3);
  • Infecção esquelética com compromisso frequente das vértebras;
  • Infecção ocular (coriorretinite);
  • Linfadenopatia generalizada.

FIGURA 3. Lesões cutâneas nodulares de Criptococose [regiões nasal (ulceradas), labial, geniana, auricular e retroauricular]. (NIHDE)

Diagnóstico

O diagnóstico específico depende da demonstração do fungo (observação directa com microscópio, ou após cultura) ou do seu antigénio capsular no LCR, sangue, ou outros locais atingidos pela infecção; salienta-se, no entanto, que o C. neoformans pode estar presente na expectoração na ausência de doença.

O exame do LCR poderá não revelar alterações, sobretudo nos doentes com SIDA. Nos estudos pediátricos verificou-se que a celularidade é normal em 50% dos casos, podendo variar entre 10-300/mm3 nos restantes casos; existe sempre predomínio de linfócitos.

Habitualmente a glicorráquia e proteinorráquia são também normais. No LCR a formação de um halo com coloração de tinta da china tem uma sensibilidade de 50% a 80%.

No mercado existem kits que permitem a detecção do antigénio capsular no soro ou LCR, com uma sensibilidade e especificidade de 95% no LCR. Falsos negativos surgem quando as concentrações do antigénio são muito baixas ou muito elevadas (Prozona), a estirpe não é capsulada ou o doente é ligeiramente pouco imunodeprimido.

A radiografia do tórax pode evidenciar opacidades nodulares e/ou linfadenopatia hilar.

Na meningoencefalite criptocócica as alterações imagiológicas são inicialmente parcas. Através da RM, pode verificar-se captação meníngea em 15% dos casos. Ocasionalmente pode surgir hidrocefalia, edema cerebral ou massas granulomatosas denominadas criptococomas.

Diagnóstico diferencial

Perante quadro de infecção sistémica acompanhada de meningite, o diagnóstico diferencial inclui investigar, entre diversas causas de meningite, em particular, a tuberculose. As lesões cutâneas impõem que o mesmo se faça com molluscum contagiosum e histoplasmose, designadamente nos doentes com SIDA.

Tratamento e prognóstico

  1. Nos doentes com doença do sistema nervoso central ou outra forma grave associa-se a anfotericina B convencional (1 mg/kg/dia) ou lipossómica (3 a 6 mg/kg/dia) com a 5-flucitosina (100 mg/kg/dia, para níveis séricos entre 30 a 80 μg/mL) durante duas semanas (terapêutica de indução), seguida de fluconazol 12 mg/kg/dia durante 8 semanas (máximo 800 mg; terapêutica de manutenção); deve ser realizada punção lombar após duas semanas para documentar a esterilização. Nos doentes com cultura positiva às 2 semanas a terapêutica deverá ser prolongada.
  2. Nos casos de disfunção imunitária (SIDA e outras) em que são frequentes as recaídas após paragem do tratamento deverá manter-se a terapêutica supressiva com fluconazol (6 a 10 mg/kg/dia).
  3. Nos casos de doença pulmonar sintomática: fluconazol 10 a 12 mg/kg/dia, sendo a duração do tratamento guiada pela evolução clínica, serológica e radiográfica. As novas gerações de azóis (voriconazol e posaconazol) são também efectivas contra a infecção por Cryptococcus; tal não acontece, no entanto, com as equinocandinas (micafungina e caspofungina).

Com a terapêutica antiretrovírica associada nos casos de SIDA o prognóstico melhorou. Uma das complicações da meningite por criptococose é a hidrocefalia obstrutiva.

Prevenção

A administração profiláctica de fluconazol em doentes com infecção por VIH poderá reduzir significativamente o risco de criptococose; contudo, na prática, este tipo de quimioprofilaxia não está indicado, tendo em conta a reduzida prevalência de tal patologia fúngica associada.

2.4 Blastomicose

Importância do problema 

A blastomicose é uma doença fúngica rara causada por Blastomyces dermatitidis, fungo dimorfo (micelar quando na natureza, e leveduriforme, com cápsula espessa, quando nos tecidos). Trata-se duma doença endémica, rara em idade pediátrica (abaixo dos 15 anos, corresponde a ~ 2%-10% dos casos notificados em todas as idades). Estão descritos casos em todos os continentes, sendo a maioria dos casos da região central da América do Norte, alguns locais de África e Médio Oriente. O agente, difícil de isolar no solo, aparece sobretudo em cursos de água. A doença adquire-se por inalação de esporos (na espécie humana e em animais), não se transmitindo de pessoa a pessoa. A infecção também pode ser adquirida através de lesão cutânea.

Etiopatogénese

O local primário de infecção é, em geral, o pulmão. Os esporos, atingindo os alvéolos, iniciam germinação, passando a formas leveduriformes. Embora, na maioria das vezes, os esporos sejam fagocitados pelos macrófagos antes de surgir infecção, os que sobrevivem originam pneumonite, podendo seguir-se disseminação hematogénica. Como resposta imune à invasão do agente, neutrófilos e macrófagos migram para os tecidos infectados. O resultado final é uma resposta piogranulomatosa associada a necrose e ulterior fibrose. As lesões cutâneas podem ser secundárias a disseminação hematogénica ou a inoculação directa.

Manifestações clínicas

A infecção por Blastomyces dermatitidis pode ser assintomática, autolimitada, e, por isso, não diagnosticada. Os sinais e sintomas são muito variáveis, entre: pneumonia aguda autolimitada associada a sinais gerais e inespecíficos como tosse, febre, perda ponderal, cefaleias, dor abdominal, sudorese nocturna; e quadro de doença aguda, crónica ou fulminante.

De salientar que a pneumonia aguda por blastomicose poderá não regredir espontaneamente e manifestar-se por vezes como infecção pulmonar subaguda ou crónica, manifestando-se como perda de peso, astenia e tosse, semelhante à tuberculose, sarcoidose e histoplasmose. Por vezes acompanha-se de eritema nodoso. A apresentação como nódulos ou derrame pleural é muito menos frequente.

As manifestações extrapulmonares incluem, entre outras, alterações cutâneas (a manifestação extrapulmonar mais frequente, sob a forma de lesões verrugosas ou ulcerações), lesões osteoarticulares (osteomielite), génito-urinárias e do sistema reticuloendotelial (fígado, baço, gânglios linfáticos, medula).

Diagnóstico

A blastomicose, embora rara na idade pediátrica, deve ser suspeitada em doentes vivendo em áreas endémicas, com lesões granulomatosas e ulceradas da pele ou mucosas, tendendo para a cronicidade. A forma crónica não se distingue da tuberculose, histoplasmose ou coccidioidomicose.

O diagnóstico definitivo faz-se através de exame directo em microscopia e de isolamento por cultura do fungo a partir das lesões (tecidos e fluidos corporais infectados).

É possível a detecção de antigénio específico na urina (método ELISA, por ex.) mas existem reacções cruzadas com outros fungos; um resultado negativo não exclui infecção. Os métodos serológicos têm uma sensibilidade baixa e não devem ser usados.

O exame radiográfico do tórax pode evidenciar sinais de consolidação, infiltrados intersticiais e alveolares, geralmente sem cavitação.

Tratamento

O tratamento da blastomicose depende da gravidade da infecção, envolvimento do SNC e a integridade do sistema imune. O tratamento é recomendado para todos os doentes pelo risco de disseminação.

A anfotericina B convencional (0,7-1 mg/kg/dia) ou a anfotericina B lipossómica (3-5 mg/kg/dia, preferida se houver envolvimento do SNC) são recomendadas na terapêutica inicial da doença grave; nas formas moderadas a ligeiras ou após estabilidade clínica nas formas graves recomenda-se itraconazol oral (10 mg/kg/dia). O tratamento deverá durar 6-12 meses, sendo no mínimo de 12 meses nas infecções do SNC e osteomielite.

2.5 Coccidioidomicose   

Importância do problema

A coccidioidomicose, também designada por febre de São Joaquim (nome derivado do vale de São Joaquim na Califórnia, onde a doença tem alta prevalência), é uma doença causada por um fungo dimórfico (Coccidioides immitis), existindo no solo sob a forma micelar/filamentosa, e nos tecidos sob a forma esporular. Uma segunda espécie (C. posadasii) com idêntica patogenicidade foi isolada em áreas fora da Califórnia.

Endémica em certas regiões da América do Norte, México, América Central e América do Sul incluindo Brasil, pode afectar hospedeiros com e sem imunodeficiência. A doença confere imunidade permanente (resposta TH1 ou T helper 1).

Etiopatogénese

A doença adquire-se através das conídias na fase micelar saprofítica (altamente infecciosas) que podem ser inaladas com a poeira do solo ou penetrar na pele em que se verifica solução de continuidade. Após inalação pode surgir doença cerca de 3 dias depois, coincidindo com a evolução para a forma esporular (esférula endosporo). A reacção tecidual é inflamatória, com influxo de neutrófilos e formação de granuloma. Não existe transmissão pessoa a pessoa (exceptuando a eventualidade de através de órgãos transplantados), mas foi descrita transmissão vertical mãe-feto.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos a sintomatologia é semelhante à de síndroma gripal (cefaleias, febre, artralgias e mialgias), por vezes associada a pneumonia, com recuperação espontânea. Como sequelas pulmonares poderão aparecer ocasional e paulatinamente nódulos ou cavidades, sobretudo em doentes com diabetes; tal achado pode verificar-se após radiografia do tórax, o que demonstra que tal evolução é assintomática ou oligossintomática.

A infecção aguda pode estar associada a exantema, eritema multiforme, assim como eritema nodoso. Verifica-se disseminação extrapulmonar (osteoarticular, do SNC, renal e cutâneo) em 0,5% dos casos, associada a imunodeficiência. Os locais mais frequentes de disseminação são a pele, o sistema osteoarticular e o sistema nervoso central.

Diagnóstico

O diagnóstico pode ser confirmado por:

  • Exame microscópico directo e por cultura da expectoração, pus ou sangue;
  • Provas serológicas (fixação do complemento, EIA) para doseamento de IgG e IgM; em 50% a 90% das infecções primárias a IgM é positiva entre a primeira e a terceira semana de doença; títulos de IgG > 1/16 estão em geral associados a infecções mais graves;
  • Detecção do antigénio na urina, soro ou lavado broncoalveolar, evidenciando uma sensibilidade mais elevada na doença grave (podem ocorrer reações cruzadas);
  • Exame radiográfico do tórax poderá evidenciar sinais de infiltrados com adenopatia hilar, de derrame ou de cavitações (nas formas complicadas).

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente com a tuberculose, tendo em consideração o quadro febril, os achados radiológicos torácicos e o eritema nodoso.

Tratamento e prognóstico

A coccidioidomicose primária raramente exige tratamento que não seja sintomático.

O tratamento específico (que engloba vários esquemas) deve ficar reservado para as formas graves associadas a títulos de anticorpos fixadores do complemento IgG > 1/16 (pós-primárias, primárias graves, disseminadas, ou de evolução subaguda ou crónica).

Nestes casos recomenda-se fluconazol (10 mg/kg/dia), ou itraconazol (nível > 1 μg/ml) PO 2,5-5 mg/kg/ dia, 3 a 6 meses.

A anfotericina B lipossómica está indicada nas formas disseminadas, em doses até 3-5 mg/kg/dia. Se houver compromisso do SNC pode ser dada também por via intratecal (0,1-0,5 mg/kg/dia), designadamente se se tratar de C. immitis. O tratamento deve durar até resolução da sintomatologia, em regra, e no mínimo, ~ 6 meses.

O prognóstico da coccidioidomicose é excelente, o da pós-primária é bom, e o da forma disseminada é muito reservado a mau, sobretudo se houver infecção meníngea.

Prevenção

A prevenção diz respeito à evicção da exposição a conídias. Uma vez que as vacinas holocelulares mortas são ineficazes, presentemente está em fase de investigação uma vacina subcelular.

2.6 Histoplasmose

Importância do problema

A histoplasmose é uma infecção pelo fungo dimórfico Histoplasma capsulatum cujas formas infectantes são as macro e microconídeas (esporos) das formas micelares; as mesmas encontram-se no solo rico em nitratos, com dejectos de aves e morcegos, e em zonas de pó com prédios e madeiras em ruínas. Os esporos podem ser transportados nas asas das aves.

Esta infecção tem distribuição mundial (estimando-se cerca de 200 000-500 000 casos anuais), sendo endémica nas regiões oriental e central dos EUA e América Latina. Na Europa e Ásia têm sido descritos casos esporádicos. Pode afectar crianças com e sem imunodeficiência. Não se transmite de pessoa a pessoa.

Etiopatogénese

A infecção surge pela inalação das microconídeas. Nos pulmões, os esporos germinam, evoluindo para formas leveduriformes que, provocando influxo de neutrófilos, linfócitos e macrófagos, levam à formação de granulomas. As formas leveduriformes podem sobreviver nos macrófagos e sistema reticuloendotelial durante anos.

As anomalias primárias ou adquiridas da função de imunidade celular, assim como a imaturidade relativa da imunidade celular na primeira infância, são factores de risco quanto a disseminação do microrganismo.

Verificando-se disfunção dos linfócitos T, o foco infeccioso inicial pode expandir-se e disseminar-se. A probabilidade de infecção é directamente proporcional à carga de inóculo, sendo que aquela poderá ser assintomática e autolimitada em 10%-50% dos casos.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos as infecções são subclínicas ou autolimitadas, não requerendo confirmação laboratorial.

Quando sintomática, a infecção pode ser pulmonar, extrapulmonar ou disseminada; e ainda, aguda ou crónica. Na maioria, apresenta-se sob a forma pulmonar aguda, com sintomas ligeiros (febre, tosse, mal-estar geral, adenopatia hilar e escassos infiltrados pulmonares). Nalguns casos pode surgir também envolvimento do mediastino, artrite, pericardite ou eritema nodoso.

Nas áreas endémicas pode ser observada uma forma cutâneo-mucosa com formação de granulomas. Nas referidas áreas endémicas, em crianças com aparente bom estado geral, uma radiografia torácica eventualmente realizada, evidenciando sinais compatíveis com granulomas típicos, poderá determinar a realização de exames laboratoriais.

A histoplasmose disseminada é uma doença progressiva mais rara, cujo foco inicial tem como ponto de partida a infecção primária do pulmão. Surgindo quase exclusivamente em crianças com imunodeficiência, pode seguir-se à infecção aguda, ou manifestar-se anos mais tarde, com febre prolongada (semanas ou meses), hepatosplenomegália progressiva, choque e disfunção multiorgânica com insuficiência hepática, renal, aplasia medular, compromisso do SNC e CIVD (quadro septicémico).

Diagnóstico

Dum modo geral, a realização de exames laboratoriais poderá ser necessária em doentes sintomáticos com quadro clínico podendo sugerir outros agentes patogénicos tais como Mycobacterium tuberculosis, Blastomyces dermatiditis, ou outros, susceptíveis de provocar inflamação granulomatosa.

O diagnóstico implica um elevado índice de suspeita numa criança que viva (ou tenha estado) em zona endémica e a eventual realização dum conjunto de exames complementares a saber:

  • Exame cultural para isolamento do agente (sangue, LCR, urina, lavado broncoalveolar, biópsias de tecidos infectados);
  • Detecção de antigénio por método ELISA (soro, urina, lavado broncoalveolar);
  • Detecção de anticorpos/fixação do complemento (sendo possível surgir reacções cruzadas); títulos > 1/32 ou aumento superior a 4 vezes o título cerca de 4-6 semanas após exposição ao fungo sugerem o diagnóstico.

O diagnóstico diferencial, tendo em conta a doença pulmonar e o padrão radiográfico do tórax, faz-se fundamentalmente com a tuberculose miliar.

Tratamento

Verificando-se a infecção pulmonar primária nos doentes sem imunodeficiência, não está indicado tratamento específico em tais circunstâncias. Como se pode depreender, estão indicadas medidas habituais de suporte para as infecções das vias respiratórias inferiores como oxigenoterapia, fluidoterapia, etc..

Não se verificando melhoria clínica do quadro de infecção pulmonar ao final de 1 mês, está indicado o tratamento com itraconazol 5 mg/kg/dia 6 a 12 semanas (níveis séricos > 1 μg/ml). Nos casos pulmonares graves sugere-se anfotericina B lipossómica (3 mg/kg/dia) IV durante 1-2 semanas, seguida de itraconazol PO (2-5 mg/kg/dia) durante 12 semanas. Nas crianças com imunodeficiência, a terapêutica poderá ser mais prolongada, até 1 ano.

Nas crianças com imunodeficiência, designadamente com infecção por VIH vivendo em zonas endémicas, poderá ser considerada a quimioprofilaxia com itraconazol (2-5 mg/kg cada 12 ou 24 horas).

A corticoterapia, num período curto e sempre concomitantemente com a terapêutica anti-fúngica, deverá ser reservada para as situações com alteração ventilatória secundária a adenopatias importantes, levando a obstrução da via respiratória.

2.7 Pneumocistose

Importância do problema

A infecção por Pneumocystis jiroveci (anteriormente designado P. carinii) origina um quadro de pneumonia intersticial (sigla habitual do inglês – PCP, significando Pneumocystis pneumonia) no contexto de determinados factores predisponentes (imunodeficiência), na maioria dos casos em crianças antes dos 4 anos. Nos doentes imunocompetentes a infecção é geralmente subclínica e não diagnosticada.

Mesmo nas formas mais graves de infecção, com raras excepções, a doença localiza-se no pulmão. Actualmente, este agente é classificado como fungo e não como protozoário (com base na análise da sequenciação do DNA), apesar de possuir diversas semelhanças morfológicas e biológicas com os protozoários.

Uma vez que o microrganismo pode também infectar outras espécies animais, designadamente mamíferos, alguns autores continuam a utilizar a nomenclatura P. carinii seguida da sigla f.sp (forma specialis) para designar especificamente a infecção em determinados hospedeiros; por ex. P. carinii f.sp.ratti, P. carinii f.sp muris, P. carinii f.sp. hominis, etc..

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

O microrganismo está distribuído por todo o mundo. De acordo com estudos serológicos, a maior parte das pessoas é infectada antes dos 2 anos de idade; as infecções em crianças imunocompetentes são geralmente assintomáticas, demonstrando-se a presença de anticorpos em cerca de 75% dos casos.

Os factores predisponentes de pneumonia são: imunodeficiência congénita ou adquirida (designadamente infecção por VIH), desnutrição, doenças do foro oncológico, doentes submetidos a transplante de órgãos, corticoterapia, terapêutica imunossupressora, sobretudo com anti-TNF, etc.. Segundo alguns estudos, o microrganismo foi isolado nos pulmões de lactentes com síndroma de morte súbita, sem se ter concluído sobre a possível relação causa-efeito.

O habitat natural e o modo de transmissão ao homem são desconhecidos. A transmissão entre animais faz-se por via inalatória, sendo provável que a transmissão inter-humana se faça da mesma maneira; a transmissão animal-homem é pouco provável pelo facto de determinadas espécies do agente infectarem determinadas espécies de hospedeiros (ver atrás forma specialis).

Nos espaços alveolares encontram-se 2 formas de P. jiroveci (cuja terminologia deriva da similitude com a morfologia dos protozoários): quistos com 5-8 um de diâmetro contendo esporozoítos intraquísticos; e trofozoítos extraquísticos. O microrganismo, atingido o alvéolo, adere aos pneumatócitos de tipo I com o auxílio de proteínas adesivas como a fibronectina.

A capacidade de o agente provocar lesão anátomo-patológica pulmonar depende fundamentalmente da normalidade dos mecanismos de imunidade celular. Com efeito, em estudos realizados em doentes com SIDA, verificou-se aumento da incidência de pneumonia relacionada com a diminuição do número de linfócitos T CD4+ (sobretudo no grupo etário 3-6 meses).

Admite-se que os referidos linfócitos tenham papel importante na depuração dos microrganismos interagindo com fagócitos, complemento, e activação dos macrófagos; em caso de disfunção deste processo, produz-se lesão inflamatória conduzindo a destruição do surfactante, entre outros efeitos.

As consequências anátomo-patológicas são a génese de 2 quadros morfológicos: pneumonite intersticial de plasmócitos (sobretudo em lactentes com desnutrição, em que predominam plasmócitos no processo inflamatório, e se verifica infiltração com espessamento dos septos alveolares); e pneumonite alveolar descamativa difusa (sobretudo em crianças e adultos com imunodeficiência, em que há exsudado alveolar sem compromisso dos septos alveolares, e sem plasmócitos).

De salientar que a quimioprofilaxia associada a terapêutica anti-retrovírica activa na actual chamada “era HAART “(highly active antiretroviral therapy), contribuíram para reduzir significativamente o nº de casos/100 doentes-ano: de 5,8 (anteriormente) para 0,3.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas, em geral de início insidioso, incluem febre, dificuldade respiratória de grau variável, tosse não produtiva e sinais de hipóxia. Em geral, os sinais auscultatórios são discretos ou ausentes. A intensidade dos sinais e sintomas varia, podendo ser aguda ou fulminante, dependendo da imunossupressão do doente. (Figura 4)

Exames complementares e diagnóstico

A radiografia do tórax revela infiltrado intersticial difuso ou alveolar e, mais raramente, lesões lobares, miliares ou nodulares; contudo, pode não surgir qualquer alteração radiológica nas fases iniciais da doença. (Figura 5)

Para o diagnóstico etiológico, torna-se fundamental identificar o agente (por diversas técnicas como imunofluorescência, por técnica altamente específica e sensível empregando anticorpo monoclonal conjugado com fluorescência, ou PCR, com boa sensibilidade, mas especificidade inferior a 85%-90%) no lavado broncoalveolar, em expectoração induzida (crianças mais velhas), ou por métodos invasivos (por ex. biópsia pulmonar).

FIGURA 4. Criança com SIDA. Aspecto geral emagrecido associado a pneumonia por P. jiroveci. (NIHDE)

FIGURA 5. Padrão radiológico de pneumonia por P. jiroveci no contexto de SIDA/VIH. Opacidades nodulares confluentes ocupando o ⅓ inferior do campo pulmonar direito (incidências póstero-anterior e perfil direito). (NIHDE)

Tratamento

  1. TMP/SMX – ( TMP 15-20 mg/kg/dia; SMX 75-100 mg/kg/dia, dividida em 3 a 4 doses) PO ou IV, durante 14-21 dias – o tratamento de eleição; como alternativa, nos doentes que não toleram o TMP/SMX, ou em que se verifica falência terapêutica, poderá optar-se por:
    • Pentamidina na dose de 4 mg/kg/dia IV, durante 14-21 dias (pode ser alterada para atovaquona ao fim de 7 a 10 dias);
    • Atovaquona PO, na doença ligeira a moderada, 30-40 mg/kg/dia (se 1-3 meses de idade ou > 24 meses); 45 mg/kg/dia (se 4-24 meses de idade) durante 14-21 dias.
  1. Corticóides – foram comprovados benefícios do seu emprego em adolescentes e adultos infectados por VIH e com pneumonia por PCP moderada a grave. Nas crianças, contribuem para reduzir a gravidade da insuficiência respiratória aguda, a necessidade de ventilação e a mortalidade. As doses recomendadas de prednisolona oral (em idades > 13 anos) são: 80 mg/dia divididas em duas doses, nos primeiros 5 dias, 40 mg/dia de D6-D10, e 20 mg/dia D11-D21. Nas crianças mais novas (< 13 anos): 1 mg/kg/dose de 12/12 horas durante 5 dias; 0,5 mg/kg/dose de 12/12 horas de D6-D10 e 0,5 mg/Kg/dia, dose única de D11-D21.
  1. Tratando-se duma pneumonia, tal obriga a medidas de suporte geral abordadas na Parte sobre Pneumologia.

Quimioprofilaxia

A verificação de determinados factores de risco estabelecem a indicação de quimioprofilaxia: doentes imunodeprimidos com um episódio prévio de pneumonia por Pneumocystis jiroveci, crianças com imunodeficiência celular grave, receptores de transplante de órgãos, doenças linfoproliferativas ou outro tipo de neoplasias que requerem quimioterapia intensa, crianças com infecção VIH suspeita ou confirmada.

Nestes últimos, deve ser efectuada profilaxia desde as 4 a 6 semanas até um ano de idade, até exclusão de infecção VIH (por ex. lactentes de mães com infecção por VIH).

Após um ano de idade, a necessidade de quimioprofilaxia é orientada pela percentagem e número de linfócitos T CD4+. O fármaco de primeira linha é o TMP-SMX (respectivamente 5 mg/kg – 25 mg/kg/dia), dividido em duas tomas diárias, 3 dias por semana, consecutivos). A pentamidina aerossolizada, a atovaquona e dapsona são alternativas de segunda linha se o TMP-SMX não for tolerado.

Prognóstico

O prognóstico da pneumonia por Pneumocystis jiroveci depende da imunodeficiência subjacente, comporta mortalidade que poderá oscilar entre 25% e 40% nos doentes com neoplasias e 5% a 10% nos doentes com SIDA. Sem tratamento é, em geral, fatal.

2.8 Outras infecções fúngicas sistémicas

Citam-se, por fim, e de modo sucinto, dois tipos de infecções fúngicas sistémicas, mais raras, as quais fazem parte duma lista mais vasta:

  • Paracoccidioidomicose (Blastomicose sul-americana) causada por Paracoccidioides brasiliensis;
  • Micetoma eumicótico, tendo como agentes mais frequentes Madurella mycetomatis (70%) e Pseudallerscheria boydii e Leptosphaeriae senegalensis (10%), entre outros.

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DOENÇA POR VÍRUS ÉBOLA

Definição e importância do problema

Descrito pela primeira vez em 1976, o vírus Ébola é altamente contagioso, patogénico e associado a elevada taxa de letalidade. Esta última, combinada com a ausência de tratamento e vacinação específicos, tornam-no uma ameaça para a saúde pública; por outro lado, tal agente microbiano constitui uma potencial arma de bioterrorismo.

Aspectos epidemiológicos

O vírus Ébola foi descoberto em 1976 em doentes com quadro de febre hemorrágica em dois locais próximos: inicialmente, no sul do Sudão e, depois, no norte do Zaire (actual República Democrática do Congo). O agente identificado foi nomeado de acordo com um rio no norte da República Democrática do Congo, o rio Ébola.

A posteriori foi reconhecido que as epidemias haviam sido provocadas por estirpes diferentes, a estirpe Sudão e Zaire, respectivamente.

Em 1994 foi identificada pela primeira vez a terceira espécie de vírus Ébola, a estirpe Côte d’Ivoire ou Tai Forest, isolada num etnólogo. Este tinha trabalhado na floresta Tai, na Costa do Marfim e realizado a autópsia de um chimpanzé originário de região onde tinham falecido vários pacientes afectados por febre hemorrágica.

A quarta espécie, a espécie Bundibugyo, isolada no Uganda em 2007, é geneticamente semelhante à estirpe Côte d’Ivoire. Por último, a espécie Reston, foi descrita em 1989 em Reston, nos Estados Unidos da América do Norte, em macacos importados das Filipinas; relativamente à mesma, não são conhecidos, até à data, casos de doença em seres humanos.

Desde a sua descoberta em 1976 até 2012, foram registados 2.387 casos de infecção por vírus Ébola e 1.590 mortes (taxa de letalidade 66,6%), designadamente, na África equatorial (Gabão, Sudão, República Democrática do Congo e Uganda), em que o vírus Ébola é endémico.

No final de 2013 a doença pela estirpe Zaire ebolavirus foi identificada pela primeira vez na África ocidental, mais precisamente na Guiné-Conacri, tendo sido confirmada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Março de 2014.

Atingindo posteriormente os países vizinhos (Libéria, Serra Leoa, Nigéria, Senegal e Mali), segundo dados da OMS a infecção por vírus Ébola passou a ser considerada a maior epidemia da história da doença, tendo-se contabilizado, até Março de 2016, 28.608 casos confirmados, suspeitos e prováveis, incluindo 11.305 mortes.

O aparecimento da doença pela primeira vez numa zona urbana, a elevada densidade populacional dos países atingidos, o vasto movimento de pessoas entre estes, os rituais religiosos praticados e os precários cuidados de saúde são apontados como os principais factores causais da elevada magnitude da epidemia.

Na idade pediátrica registaram-se mais de 5.000 casos, com uma mortalidade de 80% em crianças abaixo dos 5 anos (e 95% abaixo de um ano de idade); estes valores são superiores aos registados nos adultos (faixa etária 15-44 anos, com mortalidade de 70,8%). De salientar que mais de 16.000 crianças ficaram órfãs.

Curiosamente, é baixa a proporção de crianças doentes (17%), não sendo conhecido o motivo pelo qual as crianças são menos atingidas do que os adultos. Equaciona-se que a incidência referida esteja relacionada, não só com uma menor susceptibilidade à infecção, mas também, e sobretudo, com uma menor exposição à doença.

Etiopatogénese

O género Ebolavirus é composto por vírus RNA de cadeia única, não segmentado, com 80 nm de diâmetro e comprimento variável que pode atingir 14.000 nm. Juntamente com o género Marburgvirus, constitui a família Filoviridae (do latim “filum”, filamentoso). (Figura 1)

Trata-se de vírus citoplasmáticos intracelulares que atingem principalmente as células endoteliais e os macrófagos (target cells). Sendo resistentes ao frio, e susceptíveis à radiação solar, à luz artificial, ao calor e a químicos como sabão, álcool e outros antissépticos, a sua sobrevivência depende do hospedeiro.

Vírus Ébola e Marburgo, embora antigenicamente distintos, causam doença semelhante, anteriormente classificada como “Febre hemorrágica”. Contudo, esta designação actualmente é considerada incorrecta para a Doença por Vírus Ébola (DVE), uma vez que, apenas numa baixa percentagem de doentes se desenvolve hemorragia significativa, habitualmente já na fase terminal.

Como referido anteriormente, são conhecidas cinco estirpes de vírus Ébola, apelidadas de acordo com a região onde foram identificadas pela primeira vez: Zaire, Sudão, Costa do Marfim (Tai forest ebolavirus), Bundibugyo e Reston.

FIGURA 1. Estrutura do vírus Ébola (In Center for Disease Control and Prevention).

Destas, apenas a estirpe Reston não provoca doença conhecida no humano. A mais virulenta é a estirpe Zaire, com taxas de mortalidade 55%-85%, seguindo-se a estirpe Sudão, com taxas de 50%, e a Bundibugyo, com 30%. A estirpe Côte d’ Ivoire infectou apenas uma pessoa, que sobreviveu.

O vírus Ébola infecta apenas mamíferos, sendo a doença considerada uma zoonose. O principal reservatório animal é o morcego, cuja infecção é assintomática, ao contrário do que acontece nos restantes mamíferos. Sequências do genoma de Ebolavirus foram encontradas em três espécies de morcegos: Myonycteris torquata, morcego da fruta, implicado no surto de Ébola da África Ocidental, e dois morcegos da fruta, mais raros, o Hepomops franquetti e o Hypsignathus monstrosus, habitando na floresta da África central.

O vírus é transmitido ao Homem através do contacto com animais infectados, como morcegos, macacos e várias espécies de roedores. Por sua vez, o caso index transmite facilmente o vírus, atendendo à sua rápida replicação celular e elevada carga vírica no sangue e fluídos corporais.

O contágio faz-se através do contacto com órgãos, sangue ou outros fluidos corporais (saliva, urina, vómito) de doentes infectados, cadáveres ou materiais contaminados, não estando ainda esclarecidas outras possíveis vias de contágio em que o vírus foi identificado (leite materno e aerossóis).

Manifestações clínicas

Após um período de incubação, em média, de quatro a sete dias (limites ~ 2-21 dias), a doença manifesta-se de forma abrupta e inespecífica através de febre, astenia, mialgias, cefaleia frontal intensa e odinofagia (fase prodrómica com duração média de 10 dias).

Cinco a sete dias após o início dos sintomas, surge exantema maculopapular não pruriginoso no tronco e membros superiores, que se generaliza, tornando-se frequentemente hemorrágico e, posteriormente, descamativo. O exantema é acompanhado de enantema do palato duro, conjuntivite e edema das mucosas.

Na segunda fase da doença surge envolvimento gastrintestinal traduzido por anorexia, náuseas, dor abdominal, vómitos e diarreia, que poderão provocar desidratação, hipotensão e choque. Pode ocorrer ainda envolvimento neurológico, incluindo meningoencefalite ao 10º dia (alteração do estado de consciência, convulsões, rigidez da nuca), e envolvimento ocular com uveíte ao 14º dia (fotofobia e visão “turva”).

Em mais de metade dos casos surgem sinais e sintomas de discrasia hemorrágica prolongada (sobretudo, diarreia com sangue, epistaxe, hematemese, petéquias, equimoses), traduzindo habitualmente a fase final de doença, com falência multiorgânica, coma e morte.

Diagnóstico

Caso suspeito

A OMS define como caso suspeito o que preenche os critérios descritos no Quadro 1

FONTE: Orientação da OMS nº 012/2014, actualizada a 13/11/2015, pela DGS: Doença por vírus Ébola. Definição de Caso e Procedimentos Gerais

Critérios clínicos

e

Critérios epidemiológicos

Febre associada ou não aos seguintes sintomas/sinais:

    • Náuseas, vómitos, diarreia, anorexia, dor abdominal
    • Mialgias, astenia, cãibras, odinofagia
    • Cefaleia, estado de confusão, prostração
    • Conjuntivite, faringe hiperemiada
    • Exantema maculopapular, predominante no tronco
    • Tosse, dor torácica, dificuldade respiratória e/ou dispneia;
    • Hemorragias

Em estádios mais avançados da doença poderá ocorrer insuficiência renal e hepática, distúrbios da coagulação, entre os quais coagulação intravascular disseminada (CIVD) e evolução para falência multiorgânica.

Estadia (viagem ou residência) em área afectada num período de 21 dias antes do início dos sintomas.

ou

Contacto de proximidade com doente nos últimos 21 dias.

Caso provável

  • Doente preenchendo os critérios de caso suspeito e tenha sido validado por profissional de saúde;
  • Caso suspeito falecido no qual não tenha sido possível recolher produtos biológicos para análise, mas que tenha tido ligação epidemiológica comprovada com um caso confirmado, ou ligação epidemiológica a uma área afectada e sintomatologia compatível com doença por vírus Ébola.

Caso confirmado

Caso provável com confirmação laboratorial.

Exames complementares

Os resultados dos exames laboratoriais evidenciam: leucopénia (linfopénia e, posteriormente, neutrofilia; granulócitos imaturos e linfócitos anormais); trombocitopénia; elevação das transaminases; coagulopatia (tempo de protrombina e tempo parcial de tromboplastina prolongados, D-dímeros aumentados); insuficiência renal aguda (creatinina e ureia séricas aumentadas); proteinúria; distúrbios hidro-electrolíticos (hiponatrémia, hipocaliémia, hipomagnesiémia e hipocalcémia).

O diagnóstico é confirmado pela detecção de ARN, no sangue ou noutros fluidos corporais, por ensaio imunoenzimático, ou por teste de ácidos nucleicos (polymerase chain reaction ou PCR). Esta última técnica, com sensibilidade e especificidade elevadas, permite diagnóstico com rapidez; contudo, é dispendiosa.

Durante a epidemia de 2014-2015, foram usados testes rápidos para diagnóstico, através da identificação de sequências específicas de ARN no sangue do doente pela técnica de PCR (Rapid Test PCR). Na maioria dos casos, a infecção é detectada por este método, o qual permite identificar ARN do vírus três dias depois do início dos sintomas. A repetição do teste poderá ser necessária quando o mesmo tiver sido efectuado antes deste período de tempo. A doença é excluída se o resultado da PCR for negativo, passadas mais de 72 horas após o início dos sintomas.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da DVE faz-se com gripe, malária, febre tifóide, sarampo, dengue, febre de Lassa, doença meningocócica e doença de Marburgo.

Actuação perante caso suspeito

Na presença de um doente que tenha estado até 21 dias antes em país atingido pelo surto de Ébola, e que apresente febre ou outra sintomatologia sugestiva (caso suspeito), deve: – evitar-se o contacto físico com outras pessoas; – manter-se uma distância mínima de dois metros; e – permanecer em área de isolamento com máscara cirúrgica. Cabe ao profissional de saúde calçar luvas e validar o caso suspeito através de linhas de apoio da DGS.

Caso se confirme que se trata, de facto, de um caso suspeito, este deve ser transferido para um dos hospitais de referência, onde ficará internado em quarto de isolamento com pressão negativa.

Somente os profissionais com formação específica e treinados podem ter contacto directo com o doente, e todo o material (de equipamento e de terapêutica) deve ser guardado no quarto. Todos os procedimentos, limitados ao necessário de forma a minorar a exposição à doença, devem ser efectuados utilizando o Equipamento de Protecção Individual (EPI).

Os produtos biológicos são posteriormente enviados em condições de segurança para o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) para realização de PCR, habitualmente entre o 3º-10º dias após o início dos sintomas.

Deve ser realizado em simultâneo diagnóstico diferencial com infecção por vírus Marburgo e Lassa, e por Plasmodium sp.

 Tratamento

Medidas gerais

Todos os doentes devem ser internados em isolamento para monitorização cardiorrespiratória, balanço hidroelectrolítico e tratamento de suporte. Este deve ser iniciado o mais precocemente, com o objectivo de evitar a depleção de volume intravascular, corrigir distúrbios como hiponatrémia, hipocaliémia, hipomagnesiémia e hipocalcémia) e evitar complicações do choque.

Volumes maciços de solutos cristalóides (soro fisiológico ou lactato de Ringer) poderão ser necessários. Outras medidas sintomáticas incluem analgésicos e antipiréticos, antieméticos, e derivados de sangue, em caso de coagulopatia ou hemorragia.

Sendo o vírus transmitido através do contacto directo ou indirecto com sangue ou outros fluidos corporais (incluindo urina, fezes, vómito, suor, lágrimas, sémen, leite materno e saliva), gotículas ou órgãos de doentes, reitera-se que todos os profissionais de saúde devem usar material de protecção adequado (EPI) e cumprir protocolos de prevenção da infecção no âmbito da assistência a estes doentes. A colocação e remoção correctas do EPI tem elevada importância. Salientando que o momento de remoção está associado a maior risco de contaminação, conclui-se que o mesmo deverá ser supervisionado por outro profissional treinado.

O EPI deve cobrir toda a pele e mucosas, deve ser impermeável, de uso único, e composto por: fato de bloco operatório, fato de protecção integral, bata, cogula, touca, óculos de protecção, viseira de protecção facial total, protecção respiratória (máscara FFP3), luvas e protecção de calçado.

 Tratamento específico

Até à data, não estão aprovados fármacos específicos, quer para o tratamento de doentes infectados, quer para profilaxia pós-exposição. Importa referir que estão em estudo o favipiravir (análogo nucleósido que inibe a replicação de vírus ARN, disponível para crianças com idade superior a 1 ano) e o frincidofovir (análogo acíclico nucleósido em fase III de investigação, usado no tratamento de infecções porcitomegalovírus, poxvírus e outros vírus ADN).

Plasma e sangue de doentes convalescentes foram amplamente usados durante o surto da África ocidental. Porém, o seu benefício continua controverso dada a escassez de estudos aleatorizados duplamente cegos e de estudos que avaliem a sua eficácia enquanto tratamento isolado. Trata-se de uma terapêutica segura, sem efeitos secundários a curto prazo, prática, e com a vantagem de conferir anticorpos contra a estirpe do vírus em circulação durante um surto. Contudo, de acordo com os resultados dos estudos realizados nesta área, não se verificou diminuição da mortalidade com a sua utilização, excepto em crianças com menos de 5 anos e em grávidas. Por outro lado, existe a possibilidade de o plasma e o sangue administrados ter proveniência de convalescentes com coinfecções, eventualmente não detectadas quando a técnica não é realizada em condições adequadas, ou quando os dadores não são correctamente seleccionados. De salientar que este possível “cenário” poderá verificar-se em países em desenvolvimento durante um surto.

Vários estudos têm comprovado protecção contra o vírus em mamíferos não-humanos com a utilização de anticorpos monoclonais, em especial com ZMapp; este composto, resultando de uma combinação de três diferentes anticorpos monoclonais específicos do vírus Ébola, deve ser administrado em 3 doses (dias 0, 3 e 6). Tendo sido demonstrada a eficácia de tal terapêutica nas seguintes circunstâncias:

  • No tratamento de macacos infectados sintomáticos; e
  • Em dois profissionais de saúde que contraíram a doença durante o surto de 2015, poderá concluir-se que a mesma tem vantagens em relação à administração de plasma e sangue de doentes convalescentes. Contudo, não está disponível.

Prognóstico

Os doentes que sobrevivem, habitualmente mostram sinais de melhoria entre o 6º e 10º dias de doença, altura em que a virémia diminui e os resultados das serologias específicas evidenciam positividade (IgM e IgG). Nestes casos, a OMS recomenda a alta hospitalar dos doentes assintomáticos com dois testes negativos pela técnica PCR, com intervalo de 48 horas.

São considerados factores de mau prognóstico: idade superior a 45 anos; presença de manifestações gastrintestinais (diarreia), hipoxémia, hipotensão e choque; e carga vírica ≥ 10 milhões de cópias/mL.

Durante o surto da África Ocidental, foram identificadas várias sequelas de início precoce durante a recrudescência, admitindo-se estarem relacionadas com uma elevada carga vírica durante a infecção. As manifestações mais frequentes são: articulares (artralgia em 76% dos casos, sobretudo oligoarticular e bilateral), oftalmológicas em 60% (visão “turva” 38%, uveíte 18%) e auditivas (24%, sendo mais frequentes os acufenos e diminuição subjectiva da acuidade auditiva).

Nas crianças e adolescentes, a prevalência de sequelas precoces é mais baixa, de acordo com estudo realizado na Serra Leoa: uveíte – 20%, e restantes manifestações oculares – 22%; sequelas auditivas – 22%, e artralgias – 20%.

Recorrência e reactivação

O vírus pode persistir em locais imunologicamente protegidos, como leite humano, sémen, fluidos vaginais, urina, suor e humor aquoso, levando ao reaparecimento de sintomas em sobreviventes, isto é, à recorrência. O potencial de infecção é confirmado através de exame cultural, e não por PCR, esta última negativando mais tardiamente. A persistência do vírus nestes locais tem como risco a transmissão do mesmo a partir de indivíduos assintomáticos ou em recrudescência, bem como o risco de reactivação da DVE.

O fenómeno de reactivação foi pela primeira vez comprovado numa médica, na qual se desenvolveu uveíte nove semanas após DVE (situação clínica associada a vírus viável no humor aquoso). Posteriormente, o fenómeno de reactivação verificou-se também: – em doentes com meningite e vírus Ébola viável no LCR; e – em grávidas com virémia negativa, mas com carga vírica persistente no líquido amniótico, placenta e no feto. Esta última situação tem como implicações práticas a necessidade de protecção durante o parto.

A transmissão da DVE através de fluidos de doentes assintomáticos que recuperaram da DVE ainda não é certa, tendo sido comprovada apenas num caso em que houve contágio por via sexual, 6 meses depois, verificando-se similitude do perfil genético da estirpe identificada nos dois doentes. O reconhecimento desta via de transmissão é de elevada importância para a Pediatria, pelo risco de transmissão vertical e pelas opções relativamente ao aleitamento materno.

Para além da persistência crónica do vírus, há também risco de reinfecção, ou seja, de susceptibilidade para novas infecções por vírus Ébola em sobreviventes. Este aspecto é controverso pois, apesar de se considerar imune um doente que tenha tido DVE, na verdade sabe-se que perante elevada carga vírica, pode haver reinfecção. Este risco é muito variável, mas alerta para a necessidade de indivíduos, que tenham tido DVE, continuarem a usar meios de protecção ao contactar com doentes, especialmente profissionais de saúde.

Notas importantes:

1 – O nível de anticorpos necessário para conferir protecção ainda não está determinado; 2 – A carga vírica necessária para haver reinfecção também ainda não está determinada.

Prevenção

  • O cumprimento de medidas de prevenção e controlo da doença, bem como o uso de equipamentos de protecção pessoal pelos profissionais de saúde, são essenciais para o controlo do surto.
  • Por outro lado, todos os indivíduos assintomáticos, que tenham sido expostos ao vírus, devem ser vigiados durante 21 dias após o último contacto com o doente de forma a identificar precocemente sinais e sintomas da doença.
  • A transmissão assintomática por outros fluidos, nomeadamente leite materno e por via sexual, continua controversa, obrigando a medidas de protecção após recuperação clínica por um período de tempo ainda indeterminado.
  • O vírus Ébola permanece no leite materno até 15 dias após o início dos sintomas; todavia, até à data, não está comprovado que o aleitamento com leite humano seja uma via de transmissão.
  • Ainda assim, mães com suspeita de infecção não devem amamentar até exclusão da doença. Contudo, a OMS alerta para o risco-benefício desta medida em países em desenvolvimento, uma vez que o risco de desnutrição e de infecções é superior ao risco de contágio.
  • Relativamente à via sexual, devem ser usados métodos barreira durante 12 meses após a cura, uma vez que o vírus permanece em fluidos corporais (no sémen até nove meses e em secreções vaginais até um mês), mesmo na ausência de virémia.
  • Tal como já referido anteriormente, devem ser usados meios de protecção durante o parto de grávidas que tenham tido DVE.
  • Por fim, apesar de não ter sido provado cientificamente em oito estudos publicados que o vírus está presente na saliva, vómito e expectoração durante a fase de convalescença, são necessários mais estudos para confirmar este facto.
  • Várias vacinas encontram-se em fase experimental, não tendo sido aprovada nenhuma até à actualidade.
  • Demonstrou-se que duas das referidas vacinas são seguras e imunogénicas:
    • uma, incluindo adenovírus tipo 3 de chimpanzé (ChAd3) com glicoproteínas de superfície da estirpe Zaire ebolavirus; e
    • outra, que usa o vírus da estomatite vesicular (VSV) com glicoproteínas
  • Relativamente a esta última (em fase III de estudo), admite-se que possa prevenir a doença quando administrada após exposição.
Em artigo recente da revista Lancet, era publicada a seguinte afirmação. “On Nov 12, 2019, WHO announced the first prequalification of an Ebola vaccine.”

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DENGUE E OUTRAS ARBOVIROSES TROPICAIS

Introdução

Entre as arboviroses tropicais, surgem três entidades clínicas de grande importância epidemiológica e de saúde pública, sobretudo na América Latina, transmitidas pelo mosquito Aedes. Trata-se da Dengue, da Doença por vírus Chikungunya e da Doença por vírus Zica. A Dengue, depois da Malária, é considerada a mais importante doença transmitida por vector na actualidade. Recorda-se, a propósito, a definição de Arbovírus <> abreviatura do termo em Inglês-arthropod-borne virus.

Neste capítulo é dada ênfase à Dengue, e à Doença por vírus Chikungunya. A Doença por vírus Zica é abordada no Capítulo sobre Infecção Congénita, na Parte sobre Perinatologia e Neonatologia (XXXI).

DENGUE

Definição

A dengue, incluída no grupo das chamadas febres hemorrágicas víricas, é uma doença infecciosa aguda transmitida ao homem pela picada do mosquito, vector do género Aedes infectado com o vírus da dengue, vírus de RNA da família Flaviridae, género Flavivirus, com 4 serótipos, DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4.

Frequentemente autolimitada e benigna, a doença pode, no entanto, assumir formas graves e fatais, com número crescente da forma clínica chamada dengue grave, na actual nomenclatura, com uma mortalidade ~ 2,5%.

Aspectos epidemiológicos e importância do problema

A nível mundial estima-se que ocorram anualmente 50 a 100 milhões de novos casos, englobando cerca de 500 mil novos casos de dengue grave. Cerca de 2.500 milhões de pessoas no mundo encontram-se em situação de risco de padecer da doença, o que é explicável sobretudo pelo crescimento populacional, pela urbanização não planificada, pelo inadequado ordenamento ambiental, pela migração e turismo, e pelas alterações climáticas.

A doença é endémica em mais de 100 Países distribuídos predominantemente pelas grandes regiões do globo – África, América do Sul, Mediterrâneo Oriental, Sueste Asiático e Pacífico Oeste. Em 2010, de acordo com dados da OMS, surgiram em todo o mundo cerca de 390 milhões de casos de dengue. No Brasil, num surto ocorrido em 2013, foram notificados 1,5 milhões de casos, 7.000 dos quais corresponderam a formas graves.

Na Europa, em 10 países, têm sido descritos casos importados, sobretudo do Sueste Asiático, realçando-se o primeiro caso fatal surgido no Reino unido em 1997. No continente europeu têm sido relatados anualmente entre 100 e 170 casos importados, quase metade originados no Sueste Asiático.

Quanto a casos autóctones na Europa, importa referir o seu surgimento recente na França e Croácia.

Em Portugal, na Região Autónoma da Madeira (RAM), o vector Aedes aegypti foi detectado pela primeira vez em 2004; o primeiro surto, notificado em 2012, manteve-se até 2013, tendo sido identificado o serótipo DEN-1 com origem na Venezuela, Colômbia e Norte do Brasil.

Até à data, em Portugal Continental ainda não foram identificados mosquitos do género Aedes, pelo que não parece existir o risco de emergência de casos autóctones.

Refira-se que o Aedes aegypti e o vírus da dengue são endémicos em todos os continentes excepto na Europa e na Antártida; a dengue grave ocorre preferencialmente na Ásia e Américas. (Figura 1)

Etiopatogénese

A doença é causada por qualquer dos serótipos do vírus anteriormente descritos (DEN 1, 2, 3 e 4). Actualmente já se conhecem mutantes, mas o respectivo impacte clínico não está ainda estabelecido.

A infecção por um serótipo produz imunidade específica permanente e, ainda que não imunidade cruzada para os outros serótipos, pode verificar-se imunidade cruzada heterotípica, a qual se pode manter entre 2 e 12 meses.

Os vírus são transmitidos por um eficiente vector existente em extensas áreas do Globo, particularmente em regiões tropicais e subtropicais. O mosquito/artrópode Aedes aegypti, mais frequente nas Américas e a principal espécie responsável pela transmissão a nível mundial, tem hábitos diurnos, domésticos e preferência por recipientes com água onde deposita ovos e larvas; um único mosquito infectado pode transmitir o vírus a vários indivíduos numa pequena área.

Importa referir que o artrópode a seguir, em importância, é o Aedes albopictus (Figura 2), confinado ao Sueste Asiático. Noutras regiões têm papel mais reduzido o Aedes polynesiensis e o Aedes scutellaris (Figura 3).

A transmissão do vírus da dengue por picada do artrópode infectado (originando virémia) depende da estirpe do mesmo vírus, do vector, da susceptibilidade da população e dos factores ambientais já descritos anteriormente.

Pode verificar-se transmissão vertical se a picada se verificar na grávida (durante a fase virémica da doença), com potencial impacte no recém-nascido. Em diversos estudos não foram notados efeitos lesivos, designadamente quanto a baixo peso e/ou defeitos congénitos.

O ciclo biológico é iniciado quando a fêmea do mosquito ingere o sangue da pessoa infectada em fase de virémia; esta ingestão leva à infecção do epitélio do intestino médio do mosquito e disseminação pela hemolinfa atingindo outros órgãos, como as glândulas salivares e o sistema reprodutivo do mesmo.

Geralmente decorrem 7 a 10 dias entre a ingestão do sangue contaminado e a eliminação do vírus pela saliva, sendo esta fase designada por período de incubação extrínseco. A duração deste período é inversamente proporcional à temperatura ambiente; aduza-se que, uma vez infectado, o mosquito carrega o vírus até ao fim da sua vida.

Uma vez transmitido o vírus ao humano por picada do mosquito infectado (vírus na saliva do mosquito), existe um período de incubação intrínseco sem sintomas com a duração média de 4-7 dias e limites entre 2-14 dias: surgindo então replicação vírica no órgão-alvo, atingimento dos leucócitos e tecidos linfáticos, a que se segue a virémia.

FIGURA 1. Aedes aegypti.

FIGURA 2. Aedes albopictus.

FIGURA 3. Epidemiologia da infecção pelo vírus da dengue.

Trata-se, pois, dum processo de transmissão homem-mosquito-homem.

A transmissão do vírus entre mosquito e primatas não humanos foi demonstrada na Ásia e África, mas não está provado que desta transmissão a primatas não humanos resulte potencial reservatório para a transmissão a humanos. Cabe referir que há relatos de transmissão através do sangue e de exposição mucocutânea.

Sobre a patogénese importa salientar que a dengue é uma doença sistémica, com atingimento de vários órgãos e sistemas, largo espectro de manifestações, desde formas assintomáticas e oligossintomáticas, a formas graves que podem ser fatais.

Devido à sua característica hepatotrófica, o vírus exerce acção citopática mais acentuada ao nível dos hepatócitos, replicando-se nas células de Kupffer (que fazem parte do sistema mononuclear fagocítico), do que resulta citólise com aumento das aminotransferases, directamente proporcional à magnitude do dano. A hepatomegália é frequente, podendo verificar-se insuficiência hepática.

Outros órgãos atingidos são o coração (por mecanismo imunomediado), o pulmão (sede de edema pulmonar) e o sistema nervoso central. As manifestações neurológicas podem ter como substracto diversos quadros, tais como, de encefalite, síndroma de Guillain-Barré, mielite transversa, etc..

As manifestações hemorrágicas surgem de modo esporádico e em grau variável. A este propósito, importa referir que a clássica designação de “dengue hemorrágica” passou a ser considerada errónea, por levar a pensar que a hemorragia era sinal cardinal de gravidade: na verdade, a principal causa de mortalidade é, sim, a extravasão de plasma por aumento da permeabilidade capilar, levando a choque. De facto, reforça-se a noção de que, o que diferencia as formas graves das mais ligeiras, é a verificação do aumento da permeabilidade capilar nas primeiras.

Demonstrou-se que o efeito duma segunda infecção (infecção secundária) tem efeito patogénico 100 vezes superior ao verificado durante um primeiro episódio da infecção (infecção primária). Ou seja, a exposição prévia do hospedeiro a um serótipo heterólogo predispõe a forma grave, o que poderá ser explicado pela teoria da imunopotenciação mediada por anticorpos (ADE, antibody dependent enhancement). Esta teoria postula o seguinte:

  • Aquando dum estímulo antigénico inicial (primeira infecção ou infecção primária) verifica-se sensibilização do sistema imune envolvendo linfócitos T e B;
  • Os pacientes sensibilizados a determinado serótipo do vírus desenvolvem anticorpos incapazes de neutralizar os outros serótipos, mas facilitando o ingresso do vírus no monócito;
  • Os anticorpos heterólogos correspondentes ao serótipo da dengue pré-existente (infecção primária) reconhecem de forma cruzada o novo vírus infectante, doutro serótipo (infecção secundária), não o neutralizando; aliás, formam complexos antigénio-anticorpo, os quais se ligam ao receptor Fc para imunoglobulina nos macrófagos, facilitando assim o ingresso do vírus na célula, onde se vai replicar;
  • Aquando duma segunda infecção ou infecção secundária, verifica-se uma rápida activação e proliferação das células T e monócitos previamente sensibilizados (resposta imunitária ampliada), com lise dos monócitos infectados pelos vírus da dengue, libertação de mediadores inflamatórios e procoagulantes como interleucinas, factor de necrose tumoral, factor activador das plaquetas, interferão gama, e consequente aumento da permeabilidade vascular com extravasão de plasma, hipovolémia e hipotensão.

Comprovou-se que os linfócitos T têm um papel preponderante no processo descrito devido a resposta aberrante.

A imunidade é duradoura, mas serótipo-específica. A resposta humoral é vigorosa: são detectados anticorpos específicos da classe IgM (contra o serótipo infectante) após o quarto dia de início dos sintomas; os referidos anticorpos atingem níveis elevados cerca de 7-8 dias após o início dos sintomas, declinando lentamente e passando a não ser detectáveis após alguns meses.

Quanto à IgG específica, os seus níveis elevam-se após o quarto dia de sintomas, atingindo altos teores em duas semanas, passando a ser detectáveis por vários anos (Figura 4).

Para além da importância de se tratar de infecção primária e infecção secundária, na patogénese há ainda que considerar os seguintes factores:

  • Factores relacionados com os vírus. Demonstrou-se que o serótipo 2, o mais virulento de todos, está ligado às formas graves acompanhadas de choque, frequentes no Sueste Asiático; ainda há que atender aos factos de: – determinado serótipo poder incluir diversos genótipos; e de – haver variação importante entre as estirpes de determinado serótipo;
  • Particularidades quanto a serótipos infectantes. Em estudos epidemiológicos verificou-se que a gravidade da doença é maior quando o serótipo 1 é seguido do serótipo 2;
  • Outros factores patogénicos incluem: – susceptibilidade do foro genético do hospedeiro, variável; – idade do paciente, sendo que o prognóstico é mais reservado em crianças com < 5 anos e gravidade, e menor gravidade após os 12 anos; – género feminino, mais susceptível; -doença crónica de base associada a pior prognóstico.

Manifestações clínicas e laboratoriais

A dengue é uma doença sistémica cujo espectro inclui formas graves e não graves. Na idade pediátrica, parcela significativa de pacientes pode apresentar-se sob a forma oligossintomática, o que torna difícil o diagnóstico diferencial com outras doenças víricas comuns nesta faixa etária.

Após o período de incubação variável – como média entre 5 e 10 dias – (ver atrás) a doença apresenta-se abruptamente e pode manifestar-se em 3 fases: 1- febril; 2- crítica; 3- de recuperação ou convalescença.

Fase febril: manifesta-se com febre de início abrupto, em geral durando 2 a 7 dias.

Fase crítica: febre desaparecendo em lise (defervescência). Nesta fase, os doentes poderão melhorar ou piorar. Os que melhoram, evidenciam quadro designado por dengue sem sinais de alarme; os que pioram, correspondem aos casos de dengue com sinais de alarme.

Fase de recuperação ou convalescença: produz-se a reabsorção gradual dos fluidos do espaço extravascular nas 48-72 horas seguintes. Verifica-se estabilização hemodinâmica, melhoria da diurese e diminuição do hematócrito por reabsorção dos fluidos. Seguidamente, elevação do número dos leucócitos e das plaquetas. (Figura 5)

Classificação da dengue

De acordo com a última revisão da classificação da OMS (de 2009), são consideradas as seguintes formas clínicas: Dengue sem sinais de alarme; Dengue com sinais de alarme; e Dengue grave.

FIGURA 4. Evolução clínica e resposta imunitária ao vírus da dengue.

FIGURA 5. Diagnóstico e manifestações clínicas da dengue.

Dengue sem sinais de alarme

Nesta forma clínica poderão surgir os seguintes sinais e sintomas: febre, letargia, hiperestesia cutânea, injecção conjuntival, cefaleia frontal e/ou retro-orbitária intensificando-se com o movimento dos olhos; mialgia generalizada, mais intensa na região lombar; linfadenopatia cervical; exantema morbiliforme em cerca de 50% dos casos atingindo face, tronco, e membros, não poupando plantas dos pés e palmas das mãos; pode surgir hiperémia difusa com áreas esbranquiçadas arredondadas de pele normal, prurido e sensação de “calor”; a prova de Rumpell-Leed é positiva (aparecimento de 20 ou mais petéquias numa área de 2,5 cm2 após insuflação de braçadeira de esfigmomanómetro no braço com valor da média aritmética das pressões sistólica e diastólica durante 5 minutos).

Em zonas endémicas ou nos casos em que se verificou viagem para as mesmas, suspeitar-se-á de dengue ante a presença de febre associada a dois ou mais dos seguintes critérios: náuseas, vómitos, exantema, artralgias, petéquias ou prova de Rumpell-Leed positiva e leucopénia.

Dengue com sinais de alarme

Num doente: – que esteja febril ou, – que esteja na fase de defervescência, e se verifique um dos sinais de alarme descritos a seguir, tal significa que se trata de situação acompanhada de aumento da permeabilidade capilar nesse momento.

Descrevem-se os seguintes sinais de alarme:

  • Dor abdominal intensa e contínua, por vezes localizada ao hipocôndrio direito, correspondendo a sinal de líquido extravasado para zonas renais e perirrenais;
  • Vómitos persistentes ( > 3 em 1 hora, ou > 5 em 6 horas);
  • Hemorragias das mucosas (gengivorragias, epistaxes, hematúria, hematemeses, melenas, hemorragias vaginais);
  • Alteração da consciência (agitação ou letargia, escala de Glasgow < 15);
  • Aumento do hematócrito com diminuição brusca do número de plaquetas;
  • Hepatomegália (> 2 cm abaixo do rebordo costal);
  • Acumulação de líquidos/derrames cavitários (derrame pleural, ascite, derrame pericárdico detectados clinicamente ou por ecografia, não associados a dificuldade respiratória nem a compromisso hemodinâmico.

Dengue grave

Esta forma clínica é definida pela verificação dos seguintes critérios:

  • Choque por extravasão de plasma e/ou acumulação de líquidos, associado a dificuldade respiratória;
  • Hemorragia grave;
  • Atingimento grave de órgãos (fígado: citólise, elevação de ALT e AST > 1.000 U/mL, insuficiência hepática; SNC: encefalite, alterações sensitivas; coração: miocardiopatia).

O choque, que pode ser precedido por sinais de alarme e a principal causa de morte, surge quando desaparece a febre, entre o 4º e 5º dia de doença. A gravidade deste quadro de dengue poderá também integrar, com incidência baixa, síndroma de Reye, síndroma de dificuldade respiratória tipo adulto.

Exames complementares

Em contexto de epidemia, o exame clínico rigoroso é em geral suficiente para diagnosticar a maioria dos casos. Noutras circunstâncias, dada a variedade de sintomas, em geral inespecíficos, associados a esta entidade, o diagnóstico clínico não é muito confiável. Nesta perspectiva, há que recorrer a exames complementares.

Os principais métodos diagnósticos são: o isolamento do vírus, a identificação de serótipos, a detecção de ácido nucleico, a detecção de antigénios e a enzimoimunoanálise (ELISA) para provas serológicas.

Em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA) é o laboratório de referência para o diagnóstico laboratorial da dengue, que se faz através de:

  • Pesquisa de anticorpos específicos: detecção de IgM por ELISA na fase aguda da doença (no sangue ou SNC) presentes após o quinto dia de início do quadro clínico ou subida de 4 vezes do título de IgG entre a data da amostra colhida logo após o princípio dos sintomas, e uma segunda, obtida cerca de duas semanas depois (2 mL de sangue em tubo seco ou 1 mL de líquor);
  • Pesquisa de componentes víricos/ácidos nucleicos a realizar até ao 5º dia da doença por meio da reacção em cadeia da polimerase com transcriptase reversa (RT-PCR) no sangue ou LCR (2 mL de sangue em tubo com EDTA);
  • Todas as amostras positivas colhidas em laboratórios públicos ou privados devem ser enviadas (refrigeradas no próprio dia ou mantidas no frigorífico se não for possível) para o INSA, acompanhadas por formulário preenchido para estudo epidemiológico e virológico. Os casos devem ser notificados à Direcção-Geral da Saúde (dengue@dgs.pt).

No que respeita à avaliação laboratorial podem ainda ser úteis os exames complementares e procedimentos a seguir descritos:

  1. Hemograma: é um exame importante a ser feito aquando da primeira observação. A verificação de leucopénia reforça o diagnóstico provável de dengue. Uma diminuição do número de plaquetas, associada a uma elevação do hematócrito, sugere extravasamento de plasma. Se o hematócrito não tiver sido registado no início deve ser efectuado o cálculo da variação do seu valor utilizando os valores de referência da população geral, ajustados à idade e sexo;
  2. Transaminases: elevação de AST e ALT, observada em 30% dos pacientes com dengue em geral, e em cerca de 90% dos casos de dengue grave;
  3. Ecografia: útil para identificar a presença de líquido livre em cavidade abdominal ou espaço pleural, ou ainda para detectar derrame pericárdico ou sinais de espessamento da parede da vesícula biliar.

Diagnóstico diferencial

A dengue pode confundir-se com diversas infecções bacterianas, parasitárias e víricas, tais como doença meningocócica, choque séptico, febre tifóide, escarlatina, sarampo, rubéola, gripe, doenças por enterovírus, herpes vírus, parvovírus B19, leptospirose, hepatite, malária, febre amarela, febre e outras infecções por Flavivirus. Obviamente que no âmbito raciocínio clínico importa valorizar a região onde decorreu o caso.

A dor abdominal intensa poderá ser confundida com apendicite aguda, colecistite aguda e perfuração intestinal. A febre, a polisserosite, a hemoconcentração, a trombocitopénia e a ausência de compromisso renal permitem estabelecer a destrinça entre dengue e outras febres hemorrágicas.

Para finalizar o tópico sobre diagnóstico diferencial, importa uma referência a três infecções víricas transmitidas por artrópodes tal como a dengue, ocorrendo noutras latitudes (África, Ásia, América Latina, Estados Unidos e Médio Oriente). São consideradas pela patogénese e pelas afinidades quanto às manifestações clínicas, doenças simile dengue; trata-se: – da febre Chikungunya, por Togavirus, transmitida por Aedes aegypti e Aedes albopictus; – da infecção por vírus ZICA (ZICV), da família Flaviviridae, transmitida por Aedes aegypti e Aedes albopictus; – da febre O’nyong-nyong, por Togavirus, transmitida por Anopheles funestus; e – da febre do Nilo/West Nile, por Flavivirus, transmitida por Culex molestus ou Culex univittatus.

Tratamento

Não existe tratamento específico. A doença deve ser tratada com medidas sintomáticas; o tratamento da febre deverá ser feito apenas com paracetamol, estando o ibuprofeno e outros AINE contraindicados.

Na dengue grave a perda de líquidos para o espaço extravascular é o determinante fisiopatológico mais importante, sendo fundamental iniciar precocemente a reposição de volume (com hidratação venosa vigorosa) quando se verifica esta situação.

Sobre o tratamento da reidratação e do choque aconselha-se a consulta de capítulos próprios abordando estas temáticas.

Prevenção

A prevenção deve ser feita:

  • Pelo controlo do vector, destruindo-o na fase larvar do ciclo de vida dos mosquitos e eliminando-o na fase adulta dos mosquitos; – por educação ambiental, eliminando locais de águas estabilizadas e detritos urbanos, utilizando repelentes com N-dieSl-metatoluamida (DEET), usando vestuário apropriado (roupas frescas, claras, que cubram a maior área possível), optando por alojamentos com ar condicionado e redes mosquiteiras;
  • Por estratégias de comunicação/informação às populações, com utilização de diferentes meios de divulgação, informação precisa e concisa, não alarmista, sobre medidas que potenciem a diminuição da densidade de mosquitos e medidas a tomar nas viagens/estadias/residência, educação para a saúde nas escolas de ensino básico e secundário;
  • Outras medidas de controlo incluem identificação de locais propícios para criadouros e larvas, identificação das empresas registadas como estando a trabalhar na actividade de desinfestação, recenseamento dos locais de cultivo de plantas para exportação, identificação de residências abandonadas/devolutas ou não habitadas em permanência que contenham criadouros de mosquitos;
  • Por vacinação: o método ideal, incluindo os 4 serótipos, conferindo imunidade perene ainda não se encontra disponível; uma vacina viva atenuada recombinante CYD-TDV – está actualmente na fase II de investigação.

DOENÇA POR VÍRUS CHIKUNGUNYA

Definição e aspectos epidemiológicos

Esta doença, provocada pelo vírus Chikungunya (CHKV), também conhecida por febre Chikungunya (palavra que significa “aqueles que se dobram” num dialecto da Tanzânia, fazendo referência ao andar curvado das pessoas acometidas por essa doença que “provoca dores”), foi descoberta pela primeira vez em 1953 na Tanzânia durante uma epidemia de doença febril. Verificando-se posteriormente várias epidemias intervaladas entre 2 e 20 anos na África e Ásia, a partir de 2004 adquiriu características de expansão global afectando milhões de pessoas até à actualidade.

Uma das epidemias mais conhecidas ocorreu na Ilha da Reunião em 2005, afectando mais de 300.000 casos, com 219 mortes. Posteriormente foram registados surtos na Itália, França, Canadá, Brasil, Estados Unidos e Guiana. Mais recentemente, em 2013, na Ilha de San Martin, Caraíbas, comprovou-se a existência de casos autóctones.

Determinados factores predisponentes, tais como as condições climáticas, a presença de artrópode vector e uma população susceptível sob o ponto de vista imunológico influenciaram a disseminação da doença no continente americano.

Etiopatogénese

Trata-se duma arbovirose produzida por um vírus ARN pertencente ao género Alphavirus e uma das 29 espécies da família Togaviridae. Após a picada do mosquito (especialmente da família Aedes) infectado pelo vírus, este transmite-se aos fibroblastos e macrófagos dérmicos, replicando-se nesta localização. Disseminando-se ulteriormente pelos nódulos linfáticos, passam para a circulação originando virémia. Seguidamente, com nova disseminação, são atingidos os órgãos periféricos, designadamente, os músculos, o baço, continuando a replicação.

Neste processo, foram identificadas diversas fases: aguda, subaguda e crónica. Estão documentadas infecções pré-natal, perinatal e formas atípicas da doença.

Para além da transmissão do vírus pelo mosquito, estão descritos casos de transmissão através de transfusões de sangue.

O Homem é o reservatório principal; secundariamente, alguns vertebrados.

Manifestações clínicas

O período de incubação oscila entre 3 e 7 dias. A percentagem de casos assintomáticos varia entre 3% e 28%. Nos indivíduos sintomáticos as manifestações mais típicas na fase aguda são: febre alta de início abrupto podendo durar 7 dias, poliartralgias simétricas, frequentemente incapacitantes, sobretudo ao nível das mãos e pés, zonas proximais, e exantema maculopapular pruriginoso atingindo as palmas das mãos e plantas dos pés.

Têm sido descritos outros sinais e sintomas, tais como: astenia, cefaleia, mialgias, dores torácicas, náuseas, vómitos, conjuntivite, faringite e linfoadenopatias.

Poderá surgir uma fase subaguda ou pós-aguda, iniciada após os 21 dias e prolongando-se por 2 a 3 meses, rara na idade pediátrica, caracterizada essencialmente por poliartralgias incapacitantes associadas a tenossinovites.

Descreve-se ainda uma fase crónica, com artralgias acentuadas e incapacitantes, de duração superior a 3 meses, também rara em idade pediátrica.

Existe uma forma clínica de infecção perinatal por CHIKV: quando uma mãe está sintomática no período periparto (entre 4 dias antes e 1 dia após o parto), o risco de transmissão vertical do vírus é de 50%. Em tal circunstância, as manifestações clínicas no RN surgem em geral cerca de 4 a 9 dias após o parto: febre, edema nas extremidades, irritabilidade, prostração, recusa alimentar e exantema. A médio e longo prazo poderá verificar-se alteração no neurodesenvolvimento, convulsões, e paralisia cerebral.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se em critérios clínicos, epidemiológicos e laboratoriais. Os critérios clínicos e epidemiológicos permitem identificar, respectivamente, caso possível e caso provável

Critérios clínicos: febre de início abrupto > 38,5ºC e artrite ou artralgia acentuada; nesta circunstância faz-se o diagnóstico diferencial com dengue, malária endémica ou doença com artrite (caso possível).

Critérios epidemiológicos: residência em, ou visita a, área endémica dentro do período de 15 dias precedendo o início de sintomas (caso provável).

 Critérios laboratoriais: fundamentalmente, importa avaliar os seguintes parâmetros: isolamento do vírus, presença de ARN vírico, anticorpos (IgM específica e IgG com títulos determinados seriadamente em períodos separados 2 a 3 semanas. Bastará a positividade de apenas 1 (caso confirmado).

Quanto às provas laboratoriais como instrumento de avaliação citam-se: PCR-RT (reacção em cadeia da polimerase com transcriptase inversa) para identificação de virémia, a realizar nos primeiros 5-7 dias após início dos sintomas; provas serológicas para IgM e IgG, sendo de anotar que com as provas serológicas se poderá verificar reactividade antigénica cruzada com outros arbovírus.

Diagnóstico diferencial

Faz-se com as seguintes situações: dengue, zica, malária, leptospirose, influenza, febre amarela, sépsis, rubéola, sarampo, e infecções por alfaviroses (vírus Mayaro, Ross River, Barmah Forest, O´nyong e Sindbis).

Prevenção e tratamento

Como medidas preventivas gerais citam-se as seguintes:

  • Evitar picadas de mosquitos, limitando a exposição aos mesmos;
  • Restringir as viagens a áreas endémicas, incluindo, claro, das grávidas;
  • Usar vestuário protector e repelentes de insectos;
  • Providenciar ambiente interior com ar condicionado.

Quanto ao tratamento, perante a inexistência de fármacos anti- CHIKV, são adoptadas medidas gerais de suporte. A hospitalização está indicada perante: febre alta > 5 dias, sintomatologia neurológica, irritabilidade, vómitos, oligúria, quadro clínico em RN e presença de comorbilidade.

INFECÇÃO POR VÍRUS ZICA

Consultar Capítulo “Infecção Congénita” na Parte sobre Perinatologia e Neonatologia (XXXI).

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PAROTIDITES

Definição

Qualquer processo que curse com inflamação e tumefacção dolorosa da glândula tem o nome de parotidite (vulgo papeira). As causas infecciosas são as mais frequentes. (Quadro 1)

Neste capítulo, é dada ênfase à chamada parotidite epidémica, doença sistémica vírica autolimitada, com predilecção pelos tecidos glandulares (predominantemente parótida, mas também as restantes glândulas salivares) e pelo sistema nervoso. Tal patologia foi descrita pela primeira vez por Hipócrates no século V antes de Cristo. A etiologia vírica foi comunicada por Johnson & Goodpasture em 1934.

Recorda-se que a parótida, ou glândula parotídea, é a maior das glândulas salivares. Localizada por baixo e à frente do pavilhão auricular, tem o seu limite inferior imediatamente acima do ângulo da mandíbula. Relaciona-se com os músculos da mastigação cuja contracção promove a secreção de saliva; esta é excretada através do canal parotídeo (canal de Stenon ou de Stensen), o qual drena ao nível do segundo dente molar superior.

Aspectos epidemiológicos

Tratando-se duma doença típica da idade escolar em sujeitos não vacinados (5-14 anos), importa referir que, com o advento da vacinação sistemática, actualmente grande parte dos casos verificam-se sobretudo em indivíduos com idade superior a 15 anos.

A parotidite epidémica continua, pois, a ser mais relevante nos países sem vacinação eficaz. Mais recentemente, em países industrializados verificaram-se surtos localizados explicáveis por perda de imunidade de grupo devida aos “movimentos anti-vacinação”. Em Portugal, segundo os dados do último relatório de doenças de declaração obrigatória, entre 2009 e 2012 foram declarados menos de 200 casos/ano de parotidite epidémica.

Nalguns países têm sido descritas epidemias relacionadas com a administração de vacinas pouco imunogénicas. Por outro lado, importa assinalar que se têm observados casos em populações vacinadas, o que sugere perda da imunidade com o tempo.

Em Portugal, a parotidite epidémica é uma doença de declaração obrigatória, com indicação para evicção escolar por um período mínimo de 9 dias após o aparecimento de tumefacção glandular.

Etiopatogénese

O vírus da parotidite epidémica é um vírus ARN pertencente ao género Rubulavirus, da família Paramyxoviridae. O único hospedeiro é o Homem. Com diferentes genótipos, admite-se que exista apenas um fenótipo.

A referida parotidite é uma doença com elevada infecciosidade, transmitindo-se através da saliva, aerossóis, ou das gotículas da orofaringe. Com um período de incubação oscilando entre 2 a 4 semanas, o período de contágio situa-se entre 3 dias antes e 4 dias depois do início dos sintomas.

Surge virémia desde que o vírus atinja a via respiratória e se verifique replicação no epitélio da nasofaringe e nos gânglios linfáticos regionais (cabeça e pescoço) Tal determina que, com a disseminação do vírus, sejam atingidos diversos tecidos e órgãos, sobretudo, glândulas salivares, meninges, pâncreas, ovários e testículos; e, menos frequentemente, próstata, tiroideia, interstício do rim, miocárdio, fígado, sinovial articular, medula óssea, sistema excretor lacrimal e glândulas de Bartholin.

Posteriormente, o vírus elimina-se com a urina.

Manifestações clínicas e laboratoriais

Na sua forma clássica, em cerca de 30% dos casos, a doença é assintomática ou manifesta-se por sintomas inespecíficos simulando quadro gripal.

Importa salientar um período prodrómico de 24 a 48 horas com febre, em geral não elevada, cefaleia, vómitos, mialgia e mal-estar geral; sucede-se a tumefacção da glândula parótida, que começa por ser unilateral, sendo evidente a bilateralidade em 70%-90% dos casos.

Em cerca de 10% dos casos, outras glândulas salivares podem ser atingidas: a submaxilar, palpando-se sob a mandíbula, anteriormente ao ângulo mandibular, e/ou a sublingual, que origina tumefacção da língua e do pavimento bucal.

Ao nível da cavidade bucal, verifica-se que os orifícios de saída do canal de Stenon (da glândula parótida) e do canal de Wharton (da glândula submaxilar) estão eritematosos e edematosos. Com menos frequência pode surgir edema pré-esternal, relacionável com obstrução dos vasos linfáticos por aumento das dimensões das glândulas salivares.

A doença é geralmente autolimitada, com duração média de duas semanas.

Outras manifestações (consideradas por alguns autores como complicações) estão relacionadas com os locais atingidos pelo vírus, sendo mais frequentes a meningite com características de toda e qualquer meningite vírica (5%-10% dos casos), a orquite (30%-40%), e a ooforite (5%). Poderá detectar-se pleocitose (cerca de 50% dos casos) sem sinais de meningite. Por sua vez, a meningite pode ocorrer antes, durante, ou depois da tumefacção das parótidas.

Nos casos de meningite, poderão surgir convulsões em cerca de 20% dos casos. Para além da pleocitose (200-1.000 células/uL), já citada, o LCR, no contexto de meningite estabelecida, pode evidenciar predomínio de linfócitos, associado a glicose e proteínas normais; em fases iniciais da doença pode haver predomínio de polimorfonucleares e glicorráquia inferior a 40 mg/dL.

Habitualmente, o quadro neurológico regride em duas semanas, sem sequelas. Em casos raros (0,5-5/100.000 casos) pode ocorrer surdez neurossensorial.

O quadro de encefalite, com mortalidade ~ 1,4%, hoje raro, era descrito, reportado à era pré-vacinal, na proporção de 1 para cada 400-6.000 casos. Eram também descritos casos de cerebelite, síndroma de Guillain-Barré, paralisia facial e mielite transversa.

A orquite (ou melhor, epidídimo-orquite) é frequente sobretudo na idade pós-púbere, sendo unilateral em cerca de 70% dos casos. Surge em geral cerca de 4-10 dias após o início da parotidite, com evidência de edema do escroto, dor e edema testiculares, e febre. Pode igualmente manifestar-se como manifestação isolada da infecção. Ainda que possa ocorrer atrofia testicular, a esterilidade é muito rara pelo facto de aquela ser segmentar.

A infecção, atingindo outros órgãos, é susceptível de originar uma diversidade de quadros infecciosos, variando de paciente para paciente: pancreatite, tiroidite, prostatite, hepatite, dacriocistite, nefrite intersticial, bartolinite, miocardite, sinovite, púrpura trombocitopénica, etc..

No contexto de infecção da grávida, embora não se tenha demonstrado o efeito teratogénico do vírus, existe o risco de abortamento.

Diagnóstico

O diagnóstico da parotidite epidémica deve ser suspeitado em face de história clínica compatível (incluindo tumefacção parotídea bilateral) em doentes não vacinados, sem PNV actualizado com VASPR, ou em caso de surto epidemiológico.

Os resultados de exames laboratoriais evidenciam tipicamente leucopénia, linfocitose e elevação da amilasémia.

Nos casos de tumefacção parotídea unilateral, ou inexistente, o diagnóstico poderá ser mais difícil, obrigando ao recurso a estudo serológico, o método laboratorial mais usado.

O procedimento mais adequado é a identificação de anticorpos específicos anti-parotidite IgM no soro, plasma, LCR, ou saliva, por análise enzimo-imunológica a partir dos 7 dias de evolução clínica; isto porque anteriormente há a probabilidade de resultados falsos-negativos.

Nas populações imunizadas o diagnóstico por serologia é mais difícil, uma vez que a resposta humoral com IgM pode ser mais curta; assim, nas populações imunizadas um valor de IgM negativo não exclui o diagnóstico.

Em alternativa, poderá obter-se o diagnóstico, pesquisando a seroconversão, através do doseamento de anticorpos IgG, demonstrada pela elevação do título destes, pelo menos quatro vezes, ao cabo de 2-3 semanas.

Outro método de diagnóstico da parotidite epidémica consiste na cultura vírica na saliva, urina ou LCR, sendo que a sensibilidade é inferior a 50%.

Uma alternativa à cultura vírica é o estudo do material genético em amostras de urina, saliva ou LCR por técnicas de reacção em cadeia da polimerase em tempo real (PCR). Estas amostras devem recolher-se nos primeiros 3 dias de doença, e não para além dos 7 dias de evolução.

Diagnóstico diferencial

Abordando o diagnóstico diferencial das parotidites, importa ainda salientar uma noção semiológica – estabelecer a destrinça entre tumefacção parotídea e adenomegália laterocervical; no caso desta última, a sua localização é mais posterior, tem limites mais definidos e não apaga o ângulo mandibular.

O diagnóstico diferencial da parotidite epidémica faz-se com outros tipos de parotidite, os quais são discriminados no Quadro 1.

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial das parotidites em idade pediátrica.

A etiologia por fungos não é descrita na criança (Candida albicans e Cryptococcus isolados em adultos imunodeprimidos)
INFECCIOSA
VÍRUS
Paramyxoviridae (parotidite epidémica). VEB, CMV, VHH6, Adenovírus, Parainfluenza 1, 2 e 3, Parvovírus B19, Enterovírus e VIH*
BACTÉRIAS

Parotidite supurativa
Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes, Streptococcus viridans, Peptostreptococcus spp, Prevotella spp, Porphyromonas sp, Fusobacterium nucleatum, Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae, Moraxella catarrhalis, Pseudomona aeruginosa, Pseudomona pseudomallei, Escherichia coli, Proteus spp, Salmonella spp, Klebsiella spp, Actinomyces spp*

Parotidite granulomatosa*
Mycobacterium tuberculosis
Micobactérias atípicas
Bartonella henselae
Actinomyces spp**
IDIOPÁTICA
Parotidite recidivante idiopática
AUTOIMUNE
Síndroma de Sjögren*, Sarcoidose*, LES, Doença mista do tecido conjuntivo
NEOPLÁSICA
Formas benignas (adenoma pleiomórfico, hemangioma e linfangioma) e malignas (carcinoma mucoepidermóide, adenóide-cístico e de células acínicas e rabdomiossarcoma)
OUTRAS
Sialolitíase, defeitos congénitos, traumatismos, radioterapia, doenças infiltrativas, má-nutrição, doenças metabólicas crónicas, fármacos, etc.
VIH – Vírus da Imunodeficiência Humana; VEB – Vírus de Epstein-Barr; CMV – Citomegalovírus; VHH6 – Vírus Herpes Humano 6; LES – Lúpus Eritematoso Sistémico.
* Parotidite habitualmente crónica. ** Consoante o microbioma concomitante, o curso da doença pode ser agudo, subagudo ou crónico.

 

  1. Parotidites de etiopatogénese infecciosa, (exceptuando a relacionada com os vírus da família Paramyxoviridae); destacam-se as seguintes situações:
    • Parotidite associada a hiperplasia linfóide devida a infecção por VIH.
      Em cerca de 1%-10% dos casos de infecção por VIH desenvolve-se um quadro de parotidite crónica caracterizado pelo aumento progressivo e indolor da glândula parotídea, geralmente bilateral, podendo ser acompanhado de adenomegálias cervicais ou generalizadas.
      O diagnóstico é feito com base no quadro clínico, serologia para VIH positiva e caracterização imagiológica das lesões por ecografia (exame de primeira linha), tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM). (consultar capítulo sobre Imunodeficiências Adquiridas)
    • Parotidite por Mycobacterium tuberculosis
      Trata-se duma situação extremamente rara, mesmo nas áreas de elevada incidência de tuberculose. O respectivo diagnóstico etiológico é difícil pela escassez de sinais e sintomas para além da tumefacção e inespecificidade dos estudos imagiológicos. O diagnóstico é feito por estudo microbiológico adequado de uma amostra obtida por biópsia.
    • Parotidite por Actinomyces spp (Parotidite granulomatosa)
      Os agentes Actinomyces são bactérias Gram-positivas anaeróbias que fazem parte do microbioma oral na espécie humana. A infecção provocada por estes agentes, rara, muitas vezes relacionada com deficiente higiene oral ou a estado de imunodepressão, na sua maioria está associada a outros agentes – trata-se duma infecção polimicrobiana (sigla HACEK incluindo, designadamente, Haemophilus aphrophilus, Aggregatibacter ou Actinobacillus, Cardiobacterium hominis, Eikenella coorodens e Kingella kingae). É caracterizada por doença granulomatosa crónica, com agudizações, supurativa com tendência para ultrapassar “barreiras anatómicas”, predominantemente na região cérvico-facial, incluindo região parotídea. A estase salivar por tumefacção da glândula e tecidos envolventes constitui um factor predisponente da infecção.
    • Parotidite por Bartonella henselae
      Esta entidade clínica foi abordada no capítulo sobre “Doença do arranhão do gato”.
N.B. 🡪 De acordo com estudos epidemiológicos na idade pediátrica demonstrou-se etiologia vírica da parotidite em 14% dos casos, com a seguinte distribuição: VEB- 7%; Parainfluenzae– 4%; Adenovírus- 3%; e – VHHC6 em criança com menos de 6 anos.

 

  1. Parotidites de etiopatogénese não infecciosa. Importa uma referência a outras situações susceptíveis de originar inflamação e tumefacção da parótida:
    1. Acção de fármacos (fenilbutazona, tiouracilo, iodetos e tiazidas).
    2. Doenças metabólicas crónicas (cirrose hepática, diabetes mellitus e urémia).
    3. Parotidite obstrutiva, mais frequentemente provocada por sialolitíase, e caracterizada por episódios pós-prandiais de edema glandular e dor, com regressão espontânea em 3-4 horas. Qualquer que seja o insulto inicial, este promove estase salivar, o que facilita a contaminação bacteriana. Tanto a estase salivar como a contaminação bacteriana promovem fenómenos subsequentes de metaplasia ductal, com agravamento da estase e surgimento de infecção secundária, fibrose, atrofia glandular e formação de mucoceles.
      O diagnóstico é sugerido pela história clínica, com especial relevo na relação com o período pós-prandial, e confirmado por ecografia, ou RM evidenciando sinais de dilatação do canal parotídeo.
    4. Parotidite recidivante, processo de causa desconhecida, que se manifesta por episódios autolimitados e habitualmente unilaterais de tumefacção dolorosa da parótida, durando cerca de 2-3 semanas, acompanhados ou não de febre, com regressão após a puberdade. De relevar o risco de ulterior fibrose e insuficiência glandular em função do número e duração dos episódios (os quais poderão surgir em número ~ 20/ano).
    5. Síndroma de Sjögren, de etiopatogénese autoimune, traduzida por inflamação crónica das glândulas exócrinas, sobretudo salivares e lacrimais (infiltrado de linfócitos e plasmócitos com consequente destruição epitelial) em sujeitos geneticamente predispostos, como consequência de exposição a factores ambientais (por ex. infecções víricas). Na idade pediátrica, o sinal mais frequente e precoce é a tumefacção parotídea, associando-se a xerostomia (secura da boca por diminuição da secreção salivar) e, mais tardiamente, xeroftalmia (diminuição da secreção lacrimal) e xerodermia (secura da pele).
      As manifestações extraglandulares podem ser tipificadas por fenómeno de Raynaud, sintomatologia simile LES, e por problemas respiratórios diversos.
      A resposta autoimune a células epiteliais da pele e mucosas traduz-se analiticamente na positividade de anticorpos antinucleares (ANA) e de factor reumatóide em 50%-85% dos casos, e de anticorpos anti-Ro/SSA e anti-La/SSB em 60%-90%.
      A cintigrafia com tecnécio-99 permite avaliar a função das glândulas salivares e a ecografia, a arquitectura anormal das mesmas.
    6. Sarcoidose
      Trata-se duma doença granulomatosa multissistémica de causa desconhecida, extremamente rara, geralmente manifestada pelo aumento bilateral crónico e indolor da parótida. Outra apresentação da doença, correspondendo à síndroma de Heerfordt-Waldenstrom, associa parotidite a: febre, uveíte e paralisia do nervo facial. O diagnóstico baseia-se na identificação dos granulomas característicos da doença por biópsia.
    7. Tumores da parótida
      Os tumores da glândula parótida apresentam-se como massas de crescimento progressivo, nodulares, indolores, podendo ser móveis ainda que os tumores malignos sejam mais frequentemente imóveis. Pode verificar-se perda de peso, mal-estar geral, xerostomia, paralisia do nervo facial ou episódios de parotidite aguda supurativa.
      Os tumores benignos mais frequentes abaixo do ano de idade são os hemangiomas e linfangiomas; nos restantes grupos etários, predominam o adenoma pleiomórfico, com potencialidade de degenerescência maligna. O tumor maligno mais frequente é o carcinoma mucoepidermóide, seguindo-se os cistoadenocarcinomas.

Os exames complementares imagiológicos são determinantes para o diagnóstico. A ecografia, pela sua acessibilidade e ausência de radiação ionizante, constitui o meio de primeira linha; contudo, as lesões suspeitas devem ser mais bem caracterizadas por TC ou RM. As características imagiológicas sugestivas de malignidade são:

  • Margens mal definidas com invasão dos tecidos adjacentes; e
  • Sinais de metástases ósseas ou linfáticas.

Tratamento

O tratamento da parotidite epidémica, assim como o das complicações, é sintomático, utilizando o paracetamol ou o ibuprofeno em doses habituais.

No que respeita às restantes situações mencionadas, importa particularizar alguns procedimentos relativamente às seguintes:

  • Nas parotidites bacterianas, fúngicas ou por outros vírus está indicado o tratamento antimicrobiano dirigido;
  • Nas parotidites de etiologia neoplásica, para além da ressecção cirúrgica, total ou parcial, são utilizados certos fármacos antineoplásicos, salientando-se a importância da actuação especializada em centros de referência;
  • Nas formas obstrutivas, designadamente em relação com sialolitíase ou defeitos congénitos, o tratamento é cirúrgico; tratando-se de remoção de cálculo, poderá utilizar-se a técnica cirúrgica clássica ou a endoscopia para litotrícia;
  • Na parotidite recidivante, alívio dos sintomas durante as crises com analgesia, massagem parotídea e fármacos sialogogos; havendo suspeita de sobreinfecção bacteriana sem repercussão sistémica está indicada antibioticoterapia oral com amoxicilina/ácido clavulânico como primeira linha; os casos mais graves devem ser orientados em centros de referência, em que são aplicadas diversas terapêuticas: escleroterapia intraductal, nevrectomia do ramo timpânico do nervo facial, endoscopia dilatadora ou paratiroidectomia;
  • Na parotidite associada a sarcoidose, não se torna necessário qualquer tratamento específico para além do tratamento-base.

Prevenção da parotidite epidémica

  1. Primeiramente, adopção de medidas de isolamento do paciente para evitar a transmissão a sujeitos susceptíveis/não vacinados. Está indicado manter tais medidas durante 5 dias depois do início dos sintomas.
  2. Vacinação anti-parotidite (associada a anti-sarampo e anti-rubéola) <> VASPR em duas doses, aos 12 meses e 5 anos, segundo o PNV 2017. No caso de não vacinação anterior, sugere-se que o leitor consulte o capítulo sobre Vacinas.
  3. Em caso de surto epidémico, está preconizada a vacinação dos contactos com mais de seis meses que não tenham qualquer dose de vacina, com duas doses de vacina intervaladas de, pelo menos, 28 dias.
  4. Nos casos de aos contactos ter sido aplicada apenas uma dose da vacina, deve ser administrada uma segunda dose se o surto afectar crianças em idade pré-escolar, ou adultos com capacidade de transmissão a grande parte da comunidade.
  5. Na hipótese de a vacinação não ser possível, a criança deve manter o evitamento escolar durante 26 dias após o último caso de parotidite.

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INFECÇÕES POR Enterovírus (excluindo Poliovírus)

Nomenclatura e importância do problema

Os Enterovírus (EV) pertencem à família Picornaviridae e englobam grande número de patogénios responsáveis por um espectro alargado de doenças. São constituídos por RNA de cadeia simples, rodeado por uma cápside que compreende 60 cópias de 4 proteínas víricas designadas respectivamente por VP1, VP2, VP3 e VP4, sem invólucro lipídico.

Anteriormente, a sua classificação era baseada no potencial patogénico observado em humanos e ratos, integrando 5 grupos diferentes: Poliovirus (serótipos 1-3), Coxsackievirus A (serótipos 1-22 e 24), Coxsackievirus B (serótipos 1-6), Echovirus (serótipos 1-9, 11-21, 24-27, 29-33) e Enterovirus (serótipos 68-71).

Actualmente, a classificação dos EV tem em conta as propriedades moleculares, antigénicas e biológicas dos vírus, resultando assim respectivamente em 5 diferentes espécies de EV Humanos: Poliovirus, Human Enterovirus-A (HEV-A), HEV-B, HEV-C e HEV-D. De referir que os primeiros Para-Echovirus Humanos (HPeV) foram descritos anteriormente como Echovirus 22 e 23, pertencendo ao género EV. Na actualidade estão descritos mais de 10 HPev, pertencentes a um género próprio.

Os tipos dos enterovírus distinguem-se por diferenças quanto a antigénios e quanto a sequências genéticas. Embora tenham sido identificados mais de 100, a maioria dos casos de doença é explicada por 10-15 dos mesmos. Diferentes tipos de EV estão associados a determinadas manifestações clínicas.

Algumas das suas mais importantes características físicas e biológicas incluem a capacidade de actuar perante um grande espectro de pH (3 a 10), resistência ao éter e etanol, e inactivação a temperaturas superiores a 50ºC.

As infecções por EV, muito frequentes na idade pediátrica, são habitualmente responsáveis por sintomas ligeiros, como doença das vias respiratórias superiores ou exantema febril.

No entanto, podem também ser responsáveis por um quadro clínico com gravidade, principalmente no período neonatal.

Surtos de infecção por EV têm sido descritos, tais como:

  • O surto de EV-D68, que causou um elevado número de casos de insuficiência respiratória em crianças nos Estados Unidos em 2014; e
  • O surto de EV-71, que tem vindo a causar inúmeras mortes por rombencefalite e disfunção multiorgânica no Sueste Asiático nos últimos 40 anos.

Aspectos epidemiológicos

Os enterovírus têm uma distribuição mundial. Nos climas temperados ocorrem surtos de infecções sobretudo no Verão e início do Outono. Nos trópicos não se verifica incidência sazonal.

As respectivas infecções são responsáveis por cerca de 30%-60% das doenças febris agudas, e por cerca de 50% dos casos hospitalizados com suspeita de sépsis, de acordo com dados estatísticos de países americanos e europeus.

São considerados factores de risco: idades mais baixas, deficientes condições de higiene e saneamento, baixo nível socioeconómico e aglomerados de pessoas e crianças em infantários, escolas, e deficientes condições de habitação em geral.

A transmissão dos EV ocorre predominantemente por via directa ou indirecta de contacto fecal-oral com pessoas infectadas com o vírus.

Por exemplo, o contacto directo com fezes ocorre em actividades simples como mudar a fralda.

A transmissão indirecta pode ocorrer por más condições sanitárias e inclui água contaminada e superfícies. Pode também haver transmissão através de secreções respiratórias, mais frequente em alguns serótipos, nomeadamente Coxsackievirus A21.

O período de incubação é difícil de determinar com precisão, podendo variar de acordo com a apresentação clínica e com o vírus. Nos casos de doença febril aguda, é geralmente de 3 a 5 dias, exceptuam-se os casos de conjuntivite hemorrágica, de 24-72 horas.

A excreção do vírus pelo tracto respiratório superior em doentes infectados permanece durante cerca de 1 a 3 semanas e, pelas fezes, durante cerca de 3 a 8 semanas.

O período de maior contágio verifica-se provavelmente nas primeiras duas semanas após infecção aguda.

Etiopatogénese

Muito do que se sabe da etiopatogénese dos enterovírus foi extrapolado de estudos da infecção por poliovírus. Após a aquisição do vírus, a replicação inicial ocorre na faringe e íleo terminal. A ausência de invólucro lipídico favorece a sobrevivência no tracto gastrintestinal.

Por outro lado, diversas macromoléculas da superfície celular funcionam como receptores para o vírus: receptor para Adenovirus-Coxsackievirus, molécula intercelular de adesão 1 (ICAM-1), antigénio VLA-2 e proteína DAF/CD55.

A replicação inicial na faringe e intestino é seguida por uma virémia minor que possibilita a disseminação do vírus por via hematogénica para os tecidos linfóides (amígdalas, placas de Peyer e gânglios regionais).

A resposta imune do hospedeiro poderá limitar a replicação e progressão para além do sistema retículo-endotelial, do que resultará infecção subclínica.

Nos casos em que não se verifica o processo de limitação da replicação, a multiplicação subsequente faz com que haja uma virémia major, coincidente com o início da sintomatologia, sendo atingidos o SNC, coração e pele (forma sintomática).

De salientar que o tropismo para determinados órgãos-alvo é determinado em parte pelo serótipo.

Uma vez atingidos os órgãos-alvo (SNC, coração, fígado, pulmões, pâncreas, rins, músculo, pele), os mesmos são lesados em função de processo de necrose local (citólise) e de resposta inflamatória imunomediada, sendo que a resposta inflamatória poderá passar à cronicidade, sem a presença do vírus, após a sua eliminação. Como resultado da persistência possível de certos Enterovirus (por ex. Coxsackie B) poderá surgir cardiomiopatia dilatada.

A resposta imune ao EV é específica para cada um dos seus diferentes serótipos e, como tal, a reinfecção por um determinado serótipo é, em regra, assintomática.

A imunidade humoral tem um papel fundamental, não só na resposta à infecção aguda, mas também na prevenção da reinfecção; contudo, isoladamente, não é suficiente para bloquear a replicação in vitro.

A proteína da cápside VP1 é o alvo preferencial do anticorpo neutralizante, o qual confere imunidade duradoura para a doença provocada pelo mesmo serótipo.

O papel dos macrófagos na infecção por EV é essencial para a depuração do vírus, ao contrário da resposta celular mediada por linfócitos T, que não parece contribuir significativamente para a eliminação do vírus.

Certos hospedeiros são mais susceptíveis a infecções graves, nomeadamente:

  • No período neonatal: recém-nascidos infectados pelas suas mães no período perinatal, ou ainda;
  • Portadores de imunodeficiências congénitas ou adquiridas que poderão originar situações de infecção crónica;
  • Pacientes padecendo de agamaglobulinémia: possibilidade de a infecção por EV poder cursar com meningoencefalite crónica devastadora.

Manifestações clínicas

Em cerca de 90% dos casos as infecções são subclínicas; quando sintomáticas, cursam geralmente com síndroma febril ou doença respiratória inespecífica. Nos pacientes sintomáticos, o espectro e a gravidade da doença dependem do serótipo de EV assim como de factores do hospedeiro, como a idade, o sexo e o respectivo tipo de resposta imunológica, a ausência ou presença de memória imunológica. A probabilidade de doença sintomática é tanto maior quanto menor a idade da criança.

Apenas numa pequena proporção de casos se verificam manifestações clínicas graves como miocardite, meningoencefalite, rombencefalite ou sépsis. No que respeita à gravidade, ela será provavelmente maior nos extremos da faixa etária pediátrica (RN e adolescentes).

De referir contudo que, mesmo nos casos ligeiros ou assintomáticos se pode verificar excreção do vírus, o que constitui fonte de disseminação da infecção.

Tendo sido referido antes que este capítulo não incluía o Poliovirus, como complemento, sugere-se a leitura do capítulo sobre doenças neuromusculares, o qual aborda, de modo sucinto, aspectos clínicos da poliomielite na alínea relacionada com o diagnóstico diferencial.

Seguidamente são sistematizadas as principais formas clínicas das infecções por enterovírus. (Quadro 1)

QUADRO 1 – Manifestações clínicas associadas à infecção por Enterovírus.

Quadro clínico Particularidades
S. febril inespecíficaTodos os serótipos de enterovírus
ParalisiaMais comum com poliovírus, mas também enterovírus, especialmente enterovírus 71
MeningiteTodos os enterovírus, sobretudo antes dos 5 anos de idade
Encefalite/meningoencefalite RombencefaliteGeneralizada ou focal, associada a meningite (na maioria dos casos, recuperação sem défice neurológico)
Doença mão-pé-bocaCoxsackie A16, A5, A7, A9, A10, e B2, B5, e enterovírus 71 (formas mais graves)
HerpanginaGeralmente por coxsackie A; por vezes enterovírus 71
Pleurodinia epidémica (doença de Bornholm)Por coxsackie B3, B5, B1, B2, ECHO vírus 1 e 6, e enterovírus 71 (formas mais graves)
Miocardite

Sobretudo por coxsackie B. Pode surgir no período neonatal com elevada taxa de mortalidade.

No adulto raramente é fatal

ExantemaPor diversos tipos de coxsackie A, B, e ECHO vírus
Infecção neonatalAlguns serótipos de coxsackie B e ECHO vírus. A transmissão ocorre durante o parto e os sinais são variáveis (desde intercorrência febril até doença multissistémica fulminante e morte)
Conjuntivite hemorrágicaVários serótipos de enterovírus (sobretudo coxsackie A24 e enterovírus 11, 19 e 70)
Pancreatite/diabetesPor coxsackie B

Doença “mão-pé-boca” (hand-foot-mouth)

Muito comum em idade pediátrica (especialmente crianças com menos de 5 anos), caracteriza-se por febre, vesículas na cavidade oral (Figura 1), mucosa bucal, palato, língua e lábios. Nas mãos e pés predominam vesículas (de 3-7 mm), sobretudo na palma e planta. Após ulceração das vesículas, observa-se pequena “cratera” amarelada (de 4-8 mm) com orla vermelha. (Figura 2)

Nas nádegas predominam as lesões exantemáticas maculopapulosas (não incluem vesículas), progredindo para as coxas e podendo originar confusão, por vezes com o padrão morfológico encontrado na púrpura de Henoch-Schonlein.

A Figura 3 mostra aspecto de exantema por enterovírus, ao nível da face, tronco, membros e dorso das mãos.

O período de incubação é, geralmente, de 3 a 5 dias e a doença habitualmente resolve-se em 2 a 3 dias sem outras complicações. Coxsackievirus A (nomeadamente A16, na Europa) são responsáveis pela maior parte dos casos descritos.

A doença é moderadamente contagiosa e o vírus pode persistir no organismo durante várias semanas após a fase aguda, permitindo que o vírus se continue a transmitir.

Nos últimos anos têm sido descritos casos de “doença mão-pé-boca” atípica: febre mais elevada, maior duração, envolvimento cutâneo mais extenso, com lesões vesículo-bolhosas atingindo também a face dorsal das mãos e pés, e superfícies extensoras dos membros e períneo.

Nas crianças com eczema atópico pode haver atingimento preferencial das zonas de eczema (eczema coxsackium). Em muitos casos ocorre descamação palmo-plantar e onicomadese (separação da unha a nível proximal do leito ungueal) 2-6 semanas após o quadro agudo. Na sua maioria, tal forma clínica é associada ao vírus Coxsackievirus A6.

Herpangina

Nesta forma clínica verifica-se início súbito de febre elevada, odinofagia e lesões na faringe posterior acompanhadas de anorexia; nas crianças mais velhas há queixas de cefaleias, cervicalgias, vómitos, dor abdominal e disfagia.

No exame objectivo destacam-se lesões papulovesiculares na orofaringe, nomeadamente pilares anteriores das amígdalas, véu do paladar e úvula. Estas pequenas vesículas (1-2 mm) ulceram em 2-3 dias, ampliando-se as lesões ulcerosas para 3-4 mm; rapidamente, as úlceras podem atingir 10 mm de diâmetro com halo vermelho circundante. A herpangina é, em regra, uma doença benigna.

Meningite

A meningite asséptica afecta frequentemente crianças com idades inferiores a um ano de idade. Em mais de 90% dos casos, os enterovírus são o agente responsável, sendo que a grande maioria pertence ao Coxsackievirus B e Echovirus.

As manifestações clínicas dependem do grupo etário. Nos recém-nascidos, manifesta-se habitualmente com febre acompanhada de outros sinais inespecíficos (diminuição da ingesta alimentar, vómitos, diarreia) e fontanela abaulada. Em crianças mais velhas predomina febre, irritabilidade, cefaleias, náuseas, vómitos, fotofobia e rigidez da nuca.

A doença é autolimitada, observando-se recuperação entre 3 a 7 dias após o início da sintomatologia.

Encefalite

Os enterovírus são agentes pouco frequentes de encefalite aguda (responsáveis por cerca de 5% de todos os casos). Vários serótipos já foram implicados na etiologia desta doença, sendo que os Coxsackievirus dos tipos A9, B2 e B5 e os Echovirus dos tipos 6 e 9 correspondem aos serótipos mais frequentemente associados. A encefalite por enterovírus ocorre em todas as idades mas tem maior incidência em crianças e jovens adultos; o seu prognóstico é mais favorável do que o da encefalite causada por outros agentes (HSV, arbovirus).

A meningoencefalite por vírus foi abordada anteriormente, em capítulo próprio, no grupo “Síndromas infecciosas”.

Pleurodinia (Doença de Bornholm)

Esta forma de apresentação de infecção por enterovírus, podendo ocorrer tanto de modo esporádico como epidémico, caracteriza-se por dor tóraco-abdominal paroxística devida a miosite, atingindo os músculos da parede torácica e abdominal.

Nas crianças pequenas as dores abdominais assemelham-se a cólicas. Acompanhada de mal-estar, cefaleia e febre, a doença agrava-se com a tosse, movimentos respiratórios, expiração forçada ou outros movimentos. Em geral evoluindo durante 3-6 dias, pode manifestar-se de modo intermitente (padrão bifásico) durante semanas, pode estar associada a miocardite, pericardite, orquite e meningite.

O serótipo mais frequentemente envolvido nesta apresentação é o Coxsackievirus grupo B, sendo também descritos outros serótipos de forma esporádica como o Echovirus 1, 6, 9 e 19, e ainda, Coxsackievirus A 4, 6, 9 e 10.

FIGURA 1. Estomatite. (NIHDE)

FIGURA 2. Lesões maculopapulosas nas palmas das mãos e plantas dos pés. (NIHDE)

FIGURA 3. Exantema da face, tronco e membros. (NIHDE)

Conjuntivite hemorrágica

A conjuntivite hemorrágica aguda é outra forma de manifestação de infecção por EV, que consiste em dor ocular, edema palpebral e hemorragia subconjuntival. Surge depois exsudado, inicialmente seroso, passando a mucopurulento por sobreinfecção bacteriana.

A febre é rara, mas pode verificar-se associação a faringite (a chamada febre faringoconjuntival, também presente nas infecções por Adenovírus).

O processo na sua evolução natural dura cerca de 10 dias. Apesar de exuberante, tal evolução é geralmente autolimitada e com percurso benigno.

Em casos mais graves, pode persistir ceratite por várias semanas e, se o agente etiológico for o Enterovirus D70, podem existir complicações intracranianas. As formas associadas a Enterovírus 11 e 19 comportam maior risco de complicações: ceratite, coriorretinite, uveíte, retinite ou glaucoma.

Miopericardite

Esta doença é mais frequente no pequeno lactente, nomeadamente no recém-nascido. A sua gravidade varia desde casos assintomáticos até a insuficiência cardíaca fulminante e morte. Os EV mais frequentemente responsáveis são os Coxsackievirus grupo B.

Rombencefalite

Esta forma clínica (encefalite do tronco cerebral associada ao enterovírus/ EV-A71) é considerada actualmente um problema emergente de saúde pública, sobretudo na Ásia, onde é responsável por epidemias recorrentes. Pode surgir na sequência de herpangina ou de “doença mão-pé-boca”, seguindo-se o atingimento do tronco cerebral e instalação por fases de um quadro clínico grave:

  1. Abalos mioclónicos associados a tremor e/ou ataxia;
  2. Mioclonias transitórias associadas a compromisso dos nervos cranianos, seguindo-se dificuldade respiratória por edema pulmonar neurogénico, cianose, choque, coma e apneia;
  3. Forma mais grave comportando mortalidade ~ 70% com sintomatologia semelhante à descrita em I e II, mas associada a diplegia facial, ataxia, disartria, oftalmoplegia internuclear e apneia de causa central e sequelas graves tais como tetraplegia espástica.

O prognóstico da rombencefalite é extremamente reservado. Nos últimos anos foram já descritos inúmeros casos de síndroma mão-pé-boca por EV-A71 na Europa e recentemente já houve casos de rombencefalite por este agente nalguns países Europeus (incluindo Portugal).

Pneumonia e paralisia flácida

No Verão de 2014 houve nos Estados Unidos da América um surto de pneumonia com insuficiência respiratória aguda que atingiu todos os estados. Este surto, causado pelo Enterovirus D68, partilha muitas das características dos Rhinovirus (sobrevivência a temperaturas de 33ºC, intolerância a ambientes ácidos); assim, não se estranha que apresente tropismo especial pelo aparelho respiratório.

No decorrer deste surto, foi identificado um aumento exponencial do número de casos de crianças com quadro agudo de paralisia flácida e disfunção de pares cranianos. Apesar de não se ter identificado Enterovírus D68 no SNC, foi estabelecida uma relação causal.

De referir que a paralisia flácida aguda devida a enterovírus não pólio é mais ligeira do que a provocada pela infecção por poliovírus.

Exames complementares e diagnóstico

Apesar de o diagnóstico ser, em regra, clínico, o diagnóstico laboratorial de uma infecção por EV pode ser obtido por isolamento e identificação do vírus em cultura celular, detecção do RNA do vírus por PCR (reacção em cadeia da polimerase), ou por métodos serológicos.

  1. A identificação do EV em cultura celular é conseguida com base no efeito citopatogénico directo produzido pelo vírus em células cultivadas; tal identificação pode ser efectuada em diversos produtos biológicos (sangue, LCR, fezes, secreções respiratórias).
    Trata-se dum método relativamente sensível, permitindo a realização de serotipagem para estudos clínicos e epidemiológicos; contudo, é demorado (3-8 dias), dispendioso e não se encontra disponível em todos os centros.
    Actualmente, a cultura celular não se justifica para diagnóstico clínico; por outro lado tem interesse para determinação de serótipos de enterovírus identificados previamente em amostras de produtos biológicos pelo método molecular PCR.
  2. No âmbito das técnicas de amplificação genómica, cabe salientar que a PCR constitui a técnica mais útil sob o ponto de vista clínico, designadamente por permitir maior rapidez na obtenção do resultado, estando disponível na maioria dos laboratórios.
    Podendo aplicar-se a uma grande variedade de amostras (LCR, soro, urina, fezes e exsudado e secreções da nasofaringe ou conjuntiva), obtém-se positividade quanto à identificação do vírus com sensibilidade entre 92% e 100%, e especificidade entre 97% e 100%. Tem como limitação o facto de não permitir a identificação dos serótipos.
  3. Quanto às provas serológicas importa referir que a microneutralização é a técnica mais utilizada para identificação de anticorpos anti-enterovírus. Ao tratar-se duma técnica específica de serótipo, a sua utilidade na prática clínica é limitada, sobretudo tendo em conta a grande variedade de serótipos existentes. Outra limitação diz respeito à baixa sensibilidade e ao tempo requerido para se obter o resultado final por ser necessário obter amostras de soro na fase aguda e na fase de convalescença.

Complicações e prognóstico

O prognóstico na maioria das formas clínicas é bom. Como regra, pode estabelecer-se que a morbilidade e mortalidade se associam a formas clínicas acompanhadas de miocardite, doença neurológica e infecção perinatal.

Tratamento

Sendo em geral as infecções por EV autolimitadas, está indicado apenas o tratamento sintomático.

No entanto, nas formas clínicas de maior gravidade, apresentando-se com quadros de miocardite, meningite, em recém-nascidos e em doentes imunocomprometidos, poderá estar indicada terapêutica específica.

A administração de imunoglobulina endovenosa poderá constituir uma opção para estes doentes, nomeadamente nos recém-nascidos com miocardite.

O pleconaril oral (antivírico eficaz in vitro dirigido a Enterovírus) nos casos de infecção grave com miocardite associada, foi recentemente suspenso pelas acções secundárias. Presentemente está em estudo um fármaco a administrar por via nasal.

Prevenção

Medidas de higiene simples, tais como lavagem cuidadosa das mãos (prevenção da transmissão oral-fecal) e outras medidas clássicas universais de higiene básica (desinfecção de objectos contaminados, higiene de lugares públicos como piscinas, de locais de confecção de alimentos, etc.) são de extrema importância para a prevenção da transmissão de EV.

As mulheres grávidas, principalmente no terceiro trimestre, devem ser informadas que se deverão manter afastadas de qualquer doente com provável infecção por EV.

Inúmeros esforços têm sido feitos para se encontrar um antivírico ou uma vacina eficazes contra o Enterovirus 71. Inúmeras vacinas inactivas contra o genótipo C4 do Enterovírus 71 parecem ser promissoras, seguras e sem efeitos adversos graves. No entanto, não conferem protecção para outros genótipos, o que limita a sua utilização.

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INFECÇÕES POR Parvovírus B19

Importância do problema

O microrganismo Parvovírus B19 (PVB19), vírus ADN e de cadeia única, pertence, como único membro, à família Parvoviridae e ao género Erythrovirus. A designação deste microrganismo deriva do facto de o mesmo se replicar unicamente nos precursores hematopoiéticos.

Foi inicialmente descoberto em 1975 no soro de dadores de sangue saudáveis. Durante muitos anos após a sua descoberta, admitiu-se que a infecção por PVB19 era assintomática ou associada a doença febril inespecífica.

Em 1980 chamou-se a atenção para o papel central do referido vírus na patogénese das crises aplásticas no contexto de anemia hemolítica crónica. Ulteriormente, concluiu-se que a entidade clínica denominada muitos anos antes Eritema Infeccioso (ou 5ª doença dos antigos) era a manifestação mais comum de infecção pelo mesmo vírus. Mais tarde associou-se o PVB19 a patologia diversa durante a gravidez, sendo a hidropisia fetal de causa não imune a mais conhecida.

As infecções por este vírus estão associadas a um espectro amplo de manifestações clínicas. Outros parvovírus são patogénicos para animais como o cão e o gato.

Aspectos epidemiológicos 

As infecções por PVB19, distribuídas em todo o mundo, são mais prevalentes na idade escolar (~ 70% dos casos entre os 5 e 15 anos), com picos sazonais na transição do Inverno para a Primavera. Trata-se do único membro da família Parvoviridae que causa doença na espécie humana.

A seroprevalência aumenta com a idade, tendo sido provado, em estudos epidemiológicos, que cerca de 40%-60% dos adultos já tiveram a infecção.

A transmissão de pessoa a pessoa faz-se sobretudo por via respiratória através das gotículas de secreções nasofaríngeas; contudo, pode fazer-se igualmente através do sangue ou derivados, facto documentado em doentes com hemofilia.

Poderão surgir infecções pelo PVB19 associadas aos cuidados de saúde/nosocomiais, com possibilidade de afectar os profissionais de saúde.

Por outro lado, pode verificar-se segundo episódio de doença no mesmo indivíduo, com probabilidade entre 10% e 60%.

Etiopatogénese

A infecção experimental com PVB19 em voluntários saudáveis revelou que a mesma constitui uma doença bifásica.

  • Cerca de 7-11 dias após a inoculação surge virémia acompanhada de febre, mal-estar, rinorreia e eliminação do vírus pelas secreções nasofarígeas. Concomitantemente, verificou-se que havia diminuição muito acentuada dos reticulócitos, atingindo-se níveis indetectáveis, a par de discreta diminuição da hemoglobina sérica. Com o surgimento de anticorpos específicos, a sintomatologia regrediu e a hemoglobina sérica voltou ao normal.
  • Cerca de 17-18 dias após a inoculação, nalguns indivíduos surge exantema associado a artralgia.

Nesta perspectiva, concluiu-se que na patogénese da doença infecciosa por PVB19 estão implicados dois mecanismos correspondentes a duas fases da mesma:

  1. A primeira fase (infecciosa), resultante da acção directa do vírus (citotoxicidade com efeito sobre as  células susceptíveis em divisão); e
  2. A segunda fase (pós-infecciosa), relacionada com a resposta imune.

Pormenorizando:

1ª Fase (infecciosa)Citotoxicidade directa sobre as células precursoras eritróides, (fase infecciosa).

O alvo primário do PVB19 é a linha celular eritróide, particularmente pronormoblastos e normoblastos em divisão. A infecção vírica (e replicação) produz lise celular com consequente depleção progressiva dos precursores eritróides e a inibição transitória da eritropoiese. O vírus não tem efeito aparente sobre a linha celular mielóide.

O tropismo para as células eritróides é explicado pela existência do chamado antigénio P (Ag P) dos grupos de sangue nas células eritróides, o qual constitui o receptor celular primário para o vírus; importa salientar:

      • Que tal receptor também se encontra ao nível das células endoteliais, renais, placentárias e miocárdicas fetais; e
      • Que indivíduos sem a proteína P são resistentes à infecção.

Importa especificar que a patogénese de anomalias muitas vezes observadas também, tais como trombopénia e neutropénia, não têm explicação na base dos conhecimentos actuais. Somente se comprovou in vitro que as proteínas do PVB19 têm acção citotóxica sobre os megacariócitos.(#)

Ocasionalmente o vírus pode infectar os leucócitos (especialmente os neutrófilos), sendo que in vitro as proteínas do PVB19 têm acção citotóxica sobre os megacariócitos. Muito embora a infecção se possa manifestar como um quadro de pancitopénia, o vírus não constitui factor etiológico desencadeante de verdadeira anemia aplástica.

2ª Fase (pós-infecciosa)Resposta imune do hospedeiro. Nesta fase (pós-infecciosa), em que se verifica a formação de imunocomplexos, o quadro clínico é variável, em função de diversos factores: estado geral anterior do paciente infectado por PVB19, idade, eventual verificação de imunocompetência, de alteração da imunidade humoral e/ou de doença hematológica (designadamente anemia hemolítica crónica).

      1. Nas situações imunocompetência ou normalidade dos mecanismos do sistema imune, verifica-se que 25% dos infectados estão assintomáticos, 50% evidenciam sintomatologia inespecífica (febre, mialgia, cefaleia), e 25% apresentam manifestações cutâneas do tipo exantema (mais frequentes até aos 10 anos), e articulares (sobretudo em adolescentes e adultos). Os indivíduos imunocompetentes produzem anticorpos específicos (IgG e IgM contra o vírus).
      2. Nos indivíduos padecendo de anemia hemolítica crónica e doutras doenças hematológicas caracterizadas por turnover elevado de eritrócitos existe especial vulnerabilidade face a perturbações, mesmo ligeiras, da eritropoiese. A infecção por PVB19, levando a inibição transitória da eritropoiese, provoca diminuição significativa da hemoglobina (Hb), requerendo muitas vezes transfusão. Em tal circunstância verifica-se igualmente diminuição acentuada dos reticulócitos, traduzindo lise dos precursores eritróides infectados.
        Neste contexto, a normalidade da imunidade humoral é crucial para controlo da infecção (como mecanismo natural de resposta). Assim, como resultado do mecanismo de compensação funcionante/normal, surge imunoglobulina específica (Ig)M dentro de 1-2 dias após a infecção, seguindo-se elevação de IgG anti-PVB19, conduzindo a controlo da infecção, restauração da reticulocitose e a elevação da Hb.
      3. Nos indivíduos com alteração da imunidade humoral existe risco aumentado de infecções por PVB19 mais graves e persistentes, traduzindo-se por aplasia eritrocitária crónica, por vezes acompanhada de neutropénia, trombocitopénia e insuficiência medular. Nas crianças submetidas a quimioterapia no contexto de leucemia ou outras formas de cancro, submetidas a transplantes, assim como em situações de imunodeficiência congénita ou adquirida (incluindo SIDA) verifica-se risco elevado de infecções crónicas por PVB19.

O papel da imunidade celular na recuperação da doença não é conhecido, muito embora alguns doentes em que se desenvolve infecção persistente evidenciem défice de células T bem como outras alterações do sistema imune.

Notas importantes:
Considerando como referência o período de incubação de 7 dias, poder-se-á estabelecer a seguinte cronologia de eventos mais importantes, relacionados com a patogénese:
🡪 Virémia e sinais inespecíficos persistindo entre o 7º e o 14º dia;
🡪 Descida dos reticulócitos e Hb a partir do 6º-7º dia e persistindo cerca de 4 semanas;
🡪 Ac IgM específicos anti-PVB19 desenvolvendo-se rapidamente após o início da virémia (entre 4-10 dias após a infecção) com pico pelas 2-3 semanas e persistindo durante tempo superior a 6-8 semanas (podendo desaparecer pelos 3-6 meses); constituem o melhor marcador de infecção aguda/recente;
🡪 Ac IgG específicos a partir do 14º dia ou terceira semana após a infecção; (marcadores de infecção passada ou de imunidade, detectáveis durante toda a vida);
🡪 Exantema e artropatia pela 3ª-4ª semana;
🡪 O aparecimento de erupção cutânea, coincidindo, como se referiu, com o desenvolvimento de Ac IgG, ocorre após a virémia, não havendo, nesta fase, risco de transmissão da doença. O aparecimento de Ac IgG anti-PVB19 indicia infecção dominada, restabelecimento da normalidade no número de reticulócitos e elevação da concentração de Hb.

 

Manifestações clínicas

O período de incubação deste tipo de infecção varia entre 4 e 14 dias, podendo atingir 20 dias.
As manifestações clínicas são muito variadas, desde quadros específicos exantemáticos (eritema infeccioso) até apresentações graves (crises aplásicas) em doentes com factores de risco imunológicos e hematológicos.
No indivíduo aparentemente saudável, a infecção pode ser assintomática, salientando-se que a manifestação mais comum é o já referido eritema infeccioso.
Nos casos de imunodepressão (em regime de quimioterapia ou de tratamento com drogas imunossupressoras, síndromas de imunodeficiência congénita ou adquirida) poderá desenvolver-se infecção persistente, causa frequente de anemia crónica.
A hidropisia fetal e a morte fetal são complicações da infecção fetal.
Outras manifestações menos comuns de infecção por PVB19 incluem: púrpura trombocitopénica idiopática, miocardite, vasculite, glomerulonefrite, meningoencefalite, dermatomiosite juvenil e pseudoapendicite; tal sintomatologia pode surgir isoladamente ou como complicação do eritema infeccioso.
Seguidamente procede-se à descrição das formas clínicas mais típicas.

Eritema infeccioso (Quinta doença ou megaleritema epidémico)

É mais comum nas crianças entre os 4-10 anos. O curso clássico do eritema infeccioso pode ser dividido em três estádios distintos (Figuras 1 e 2):

Estádio 1
  • Período de transmissão possível (precedendo o exantema).
  • Doença prodrómica leve (mal-estar, rinorreia, cefaleia, mialgia).
  • Virémia (início cerca de 7 dias após a infecção).
  • Depleção das células progenitoras eritróides.
  • Desenvolvimento de Ac IgM específicos.

FIGURA 1. Criança de 4 anos, hospitalizada com quadro febril, queilite, erupção tipo “face esbofeteada” e erupção maculopapulosa difusa. Detecção de Ac IgM específicos para PVB19 e sinais laboratoriais de compromisso renal.

FIGURA 2. A mesma criança da Figura 1 evidenciando quadro morfológico cutâneo compatível com PPGSS (papular-purpuric gloves and socks syndrome).

Estádio 2
  • Exantema facial semelhante a “cara esbofeteada”.
  • Desaparecimento da virémia.
  • Desenvolvimento de Ac IgG específicos (anti-PVB19).
Estádio 3
  • Exantema eritematoso maculopapuloso das extremidades e tronco. Mais proeminente nas superfícies de extensão, poupando as palmas das mãos e plantas dos pés.
  • Curso evanescente do exantema em 1-3 semanas.
  • Artropatia.

O exantema, um dos mais comuns da infância, é muito típico, evoluindo em três fases.

Após 5-7 dias do início da doença, surge erupção cutânea avermelhada, brilhante, nas bochechas (face como que esbofeteada), seguida de erupção de tipo “rendilhado ou reticulado difuso” do tronco, por vezes purpúrica, estendendo-se gradualmente para as extremidades. Por vezes surge eritema multiforme, ou prurido na planta dos pés. Outras vezes ainda: eritema purpúrico com lesões papulares e distribuição em luva (glove) e meia (sock) originando a sigla em inglês: PPGSS (papular-purpuric gloves and socks syndrome).

Esta síndroma, relacionada sempre com infecção por PVB19, é rara no adulto, e mesmo, na criança. Um exantema residual associado ao PVB19 pode reaparecer até várias semanas ou meses após a infecção inicial, podendo ser exacerbado por alterações térmica (banho quente) e luz solar. 

Infecção por PVB19 durante a gravidez e infecção fetal

Na mulher grávida, a infecção materna primária por PVB19 pode resultar em hydrops foetalis, aborto e morte fetal, particularmente quando se verifica antes das 20 semanas de gestação (em 10% dos fetos cujas mães se infectam durante a gravidez).

A hidropisia fetal gera-se no contexto de anemia e miocardite fetais, levando a insuficiência cardíaca congestiva. A este respeito, importa salientar o efeito citopático/citotóxico do PVB19 quer sobre a hematopoiese extramedular (hepática e esplénica em fase precoce da gravidez, desde a 6ª semana), quer sobre a medular, a partir do 4º mês.

Nos Estados Unidos a etiologia mais comum da hidropisia fetal é precisamente a infecção por PVB19.

Há resultados controversos de estudos relativamente à possibilidade (ou não) de anomalias congénitas atribuíveis à infecção in utero.

No decurso da gravidez importa avaliar o hematócrito fetal através de colheita de sangue do cordão por via percutânea. Poderá estar indicada transfusão eritrocitária intrauterina.

Na data do parto está indicado o estudo do sangue do cordão ou do sangue do RN para a detecção de vírus e IgM.

O diagnóstico diferencial da anemia congénita causada por este tipo de infecção faz-se fundamentalmente com a anemia hipoplástica congénita (síndroma de Diamond-Blackfan).

Artropatia

Desde há alguns anos que se tornou clara a associação de PVB19 com artrite e artralgias. É mais comum nos adultos, particularmente na mulher; este tipo de patologia afecta principalmente as pequenas articulações das mãos e dos pés, joelhos, tornozelos e punhos, com distribuição simétrica.

Em cerca de 50% dos casos poderá verificar-se a presença de sinais gerais associados (astenia, adinamia, mialgias, cefaleias, febre, etc.), sendo que em apenas 1/3 se verifica exantema concomitantemente.

A relação entre infecção por PVB19 e artrite reumática juvenil, artrite reumatóide e doença de Still tem sido estudada exaustivamente.

Crise aplástica transitória

Em doentes com anemia hemolítica crónica, nos quais a duração da sobrevida eritrocitária está diminuída, a acentuada reticulocitopénia resultante da infecção por PVB19 conduz a diminuição da concentração de hemoglobina a níveis críticos (crise hipoplástica).

Nos doentes com drepanocitose pode haver associação da crise aplástica (compromisso de todas as séries precursoras) com síndroma torácica aguda, crises vasoclusivas e sequestração esplénica.

A infecção por PVB19 não resulta invariavelmente em crise aplástica no doente hemolítico crónico; com efeito, nalgumas situações, tal complicação poderá não surgir se tiver havido transfusão recente, o que se explica:

  • pelo efeito protector dos anticorpos anti-PVB19 transfundidos (~ 40%-60% dos dadores são imunes);
  • pela substituição dos eritrócitos do dador, de vida média normal, por eritrócitos de vida média encurtada; ou
  • pelos dois mecanismos.

Nesta forma clínica de infecção por PVB19, ao contrário do que acontece nos doentes com eritema infeccioso, existe febre, mal-estar geral, letargia e sinais e sintomas associados a anemia de gravidade variável (palidez, taquicárdia, taquipneia, etc.).

Síndromas de imunodeficiência

Os doentes com alterações diversas da imunidade humoral têm maior risco de infecção crónica por PVB19, manifestada predominantemente por anemia crónica, em geral associada a neutropénia, trombocitopénia e aplasia medular. Outras situações de risco de infecção incluem patologia em que está indicada terapia imunossupressora ou quimioterapia (tumores sólidos, leucemia linfocítica aguda, etc.).

Uma das complicações neste contexto é a síndroma hemofagocitária.

Miocardite

As infecções por PVB19 podem originar miocardite em fetos, RN, crianças, adolescentes e adultos. A este propósito, cabe referir que as células do miocárdio exprimem o antigénio P, o que já foi referido antes.

O diagnóstico etiológico pode ser realizado através do estudo do ADN.

Diagnóstico

Os Ac IgM específicos anti-PVB19, desenvolvendo-se rapidamente após o início da virémia (entre 4-10 dias após a infecção) com pico pelas 2-3 semanas, persistem durante tempo superior a 6-8 semanas. Podendo desaparecer pelos 3-6 meses, constituem o melhor marcador de infecção aguda/recente.

Os Ac IgG específicos surgem a partir do 14º dia ou terceira semana após a infecção; são marcadores de infecção passada ou de imunidade, detectáveis durante toda a vida.

A seroconversão de IgG anti-PVB19 também serve de marcador de infecção recente (aumento do título 4 vezes em duas amostras de soro com duas semanas de intervalo). De salientar que a demonstração de IgG, mesmo com títulos elevados, na ausência de IgM, não é diagnóstica de infecção recente.

A detecção do vírus no sangue ou tecidos realiza-se pela técnica da reacção em cadeia da polimerase (PCR). Este método será reservado para situações de imunodeficiência em que a resposta de anticorpos, por ser deficiente (com baixo nível de ADN no soro), não é identificada por métodos convencionais.

Com efeito, o vírus pode ser detectado mediante PCR até vários meses após a fase aguda da infecção ainda que, nos pacientes imunocompetentes, os níveis caiam rapidamente depois da fase aguda. Nos pacientes imunodeprimidos ou nos diagnosticados de crise aplásica antes do desenvolvimento da resposta imunológica, esta prova é crucial para o diagnóstico.

O método de hibridação de ácidos nucleicos permite identificar positividade somente durante 2-4 dias após o início da doença.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial das infecções por PVB19 com exantema faz-se com outras doenças exantemáticas. Nos casos de exantema e artropatia há que admitir patologia do foro da Reumatologia.

Tratamento

Não existe terapêutica específica antivírica.

Nas situações de aplasia medular induzida por PVB19, nas formas persistentes e nas formas graves nos pacientes imunodeprimidos, está indicada IGIV na dose de 200 mg/kg/dia durante 5 dias; ou 1 g/kg/dia durante 3 dias. A IGIV não está indicada nas formas acompanhadas de artropatia.

Quando se suspeita de anemia, com base na ecografia, é fundamental a monitorização fetal incluindo a determinação do hematócrito através de colheita de amostra de sangue da veia umbilical por via percutânea. Poderá estar indicada a transfusão intrauterina para prevenção da morte fetal por anemia.

Em medicina materno-fetal, o diagnóstico de hidropisia e anemia fetais implica transferência da grávida para centro especializado perante a provável indicação de transfusão fetal.

Nos quadros febris e dolorosos estão indicados antipiréticos e analgésicos como paracetamol ou ibuprofeno.

Qualquer mulher grávida não imunizada e exposta ao PVB19 deve ser observada em consulta de obstetrícia. Havendo antecedentes de hidropisia fetal, independentemente do tratamento pré-natal efectuado, a criança deve ser submetida a vigilância rigorosa no sentido de detectar qualquer anomalia e ou sequelas.

Prevenção

Não existe vacina disponível para PVB19. Está a ser investigada uma vacina composta por proteínas da cápside do vírus.

A prevenção é difícil uma vez que o vírus é transmitido antes do aparecimento de sintomas no caso índice. Por isso, não se torna necessário isolamento nem evicção escolar.

Nos casos de aplasia medular estão indicadas medidas de isolamento do doente, dado o risco de sobreinfecção.

Nota: As fotos incluídas neste capítulo fazem parte da iconografia do Departamento de Pediatria do Hospital Fernando Fonseca, Amadora-Sintra.

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INFECÇÕES POR VÍRUS Herpes (Varicela-Zóster, Citomegalovírus e Epstein-Barr)

1. VARICELA-ZÓSTER

Definição

As infecções pelo vírus da varicela-zóster (VVZ) são doenças contagiosas exantemáticas vesicobolhosas, de distribuição universal, geralmente benignas e autolimitadas em doentes imunocompetentes.

Importância do problema e etiopatogénese

O vírus da varicela–zóster (VVZ) pertence a um dos 8 membros da família dos Herpesvirus, subfamília Herpesviridae, género Varicelavirus; de grandes dimensões em comparação com outros vírus, com uma estrutura icosaédrica e um núcleo de DNA, cresce dificilmente em cultura de laboratório. Tem semelhanças com o vírus Herpes simplex, que também é um herpes vírus-alfa.

É causa de duas doenças distintas:

  • Varicela, correspondente à infecção primária ou primoinfecção; e
  • Zona ou herpes-zóster, correspondente a reactivação do vírus latente.

O Homem é o único hospedeiro natural do vírus.

Do ponto de vista clínico, este vírus tem três características muito importantes:

  • A sua alta contagiosidade, sendo o único vírus herpes que se transmite por disseminação aérea (aerossóis). A varicela é uma das doenças mais contagiosas na idade pediátrica (taxa de transmissão de 61%-100%);
  • A infecção latente dos gânglios das raízes sensoriais, com capacidade de reactivação sob a forma de zona ou herpes-zóster; (ver adiante)
  • A presença de sintomas no decurso da infecção primária, em contraste com os outros vírus herpes (nomeadamente VEB e CMV) cuja primoinfecção é muitas vezes assintomática.

A transmissão surge por contacto directo de pessoa a pessoa, ou por intermédio de gotículas de muco ou de saliva eliminadas pelo doente infectado; existe ainda a possibilidade de transmissão por líquidos das vesículas de doentes com herpes-zóster.

O período de incubação é cerca de 15 dias, podendo variar de 10 a 21.

Durante a primeira parte deste período verifica-se replicação do vírus no tecido linfóide local, a que se segue breve período de virémia subclínica (1ª virémia) que veicula o vírus para o SRE. As lesões cutâneas disseminadas ocorrem durante uma 2ª virémia que dura 3-7 dias. As células sanguíneas mononucleares transportam vírus, gerando o aparecimento de novas vesículas durante este 2º período de virémia.

O VVZ é também transportado “de retorno” à mucosa das vias respiratórias superiores na parte final do período de incubação, permitindo a disseminação do vírus a contactos susceptíveis antes do aparecimento do exantema.

Em condições de resposta imune normal (indivíduos saudáveis) há possibilidade de o organismo limitar a replicação do vírus, facilitando a cura. Pelo contrário, nos indivíduos imunodeprimidos (sobretudo em situações associadas a defeitos congénitos de linfócitos T ou a síndroma de imunodeficiência adquirida), a replicação do vírus continua, podendo surgir infecção disseminada com repercussões em vários órgãos.

O vírus é transportado de modo retrógrado através dos neurónios sensoriais/espinhal-medula para os gânglios das raízes dorsais paravertebrais, onde fica em estado latente.

A reactivação subsequente causa herpes-zóster, quadro caracterizado por erupção vesicular distribuída em dermátomo, sendo que a supressão da imunidade celular aumenta o risco de reactivação do VVZ.

Aspectos epidemiológicos

Antes da introdução da vacina antivaricela nos EUA há mais de 14 anos, a maior parte das crianças adquiria infecção até aos 15 anos. Cerca de uma década depois verificou-se declínio de hospitalizações da ordem de 75%, em relação com varicela complicada. Igualmente se verificou diminuição acentuada da mortalidade entre as idades de 1 e 9 anos (menos 90% de óbitos).

No que respeita à idade de manifestação da infecção por VVZ há essencialmente 2 padrões:

  • O padrão dos climas temperados, em que se inclui a Europa, com contacto precoce com o vírus; nesta circunstância é, como a varicela, uma doença da idade pediátrica, com pico de incidência no final do Inverno/início da Primavera. Em populações não vacinadas, > 90% dos casos ocorrem antes da adolescência.
  • O padrão dos climas tropicais, com infecção protelada até à adolescência e idade adulta, idade com maior probabilidade de evolução mais grave e de aparecimento de complicações.

Em relação à prevalência da infecção, em Portugal, o Segundo Inquérito Serológico Nacional Portugal Continental 2000-2002 revelou que 86,8% da população estudada é seropositiva para VVZ e, tal como noutros países europeus, a infecção por este vírus ocorre predominantemente em crianças. Dos 15 aos 19 anos a seropositividade é 94,2%, após o que se verifica um aumento gradual para 99,3%. Neste estudo, verificou-se também que apenas 2,8% das mulheres nos períodos de maior fertilidade (20-29 anos e 30-44 anos) são susceptíveis.

De acordo com o mesmo inquérito, concluiu-se que a varicela ocorre predominantemente na infância: 41,3% das crianças entre os 2 e os 3 anos já se infectaram com o vírus, aumentando para o dobro dos 6 aos 7 anos.

Num estudo prospectivo, nacional, de Janeiro 2006 a Julho 2007 (19 meses), através de notificação pela Unidade de Vigilância Pediátrica (UVP) de crianças e adolescentes internados por varicela ou zona, identificaram-se 158 casos com uma incidência de complicações de 5,8/100.000/ano. No mesmo estudo concluiu-se que:

  • A maioria dos internamentos por complicação da varicela ocorreu em crianças saudáveis (89%), sem factor de risco de varicela grave;
  • As complicações mais frequentes foram sobreinfecção bacteriana (49%); neurológicas (8,2%); respiratórias (8,2%); digestivas (5,7%) e hematológicas (0,02%); Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus foram os agentes mais frequentemente isolados, nas sobreinfecções;
  • Não houve óbitos.

A varicela é um problema de saúde pública e em vários países foram demonstrados benefícios com a introdução da vacina nos programas nacionais de vacinação. Em Portugal, uma vez que a doença não é de notificação obrigatória, não existe uma informação precisa sobre o impacte da doença na comunidade.

Manifestações clínicas

1 – Na VARICELA da criança não existe habitualmente período prodrómico, ao contrário do que acontece com o adolescente e o adulto. Este período caracteriza-se por febre, cefaleia, sensação de mal-estar, 1 a 2 dias antes do aparecimento do exantema. Este evolui rapidamente de mácula para vesícula de conteúdo transparente (que se rompe facilmente) e, posteriormente, para crosta, com distribuição crânio-caudal e centrípeta. As crostas destacam-se espontaneamente em cerca de 8 a 15 dias.
É típica a presença de lesões nos vários estádios numa mesma área anatómica. As mucosas podem ser igualmente atingidas, com ulcerações superficiais no palato e vulva. O prurido intenso acompanha geralmente o estádio vesicular do exantema da varicela. Pode verificar-se o aparecimento de linfadenopatias generalizadas. (Figura 1, evidenciado manifestações de exantema muito exuberante)
Os doentes são contagiosos desde cerca de 48 horas antes do início do exantema até à fase em que todas as vesículas se apresentam na forma de crosta (5 a 10 dias).
A varicela é uma doença de evicção escolar obrigatória.

2 – A ZONA surge por reactivação do VVZ, o qual ficou latente nos gânglios das raízes sensoriais a seguir a infecção aguda; ocorre raramente (em cerca de 5% dos casos de varicela anterior: ~ 5% até aos 15 anos, e ~ 10%-15% na idade adulta); manifesta-se sobretudo nas seguintes circunstâncias:

  • Infecção primária in utero;
  • Quadros clínicos com imunossupressão (como foi referido antes, sobretudo défice da imunidade celular), em que há probabilidade de herpes-zóster mais exuberante e mais grave, com risco de disseminação cutânea, compromisso visceral e tendência para a cronicidade. A incidência é cerca de 15% nas crianças que já tiveram leucemia, e ~ 30% nos receptores de transplante medular e nos infectados pelo VIH;
  • Envelhecimento, a partir dos 50 anos; se um indivíduo viver até aos 80 anos aumenta a probabilidade de adquirir infecção zóster, que é tanto mais grave quanto mais tardio o seu aparecimento. (ver atrás)

Esta forma clínica caracteriza-se por uma erupção unilateral, por vezes acompanhada de linfadenopatia regional. Na fase de pré-erupção existe dor, mal-estar, febre, hiperestesia, sensação de “queimadura” ao longo de uma área limitada de pele de trajecto mais ou menos rectilíneo, suprida por nervos sensitivos de um ou dois gânglios das raízes dorsais, (dermátomo); no adolescente e adulto a dor relaciona-se com neurite aguda.
Surge, ao cabo de alguns dias, a erupção de pápulas que rapidamente se transformam em vesículas segundo um trajecto mais ou menos rectilíneo (ou paralelamente, em dois trajectos se estiverem em causa dois dermátomos), progredindo até à fase de crosta em cerca de 5 a 7 dias. Em cerca de um terço dos casos poderá verificar-se a ocorrência de vesículas “vizinhas” que ultrapassam o limite do dermátomo.
Embora raramente, poderá a zona ter localização ao nível do trajecto do nervo trigémio, acompanhando-se as lesões cutâneas de conjuntivite, ceratite e iridociclite. Outro possível nervo craniano afectado é o facial. Neste caso a tradução clínica mais típica é paralisia facial e aparecimento de vesículas no canal auditivo externo (síndroma de Ramsay-Hunt).
A nevralgia pós–zóster, mantida por vezes 2 a 3 meses, é rara em idade pediátrica.

FIGURA 1. A) Varicela – predomínio de vesículas visualizando-se algumas crostas; B) Varicela confluente com predomínio de vesículas; zona nadegueira protegida da luz, menos exuberante em lesões (fotoprotecção). (NIHDE)

FIGURA 2. A) Herpes-zóster: lesões na área do trigémio; B) Herpes-zóster de localização torácica; lesões de trajecto rectilíneo ao longo dos nervos intercostais acompanhando a direcção das costelas. (NIHDE)

Factores de gravidade

No que se refere à gravidade da doença verifica-se um aumento da morbilidade e mortalidade na mulher grávida susceptível, e no feto. A síndroma da varicela congénita caracteriza-se por lesões do SNC, globo ocular (cegueira), cicatrizes cutâneas permanentes e defeitos dos membros, com incidência de 2% nas primeiras vinte semanas de gravidez.

Esta situação é distinta da varicela perinatal, surgindo no recém-nascido quando a mãe contrai varicela no período entre 5 dias antes do parto e 5 dias depois. A varicela perinatal é geralmente muito grave pois, para além da imaturidade imunológica do recém-nascido, nesta fase não houve ainda passagem transplacentária de anticorpos maternos que seriam um factor de protecção. A terapêutica com imunoglobulina específica e aciclovir tem melhorado muito o prognóstico destes doentes.

Para além destes dois quadros clínicos, há um risco acrescido de complicações para a mulher e para o feto na varicela contraída no último trimestre, respectivamente pneumonia e disseminação da doença.

A gravidade da varicela é maior no adulto, com maior morbilidade e mortalidade: o número de lesões é maior, os sintomas sistémicos mais duradouros e as complicações mais frequentes, tendo sido verificado nalguns estudos que a encefalite é sete vezes mais frequente que na criança, e a mortalidade vinte e cinco vezes maior.

O risco de varicela grave é também maior nas síndromas acompanhadas de imunodeficiência, especialmente nos casos de doença maligna sob quimio ou radioterapia, no caso de corticoterapia em altas doses e nos defeitos da imunidade celular.

Por este motivo, as complicações da varicela passaram a ser mais frequentes à medida que maior número de crianças com doença maligna, transplantação de órgãos ou asma grave, foi sendo tratado com sucesso. Igualmente nos casos de SIDA, têm sido descritos casos graves e fatais. Doentes submetidos a terapêutica prolongada com salicilatos também têm maior risco de doença grave e complicações.

A infecção congénita é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Complicações

A partir da década de 90 passou a verificar-se aumento de complicações na criança saudável e sem factores de risco prévios, nomeadamente cutâneas, respiratórias e neurológicas.

No que se refere às complicações cutâneas, especialmente na varicela, salienta-se o papel de Streptococcus pyogenes, responsável por situações muito graves como a fascite necrosante. É controverso se as complicações cutâneas e sistémicas estão associadas a toma prévia de anti-inflamatórios não esteróides como nimesulido e ibuprofeno, pelo que estas drogas não devem ser prescritas no decurso da varicela. A medicação com salicilatos antes e durante a doença relacionou-se com o aparecimento de síndroma de Reye.

Outras complicações descritas na literatura em relação com infecções por VVZ em geral, incluem: meningite asséptica, síndroma de Guillan-barré, encefalite (nalguns casos em relação com o próprio vírus), ataxia cerebelar (por mecanismo imunológico, sem acção directa do vírus), púrpura trombocitopénica concomitante com a doença aguda ou de aparecimento a posteriori.

Exames complementares

Na prática, em situações correntes, o diagnóstico é essencialmente clínico-epidemiológico. Em situações especiais ou em casos complicados poderá estar indicada a realização de exames complementares: por microscopia electrónica para estudo citológico (pesquisa de corpos de inclusão, células gigantes) e isolamento do vírus no fluido das vesículas ou nos produtos de raspagem das lesões.

A pesquisa de DNA por PCR (reacção em cadeia da polimerase), mais sensível que a imunofluorescência, pode ser feita no raspado das lesões cutâneas, saliva e líquido céfalo-raquidiano cutâneas, saliva e LCR. Também pode ser utilizada para diferenciar a estirpe selvagem da estirpe vacinal (OKA). O isolamento através de cultura de células é pouco utilizado.

Para confirmar a infecção poderão utilizar-se provas serológicas como provas de fixação do complemento, pesquisa de anticorpos fluorescentes para os antigénios de membrana, métodos ELISA, radioimunoensaio, etc..

Para confirmar o estado de imunidade relativamente à varicela após vacina, pode recorrer-se ao estudo serológico. Nalguns centros, para confirmar o estado de imunidade relativamente à varicela procede-se a uma prova intradérmica utilizando a estirpe OKA inactivada do vírus. Tal prova evidenciou sensibilidade e especificidade ~ 95%, comparável à obtida com o estudo serológico com pesquisa de anticorpos fluorescentes.

Tratamento

O tratamento da maioria dos casos é sintomático.

O doente internado com varicela deve ser isolado, com precauções de transmissão de contacto e via aérea.

Se a criança estiver febril, deve ser administrado paracetamol, não devendo ser administrados salicilatos nem anti-inflamatórios não esteróides.

Os banhos de amido são, regra geral suficientes para o bem-estar da criança. Igualmente não se utiliza a aplicação de tópicos. Em relação ao prurido, a terapêutica com anti-histamínicos pode ser administrada.

Os pais e mais directos responsáveis pelos cuidados a prestar à criança doente devem ser instruídos no sentido de procederem ao corte das unhas e de correcta lavagem das mãos de modo a diminuir o risco de sobreinfecção bacteriana.

As roupas devem ser de algodão e fáceis de despir, sem traumatizar a pele. Os banhos estão indicados, com a água à temperatura habitual, mas deverão ser rápidos, tendo o cuidado de secar a criança sem friccionar o corpo com a toalha.

As crianças com varicela não complicada podem regressar à escola após todas as lesões estarem em fase de crosta.

A terapêutica com aciclovir não é recomendada para uso generalizado na criança saudável com varicela. Quando indicada, deve ser iniciada o mais precocemente possível (idealmente nas primeiras 24 horas, logo após início do exantema; é inútil após o 3º dia de evolução da doença).

O aciclovir oral (20 mg/kg/dose até máximo de 800 mg/dose, em 4 tomas diárias durante 5 dias) está indicado em crianças com risco aumentado de doença grave: adolescentes; doenças crónicas dermatológicas ou pulmonares; terapêutica mantida com salicilatos; terapêutica com corticóides, de curta duração, intermitente ou por aerossóis; casos secundários num agregado familiar (os casos secundários são geralmente mais graves). O valciclovir (20 mg/kg/dose, máximo 1000 mg, 3x dia, 5 dias) também pode ser utilizado, em crianças dos 2-18 anos. O aciclovir endovenoso está indicado nos doentes imunodeprimidos (5-10 mg/kg/dose de 8-8 horas durante 7 a 10 dias) ou em complicações graves, como encefalite por VZV.

No herpes-zóster o aciclovir abrevia a cura das lesões cutâneas, reduz o tempo de evolução da neurite aguda, assim como o risco de nevralgia pós-fase aguda. Está igualmente indicado nos casos de doentes com imunodepressão, contribuindo para diminuir o risco de disseminação visceral.

O tratamento das infecções cutâneas secundárias é abordado noutros capítulos.

Prevenção

Imunização passiva – Imunoglobulina humana antivaricela zoster (IgVZ)

A imunoglobulina antivaricela zóster (IgVZ) deve ser administrada para prevenir a varicela em doentes que não têm imunidade para o vírus e que apresentam risco de complicações graves se adquirirem a infecção. A IgVZ deve ser administrada o mais precocemente possível após exposição, com limite máximo de 96 horas para a forma endovenosa, e 72 horas para a forma intramuscular; e, de preferência, nas primeiras 48 horas. A varicela após IgVZ é, regra geral, mais benigna mantendo-se, contudo, contagiosa.

A decisão de administrar IgVZ deve fundamentar-se em três parâmetros: susceptibilidade à doença; probabilidade de a exposição resultar em infecção; risco de complicações graves.

Aos indivíduos com risco de complicações graves, com exposição continuada ao vírus, deve ser feita uma segunda administração de IGVZ passadas três semanas.

Os doentes sob terapêutica mensal com altas doses de IGIV estarão muito provavelmente protegidos se a última administração tiver ocorrido menos de 3 semanas antes da exposição. A IgVZ interfere com a resposta imunológica às vacinas vivas, especialmente VASPR nos 5 meses subsequentes à sua administração, razão pela qual o calendário vacinal da criança a quem foi administrada IgVZ deve ser adaptado a esta circunstância.

Se não for respeitado o intervalo entre IgVZ e VASPR deve proceder-se à titulação dos anticorpos para VASPR, um mês após a vacinação.

A IgVZ não é recomendada para indivíduos já vacinados contra a varicela.

A IgVZ não deve ser usada indiscriminadamente já que condiciona apenas uma protecção temporária de cerca de 3 semanas (um caso de varicela numa enfermaria não implica a prescrição alargada de IGVZ baseada apenas na susceptibilidade à doença).

Vacina antivaricela

A propósito desta medida de prevenção, sugere-se a consulta do Capítulo sobre Imunizações e Vacinas.

Considera-se actualmente que a administração de duas doses confere uma maior protecção.

Estão descritos casos de varicela surgindo algum tempo após a vacinação, por falência vacinal secundária devida a uma perda progressiva, ao longo do tempo, da imunidade contra o vírus (breakthrough disease). Esta eventualidade poderá ser minorada com o esquema vacinal de duas doses.

2. CITOMEGALOVÍRUS

Definições e aspectos epidemiológicos

O citomegalovírus humano (CMV) é um vírus ADN da família Herpesviridae, ubiquitário na comunidade. A prevalência da infecção por CMV aumenta com a idade, é mais elevada nos países em desenvolvimento e nos estratos socioeconómicos mais precários.

Na maioria, as infecções por CMV são assintomáticas; contudo, o espectro de manifestações é amplo, entre infecções ligeiras e fatais. Certos grupos populacionais são considerados de risco, como os recém-nascidos e os imunodeprimidos, nomeadamente as imunodeficiências primárias com disfunção das células T e NK, transplantados e os portadores de infecção por VIH. Em indivíduos imunocompetentes a infecção por CMV poderá apresentar-se como mononucleose infecciosa.

A infecção congénita é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia.

Considera-se infecção primária a que ocorre num indivíduo susceptível, seronegativo. Infecção recorrente é a que surge por reactivação de infecção latente ou por reinfecção de hospedeiro imune-seropositivo. Doença por CMV poderá resultar de infecção primária ou recorrente, sendo que no primeiro caso existe maior probabilidade de quadro clínico mais grave.

Em países em desenvolvimento, a maioria das crianças é infectada até aos 3 anos de idade; em países desenvolvidos, a infecção ocorre geralmente na infância e adolescência, sendo que 60%-80% da população já teve a infecção quando chega à idade adulta.

Etiopatogénese

Da família Herpesviridae fazem parte também outros vírus: Epstein-Barr (VEB), herpes simplex 1 e 2, varicela-zoster, e herpesvirus 6, 7 e 8. Como qualquer herpesvírus, tem a característica de se manter latente no organismo, o que condiciona a possibilidade de reactivação. (ver atrás)

Estão descritos diversos modos de transmissão:

  • Congénita: via placentária. A incidência de infecção congénita por CMV varia de 0,2%-2,4%;
  • Perinatal: secreções vaginais (parto), leite materno (incidência de 10%-60% nos primeiros seis meses de vida), urina, saliva ou por transfusão;
  • Crianças: saliva, lágrimas, leite materno, urina (taxa de infecção de 50%-80%); sobretudo na infância; as creches contribuem para a disseminação da doença nesta faixa etária;
  • Adolescentes: sémen, secreções vaginais; durante este período ocorre um segundo pico de infecção devido à transmissão sexual;
  • Outros: intrafamiliar, transfusões de sangue e derivados (infecção por resíduos de leucócitos no derivado), transplante de órgãos.

A doença clínica resulta fundamentalmente dos seguintes factores:

  • Depressão da imunidade celular (sobretudo de células T e NK); a imunidade humoral não parece ser tão importante, sendo a presença de anticorpos contra CMV indicador de infecção prévia ou recente e não um marcador de imunidade por si;
  • Replicação vírica intensa com consequente aumento da respectiva carga; alguns genótipos estão associados a doença mais grave
  • Compromisso multiorgânico por efeito citopático directo dos vírus, sobretudo em determinados órgãos-alvo.

O vírus induz reacção inflamatória com infiltração celular focal por células mononucleadas. Os órgãos mais afectados são o pulmão, fígado, rins, aparelho gastrintestinal, glândulas salivares e outras glândulas exócrinas. Pode surgir necrose focal no cérebro e fígado, acompanhada de granulomas com calcificações.

A presença de CMV intracelular e a replicação do vírus incrementa a expressão de mediadores inflamatórios como citocinas e quimocinas; as células infectadas aumentam de tamanho e podem conter inclusões (grandes, intranucleares, e mais pequenas, intracitoplásmicas) podem conter inclusões que são patognomónicas da infecção por CMV (doença de inclusões citomegálicas).

Manifestações clínicas e laboratoriais

As manifestações clínicas são variáveis e influenciadas pelo momento em que ocorre a transmissão da doença (congénita, perinatal ou pós-natal), idade do doente e concomitância, ou não, de imunodeficiência.

Uma vez que a infecção perinatal é abordada na Parte sobre Perinatologia/Neonatologia, é dada ênfase às manifestações pós-neonatais.

Na sua maioria, as crianças imunocompetentes com infecção por CMV são assintomáticas; em cerca de 10% dos casos surge febre, tosse, cefaleia, dor abdominal com diarreia, artralgias, mialgias; por vezes, exantema petequial ou morbiliforme, linfadenopatias e hepatoesplenomegália. Em crianças mais velhas e adolescentes, o quadro é semelhante à mononucleose infecciosa, com elevação de ALT e AST, e linfocitose atípica, febre, fadiga, faringite, adenopatia (sobretudo cervical) e hepatite. Podem surgir manifestações ou complicações pouco frequentes em doentes previamente saudáveis. Nos doentes imunocomprometidos (sobretudo em casos de SIDA e de doentes transplantados) existe risco aumentado de infecção primária ou recorrente, incluindo febre isolada, leucopénia, pneumonite intersticial, miocardite, hepatite, coriorretinite, doença gastrointestinal (ulcerações submucosas, pancreatite, colecistite, colite), e compromisso do sistema nervoso central, com meningoencefalite ou síndroma de Guillain-Barré.

Diagnóstico

Antes da abordagem desta alínea, importa recordar conceitos: o conceito de infecção é biológico e o conceito de doença é clínico, traduzindo, em princípio, a presença de sintomatologia.

Assim, é importante diferenciar entre infecção e doença por CMV:

  • Infecção por CMV define-se como evidência de replicação de CMV independentemente da existência ou não de sinais ou sintomas;
  • Doença por CMV define-se como evidência de infecção por CMV com sinais e sintomas acompanhantes.

As modalidades diagnósticas disponíveis incluem serologia, PCR CMV qualitativa e quantitativa, antigenémia pp65, exame cultural e exame histopatológico.

O diagnóstico de infecção primária em indivíduos imunocompetentes baseia-se na detecção de IgM CMV (surgindo nas primeiras 2 semanas após o aparecimento dos sintomas e podendo persistir até 6 meses após o início dos sintomas), ou na detecção simultânea de IgM e IgG de baixa avidez, ou na seroconversão (um aumento 4 vezes do título de IgG com 2-4 semanas de intervalo). Durante as primeiras semanas após infecção primária, a avidez funcional dos anticorpos da classe IgG é muito baixa, atingindo o pico 4-5 meses depois. Os anticorpos IgG geralmente só são detectados 2-3 semanas após o início da sintomatologia e persistem por toda a vida. Os imunocomprometidos graves podem ser seronegativos, apesar de infectados.

A cultura vírica convencional é morosa e demora algumas semanas, mas pode ser utilizada em várias amostras.

As técnicas de amplificação de ácidos nucleicos existem em vários laboratórios e são sensíveis para detectar o DNA do CMV, determinar a carga vírica e monitorizar a resposta à terapêutica, sobretudo nos doentes imunodeprimidos.

A biópsia de tecidos é útil para o diagnóstico de doença invasiva tecidual por CMV, sobretudo em imunodeprimidos. O exame histopatológico pode evidenciar a presença de corpos de inclusão, tipicamente inclusões intranucleares basófilas, embora também se possam observar inclusões no citoplasma dos eosinófilos. A sensibilidade deste teste pode ser melhorada com coloração imuno-histoquímica.

O exame cultural, laborioso, necessita de várias semanas para o vírus crescer.

No paciente em estado de imunossupressão, quando não é possível a biópsia tecidual, o aumento da carga vírica no sangue pode fundamentar o diagnóstico.

Nalgumas amostras, a detecção do vírus por exame cultural ou PCR (este último, muito sensível) não confirma doença activa por CMV, pois pode haver excreção do vírus pela urina, secreções respiratórias e fezes por períodos prolongados de tempo, mesmo na ausência de doença clínica.

A distinção entre reactivação de vírus endógeno e reinfecção com estirpe diferente de CMV requer técnicas especiais com análise do ADN do vírus (com enzimas de restrição ou determinação de anticorpos específicos para epitopos do CMV, por ex. glicoproteína H).

Como nota final, cabe referir que nos doentes imunocomprometidos é habitual haver excreção aumentada de CMV, mesmo em presença de títulos elevados de IgG e de IgM, o que pode dificultar a destrinça entre infecção primária e recorrente.

Tratamento

No hospedeiro imunocompetente não está indicada qualquer terapêutica específica.

No contexto de doentes com imunossupressão utiliza-se o ganciclovir associado ou não à IGIV standard ou à IGIV hiperimune-CMV. Um dos esquemas utilizado é o seguinte:

  • ganciclovir IV (5 mg/kg/dose 12/12h ev durante 2-3 semanas, seguido de manutenção 5 mg/kg em dias alternados ou 5 dias/semana) + IGIV/CMV (400 mg/kg/dia, em esquemas diferentes).

Verifica-se, como resultado desta terapêutica, diminuição da carga vírica CMV dentro de 1 semana em 70%-80% dos doentes. Na ausência de resposta clínica ou virológica deve suspeitar-se de resistência ao fármaco antivírico.

Outros antivíricos podem ser usados: foscarnet (menor experiência em crianças) e cidofovir.

Nas formas ligeiras de infecção por CMV pode utilizar-se valganciclovir oral (16 mg/kg/dose 12/12h oral).

O ganciclovir tem diversos efeitos tóxicos, nomeadamente supressão medular, alterações hepáticas, redução da espermatogénese; e cancerígeno e potencialmente teratogénico.

O ganciclovir e valganciclovir têm excreção renal.

Prevenção

Na prevenção devem ser consideradas as seguintes medidas:

  • Medidas de protecção pessoal;
  • Vacina (ainda em estudo);
  • Esterilização do leite de mães seropositivas para RN pré-termo;
  • IGIV no período pré-transplante de órgãos (visto que o doente transplantado comporta risco acrescido de aquisição de infecção grave por CMV);
  • Utilização de sangue e derivados de dadores com anticorpos negativos para CMV a RN pré-termo e doentes imunocomprometidos (sobretudo pós-transplante e com infecção por VIH); se tal não for possível, utilização de sangue desleucocitado;
  • Se possível, utilização de órgãos de dadores livres de CMV.

Prognóstico

O prognóstico é variável consoante a data da infecção. No caso de infecção congénita, geralmente surgem sequelas neurossensoriais graves como surdez (5%-10%), coriorretinite (3%-5%), microcefalia, atraso mental ou motor. A infecção no período perinatal raramente origina sequelas.

A maioria dos doentes imunocompetentes recupera completamente. Como regra, nos imunodeprimidos o prognóstico é variável consoante a doença de base e o grau de imunossupressão.

3. VÍRUS de EPSTEIN-BARR (VEB)

Aspectos epidemiológicos

O vírus de Epstein-Barr (VEB) tem uma distribuição mundial. Nos países em vias de desenvolvimento, a infecção é geralmente muito precoce e assintomática. Nos países desenvolvidos a infecção surge habitualmente na adolescência e no adulto jovem, sendo a mesma frequentemente sintomática.

Cerca de 85% a 95% dos adultos têm anticorpos anti-VEB. Portugal segue o padrão dos países desenvolvidos de acordo com estudos do INSA/Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. A incidência anual varia, de acordo com diversas estatísticas, grupos etários e regiões do globo, entre 20 a 70/ 100.000 indivíduos. A infecção por VEB pode ser assintomática ou comportar-se como uma infecção vírica ligeira e inespecífica.

A entidade clínica conhecida por mononucleose infecciosa (MNI) tem como causa mais frequente a primoinfecção por VEB, síndroma associada ao desenvolvimento de linfomas de células B e T, linfoma de Hodgkin, linfomas primários do SNC em doentes com SIDA e carcinomas nasofaríngeos. Salienta-se que existem outras causas de “síndromas mononucleósicas”.

Etiopatogénese

O vírus de Epstein-Barr (VEB) é um vírus de DNA pertencente à família dos Herpesviridae.

A transmissão faz-se pela saliva, sangue e, possivelmente, por contacto sexual. O vírus penetra na cavidade oral, invade as células epiteliais e as glândulas salivares, causando virémia, infecção dos linfócitos B e sistema reticuloendotelial (SRE), estimulando uma resposta imune e a formação de linfócitos atípicos (linfócitos T CD8+ que aumentam em valor absoluto e relativo).

Nos adultos, este aumento de linfócitos T CD8+ resulta numa inversão transitória da relação normal de 2/1 de linfócitos T CD4+/CD8+ ou (helper/supressor), sendo menos marcada nas crianças.

Pondo em contacto secreções da orofaringe de doentes afectados por mononucleose infecciosa com linfócitos B humanos, estes são transformados espontaneamente por acção do vírus em linhas celulares linfoblastóides; por isso se chama a este vírus o agente transformador de linfócitos.

Após infecção primária, o VEB permanece latente em múltiplos epissomas dos núcleos dos linfócitos B, o que corresponde, de facto, a um estado de infecção de longa duração, clinicamente inaparente. Para além da capacidade de latência, o agente infeccioso tem capacidade de reactivação e de incorporação genómica nas células do hospedeiro, o que se repercute nas características genéticas destas últimas.

Pode, pois, considerar-se que a infecção por VEB corresponde a uma doença linfoproliferativa, já que representa uma “guerra civil linfocitária” em que os linfócitos T activados, que correspondem aos linfócitos atípicos do sangue periférico, tentam destruir os linfócitos B infectados pelo vírus, sendo esta reacção imunológica a principal responsável pelas diversas manifestações da doença.

Nos gânglios e baço verifica-se uma reacção inflamatória inespecífica com hiperplasia das células do SRE e predomínio de linfócitos normais e atípicos. No fígado podem ser evidentes sinais de necrose e distensão dos espaços porta por exsudado inflamatório constituído sobretudo por linfócitos, sem alterações, e atípicos.

Após descrição sucinta de aspectos epidemiológicos e etiopatogénese da infecção por VEB em geral, procede-se à abordagem clínico-laboratorial específica das formas clínicas: 3.1, 3.2 e 3.3.

Por fim, são focados aspectos genéricos do diagnóstico, tratamento e prognóstico das infecções por VEB em geral.

3.1 MONONUCLEOSE INFECCIOSA

Definição e manifestações clínicas

A mononucleose infecciosa (MNI) clássica é uma síndroma clínica aguda de causa infecciosa que tem como agente etiológico mais frequente o vírus de Epstein-Barr. O período de incubação varia entre 4-6 semanas, podendo o início ser agudo ou insidioso. É caracterizada essencialmente por febre, adinamia, amigdalite frequentemente exsudativa, faringite, e linfadenopatia cervical ou generalizada. Conforme o predomínio de um ou de outro sinal ou sintoma, poderão ser descritas formas febris, amigdalinas, ou ganglionares.

Podem surgir também dor abdominal, náuseas, vómitos, dificuldade respiratória, edema palpebral, esplenomegália e hepatomegália, petéquias no palato e exantema maculopapular ou morbiliforme.

O exantema pode estar associado à administração de ampicilina (ou amoxicilina), sobretudo nos adultos. A fadiga pode ser proeminente.

A designação popular de doença do beijo” e de “doença dos noivos sublinha o facto de o agente da doença se poder transmitir muitas vezes pela saliva. A designação antiga de febre ganglionar traduz a comparticipação do sistema linfóide nesta entidade clínica.

Em suma, a tríade linfadenopatias, faringoamigdalite exsudativa e muito dolorosa, e esplenomegália num doente febril é típica – conquanto não patognomónica – de MNI.

Exames complementares

A leucocitose (10.000-20.000/mm3) é mais frequente do que a leucopénia; observa-se, regra geral, predomínio de linfócitos, com linfócitos atípicos pleomorfos, que correspondem aos linfócitos T activados.

A trombocitopénia ligeira é referida na literatura (20.000-50.000/mm3) em mais de 50% dos doentes; habitualmente comprova-se uma elevação ligeira a moderada das transaminases (ALT e AST).

Diagnóstico diferencial

Apesar de, tal como foi referido, o agente etiológico mais frequente da síndroma de mononucleose infecciosa ser o VEB, há que considerar outros agentes causais da referida síndroma, nomeadamente citomegalovírus (CMV), Toxoplasma gondii, vírus das hepatites A, B e C (VHB, VHC) e, por vezes, VIH.

As situações acompanhadas de leucocitose muito acentuada põem problemas de diagnóstico diferencial com leucemia aguda. Quando a elevação das transaminases predomina há que considerar a hipótese de hepatite aguda por vírus. A amigdalite da infecção por VEB deve ser distinguida da amigdalite estreptocócica (se bem que por vezes haja co-infecção por estes dois agentes), da diftérica e de outras amigdalites por outros agentes víricos como adenovírus.

3.2 INFECÇÃO PRIMÁRIA por VEB

Em crianças pequenas, a infecção por VEB é frequentemente assintomática. Quando existe sintomatologia, as manifestações são variáveis: otite média, diarreia, queixas abdominais, infecção das vias respiratórias superiores, e quadro semelhante ao descrito para a entidade clínica “mononucleose infecciosa”.

A infecção primária por VEB pode causar dum modo geral diversas manifestações, por vezes com complicações graves:

  • Alterações hematológicas (anemia hemolítica, trombocitopénia, anemia aplásica, púrpura trombótica trombocitopénica, síndroma hemolítica-urémica, coagulação intravascular disseminada;
  • Ruptura esplénica (mais frequente durante a segunda semana de doença, embora possa surgir como apresentação clínica inicial;
  • Sintomas neurológicos (meningoencefalite, paralisia do nervo facial, síndroma de Guillain-Barré, meningite asséptica, mielite transversa, neurite periférica e neurite óptica);
  • Pneumonia, ou outras complicações respiratórias com obstrução das vias aéreas por hiperplasia do tecido linfóide;
  • Miocardite ou pericardite;
  • Pancreatite, adenite mesentérica ou hepatite fulminante;
  • Glomerulonefrite;

Como particularidades de algumas formas de infecção primária citam-se:

  • Sobreinfecção bacteriana, sobretudo por Streptococcus-hemolítico do grupo A, abcessos cervicais ou periamigdalinos;
  • Associação a síndroma de Gianotti-Crosti (constando de exantema simétrico pápulo-eritematoso podendo confluir em placas, com a duração de 15-20 dias e localização predominante nas extremidades e nádegas). Este quadro imita a dermatite atópica.

3.3 OUTRAS FORMAS CLÍNICAS de INFECÇÃO por VEB

Estão descritas alterações genéticas hereditárias determinando resposta anómala traduzida por maior gravidade ou tendência para a cronicidade da infecção por VEB. Como exemplos, são referidas mutações de genes SAP ou XIAP, ITK, MAGT1 (XMEN). (ver adiante)

Nesta perspectiva são descritas as seguintes formas clínicas:

  • Forma crónica activa: os sintomas são persistentes por mais de 6 meses, os títulos de IgG VCA são elevados (ver adiante), há evidência histológica de envolvimento focal e a virémia é elevada;
  • Síndroma hemofagocítica ou linfo-histiocitose hemofagocítica (HLH): esta situação, pouco frequente, é caracterizada por febre, hepatoesplenomegália, pancitopénia, hipertrigliceridémia e/ou hipofibrinogenémia, com fagocitose das células sanguíneas e seus precursores, actividade deficiente das células T/NK e produção anárquica de citocinas. Devem ser excluídas as formas familiares de HLH, associadas a mutação da perforina, MUNC13-4 e UNC13D;
  • Doenças linfoproliferativas: a infecção por VEB pode ser considerada um “cancro abortado”, tendo-se demonstrado que o referido vírus possui um elevado potencial oncogénico. Exemplos dessas patologias são a doença linfoproliferativa ligada ao X ou síndroma de Duncan (por mutação SAP ou XIAP), linfoma de Burkitt, carcinoma nasofaríngeo, linfomas de células B ou T e a doença de Hodgkin.
    O poder oncogénico do vírus expressa-se de modo diferente consoante as regiões geográficas. Por exemplo, o linfoma de Burkitt predomina na África Equatorial, entre o Trópico de Capricórnio e o Trópico de Câncer, e ainda na Papua Nova Guiné; o cofactor mais importante para o aparecimento desta patologia é a malária, nomeadamente por Plasmodium falciparum: a exposição contínua à malária actua como mitogénico dos linfócitos B infectados pelo vírus, diminuindo, por efeito sobre a imunidade celular, o controlo exercido pelas células T.
    A doença de Hodgkin tem um pico de incidência na infância nos países em desenvolvimento, enquanto nos países desenvolvidos a incidência é maior no adulto jovem, o que coincide com o perfil da infecção por VEB nesses países;
  • Doença linfoproliferativa pós-transplante: resulta da ausência de vigilância imune efectiva contra o VEB, pela imunossupressão. Surge habitualmente febre e infiltração linfomatosa disseminada (gânglios, fígado, baço, rim, pulmão, SNC e intestino). É mais frequente nas situações decorrentes do transplante de órgão sólido, sobretudo intestino e pulmão.

Diagnóstico

O diagnóstico de infecção por VEB pode ser suspeitado pelos dados clínicos e por certos achados laboratoriais característicos.

A confirmação do diagnóstico de infecção por VEB baseia-se na demonstração de diversos tipos de anticorpos específicos anti-VEB: VCA (viral capside antigen) IgG e IgM, EBNA (nuclear antigen), EA (early antigen); cada tipo de anticorpo é detectável em fases diferentes da infecção:

  • VCA-IgM – anticorpo surge na fase precoce da doença aguda (geralmente nas primeiras duas semanas de infecção); desaparece após vários meses de infecção; nesta fase há ausência de anticorpos EBNA. A existência de factor reumatóide pode causar um resultado falso positivo;
  • VCA-IgG – persiste durante toda a vida após infecção inicial;
  • EA – associa-se à replicação vírica; presente em 70%-80% casos de doença aguda, desaparece após 6 meses;
  • EBNA – tardio, surge cerca de 6-12 semanas após infecção, persiste para o resto da vida.

Em suma, a detecção de VCA-IgM e IgG constitui a prova serológica mais valiosa e específica para o diagnóstico de infecção por VEB, na ausência de EBNA, sendo geralmente suficiente para confirmar o diagnóstico de infecção aguda.

Como provas qualitativas de aglutinação, citam-se:

  • Prova de Paul-Bunnell-Davidsohn, em que se pesquisa a aglutinação de eritrócitos de espécies diferentes (carneiro, cavalo, etc.), empregando soro do doente contendo anticorpos/aglutininas que se formam no decurso da MNI; como aglutinam eritrócitos de outras espécies, tais anticorpos são chamados heterófilos;
  • Monospot test, que constitui uma variante da metodologia descrita antes.

Estas provas evidenciam habitualmente valores falsos positivos em menos de 10% dos casos e elevado número de resultados falsos negativos em crianças pequenas.

A detecção de DNA do VEB por técnicas moleculares no sangue, LCR e noutros produtos biológicos, tem utilidade nos doentes imunossuprimidos, em que a resposta imunológica poderá estar ausente, e em situações clínicas mais complexas. Embora por vezes difícil de avaliar, a monitorização da carga vírica do VEB no sangue é importante na síndroma linfoproliferativa pós-transplante e em doenças malignas.

Diagnóstico diferencial

Apesar de, tal como foi referido, o agente etiológico mais frequente da síndroma de mononucleose infecciosa ser o VEB, há que considerar outros agentes causais originando síndromas mononucleósicas nomeadamente citomegalovírus (CMV), Toxoplasma gondii, vírus das hepatites B e C (VHB, VHC) e, por vezes, VIH. As situações acompanhadas de leucocitose muito acentuada põem problemas de diagnóstico diferencial com leucemia aguda.

Quando a elevação das transaminases predomina há que considerar as hepatites agudas por vírus. A amigdalite da infecção por VEB deve ser distinguida da amigdalite estreptocócica (se bem que por vezes haja co-infecção por estes dois agentes), da diftérica e de outras amigdalites por outros agentes víricos como adenovírus.

Tratamento

Não existe tratamento específico para a síndroma de mononucleose infecciosa. O tratamento é geralmente de suporte, visto que a doença é autolimitada. Se existir fadiga debilitante aconselha-se repouso no leito. Os desportos de contacto devem ser evitados enquanto houver esplenomegália ou alterações da coagulação devido ao risco de ruptura esplénica.

A terapêutica com aciclovir, ganciclovir ou foscarnet diminui a replicação vírica e a disseminação orofaríngea durante o período de administração, mas não reduz a gravidade ou duração dos sintomas, nem altera o prognóstico, pelo que não é aconselhado.

Pequenos cursos de corticosteróides poderão ter utilidade nos casos de complicações da doença, nomeadamente nos casos de dificuldade respiratória por inflamação amigdalina marcada, miocardite, anemia hemolítica, trombocitopénia grave ou síndroma hemofagocítica.

Prognóstico

O prognóstico de MNI é geralmente bom, sendo as complicações pouco frequentes. Os sintomas principais podem durar entre quatro semanas a 10 meses, seguindo-se uma recuperação gradual. Um estado de fadiga pode permanecer durante mais tempo (meses). Na doença linfoproliferativa a mortalidade é elevada, atingindo os 50%.

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FEBRE Q

Definição e importância do problema

A febre Q é uma doença infecciosa aguda e geralmente autolimitada (embora se possa manifestar sob a forma crónica) tendo Coxiella burnetti como agente etiológico responsável, um cocobacilo Gram-negativo intracelular obrigatório.

A doença foi diagnosticada em 1935 pela primeira vez em Queensland, na Austrália, após um surto de febre de causa desconhecida (“Q” de query) num matadouro. Tendo-se demonstrado que o referido agente é geneticamente distinto dos géneros Rickettsia, Ehrlichia e Anaplasma, actualmente o mesmo já não é englobado na ordem das riquetsioses, mas sim na ordem Legionellales, pertencendo à família Coxiellaceae.

Microrganismo altamente infeccioso em animais e na espécie humana, constitui, por isso, uma arma potencialmente utilizável no bioterrorismo.

As formas crónicas comportam grau mais elevado de morbilidade, designadamente pelo facto de o processo inflamatório poder originar lesões valvulares cardíacas, lesões vasculares persistentes ou osteomielite.

Aspectos epidemiológicos 

A febre Q, distribuída por todo o mundo, é uma zoonose, sendo o gado bovino, ovino e caprino os principais reservatórios da doença. Todavia, animais domésticos tais como gatos, cães e pássaros, podem transmitir a doença, que é mais frequente em meio rural; importa acentuar que a carraça poderá (raramente) ser um vector de transmissão inter-reservatórios.

Mais de 60% das infecções são assintomáticas, podendo um pequeno contingente (~5%) requerer hospitalização.

Como o microrganismo C. burnetti é muito resistente ao calor e a produtos químicos, pode sobreviver nos locais infectados durante meses. Por outro lado, este facto permite que microrganismos viáveis sejam levados pelo vento para locais distantes, o que pode dificultar a identificação da origem da infecção.

De realçar que a criança pode ser infectada através do leite materno.

Em inquéritos de seroprevalência em certas regiões da Europa foram comprovados antecedentes de infecção em percentagem muito variável conforme as regiões (6%-70%). Tratando-se duma doença de declaração obrigatória/DDO, em Portugal foram declarados 71 casos entre 2010-2013, mas apenas 2 abaixo dos 15 anos. Estabelecendo comparação com dados epidemiológicos doutro país europeu (França), em que se apurou incidência de 50 casos por 100.000 habitantes, é possível que em Portugal se verifique subnotificação.

Na Holanda, entre 2007 e 2010 verificou-se um surto de febre Q, com identificação de 4026 casos em humanos. De acordo com dados do CDC, nos EUA, em 2010 foram notificados 129 casos, em oposição a 17 casos apenas no ano de 2000; este aumento associa-se provavelmente a um maior número de notificações desde o 11 de Setembro de 2001.

Etiopatogénese

Ao contrário das infecções por Rickettsia, o ser humano adquire infecção por C. burnetti predominantemente através da inalação de partículas infectadas sob a forma de aerossóis, por exposição directa a produtos de animais (secreções genitais no parto, tosquias, matadouros), ou por ingestão de produtos lácteos não pasteurizados.

Após a inoculação das partículas infectantes portadoras de C. burnetti ocorre pneumonite intersticial linfocitária com alta concentração de macrófagos infectados no exsudado alveolar. O microrganismo pode permanecer latente nos macrófagos de tecidos durante anos, o que poderá conduzir a lesões permanentes (valvulopatias, vasculopatia, osteomielite). Também podem ser encontrados granulomas hepáticos na medula óssea, bem como noutros órgãos.

Manifestações clínicas

Forma aguda

Após um período de incubação entre 9 a 39 dias, surge febre durante 7-10 dias com calafrio, associada a cefaleias intensas, mialgias, vómitos e dor abdominal, entre outros sintomas sistémicos inespecíficos.

A perda de peso e a fraqueza muscular podem ser acentuadas. Na criança, pode verificar-se exantema em 50% dos casos, ao contrário do que acontece no adulto; os suores nocturnos, frequentes nos adultos, são raros na idade pediátrica. No adulto, a febre pode durar 2-3 semanas.

Na criança, a doença é habitualmente autolimitada, com resolução espontânea entre uma a três semanas. Em mais de metade dos casos a infecção em causa pode ser assintomática.

A hepatoesplenomegália pode estar presente nalguns doentes, coincidindo com quadro de hepatite na maioria dos casos. É frequente o compromisso do sistema respiratório com tosse não produtiva e dor torácica. Outras manifestações – que podem ser consideradas complicações raras, incluindo miocardite, pericardite, SHU, rabdomiólise, hemofagocitose, meningoencefalite – podem surgir alguns meses após infecção inicial.

Forma crónica

Em cerca de 1% dos casos poderá verificar-se evolução para a cronicidade, em geral relacionável com doença cardíaca ou vascular prévias. A endocardite pode manifestar-se meses a anos após o episódio agudo da doença. A osteomielite crónica também constitui uma manifestação de doença crónica.

Diagnóstico

Trata-se duma doença de difícil diagnóstico se não houver uma forte suspeita clínica e epidemiológica. Haverá que admitir tal hipótese nos seguintes casos:

  • em toda a criança com febre de origem desconhecida que viva em meio rural ou que contacte com animais e/ou seus produtos; e igualmente,
  • no contexto de pneumonia atípica, endocardite evoluindo com culturas negativas, osteomielite recorrente.

Relativamente aos sinais radiológicos torácicos encontrados, o padrão é semelhante ao verificado nos casos de pneumonia por vírus, Mycoplasma pneumoniae ou por Chlamydophila pneumoniae; de referir que também poderão ser encontradas opacidades arredondadas em doentes clinicamente assintomáticos.

A serologia continua a ser o procedimento diagnóstico mais utilizado, sendo a imunofluorescência indirecta o método mais sensível.

Para confirmar a infecção aguda prévia, deve demonstrar-se um aumento de 4x ou > do título de anticorpos entre a fase aguda e a convalescença, ou título de anticorpos de IgM > 1:50. Título de anticorpos de IgG = ou > 1:128 deve considerar-se como sinal de infecção provável; e de IgG > 1:200 são sugestivos de infecção.

Para o diagnóstico na fase crónica, num paciente com quadro clínico compatível, será suficiente um título de anticorpos IgG = ou > 1:800. Títulos de IgG < 1:200 e de IgM negativos poderão indicar cura.

O microrganismo pode também ser identificado em cultura de tecidos, ou através de estudo molecular/PCR com amostras de sangue ou de tecidos (neste último caso, – designadamente em válvulas cardíacas – evidenciando maior sensibilidade).

Considerando outros exames laboratoriais, cumpre salientar que se pode verificar hipergamaglobulinémia, hiperfibrinogenémia e elevação da proteína C reactiva. Em mais de metade dos doentes há evidência laboratorial de processo autoimune, explicável designadamente pela positividade de: factor reumatóide, anticorpos antiplaquetas, antimúsculo liso, antimitocôndrias e prova de Coombs directa.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da febre Q com outras doenças depende da forma de apresentação clínica. Como foi referido anteriormente, o quadro respiratório pode ser confundido com infecções por Mycoplasma pneumoniae, Chlamydophila pneumoniae, mas também infecção por VEB ou Legionella.

No caso de hepatite granulomatosa, tuberculose ou outras infecções por micobactérias, salmonelose, leishmaniose visceral, toxoplasmose, brucelose, doença do arranhão do gato, doença de Hodgkin ou sarcoidose devem ser situações a equacionar.

A presença de endocardite deve levar a admitir hipóteses de infecção por Brucella, Bartonella ou ainda por bactérias do grupo HACEK (Haemophilus, Agregatibacter, Cardiobacterium hominis, Eikenella corrodens, Kingella).

Tratamento

Na forma aguda da doença, a doxiciclina (4 mg/kg/dia até máximo de 200 mg/dia) é o fármaco de primeira escolha acima dos oito anos; esta terapêutica deve ser mantida durante 14 a 21 dias e até se verificar apirexia durante pelo menos 3 dias. Como alternativas poderão ser usados os antimicrobianos azitromicina, sulfametoxazol+trimetoprim/cotrimoxazol, cloranfenicol ou fluoroquinolonas (estas últimas somente acima dos 17 anos de idade). A doxiciclina e as fluoroquinolonas não têm formulação pediátrica em Portugal.

Nos casos de febre Q crónica (endocardite e hepatite) deverá associar-se à doxiciclina: a rifampicina, cotrimoxazol ou fluoroquinolonas. A associação entre rifampicina e hidroxicloroquina, de 18 a 36 meses de duração, é a forma adoptada actualmente, sobretudo em adultos.

Nas formas consideradas refractárias, tem sido utilizado o interferão-gama.

Nota importante: na hipótese de diagnóstico feito retrospectivamente, mesmo que a criança esteja assintomática, o esquema de tratamento é igual, tendo como objectivo erradicar a infecção e evitar a cronicidade.

Prognóstico

A mortalidade da febre Q aguda não complicada é inferior a 1%.

Em caso de endocardite, a doença pode ser fatal em 30%-60% dos doentes.

Prevenção

A prevenção compreende essencialmente medidas de higiene de âmbito veterinário e protecção das pessoas que contactam com animais contaminados e seus produtos (matadouros, laboratórios, etc.).

Existe actualmente uma vacina que confere protecção, pelo menos, durante 5 anos, indicada para as pessoas em risco, designadamente para os trabalhadores em matadouros.

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FEBRE ESCARONODULAR

Definição e importância do problema

A febre escaronodular (FEN), designação dada por Ricardo Jorge em Portugal em 1930, também conhecida por febre botonosa ou febre exantemática mediterrânica, é uma doença infecciosa aguda causada pela bactéria Rickettsia conorii.

Trata-se duma zoonose (doença transmitida de animal vertebrado para o Homem), característica dos meses quentes nos países mediterrânicos. Nos últimos anos, especialmente no sul da Europa, parece existir um recrudescimento da doença, provavelmente devido ao maior número de cães nas cidades, à maior mobilidade das populações, bem como às alterções climáticas, e em particular à menor pluviosidade.

Aspectos epidemiológicos

A FEN, a riquetsiose mais frequente nos países do sul da Europa, é especialmente prevalente nos países mediterrâneos desde Espanha até Israel, embora também se verifique em África, Índia e Sudoeste Asiático. Em Portugal, é a zoonose mais prevalente; entre 2010 e 2013 foram declarados 564 casos, na sua maioria entre os meses de Julho e Setembro, dos quais 208 até aos 14 anos (36,8% do total). Todavia, o número real de casos de doença deve ser bem superior, pois a notificação da doença nem sempre é levada a cabo, em especial nos serviços de urgência, local onde o diagnóstico é geralmente realizado.

O maior número de casos verifica-se no Verão e princípio do Outono embora nalgumas regiões a doença possa ser transmitida noutras épocas do ano permitindo, em função das condições climáticas, que o vector se mantenha activo fora da época estival. Refira-se que a carraça somente transmite a infecção se permanecer entre 6-20 horas em contacto com a pessoa, o que acontecerá se as medidas de higiene básica forem precárias.

Etiopatogénese

Rickettsia conorii, o agente infectante, é uma bactéria gram-negativa intracelular obrigatória, com uma forma coco-bacilar que se multiplica por divisão binária. Na bacia mediterrânica o principal vector é o ioxídeo conhecido por carraça do cão (Rhipicephalus sanguineus) em estádios de desenvolvimento diversos – larva, ninfa ou adulto. Os principais reservatórios são os cães, raposas, lebres e outros roedores. Na carraça (a qual funciona também como reservatório), a bactéria pode alojar-se nas células de múltiplos órgãos, incluindo os ovários. O organismo humano constitui um hospedeiro acidental.

A doença transmite-se ao organismo humano pela picada da carraça infectada enquanto esta efectua a sua refeição sanguínea, ou através da contaminação de mucosas com macerados de ioxídeos infectados. Depois da picada, Rickettsia conorii provoca lesão da íntima e a média dos vasos, desencadeando no organismo humano fenómenos de vasculite, com infiltrado perivascular rico em linfócitos e histiócitos. Neste processo inflamatório são notórios: activação das plaquetas, aumento de tromboxano A2, libertação de endotelina e aumento da permeabilidade capilar.

O compromisso dos vasos da derme é responsável pelo exantema característico da doença. A lesão endotelial capilar que pode ocorrer é responsável pela bacteriémia e compromisso doutros órgãos, sendo o pericárdio e o pulmão os mais atingidos. Nestas circunstâncias, podem coexistir pericardite ou pneumonite. Raramente, surgem lesões ao nível do SNC.

No local da picada forma-se uma lesão castanha escura ou escara, denominada tâche noire pelos autores franceses, que é consequência da necrose provocada pelo infiltrado inflamatório oriundo de substâncias produzidas, quer pela R. conorii, quer pela própria carraça. De realçar que a maioria das carraças do cão não está infectada, pelo que o detectar-se uma carraça numa pessoa não implica que a mesma contraia a doença.

Manifestações clínicas

A doença surge após um período de incubação variando entre 4 a 12 dias (em média, cerca de uma semana). Verifica-se um período prodrómico de quatro a cinco dias, semelhante à síndroma gripal, com início abrupto: febre alta (39-40ºC), arrepios, cefaleia intensa, mialgias e prostração; poderá verificar-se também dor abdominal.

Entre o 4º e 6º dia de doença, surge o exantema maculopapular, discretamente nodular, rosado, irregular, com lesões de cerca de 1 a 4 mm, que se inicia pelos membros inferiores e que atinge tipicamente a palma das mãos e a planta dos pés, e que se pode ou não generalizar a todo o corpo. Inicialmente de cor rósea, pode evoluir para purpúrico ou petequial com ulterior evolução para pigmentação residual. Este exantema pode ser pruriginoso e persistir cerca de 15 dias após a regressão dos sinais gerais. (Figura 1)

A lesão de inoculação da carraça, escara ou tâche noire, indolor e raramente pruriginosa, embora patognomónica da doença, nem sempre está presente. Trata-se duma lesão arredondada, de cerca de 1 cm de diâmetro, negra (lesão ulcerosa coberta por escara negra e rodeada por halo eritematoso) que deve ser procurada em qualquer zona do corpo, nomeadamente no couro cabeludo, regiões retroauricular, inguinal ou internadegueira; na criança predomina no couro cabeludo, enquanto nos adultos predomina nos membros inferiores, mas também na cintura (Figura 2). A referida lesão desaparece lentamente em 10 a 20 dias sem deixar cicatriz, e acompanha-se de adenopatia satélite.

No exame objectivo pode ainda ser evidente hepatosplenomegália em cerca de 20% dos doentes. A hepatomegália pode acompanhar-se de discreta elevação do valor das transaminases séricas. Nas crianças anteriormente saudáveis o curso da doença é benigno, ocorrendo resolução do quadro clínico em cerca de 10 a 20 dias.

Complicações

As complicações mais frequentemente descritas, correspondendo ao compromisso possível de qualquer órgão ou sistema, são: cardiovasculares (pericardite, miocardite, arritmia, flebotrombose), respiratórias (pneumonite, derrame pleural), oculares (retinite, uveíte), renais (proteinúria, insuficiência renal), gastrintestinais (gastrenterite, pancreatite, hemorragia digestiva), osteomusculares (artrite), hematológicas (CIVD, anemia e trombocitopénia autoimune, síndroma mononucleósica) e neurológicas (radiculonevrite, meningoencefalite, AVC). Nas formas clínicas de evolução grave e por vezes fatal, poderão surgir vasculite generalizada, insuficiência renal, choque e CIVD.

Como factores predisponentes relevantes das complicações apontam-se a diabetes mellitus e a deficiência em desidrogenase da glucose-6-fosfato.

Exames complementares e diagnóstico

O diagnóstico da FEN é essencialmente clínico. As características do exantema associado ao quadro febril e a sinais gerais conduzem à suspeita do diagnóstico. Se o exame objectivo permitir identificar a tâche noire, o diagnóstico pode considerar-se definitivo.

FIGURA 1. Exantema da FEN. (NIHDE)

FIGURA 2. FEN: lesão de inoculação da carraça (escara). (NIHDE)

O estudo serológico para detecção de anticorpos por imunofluorescência indirecta pode ser conclusivo verificando-se títulos de anticorpos: IgG ≥ 128 e IgM ≥ 32, sendo de referir que somente se verifica positividade na segunda semana de doença. O critério de diagnóstico baseia-se na seroconversão ou no aumento do título (4 vezes) em duas amostras colhidas com intervalo de 2 a 4 semanas (entre a fase aguda e a fase de convalescença), pelo que este exame apenas é útil na confirmação ulterior da doença, não contribuindo para o diagnóstico na fase aguda.

A detecção directa da Riquétsia na fase aguda é possível, quer através do seu isolamento pela técnica de “shell vial”, quer por detecção do genoma da riquétsia – técnica PCR em amostras de sangue ou biópsias de pele (exantema e/ou escara), somente disponível em laboratórios especializados.

A reacção de Weil-Félix, método clássico para pesquisa de anticorpos, é hoje em dia considerada obsoleta por sensibilidade e especificidade baixas.

Regra geral, o hemograma não evidencia alterações significativas. Pode ocorrer anemia hemolítica autoimune, assim como leucopénia, leucocitose e trombocitopénia. A velocidade de sedimentação, assim com as enzimas hepáticas e musculares pderão revelar valores elevados, designadamente nas formas clínicas complicadas.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se essencialmentre com outras riquetsioses, primoinfecção por VIH, meningococcémia, infecções víricas exantemáticas (por ex. vírus Coxsackie, sarampo) e toxidermias.

Tratamento

O tratamento precoce é da maior importância por encurtar a duração dos sintomas o que, por sua vez, diminui a probabilidade de complicações.

O antibiótico de eleição é a doxiciclina PO, 4 mg/kg/dia em duas doses (máxima dose diária: 200 mg). A duração do tratamento é de 10 dias, ou até verificação de 2 dias de apirexia na condição de antibioticoterapia com duração mínima de 5 dias.

Como alternativas podem ser utilizados macrólidos PO:

  • azitromicina (10 mg/kg/dia) numa dose diária durante 3 dias; ou
  • claritromicina (15 mg/kg/dia) em duas doses diárias durante 7 dias.

Prognóstico

Na idade pediátrica, o prognóstico da FEN pode considerar-se, em geral, bom, sem sequelas, nomeadamente se não existir doença crónica subjacente.

Prevenção

Com o objectivo de diminuir a probabilidade de picada da carraça podem ser adoptadas determinadas medidas contra reservatórios e vectores e na própria espécie humana:

  • desparasitação de animais domésticos;
  • utilização de repelentes (por ex. N, N-dietil-m-toluamida – DEET) após o 1 ano de idade;
  • cuidados básicos de higiene;
  • nas situações de risco (actividades no campo, por ex.) utilização de roupa branca para mais fácil identificação da carraça; a roupa deverá ficar justa ao corpo para servir de barreira àquela, evitando o seu contacto com a pele.

Se eventualmente for identificada a carraça, deve proceder-se do seguinte modo:

  1. aplicação local de éter ou cloreto de etilo para matar a carraça;
  2. retirar a carraça completamente com pinça fina de bordos finos, sem garras.

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RIQUETSIOSES (excluindo febre escaronodular)

Nomenclatura e importância do problema

Os agentes Riquétsia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias. A ordem Rickettsiales compreende actualmente duas famílias, a família Rickettsiaceae e a família Anaplasmataceae.

A família Anaplasmataceae engloba os géneros Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia.

Por sua vez, a família Rickettsiaceae inclui o género Rickettsia, que se divide em dois grupos: o grupo do tifo, com duas espécies patogénicas para o homem, Rickettsia prowazeki e R. typhi, e o grupo das febres exantemáticas. Actualmente são conhecidas vinte e quatro estirpes de Rickettsia, mas apenas dezassete são responsáveis por doença no Homem.

O impacte mundial destas zoonoses continua a ser considerável devido à sua elevada prevalência em numerosas áreas do globo e à morbilidade a que determinam. Algumas espécies constituem actualmente autênticos paradigmas de agentes patogénicos emergentes. Por outro lado, o interesse geral por este género de microrganismos tem aumentado pela potencial utilização como arma biológica no bioterrorismo.

Etiopatogénese

As Riquétsias crescem livremente no citoplasma das células eucarióticas do hospedeiro (artrópodes ou helmintas), que servem como vectores biológicos para a transmissão ao Homem.

Os referidos agentes microbianos são transmitidos ao Homem por diferentes artrópodes, como piolhos, pulgas, ácaros ou mais frequentemente carraças (ixodídeos).

As Riquétsias do grupo tifo são essencialmente transmitidas:

  • através das fezes do piolho (Pediculus humanus corporis) no caso do tifo epidémico; ou
  • através das fezes da pulga, no caso do tifo murino.

Numa pequena percentagem de casos a transmissão faz-se por contaminação das mucosas (por ex. conjuntiva) e por inalação de aerossóis. O ciclo de vida mantém-se ao infectar espécies de hospedeiros (geralmente mamíferos) e vectores (habitualmente carraças ou pulgas). Com excepção do agente Rickettsia prowazekii, o ser humano constitui um hospedeiro acidental.

Neste capítulo, em obediência à taxonomia actual descrita no início, procede-se à abordagem sucinta das seguintes entidades clínicas:

  1. febres exantemáticas, com excepção da febre escaronodular, riquetsiose com maior expressão no nosso país, onde é endémica;
  2. tifo murino ou endémico;
  3. tifo exantemático epidémico;
  4. erliquiose e anaplasmose.

Cabe salientar que, com excepção das riquetsioses que integram o grupo exantemático, as restantes não estão presentes em Portugal.

Todas as estirpes de Rickettsia têm como alvo as células endoteliais, provocando uma resposta inflamatória por parte do hospedeiro que se manifesta através do aumento de IFN-γ, IFN-α e β que, por sua vez, estimulam a produção de IL-12 e resposta celular T helper tipo 1. As células endoteliais infectadas produzem IL-6, IL-8 e MCP-1.

Esta resposta de fase aguda, que é multifocal, conduz a vasculite disseminada (aumento da permeabilidade vascular, edema, hipovolémia e hipotensão) e a estado procoagulante, com fibrinogénio elevado.

1. FEBRES EXANTEMÁTICAS

Introdução

O grupo das febres exantemáticas, que inclui a espécie R. conorii, engloba a maioria das espécies de riquetsias transmitidas por ixodídeos ou carraças, sendo consideradas patogénicas todas as identificadas em humanos por amplificação de DNA. (Quadro 1)

Todas as riquetsias deste grupo provocam febre, cefaleia e mialgias intensas. Exantema e escara (tache noire) ocorrem na maioria, mas não em todas as riquetsioses do grupo.

A imunofluorescência indirecta (IFA) é a técnica recomendada para o diagnóstico, apesar de existirem outras técnicas para testes serológicos como a ELISA. Contudo, aquela tem a desvantagem de não permitir o diagnóstico em fase aguda de doença e de não identificar a espécie de Rickettsia dentro do mesmo grupo taxonómico.

O tratamento é semelhante para todas e deve ser iniciado imediatamente perante suspeita clínica, após colheita de amostras para diagnóstico, de forma a melhorar o prognóstico.

Quadro 1 – Grupo das Febres Exantemáticas.

Agente Doença Vector
R. rickettsii Febre das Montanhas Rochosas Dermacentor spp., Amblyoma spp., Rhipicephalus spp.
R. conorii sensu stricto (Malish) Febre Botonosa Rhipicephalus spp., Haemaphysalis spp.
Astrakhan fever rickettsia Febre de Astrakan Rhipicephalus punilo
Israeli tick typhus Febre Botonosa de Israel Rhipicephalus spp
R. sibirica Tifo Siberiano Dermacentor spp., Haemaphysalis spp.
R. australis Tifo da carraça de Queensland Ixodes holocyclus
R. honei Febre botonosa das ilhas Flinders Aponoma sp., Ixodes sp.
R. japonica Febre exantemática oriental Haemaphysalis spp., Dermacentor spp.
R. africae Febre da carraça africana
 Amblyomma sp.
R. sibirica monglotimonae Lymphangitis associated rickettsiosis (LAR) Hyalomma asiaticum
R. slovaca TIBOLA, DEBONEL Dermacentor marginatus
R. helvetica Perimiocardite crónica Ixodes ricinus
R. akari Riquetsiose vesicular Liponyssoides sanguineus
R.felis California flea rickettsiosis Ctenocephalides felis

1.1. Febre das Montanhas Rochosas

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

A febre das Montanhas Rochosas (FMR), que não existe em Portugal, é a riquetsiose mais frequente nos EUA. Está presente também no Canadá e América Central e Sul. Nos EUA, é a segunda doença infecciosa transmitida por vectores, logo a seguir à doença de Lyme. Apresenta uma incidência anual crescente (14,3 casos por cada milhão de pessoas em 2012), sendo mais frequente de Abril a Setembro e em crianças abaixo dos 10 anos de idade.

  1. rickettssi, o agente etiológico, é transmitido por várias espécies de carraças, nomeadamente Dermacentor, Rhipicephalus e Amblyomma. Após inoculação, os microrganismos alcançam o endotélio vascular e invadem-no através da interacção entre os lipopolissacáridos da membrana e proteínas da membrana externa das riquétsias (rOmp), permitindo a entrada nas células endoteliais por endocitose.

Uma vez no interior das células, provocam lise do fagossoma, ficando livres no citosol onde provocam polimerização dos filamentos de actina do citoplasma das células hospedeiras, originando a sua invaginação. Os agentes R. rickettsii disseminam-se posteriormente por via hematogénica e linfática.

O mecanismo pelo qual provocam morte celular a nível dos pequenos vasos não é conhecido: está provavelmente relacionado com a acção da peroxidase lipídica, das proteases e de fosfolipase A.

O exame histológico permite evidenciar infiltrados perivasculares linfocíticos.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Após um período de incubação de 3 a 12 dias, surge febre alta, de início súbito, associada a mialgias, cefaleia intensa, náuseas, vómitos e anorexia. Outras manifestações menos frequentes incluem irritabilidade, alteração do estado de consciência, dor abdominal, esplenomegália, hiperémia conjuntival e edema periorbitário.

Em cerca de 80% a 90% dos casos surge exantema entre o 2º e o 4º dias de doença: inicialmente macular, podendo evoluir para papular e para petequial; a evolução é centrípeta, com início nos punhos e tornozelos, incluindo palmas e plantas, expandindo-se depois para o tronco, coxas, braços e face. A doença dura geralmente três semanas, com compromisso habitual dos sistemas nervoso central, cardiovascular, pulmonar e renal.

Nas situações graves pode surgir choque e, rararamente, CIVD. São considerados como principais factores de risco a presença de défice de glucose-6-fosfato desidrogenase e o atraso no início da antibioticoterapia.

O diagnóstico é estabelecido por serologia e/ou por detecção de DNA por polymerase chain-reaction (PCR), no sangue ou em tecido, ou ainda por imunopatologia através de biópsia cutânea.

A serologia por imunofluorescência indirecta (IFI) embora continue a ser o método-padrão de diagnóstico, é um método retrospectivo. Nos primeiros 10-15 dias é frequentemente negativa, não excluindo a hipótese diagnóstica em fase aguda. Contudo, serve para confirmação diagnóstica a posteriori.

Para o diagnóstico será necessário comprovar elevação do título 4 vezes no intervalo de 2-4 semanas a partir da fase aguda, ou título > 64 na convalescença; em qualquer fase, título > 128 corresponde a caso suspeito.

A PCR, apesar de dispendiosa, é altamente sensível e específica, permitindo o diagnóstico rápido, antes da seroconversão. Pode ser efectuada no sangue ou em amostra de tecido de biópsia.

Tratamento

A antibioticoterapia de eleição para a FMR é a doxiciclina PO durante 5-7 dias (2,2 mg/kg/dose em duas doses; máximo 100 mg/dose). Nas formas graves com disfunção multiorgânica está indicado internamento em UCIP e doxiciclina EV.

A taxa de mortalidade é mais elevada em crianças com menos de 4 anos (3%-4%).

Prevenção

As medidas principais consistem em prevenir a infestação de animais pelos vectores nas áreas endémicas, protecção da pele com roupa e repelentes contendo DEET (N-dietil-meta-toluamida) e eventual remoção dos vectores da pele. Não existe vacina disponível.

1.2. Linfangite associada a riquetsioses (LAR)

A LAR é provocada por R. sibirica mongolotimonae, isolada pela primeira vez de uma carraça na Mongólia em 1991. Vários casos de infecção por este agente foram entretanto reconhecidos no sul de França, mas também em Portugal, Espanha, Grécia, Argélia e Egipto (bacia do Mediterrâneo) e África do Sul. É transmitida pelos vectores Hyalomma asiaticum (Mongólia), H. truncatum, H. anatolicum excavatum (Grécia) e Rhipicephalus pusillus (Portugal, Espanha, França).

A doença manifesta-se fundamentalmente por linfadenopatia loco-regional e/ou linfangite; em diversos estudos, os sinais mais frequentemente encontrados, por vezes em associação, são assim sintetizados: adenopatia (50% casos), febre (100%), cefaleia (80%), exantema maculopapular, e escara de inoculação (92%) que pode aparecer em vários locais. Habitualmente trata-se duma situação de mediana gravidade, embora haja casos descritos de doença grave com complicações renais e retinianas.

O diagnóstico etiológico é confirmado por PCR utilizando-se tecido da escara (propiciando maior sensibilidade) e sangue periférico.

O tratamento faz-se com doxiciclina durante 5-7 dias, na dose 2,2 mg/kg/dose de 12/12h nas crianças com ≤ 45 kg ou 100 mg de 12/12 horas também, nas crianças com peso superior.

1.3. Linfadenopatia associada a carraça (TIBOLA) ou Linfadenopatia e escara de necrose associada à carraça Dermatocentor (DEBONEL)

A infecção por Riquétsias R. slovaca, R. raoultii e R. rioja resulta na síndroma de linfadenopatia associada a carraças – Tick-borne lymphadenopathy ou TIBOLA, também reconhecida por Dermacentorborne necrosis-eschar-lymphadenopathy ou DEBONEL. Recentemente foi proposto o acrónimo SENLAT como substituto (scalp eschars and neck lymphadenopathy).

Trata-se duma infeção comum nos países europeus (França, Espanha, Itália, Alemanha, Polónia, Hungria e, mais recentemente, em Portugal), mais frequente nos meses mais frios, de Outubro a Abril, transmitida pelos vectores Dermacentor marginatus e D. reticulatus.

A prevalência de infecção por R. slovaca em Dermatocentor spp é elevada na Europa; atingindo o valor de 41% em Portugal, sendo actualmente a segunda riquetsiose mais frequente depois da febre escaronodular, é mais comum nas crianças e mulheres.

Após inoculação e 5 dias de incubação, surge uma lesão em crosta com exsudado cor de mel no couro cabeludo (68%-100%), no local da mordida, que evolui para uma escara necrosada dias depois, associada a linfadenopatia dolorosa occipital e/ou cervical (74%-100%) e a eritema local. Febre e exantema são pouco frequentes (25% e 5% respectivamente). A escara mantém-se durante um ou dois meses, sendo frequente o desenvolvimento de alopécia no local.

A suspeita diagnóstica (pela epidemiologia e manifestações clínicas) é confirmada por seroconversão e/ou por amplificação de DNA por método PCR (utilizando amostra da escara ou sangue periférico).

O tratamento de escolha é a doxiciclina, conforme esquema prévio.

 1.4. Riquetsiose das pulgas

R. felis foi isolada pela primeira vez em 1992 a partir de pulgas de gatos (Ctenocephalides felis). É mais frequente na América do Sul, México e continente africano.

O quadro clínico é ligeiro e semelhante ao do tifo murino (ver adiante), podendo também cursar com exantema maculopapular no tronco, escara e linfadenopatia regional.

De acordo com resultados de exames laboratoriais verifica-se, tal como nas restantes riquetsioses, leucopénia, trombocitopénia e anemia ligeiras. Pode também surgir hiponatrémia, hipoalbuminémia, aumento das transaminases e disfunção renal.

Apesar de a IFA ser recomendada como método de diagnóstico, os anticorpos para R. felis apresentam reactividade cruzada com os anticorpos de R. rickettsii, R. conorii e R. typhi.

Assim, perante suspeita de riquetsiose, deve ser efectuada IFA e, para ulterior identificação da espécie, deve proceder-se a exames Western-Blott, PCR ou cultura (principalmente em doentes com contacto com pulgas de gatos e sem contacto com ratos).

Para o tratamento utiliza-se a doxiciclina, em esquema já descrito anteriormente.

2. TIFO MURINO OU ENDÉMICO

Definição e etiopatogénese

O tifo endémico é uma infecção causada por R. typhi, mais frequente em países em desenvolvimento e em áreas de elevado agregado populacional com proximidade de contacto com ratos. Estes constituem o principal reservatório, sendo a pulga Xenopsylla cheopsis o vector de transmissão da doença. Contudo, outras espécies de pulgas podem estar envolvidas, como a pulga do gato que pode desempenhar um importante papel no ciclo biológico e na transmissão ao Homem.

Actualmente rara em países desenvolvidos, foi identificada pela última vez em Portugal em 1996, em Porto Santo, em cinco doentes hospitalizados.

O mecanismo desta afecção é semelhante ao descrito para R. rickettsii.

 Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

O período de incubação varia entre 6 a 14 dias. Trata-se duma doença de gravidade moderada na idade pediátrica, caracterizando-se por febre, cefaleia, calafrio e mialgias.

Entre o 4º e 7º dias de doença (em média pelo 6º dia) pode surgir exantema macular, maculopapular, ou papular, petequial, ou ainda, morbiliforme. O exantema atinge sobretudo o tronco e extremidades (evolução centrífuga) sendo raro nas palmas, plantas e face. A presença de escara é rara.

A tríade febre, cefaleia e exantema ocorre em menos de 15% dos doentes, razão pela qual, sendo habitualmente de gravidade ligeira, é facilmente subdiagnosticada podendo confundir-se com síndroma gripal.

Em casos graves pode haver envolvimento do sistema nervoso central (confusão, convulsões, coma), renal (IRA), hepático (icterícia), cardíaco (alterações do ritmo) e pulmonar (derrame pleural, insuficiência respiratória).

Os exames laboratoriais evidenciam frequentemente elevação das transaminases e da LDH, hiponatrémia ligeira e hipocalcémia. Pode também cursar com hipoalbuminémia, leucopénia e trombocitopénia precoce.

O diagnóstico é confirmado por métodos moleculares, através da técnica de PCR, ou por serologia, através de IFI (IgM >1/32 e/ou IgG >1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot.

Tal como no grupo das febres exantemáticas, o tratamento de eleição é a doxiciclina em esquema semelhante durante 7 a 14 dias. O cloranfenicol não é actualmente recomendado por se associar a risco de recorrência.

Geralmente o prognóstico é bom.

3. TIFO EXANTEMÁTICO EPIDÉMICO

Definição e importância do problema

O tifo exantemático epidémico, infecção provocada por R. prowazekii, tem sido responsável por um elevadíssimo número de mortes ao longo da história da Humanidade.

Considerada a partir da II Guerra Mundial como uma doença do passado, tem reemergido desde 1995 com pequenos surtos (Rússia 1997, Peru 1998) e com casos esporádicos (África e França).

O ser humano constitui o reservatório, sendo a doença transmitida pelo piolho Pediculus humanus corporis. Afecta todas as idades, sendo que a pobreza e as más condições de higiene favorecem o aparecimento e disseminação da doença.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 10 a 14 dias, a doença tem um início súbito com febre, arrepios, mialgias, cefaleia intensa.

O exantema, maculopapular aparece entre o 4º e 7º dias de doença, nas axilas e posteriormente tronco, com ulterior evolução para a periferia (centrífugo) e para petequial e hemorrágico. Poupa face, palmas das mãos e plantas dos pés.

A escara de inoculação está ausente. As complicações relacionadas com alteração do SNC eram frequentes na era pré-antibiótica (delírio, letargia, coma, convulsões).

A recorrência da doença (designada por doença de Brill-Zinsser) podendo ocorrer anos mais tarde após a infecção primária, tem carácter benigno.

O diagnóstico é confirmado habitualmente por serologia através de IFA (IgM > 1/32 e/ou IgG > 1/64 ou seroconversão 4 semanas depois), ou de Western blot (mais específico e sensível em fase precoce da doença do que a imunofluorescência indirecta). Pode ainda realizar-se PCR com amostra de sangue (rápido e sensível) e exame cultural.

O tratamento de eleição é também a doxiciclina, mas em dose única, 100-200 mg. Cloranfenicol, fluoroquinolonas e macrólidos não são alternativas.

4. ERLIQUIOSES e ANAPLASMOSES

Introdução

Reportando-nos à primeira alínea deste capítulo, cabe referir que todos os membros da família Anaplasmataceae (Ehrlichia, Anaplasma, Cowdria, Wolbachia e Neorickettsia) são bactérias intracelulares obrigatórias que crescem em vacúolos com origem na membrana celular das células eucarióticas do hospedeiro.

À excepção do género Wolbachia, todas as estirpes têm a capacidade de replicação em hospedeiros vertebrados, sobretudo em células hematopoiéticas.

Tipicamente, os microrganismos Ehrlichia spp infectam células da linhagem leucocitária (monócitos e macrófagos), enquanto Anaplasma spp têm como alvo todas as células hematopoiéticas (eritrócitos, neutrófilos e plaquetas). Destacam-se duas espécies mais frequentemente associadas a doença na espécie humana:

  • a Ehrlichia chaffeensis (Erliquiose humana);
  • a Anaplasma phagocytophilum (Anaplasmose humana granulocítica).

Ao contrário do que acontece nas riquetsioses propriamente ditas, a vasculite é rara, não estando a patogénese completamente esclarecida. Os principais achados anatomopatológicos incluem infiltrados linfo-histiocitários perivasculares, hepatite lobular ligeira, infiltrados de fagócitos mononucleares no baço, e granulomas no fígado e medula óssea. Poderá haver compromisso multiorgânico.

4.1. Erliquiose humana

Definição e epidemiologia

A erliquiose humana é uma infecção provocada pelas espécies do género Ehrlichia: E. chaffeensis, associada à Erliquiose Monocítica (EM); a carraça Amblyomma americanum, rara na Europa e frequente nos EUA, é o vector mais frequente da doença,

Nos EUA a doença apresenta uma incidência crescente, tendo sido verificados 3,2 casos da doença por milhão de pessoas anualmente, entre 2008-2012. Em Portugal, há registos serológicos que apontam para a exposição do homem a E. chaffeensis ou a agentes antigenicamente semelhantes.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Após um período de incubação de 5-10 dias surge, em geral, febre, cefaleia e mialgias; numa minoria, poderão surgir também manifestações graves como hepatite, pneumonia/ARDS, meningite, menigoencefalite ou IRA.

Tipicamente, o exantema de localização variável (macular ou maculopapular, mais comum que o petequial), é menos frequente do que nas riquetsioses propriamente ditas, e mais comum em crianças (67%) do que em adultos.

Os exames laboratoriais evidenciam geralmente leucopénia e trombocitopénia (início pelo 3º dia, nadir pelo 6º dia). Pode haver aumento das transaminases (ALT>AST).

O diagnóstico pode ser confirmado:

  • por visualização directa (detecção de mórulas nos leucócitos do sangue periférico – achado típico mas raro);
  • por detecção molecular de ADN;
  • por serologia (IFI ou Western blot) ou;
  • por cultura.

Habitualmente é estabelecido por serologia (seroconversão ou aumento de 4x nos títulos em duas amostras consecutivas colhidas com um intervalo de 2-3 semanas). Há contudo a referir, que numa fase inicial da infecção, o diagnóstico pode ser efectuado por PCR de sangue periférico ou por isolamento cultural.

A doxiciclina é o tratamento recomendado em primeira linha, durante 5-14 dias segundo esquema habitual, incluindo em crianças com menos de 8 anos (risco baixo de pigmentação dentária com cursos curtos). Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

Nas crianças com menos de 5 anos, a taxa de mortalidade é superior à dos adultos (4% vs 1%, respectivamente).

4.2. Anaplasmose granulocítica humana

Definição e epidemiologia

A anaplasmose granulocítica humana (AGH) é provocada por A. phagocytophilum, transmitida por carraças do género Ixodes, identificada em Portugal nas espécies I. ricinus e I. ventalloi. Ocasionalmente, pode ocorrer coinfecção com doença de Lyme, uma vez que o vector é o mesmo.

Manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento

Esta zoonose manifesta-se habitualmente através de um quadro febril ligeiro, geralmente de prognóstico benigno, acompanhado de sintomatologia inespecífica como arrepios, mal-estar geral, cefaleias e mialgias.

A presença de exantema é rara e habitualmente deve-se a coinfecção por Borrelia burgdoferi (eritema migrans). O exame objectivo habitualmente não revela alterações.

Os exames laboratoriais poderão evidenciar trombocitopénia, leucopénia, aumento das transaminases e/ou hiponatrémia ligeira.

O diagnóstico pode ser confirmado através da visualização de aglomerados de bactérias nos vacúolos citoplasmáticos de granulócitos (achado raro nos doentes Europeus) e/ou por PCR e/ou por serologia, identicamente ao que foi descrito para a erliquiose.

A doxiciclina é o tratamento recomendado, em esquema semelhante ao da erliquiose. Em alternativa, pode ser usada rifampicina.

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INFECÇÕES POR Chlamydia

Importância do problema

Os agentes Clamídia são bactérias Gram-negativas intracelulares obrigatórias, da família Chlamydiaceae, com capacidade para infectar uma grande variedade de células. O nome Chlamydia deriva da palavra grega “chlamys”, representando a capa ou manto com que se cobriam os homens na Grécia Antiga. Em comparação com tal facto histórico, os cientistas, desde o início, verificaram a existência de “agentes patogénicos” que infectavam células, envolvendo, como uma manta ou capa, o respectivo núcleo.

As referidas bactérias incluem apenas o género Chlamydia, com nove espécies. As três espécies com acção patogénica humana são: Chlamydia trachomatis (causando largo espectro de doenças, com relevância para as infecções do tracto genital, constitui o principal agente patogénico das doenças sexualmente transmissíveis em todo o mundo); Chlamydia pneumoniae – também designada Chlamydophila pneumoniae (provocando doença respiratória); e Chlamydia psittaci (causa da psitacose ou ornitose, considerada uma zoonose com significativo impacte em saúde pública).

De acordo com alguns estudos, C. abortus e C. felis poderão raramente originar infecções em seres humanos. C. pecorum causa doença apenas em porcos, ovelhas e gado, em geral.

A imunidade à infecção por estes agentes microbianos é de fraca duração, razão pela qual são comuns as reinfecções ou a persistência de infecções, particularmente, oculares e genitais.

Ciclo de vida nas células epiteliais

Os agentes Clamídia, evidenciando um ciclo de vida (complexo) nas células epiteliais que se descreve muito resumidamente, apresentam-se com duas formas morfológicas características: – a forma intracelular (ou corpo reticular -CR), representando a forma replicativa; e – a forma intracelular (ou corpo elementar – CE), representando as partículas infecciosas. Estas últimas ligam-se às células do hospedeiro pela interacção de proteínas da membrana externa com os receptores do hospedeiro e, após endocitose, expressam proteínas que impedem a sua fusão com os lisossomas. Posteriormente, diferenciam-se em CR, replicam-se por fissão binária e rediferenciam-se novamente em CE, libertados da célula por lise ou extrusão.

Este capítulo incide fundamentalmente sobre as infecções provocados pelos três agentes mais relevantes. As principais medidas preventivas e o tratamento são abordados no fim, em conjunto, após descrição das três entidades clínicas respectivas.

1. CHLAMYDIA TRACHOMATIS

Etiopatogénese

O agente Chlamydia trachomatis subdivide-se em serótipos associados a largo espectro de doenças. Os serótipos A, B, Ba e C são os dominantes no tracoma; os serótipos de D a K causam infecções do tracto genital, recto, faringe e conjuntiva; e, os serótipos L1, L2 e L3 são responsáveis pelo linfogranuloma venéreo (LGV).

De salientar que, enquanto as infecções pelos serótipos A a K estão, habitualmente, confinadas à mucosa, os serótipos L podem atravessar o epitélio, disseminar-se por via linfática e causar doença sistémica.

Após um período de incubação médio de 10 dias (variável entre 7 e 21 dias), surge uma variedade de manifestações clínicas resultante da resposta inflamatória do hospedeiro e consequente destruição tecidual. Nas infecções oculares e genitais, os plasmócitos estão presentes em número elevado, enquanto na pneumonia predominam eosinófilos e neutrófilos.

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

O agente Chlamydia trachomatis é o patogénio mais comum de transmissão sexual nos países industrializados. Na sua maioria, as infecções por C. trachomatis nos seres humanos são assintomáticas e constituem um reservatório da infecção; sendo a causa de 30% a 50% de casos de uretrite não gonocócica no sexo masculino, é frequente a coinfecção com o gonococo.

Como foi referido antes, é causa das infecções bacterianas sexualmente transmissíveis (IST) mais prevalentes em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, em 2012, cerca de 131 milhões de novos casos entre os 15 e 49 anos, e 128 milhões de prevalentes. A prevalência é maior no sexo feminino (4,2% vs 2,7%), sobretudo, na faixa etária dos 15 aos 19 anos.

Na Europa verifica-se um aumento da incidência destas infecções desde 2004, tendo-se registado 384.555 casos em 2013 nos 26 estados membros do European Center for Disease Prevention and Control (ECDC). Como na maioria dos casos as infecções são assintomáticas, a verdadeira incidência poderá ser subestimada. Dois terços (67%) de todos os casos reportados ocorreram em jovens adolescentes entre os 15 e 24 anos.

O aumento do número de casos poderá ser explicado por maior número de rastreios, melhoria da sensibilidade dos testes de diagnóstico, aumento da notificação dos casos detectados, bem como pelo aumento real da incidência das IST.

Na gravidez, a taxa de infecção cervical por Chlamydia trachomatis varia de 1 a 37%, com mais elevada incidência em idades inferiores a 25 anos. O risco de o recém-nascido de mãe com infecção activa ser infectado é de 50%-75%. Na grávida com infecção activa, a transmissão perinatal de Chlamydia trachomatis ao feto na maioria das vezes tem lugar durante o parto por via vaginal, independentemente de haver ou não ruptura de membranas. Entre os lactentes expostos, cerca de 20%-50% desenvolvem conjuntivite e, 10%-20%, pneumonia.

A infecção por Chlamydia trachomatis adquirida por via perinatal pode persistir meses a anos. Este facto poderá dificultar mais tarde o diagnóstico de possível abuso sexual dada a positividade persistente do agente em amostras vaginais e rectais.

O tracoma, endémico em 42 países de vários continentes (África, América Central e do Sul, Ásia, Austrália e Médio Oriente), é responsável por cegueira ou diminuição da acuidade visual em cerca de 1,9 milhões de sujeitos. O continente mais afectado é o africano.

Manifestações clínicas

Conjuntivite

A infecção por Chlamydia trachomatis constitui a principal causa de conjuntivite neonatal e a principal manifestação neonatal de infecção por Chlamydia em países em que não é feito o rastreio sistemático e tratamento de IST na gravidez, como Portugal.

O período de incubação é 5-14 dias após o parto, ou inferior, se houver ruptura prematura de membranas. Pelo menos 50% dos recém-nascidos com conjuntivite por Chlamydia trachomatis apresentam também infecção nasofaríngea.

O espectro clínico de tal conjuntivite (difícil de distinguir de conjuntivites com outra etiologia) é amplo: pode ocorrer injecção conjuntival ligeira com exsudado mucoso ou, na forma grave, exsudado purulento copioso, quemose e pseudomembranas. O eritema e edema palpebral são frequentes e em dois terços dos casos a infecção é bilateral.

O diagnóstico diferencial com oftalmia gonocócica é difícil pelas semelhanças do tempo de incubação e achados clínicos, mas imprescindível. Tal oftalmia é mais frequente na ausência de vigilância da gravidez, de doença gonocócica prévia, doutras IST ou de história de abuso de drogas ilícitas.

Na maioria dos casos verifica-se resolução espontânea nos primeiros meses de vida, sem repercussão na função visual. Ao contrário do que acontece no tracoma, é rara a evolução para a cronicidade com formação de úlceras da córnea, cicatrizes e tecido de granulação (pannus)

Pneumonia

Aproximadamente, 70% dos recém-nascidos infectados apresentam resultados positivos das culturas da nasofaringe para Chlamydia trachomatis; em cerca de 30% há forte probabilidade de surgimento de pneumonia entre as 4 e 12 semanas de vida.

Clinicamente, a pneumonia cursa com coriza, tosse, taquipneia, apneia nos lactentes mais pequenos e, na auscultação pulmonar, com fervores e ausência de sibilos. Habitualmente não existe febre.

Os achados da radiografia torácica são inespecíficos: sinais de hiperinsuflação, infiltrados bilaterais intersticiais, reticulonodulares; contudo, pode verificar-se normalidade.

Os achados laboratoriais incluem frequentemente eosinofilia periférica (> 300 células/mm3), hipoxemia arterial e aumento das imunoglobulinas séricas. Estes achados, difíceis de distinguir dos associados à pneumonia vírica, implicam a necessidade de valorizar a história clínica. A presença de leucorreia materna durante a gravidez, a existência de conjuntivite anterior às duas semanas de vida e a eosinofilia devem levar à suspeita do diagnóstico de clamidose.

Dum modo geral, a pneumonia é autolimitada, não requerendo internamento.

No que respeita ao prognóstico da pneumonia, importa relatar a possibilidade de surgir mais tarde, em crianças, adolescentes e adultos, alterações na função respiratória, incluindo sibilância recorrente e asma.

Tracoma

O tracoma, endémico no Médio Oriente e Sueste Asiático, é a causa mais importante de cegueira evitável em todo o mundo. A infecção, ocorrendo em idades precoces, pode persistir por vários anos. A mesma é disseminada através de secreções infectadas, pelo que a falta de condições de saneamento e a presença de vectores (moscas) constituem factores de risco de transmissão da mesma.

O quadro clínico corresponde a ceratoconjuntivite folicular crónica (infiltrado de linfócitos, monócitos, plasmócitos e macrófagos), com neovascularização da córnea, secundária a infecção recorrente ou crónica. A cicatrização conjuntival, por vezes exacerbada por sobreinfecção bacteriana, pode levar a entrópio (inversão do bordo palpebral) que, por sua vez, resulta num agravamento do trauma da córnea pela acção traumática dos cílios palpebrais, com ulceração, cicatrização, opacificação e cegueira (entre 1%-15% dos pacientes) após a doença activa.

A OMS sugere um sistema de classificação simples para as manifestações clínicas do tracoma: 1) tracoma folicular, definido pela presença de pelos 5 folículos na zona central da conjuntiva tarsal superior, indicativos de doença activa; 2) inflamação intensa tracomatosa, caracterizada pelo espessamento inflamatório pronunciado e hipertrofia papilar da conjuntiva tarsal superior; 3) cicatrização tracomatosa, implicando a presença de linhas ou bandas brancas na conjuntiva tarsal, correspondente a doença passada; 4) triquíase, caracterizada pela inversão de, pelo menos, um folículo piloso em contacto com o globo ocular; 5) opacidade da córnea.

Infecções genitais

Este tipo de infecções pode ser sistematizado do seguinte modo: vaginite nas mulheres pré-púberes, uretrite e epididimite no sexo masculino, e uretrite, cervicite, endometrite, salpingite e peri-hepatite (síndroma de Fitz-Hugh-Curtis) nas mulheres pós-púberes. Nestas últimas, a infecção pode originar doença inflamatória pélvica, gravidez ectópica ou esterilidade.

A infecção por Chlamydia trachomatis tem um pico de incidência no sexo feminino, entre os 15 e 19 anos. A discrepância entre sexos parece estar relacionada com uma susceptibilidade aumentada da mulher a este agente e pelo rastreio mais eficaz nas raparigas adolescentes. A reinfecção é muito comum, ocorrendo em cerca de 40% dos casos dentro de 9 meses, habitualmente por parceiros não tratados.

A uretrite por C. trachomatis no sexo masculino origina um exsudado predominantemente mucóide, enquanto na causada por gonococo o exsudado é purulento.

Linfogranuloma venéreo

O LGV é uma IST causada pelos serótipos L1 a L3 de Chlamydia trachomatis, endémicos em regiões tropicais e subtropicais. Recentemente tem-se assistido ao ressurgimento desta infecção na Europa e EUA no contexto de homossexualidade masculina.

Sucintamente, manifesta-se por infecção linfática invasiva com lesão ulcerosa inicial nos genitais e linfadenopatias inguinais dolorosas, supuradas e unilaterais. Pode surgir infecção anorrectal ou proctocolite.

Pormenorizando, importa distinguir três estádios definidos:

  1. infecção local – pápula, pústula ou úlcera genital ou rectal não dolorosa, pequena, que não deixa cicatriz (estádio primário);
  2. disseminação regional (estádio secundário) e;
  3. lesão tecidual com regressão ou possíveis sequelas (estádio terciário).

Cerca de 2 a 6 semanas após a lesão do estádio primário, surge linfadenopatia aguda inguinal unilateral e dolorosa, designada por “bubão”. Se a lesão do estádio primário for rectal, pode ocorrer proctite aguda hemorrágica ou dor abdominal ou lombar devido ao envolvimento dos gânglios retroperitoneais e pélvicos.

O estádio secundário é habitualmente acompanhado de sintomatologia sistémica, como febre, mialgias e cefaleias. Em 1/3 dos casos associados a surgimento de bubões poderá verificar-se drenagem espontânea; nos restantes, involução lenta.

Na maioria dos casos há regressão da doença no estádio terciário. Contudo, numa minoria, surge infecção anorrectal persistente, desenvolvendo-se uma inflamação crónica e fibrose, com diversas consequências: úlceras genitais crónicas, fístulas, estenoses rectais e elefantíase genital.

Diagnóstico

O método diagnóstico de referência da infecção por Chlamydia trachomatis em lactentes e crianças é o exame cultural. Segundo o CDC, pretende-se o isolamento do microrganismo em cultura de tecidos e confirmação ulterior através da identificação, por microscopia, das inclusões citoplasmáticas típicas. As amostras, que podem ser conjuntivais, nasofaríngeas, vaginais ou rectais, devem conter epitélio colunar da mucosa em vez de exsudado.

A citologia é utilizada principalmente para o diagnóstico de conjuntivite. As inclusões citoplasmáticas de Chlamydia trachomatis contêm glicogénio, o qual pode ser identificado com a coloração Giemsa nos raspados conjuntivais em 90% das crianças com conjuntivite. Nas situações de tracoma, tal identificação é viável apenas em 10% a 30% dos casos.

A técnica de amplificação de ácidos nucleicos (TAAN) é um instrumento com sensibilidade e especificidade elevadas para o diagnóstico de infecções genitais.

Existem actualmente três testes disponíveis e aprovados pela FDA: polymerase chain reaction, transcription-mediated amplification e strand displacement amplification. A sua utilização em crianças ainda não se encontra aprovada, embora os dados disponíveis sugiram que existe equivalência com o exame cultural em amostras conjuntivais e nasofaríngeas de crianças com conjuntivite.

Outro método de diagnóstico, com sensibilidade e especificidade elevadas, e que pode ser utilizado em amostras de esfregaços conjuntivais ou faríngeos, é constituído pelos testes directos com anticorpos fluorescentes utilizando anticorpos monoclonais conjugados com fluoresceína para identificação de antigénios.

O estudo serológico classicamente tem indicação em estudos populacionais.
Contudo, é útil no diagnóstico do LGV e da pneumonia neonatal. De salientar que a técnica serológica de referência é a microimunofluorescência (MIF). Um título de IgM igual ou > 1:32 considera-se com valor diagnóstico de pneumonia neonatal.

2. CHLAMYDIA (CHLAMYDOPHILA) PNEUMONIAE

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

Chlamydia (Chlamydophila) pneumoniae é uma causa frequente de infecção respiratória na idade escolar e na adultícia jovem (tal como o agente Mycoplasma). Transmite-se de pessoa para pessoa através de secreções infectadas do tracto respiratório, sendo desconhecido qualquer reservatório animal. A infecção inicial ocorre mais frequentemente entre os 5 e 15 anos de idade, sendo a recorrência comum.

Podendo eliminar-se até cerca de 1 ano após a infecção, verifica-se uma frequência de colonização na idade escolar da ordem de 5% a 25%, e uma incidência muito aproximada de 100 casos por 100.000 habitantes.

Com um período de incubação médio de 21 dias, de acordo com diversos estudos, a infecção respiratória por C. pneumoniae tem sido associada a hiperreactividade brônquica.

Diversos estudos têm sugerido um papel importante do agente C. pneumoniae na patogénese da doença cardiovascular aterosclerótica com base numa prevalência elevada de anticorpos anti-C. pneumoniae nos doentes com tal patologia. Contudo, não está provado cientificamente o benefício da utilização de antibioticoterapia, quer quanto à redução da placa aterosclerótica, quer quanto à redução significativa de eventos coronários.

Manifestações clínicas

As infecções por C. pneumoniae são em geral assintomáticas ou associadas a manifestações ligeiras. Incluem uma variedade de nosologias, mais frequentemente, pneumonia e bronquite e, menos frequentemente, faringite, laringite, rinossinusite e otite média aguda.

Caracterizada por febre, mal-estar, cefaleia, tosse e faringite, o curso da doença é prolongado, podendo a tosse persistir até 2 a 6 semanas, e apresentar uma evolução bifásica.

O quadro clínico de pneumonia, com roncos, fervores e sibilâncias, é semelhante ao da infecção por Mycoplasma. Nos casos de crianças com doença das células falciformes, poderá surgir forma grave acompanhada de síndroma torácica aguda. A radiografia torácica, inespecífica, pode evidenciar sinais de infiltrado hilífugo bilateral.

Como manifestações extrapulmonares têm sido descritas as seguintes situações: eritema nodoso, irite, meningoencefalite, síndroma de Guillain-Barré, artrite reactiva e miocardite.

A coinfecção por Streptococcus pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e vírus respiratórios é frequente.

Diagnóstico

Não existe nenhuma prova completamente confiável para o diagnóstico desta infecção.

O diagnóstico laboratorial específico consiste no seu isolamento em cultura a partir de amostras de secreções obtidas por zaragatoas da nasofaringe posterior; podem também ser utilizadas amostras de expectoração, lavado broncoalveolar ou líquido pleural.

As TAAN baseadas na reacção em cadeia da polimerase (PCR) em tempo real evidenciam sensibilidade e especificidade elevadas. Contudo, na fase actual não estão comercializadas.

O método serológico por microimunofluorescência (MIF) é o mais sensível e específico. Para o diagnóstico de infecção aguda estão definidos os seguintes critérios: um título de IgM igual ou superior a 1:16, ou um aumento 4 vezes do título de IgG.

Na infecção primária:

  • a IgM surge aproximadamente 2 a 3 semanas após o início da infecção e;
  • a IgG não atinge o pico máximo antes das 6 a 8 semanas.

Importa salientar que a terapêutica antimicrobiana precoce poderá suprimir a resposta imunológica.

3. CHLAMYDIA PSITTACI

Importância do problema e aspectos epidemiológicos

Chlamydia psitacci é o agente etiológico da psitacose (ou doença dos papagaios – por afectar os papagaios) e ornitose (doença infecciosa que afecta outras aves como galinhas, pombos, perus, araras, patos).

As aves são, pois, o principal reservatório de Chlamydia psittaci, embora tal microrganismo também possa infectar mamíferos, como ovelhas, cabras, gado e gatos.

Estas clamidoses constituem, assim, um perigo biológico para a saúde humana e uma ameaça económica à indústria avícula.

O período de incubação, variando entre 5 a 14 dias, pode ser mais prolongado.

Trata-se de doenças de distribuição mundial, esporádicas, podendo, contudo, surgir em surtos. A infecção é adquirida habitualmente pela inalação de aerossóis de secreções respiratórias, oculares, ou de fezes ou urina, dos animais infectados.

Os indivíduos com maior risco são trabalhadores em explorações avículas, matadouros de aves e funcionários de lojas de animais. A importação e tráfico ilegal de aves exóticas estão associados a um aumento da incidência porque a infecção, habitualmente no estado latente, é activada por factores de estresse como sobrelotação, subnutrição, transporte ou outras infecções provocadas por outros microrganismos. Pode também ser transmitida a partir de animais assintomáticos, com sintomatologia ligeira ou durante longos períodos após a recuperação da doença. A transmissão entre pessoas não foi demonstrada.

Na idade pediátrica, a infecção é rara. Entre 1990 e 2008 foram reportados ao CDC 756 casos de psitacose, com uma proporção de 9% em idade inferior a 20 anos.

Manifestações clínicas

Esta clamidose (que pode ser assintomática) manifesta-se habitualmente com sinais de infecção respiratória aguda associada a sintomatologia sistémica, de grau variável, incluindo febre, tosse não produtiva, cefaleia, mialgias, calafrios, diarreia, vómitos e hepatomegália.

Através do exame objectivo comprova-se eritema faríngeo, fervores crepitantes ou outras alterações da auscultação pulmonar.

A radiografia do tórax poderá evidenciar sinais de infiltrados exuberantes, em desproporção com os sinais auscultatórios verificados; em tais circunstâncias, o quadro clínico-radiológico é compatível com pneumonia atípica.

Raramente poderão surgir complicações, como eritema nodoso, pericardite, miocardite, endocardite, tromboflebite superficial, hepatite e encefalite.

Em suma, e na prática, o diagnóstico desta clamidose pode ser admitido em face da verificação de febre, cefaleia, mialgias e tosse seca num paciente em contacto com aves.

Diagnóstico

Dado que o exame cultural (do sangue ou de amostras respiratórias – expectoração ou líquido pleural) somente está disponível em laboratórios especializados, o diagnóstico de psitacose/ornitose é estabelecido fundamentalmente com base:

  • em provas serológicas; de preferência, recomenda-se a detecção de anticorpos por MIF, requerendo-se um aumento 4 vezes dos níveis de IgG- idealmente em intervalo de 4-6 semanas-, ou valores de IgM ≥ 32. Em alternativa, a prova de fixação do complemento. De salientar que o tratamento antimicrobiano poderá retardar ou diminuir a resposta imunológica.
  • detecção de ADN de Chlamydia psittaci por PCR.

Tratamento e prevenção das clamidoses descritas

A seguir, são descritas, de modo sucinto e encadeado, as principais bases do tratamento e da prevenção.

Tratamento

No que respeita ao tratamento antimicrobiano, o Quadro 1 integra o esquema a utilizar em cada entidade clínica (referindo-se que existem variantes de actuação descritas na literatura científica): são considerados respectivamente os fármacos de eleição, e as alternativas, estas últimas, designadas antes do nome por “Ou”.

QUADRO 1 – Bases do tratamento antimicrobiano das infecções por Chlamydia.

Notas importantes
A: até aos 45 kg, eritromicina na mesma dose que para a pneumonia do lactente; se mais de 45 kg, mas menos de 8 anos, indicada azitromicina, 1 grama, em dose única.
B: contraindicação na grávida.
C: na gravidez e em menores de 8 anos.
Abreviatura- po: per os
*Relativamente ao tracoma, para além do tratamento antimicrobiano, a OMS preconiza a chamada estratégia denominada SAFE (sigla de Surgery, Antibiotics, Facial cleanliness, Environmental improvements) tendo em vista a sua erradicação. A cirurgia, reservada para os casos de triquíase, é de extrema importância na prevenção da amaurose.
Por outro lado, estando bem estabelecida a relação entre a prevalência de tracoma em determinada área e as respectivas condições de vida dos habitantes, a correcta higiene corporal (designadamente a correcta limpeza da face, com especial realce nas crianças), o acesso a água potável e o saneamento adequado tornam-se imprescindíveis com vista à erradicação desta infecção.

→ C. trachomatis

Conjuntivite do RN e pneumonia do lactente
Eritromicina: 50 mg/kg/dia po, 4 doses, 14 dias,
Ou Azitromicina: 20 mg/kg/dia po, 1 dose, 3 dias (efeito idêntico à eritromicina)
NB- Risco de estenose hipertrófica do piloro em lactentes com < de 6 semanas, tratados com eritromicina.

Tracoma*
Eritromicina ou tetraciclina tópicas, 2 doses/dia, 2 meses, ou 5 dias/mês, 6 meses
Azitromicina: 20 mg/kg/semana em dose única po (máx. 1 g), 3 semanas,
Ou Doxiciclina (se > 8 anos): 4 mg/kg/dia po 2 doses, 40 dias. OMS prefere azitromicina para formas graves

Infecções genitaisA
Doxiciclina (se > 8 anos)B: 4 mg/kg/dia po 2 doses (máx. 200 mg/dia), 7 dias
Azitromicina: 1 g em dose única po,
Ou Eritromicina base: 2 g/dia ou Eritromicina etilsuccinato: 3,2 g/dia po (em 4 doses),
Ou OfloxacinaB: 600 mg/dia em 2 doses ou Levofloxacina: 500 mg/dia po, 7 dias

Na grávida
Azitromicina: 1 g em dose única po,
Amoxicilina: 1,5 g/dia po em 3 doses, 7 dias
Ou Eritromicina base: 2 g/dia po em 4 doses, 7 dias

Linfogranuloma venéreo (LGV)
Doxiciclina: 200 mg/dia po em 2 doses, 21 dias,
Ou Eritromicina base: 2 g/dia po em 4 doses, 21 dias ou Azitromicina: 1 g/semana po, 3 semanas

→ C. pneumoniae
Pneumonia atípica
Eritromicina base ou Eritromicina etilsuccinato: 50 mg/kg/dia po em 4 doses, 14 dias,
Ou Azitromicina: 20 mg/kg/dia, em dose única po, 3 dias
Doxiciclina (se > 8 anos): 2-4 mg/kg/dia po em 2 doses (máx. 200 mg/dia), 10-14 dias
→ C. psittaci
Psitacose
Doxiciclina (se > 8 anos): 4 mg/kg/dia po em 2 doses (máx. 200 mg/dia), (mínimo de 10 dias e até mais 10-14 dias após remissão da febre,
Ou AzitromicinaB ou Eritromicina nos casos de gravidez ou de idade < 8 anos

Medidas preventivas

No que respeita às principais medidas preventivas, dá-se ênfase às que se relacionam com infecções por C. trachomatis e C. psittaci.

C. trachomatis

Relativamente à profilaxia da conjuntivite por C. trachomatis, a OMS recomenda, a todos os recém-nascidos, profilaxia ocular tópica com uma das seguintes opções, escolhidas com base nos padrões de resistência locais: – aplicação tópica em ambos os olhos, imediatamente após o parto de cloridrato de tetraciclina 1%, ou eritromicina 0,5%, ou cloranfenicol 1%, ou solução de iodopovidona 2,5%, ou nitrato de prata 1%; quanto à aplicação tópica dos dois últimos compostos (incluindo iodo e prata, respectivamente), os resultados de diversos estudos demonstram que existe um benefício superior ao risco, de possível desenvolvimento de conjuntivite não-infecciosa.

De referir, contudo, que alguns autores desaconselham profilaxia tópica em RN de mães infectadas.

Quanto à prevenção das infecções genitais no âmbito de população com comportamento de risco, sintetizam-se as seguintes normas gerais:

  • os parceiros sexuais (contacto de parceiro aparentemente saudável com outro doente ou suspeito) devem ser avaliados e tratados em caso de relações dentro do período de 60 dias precedendo o início dos sintomas;
  • havendo contacto de parceiro doente com parceiro saudável, recomenda-se ulteriormente abstenção de relações por período mínimo de 7 dias, quer após regime de tratamento antimicrobiano com dose única de 1 dia, quer após esquema de tratamento diário durante 7 dias;
  • rastreio anual de C. trachomatis (ou com maior frequência em função do grau de comportamento de risco dos parceiros) incidindo designadamente sobre: – adolescentes do sexo feminino, sexualmente activas; – todas as mulheres entre 20-25 anos; – todas as mulheres com > 25 anos com comportamentos de risco.
 C. psittaci

Antes de sistematizar as principais medidas de contenção da clamidíase provocada por esta bactéria (medidas com particularidades, podendo variar em países ou regiões), e incidindo essencialmente sobre pessoas que lidam com aves (por ex. em aviários, na criação e transporte de aves) importa salientar que tal agente, vulnerável ao calor e à maior parte dos desinfectantes e detergentes, é resistente aos ácidos e alcalis:

  • identificação das fontes de infecção, divulgando ulteriormente o facto junto do pessoal exposto;
  • nos actos de compra e venda de aves, assim como na exposição em eventos ou feiras, as mesmas deverão ser isoladas nos 30 a 45 dias anteriores, para vigilância, eventuais análises e/ou tratamento profiláctico, sob tutela do médico-veterinário;
  • higiene rigorosa quanto ao manuseamento de material fecal e comida das aves, evitando contacto directo;
  • formação do pessoal envolvido, com chamada de atenção para sinais de alerta de doença nas aves, tais como exsudado ocular, dejecções diarreicas, défice ponderal, etc.;
  • uso de fato para isolamento e de máscaras, próprios (a clássica máscara cirúrgica é insuficiente) nos casos de contactos com aves doentes com indicação de tratamento, as quais deverão ser isoladas durante 45 dias.

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INFECÇÕES POR Mycoplasma

Sistematização e importância do problema

Os agentes Mycoplasma, um género de bactérias sem parede celular, são os mais pequenos procariotas conhecidos que causam doença na espécie humana. Pelas dimensões (50-250 nm), aproximam-se mais dos vírus do que das bactérias. Trata-se de Gram-negativos com forma muito variável, dependentes da ligação a células do hospedeiro para obtenção de precursores essenciais como nucleótidos, ácidos gordos, esteróis e aminoácidos. Possuem um único genoma e ADN circular, de dupla cadeia (5×108 daltons). A ausência de parede celular rígida reflecte-se no aparecimento de morfologia variável ou pleiomorfismo (cocobacilar, filamentosa ramificada, etc.). Possuem, contudo, uma membrana citoplásmica trilaminar.

Das 16 espécies de Mycoplasma isoladas da espécie humana, M. pneumoniae é o principal agente de infecções respiratórias em crianças de idade escolar, adolescentes e jovens adultos.

Ureaplasma constitui outro género que se integra nos Mycoplasmas genitais.

1. INFECÇÕES POR Mycoplasma pneumoniae

Aspectos epidemiológicos

As infecções por este microrganismo são endémicas nas grandes comunidades, podendo ocorrer surtos epidémicos em ciclos cada 3-7 anos. Esporádicas nas pequenas comunidades, podem ocorrer surtos epidémicos irregularmente no tempo.

Trata-se de patologia pouco frequente antes dos 3 anos, de expressão clínica tanto mais ligeira quanto mais baixa a idade, e pico de incidência na idade escolar. De acordo com diversos estudos epidemiológicos, explica entre 7%-40% das pneumonias adquiridas na comunidade dos 3-15 anos.

Com um período de incubação ~ 1-3 semanas, ocorre através da contaminação por gotículas respiratórias, sobretudo em comunidades ou instituições de grande concentração de pessoas, em ambiente fechado.

Etiopatogénese

As células do epitélio respiratório ciliado são o alvo dos microrganismos às quais estes se ligam através de junção de glicoproteína ou glicolípido sulfatado, penetrando nelas depois, e em cujo citoplasma sobrevivem; como consequência verifica-se citólise (em parte explicável por toxina ou pela produção de peróxido de hidrogénio), disfunção ciliar e, ulteriormente, destacamento ou “descamação” celular.

Acrescenta-se que o agente pode actuar sobre células de outros aparelhos e sistemas, determinando também sintomatologia decorrente de tal acção, cujo mecanismo não está completamente esclarecido.

Como efeito da acção (complexa) do microrganismo verifica-se activação policlonal dos linfócitos B e de células T CD4+, o que por sua vez amplifica a resposta imune com libertação de várias citocinas pró-inflamatórias e anti-inflamatórias, interferões vários, TNF-alfa e outras citocinas. Como resposta do hospedeiro agredido surgem diversas reacções de imunidade celular e anticorpos que o protegem ou contribuem para a cura.

De salientar que situações crónicas de hipogamaglobulinémia, drepanocitose ou síndromas de imunodeficiência primária predispõem a infecções respiratórias de maior gravidade. Todavia, M. pneumoniae não se comporta como agente oportunista em doentes com síndroma de imunodeficiência adquirida.

M. pneumoniae pode ser detectado por reacção da polimerase em cadeia (PCR) em diversos locais extra tracto respiratório, tais como sangue, líquido pleural, LCR e líquido sinovial. Este facto aponta para a possibilidade de o efeito ao nível de diversos territórios se relacionar, mais com acção directa da invasão do agente, do que com mecanismo imunológico.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações do tracto respiratório, este tópico foi abordado na Parte XIV, capítulo sobre Pneumonia, cuja Figura 1 mostra o respectivo padrão de pneumonia.

Quanto às manifestações extrapulmonares (que podem surgir antes, durante, ou depois das manifestações respiratórias e, inclusivamente, em doentes sem manifestações respiratórias, e outrora consideradas complicações), pode proceder-se à seguinte sistematização:

  • gastrintestinais (gastrenterite, hepatite colestática, pancreatite, gastropatia hipertrófica com perda de proteínas, elevação das transaminases, etc.);
  • génito-urinárias (nefropatia por IgA, glomerulonefrite aguda, nefropatia tubulointersticial, insuficiênca renal, etc.);
  • dermatológicas (eritema nodoso, exantema maculopapuloso, urticária, síndroma de Stevens Johnson, eritema multiforme, etc.);
  • músculo-esqueléticas (artromialgias, miosite aguda, síndroma símile febre reumática “sem cardite”, etc.);
  • cardiovasculares (pericardite, miocardite, endocardite, etc.);
  • oculares (conjuntivite, uveíte, retinite, iridociclite, etc.);
  • neurológicas (meningite asséptica, meningoencefalite, paralisia de pares cranianos, ataxia cerebelosa, síndroma de Guillain-Barré, etc.); quanto à encefalite ocorrendo dentro de 5 dias após início dos sintomas prodrómicos, a mesma poderá ser devida a invasão directa do SNC; se ocorrer para além de 7 dias após início daqueles, tratar-se-á provavelmente de encefalite por mecanismo autoimune;
  • hematológicas (crioaglutininas IgM, trombocitopénia, púrpura trombocitopénica trombótica, CIVD, anemia aplástica, anemia hemolítica com prova de Coombs positiva e reticulocitose cerca de 2-3 semanas após início da doença – a hemólise grave, rara, pode ser documentada por determinação do título de hemaglutininas frias (> 1/512).

Diagnóstico

  1. Na forma clássica de infecção do tracto respiratório, o diagnóstico etiológico pode fazer-se através do exame cultural de secreções da faringe ou expectoração, método que não permite resposta rápida (~ 1 semana). A sensibilidade desta prova é baixa, estando em desuso.
  2. Considerando a infecção por M. pneumoniae na perspectiva global (formas respiratórias e extrarrespiratórias), cumpre salientar as seguintes provas:
    • provas serológicas, sendo que a mais popular e exequível é a da fixação do complemento; título (elevado) de anticorpos IgG anti- M. pneumoniae com subida 4 vezes no período entre 10 dias e 3 semanas é sugestivo da respectiva infecção; a detecção de IgM específicas por imunofluorescência não distingue entre infecção aguda e infecção recente anterior;
    • determinação de anticorpos IgM/crioaglutininas dirigidos contra antigénio I dos eritrócitos, em desuso, por sensibilidade e especificidade baixas;
    • técnicas de PCR a partir de exsudado da naso ou orofaringe e doutros produtos biológicos (ver atrás) é a prova de eleição, rápida, com sensibilidade e especificidade entre 80% e 100% sempre que se necessita de confirmação microbiológica.

Tratamento

Para além de medidas gerais descritas antes relativamente às formas clínicas do tracto respiratório, cabe referir que a medida mais efectiva para a erradicação de M. pneumoniae é a antibioticoterapia com claritromicina ou azitromicina. Verificando-se surtos em instituições, é recomendada a profilaxia dos contactos com azitromicina, designadamente nas situações predisponentes atrás descritas (hipogamaglobulinémia, drepanocitose, etc.).

Contudo, nas formas extrarrespiratórias, apenas parece ser consensual entre especialistas antibioticoterapia nos casos de artrite, doentes imunodeprimidos, compromisso cardíaco ou hemólise. Nas formas neurológicas, tendo em conta a importância do mecanismo imunológico, a antibioticoterapia é controversa, embora se admita o papel do macrólido como imunomodulador; nalguns centros propõe-se a utilização de antibioticoterapia com levofloxacina, corticóides e de imunoglobulina intravenosa.

 Complicações

As complicações neurológicas (que surgem, em média 10 dias após doença respiratória) incluem meningoencefalite, mielite transversa, meningite asséptica, ataxia cerebelosa, paralisia de Bell, surdez, encefalite desmielinizante aguda e síndroma de Guillain-Barré; contudo, podem surgir sem doença respiratória prévia em cerca de 20% dos casos.

Prognóstico

As infecções fatais são raras. Com o desenvolvimento da tecnologia da imagem (TAC de alta resolução) demonstrou-se numa baixa percentagem de crianças pequenas com antecedentes de doença pulmonar por M. pneumoniae: espessamento da parede brônquica, alterações da perfusão pulmonar e bronquiectasias. Em geral há recuperação completa com excepção no respeitante às sequelas de encefalite.

2. INFECÇÕES por OUTRAS ESPÉCIES de Mycoplasma

As três espécies M. hominis, M. genitalium e Ureaplasma urealyticum são patogénios humanos urogenitais; colonizam o tracto genital feminino, podendo originar corioamnionite, colonização dos RN e infecção perinatal. Estão muitas vezes associadas a infecções sexualmente transmitidas, tais como uretrite não gonocócica.

Duas outras espécies de Mycoplasma genitais (M. fermentans e M. penetrans) podem ser isoladas de secreções, quer do tracto respiratório, quer do tracto genital, com maior frequência em doentes com infecção por VIH.

Os restantes membros são provavelmente saprófitas, excepto em circunstâncias invulgares, como é o caso de M. salivarium, associado a artrite na hipogamaglobulinémia.

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LEPTOSPIROSE

Definição e importância do problema

A leptospirose é uma zoonose sistémica aguda e febril com espectro clínico muito variável, provocada por um grupo de espiroquetas, móveis e aeróbios, do género Leptospira, o qual possui espécies com mais de 300 serótipos de virulência variável.

Na Europa, os serótipos mais comuns são L. icterohaemorrhagiae, L. canicola, L. pomona, L. hebdomadis e L. ballum. A Leptospira biflexa engloba mais de 60 serótipos não patogénicos. A correlação dos serótipos referidos com síndromas específicas é impossível dada a variedade da patologia que pode ser produzida por cada serótipo.

De distribuição universal, é a zoonose mais frequente. Contudo, a sua distribuição geográfica é muito variável, a qual depende, sobretudo, da maior ou menor abundância de vectores e do nível sanitário das populações.

Aspectos epidemiológicos

Está descrita variação sazonal na frequência de leptospirose. Com efeito, precipitação de chuvas e inundações, facilitando a acumulação de água contaminada, podem dar origem a surtos epidémicos.

A doença é cerca de 10 vezes mais prevalente em zonas tropicais do que em climas temperados e em ambientes pobres, sem saneamento.

A leptospirose é uma doença de notificação obrigatória. Em Portugal foram declarados 124 casos entre 2010-2013, dos quais apenas um corresponde a idade inferior a 15 anos.

O melhor conhecimento da epidemiologia da leptospirose e a introdução de antibióticos determinaram que praticamente tenha desaparecido de zonas, onde há décadas, era uma doença frequente e grave.

Etiopatogénese

Em geral, o ser humano contamina-se a partir do contacto com água, lama ou alimentos contaminados. A porta de entrada é geralmente a pele ou as mucosas com lesões (oral, ocular, esofágica e nasofaríngea).

O contágio directo através do sangue, por contacto com tecidos ou órgãos de animais infectados (por exemplo em acidentes de laboratório), é mais raro. O leite materno pode igualmente transmitir a doença.

Foram também descritos casos de transmissão vertical, por ingestão ou inalação.

O agente Leptospira infecta um grande número de animais, quer domésticos, quer selvagens, sendo o rato a principal fonte de infecção humana. Nestes animais (reservatórios), o serótipo determina o quadro clínico, variando entre doença fatal e portador crónico, assintomático.

A bactéria é excretada na urina, líquido amniótico e placenta dos animais infectados, permanecendo viável na água e solo durante meses nos climas temperados. Especificando, L. icterohaemorrhagiae é eliminado pela urina do rato, L. canicola pela urina do cão e L. pomona pela urina do porco.

O microrganismo, entrando em circulação, pode atingir todos os órgãos. As manifestações clínicas são secundárias a lesões em estruturas microvasculares (vasculite generalizada com lesão das células endoteliais dos pequenos vasos) produzindo, designadamente, aumento da permeabilidade capilar, microcoagulação local, edema, hipóxia-isquémia em órgãos-alvo e hipovolémia.

Posteriormente, ao mesmo tempo que os microrganismos desaparecem no sangue e LCR, aparecem anticorpos circulantes IgM, verificando-se deposição de Leptospiras em diversos órgãos, assim como de imunocomplexos (designadamente no rim/túbulos renais e humor aquoso/globo ocular, conduzindo a lesão funcional em consequência de infiltrados inflamatórios e necrose. Este quadro anatomofisiológico poderá persistir durante várias semanas.

Manifestações clínicas

O espectro de manifestações clínicas da leptospirose na espécie humana varia entre:

  • infecção assintomática ou doença ligeira (90% dos casos); e
  • doença grave (10% dos casos), caracterizada por disfunção multiorgânica, com letalidade > 5%.

Após um período de incubação médio de 7 a 15 dias (podendo variar entre 2 e 30 dias), a doença evolui em duas fases, respectivamente: a inicial (septicémica/com leptospirémia) e a tardia, imune ou de localização (com leptospirúria). Trata-se, pois, duma doença bifásica.

Assim, a fase inicial, septicémica, com duração de 3-7 dias, caracteriza-se por manifestações de doença febril aguda com sintomatologia inespecífica: febre alta, calafrio, cefaleias, mialgias intensas dos gémeos e região lombar (80% dos casos), náuseas, vómitos, injecção conjuntival sem exsudado (30%-40%), exantema no tronco, adenomegálias generalizadas e hepatosplenomegália.

Na fase seguinte (imune), com duração até várias semanas, atenuam-se os sintomas iniciais, diminui a febre e passam a ser notórios sinais e sintomas de localização traduzidos sobretudo por meningite asséptica e nefrite intersticial mais frequentemente, e por síndroma de Guillain-Barré, neuropatia, colecistite e pneumopatia, menos frequentemente. Apesar da presença de anticorpos circulantes, Leptospiras podem persistir nos tecidos e órgãos, designadamente, rim, urina e humor aquoso. Pode também surgir uveíte com evolução arrastada até cerca de 6 a 12 meses.

Em cerca de 10% dos casos (raramente em idade pediátrica), a leptospirose, para além da sintomatologia descrita antes, pode apresentar-se com icterícia, e sinais de insuficiência hepática e renal graves, logo após o 4º-6º dia de evolução, constituindo a chamada Forma clínica ictérica ou Síndroma de Weil (em geral provocada por L. icterohaemorrhagiae). A sintomatologia mais relevante é constituída, sobretudo, por pneumonite hemorrágica e colapso cardiocirculatório.

A infecção da grávida por Leptospira pode provocar abortamento e infecção congénita.

Diagnóstico

Deve suspeitar-se de leptospirose perante uma doença febril aguda, surgindo em doentes que vivem em zonas de prevalência de roedores, nomeadamente ratos, sem saneamento básico, com história de contacto directo com animais, águas ou solos contaminados.

O agente Leptospira pode ser isolado no sangue ou líquor durante a fase septicémica, através de técnicas e meios de cultura especiais.

Na fase imune, que corresponde à excreção pela urina, pode ser pesquisado através de exame directo – microscopia em campo escuro, ou de exame cultural. Também podem ser utilizadas técnicas ELISA e técnica molecular/PCR em tempo real para identificação do microrganismo em tecidos infectados ou fluidos orgânicos.

A bactéria também se pode detectar em tecidos por meio de técnicas imuno-histoquímicas.

As provas serológicas em sangue colhido 7 dias após o início da doença evidenciam subida do título de anticorpos (3 a 4 vezes) a partir do 12º dia, com títulos máximos pela 2ª a 3ª semana, em casos da doença. Títulos baixos poderão persistir durante anos. Em cerca de 10% dos casos não é possível detectar aglutininas, possivelmente pelo facto de os anti-soros disponíveis não identificarem todos os serótipos

Tendo em conta a repercussão multissistémica da doença, em função da sintomatologia, poderão ser realizados diversos exames fundamentados em diversas circunstâncias:

  • diátese hemorrágica: hemograma com plaquetas, estudo da coagulação;
  • icterícia: bilirrubinémia, transaminases, gamaglutamil transpeptidase, fosfatase alcalina;
  • disfunção renal: análise sumária de urina, creatininémia e ionograma sérico;
  • disfunção cardíaca: CPK e CPK-MB, ECG, ECO-CG e radiografia do tórax.

Diagnóstico diferencial

Nas formas anictéricas o diagnóstico diferencial faz-se com: infecções víricas e com meningite linfocitária. Nas formas ictéricas e septicémia, com hepatites víricas, colecistite aguda, malária, riquetsioses e febre tifóide.

Tratamento

Leptospira é sensível a múltiplos antibióticos sem que se tenham verificado resistências.

A antibioticoterapia é tanto mais eficaz quanto mais precocemente se iniciar, inclusivamente na primeira semana após início dos sintomas.

A penicilina G cristalina por via IV, 25.000-50.000 UI/kg/dia dividida em doses de 4/4 horas (máximo 12 milhões UI/dia), durante 7 a 10 dias é o antibiótico de eleição para os doentes com necessidade de internamento.

Na doença moderada poderá ser administrada a doxiciclina 2 mg/kg/dia, de 12/12 horas, (dose máxima 200 mg/dia); o tratamento deve durar também 7-10 dias. A azitromicina, também eficaz, é uma alternativa à doxiciclina.

O tratamento de suporte inclui vigilância do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, eventual terapia intensiva, incluindo oxigenoterapia, correcção da hipovolémia e hipotensão, e prevenção da hemorragia digestiva com ranitidina ou omeprazol.

Prognóstico

A mortalidade causada por Leptospira varia entre cerca de 1% nas formas ligeiras, e superior a 40% nos casos graves, sendo que as infecções por L. icterohemorrhagiae e L. copenhageni estão associadas a doença mais grave. Tal deve-se essencialmente à síndroma hemorrágica (equimoses, petéquias, hemorragia pulmonar, hemorragia gastrintestinal).

Todavia, realça-se que na maioria dos casos a leptospirose é uma doença autolimitada.

Prevenção

A prevenção tem como principal objectivo controlar as pragas de roedores e proceder à imunização dos animais reservatórios da doença (com vacina inactivada que, no entanto, não previne a leptospirúria); portanto, os animais vacinados poderão ainda ser fontes de infecção humana. Não existe actualmente disponível vacina humana.

Alguns autores preconizam como medida profiláctica transitória, para quem se desloca em viagens a zonas de alta endemia, doxiciclina PO em dose de 200 mg semanal.

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FEBRE RECORRENTE

Definição e importância do problema

A febre recorrente é uma doença infecciosa pouco comum, caracterizada por episódios recorrentes de febre. A mesma é causada por espiroquetas do género Borrelia, os quais se transmitem à espécie humana por dois artrópodes-vectores distintos, respectivamente: o piolho Pediculus humanus e a carraça da espécie Ornithodoros erraticus.

Trata-se duma doença de distribuição mundial, salientando-se o aparecimento de epidemias na África Oriental. A doença em lactentes é responsável por cerca de 5% do total de casos.

Aspectos epidemiológicos

A febre recorrente epidémica é causada pelo agente Borrelia recurrentis; foram descritas epidemias na costa oriental de África, designadamente Sudão e Etiópia.

A febre recorrente endémica é causada por cerca de 15 espécies de Borrelia; as mais comuns são B. hermsii e B. turicatae, prevalentes na parte ocidental dos EUA, B. dugesi no México e América Central, B. hispanica em Espanha, e B. persica na Ásia.

Estas espécies de Borrelia (recurrentis) são distintas das associadas a outras doenças, nomeadamente à doença de Lyme.

Uma característica particular destes germes bacterianos é a contínua mutação de genes determinando grande variação de antigénios ao longo do tempo. Assim, o agente Borrelia isolado num primeiro episódio febril será antigenicamente diferente dos agentes isolados em episódios subsequentes, o que explica a natureza cíclica da infecção.

Etiopatogénese

A febre recorrente epidémica é transmitida ao homem pelo piolho Pediculus humanus, que ingere o espiroqueta ao alimentar-se do sangue de um doente. Ao ser esmagado pelo homem, os fluidos do piolho contaminam o local da picada.

Por outro lado, feridas da pele decorrentes do efeito traumático de lesões de coceira permitem a entrada em circulação do espiroqueta.

Esta infecção está associada a precárias condições de higiene e saneamento. Actualmente é mais frequente na Etiópia, Somália e Eritreia, tendo sido associada aos desastres sociais e guerra naquela região do globo.

A febre recorrente endémica é transmitida ao homem por carraças do género Ornithodoros, infectadas a partir de roedores selvagens. A saliva do artrópode que pica o homem permite a entrada de Borrelia na circulação sanguínea. Salienta-se que nos abrigos de montanha de parques naturais existem condições propícias para contrair a infecção.

Durante os episódios febris, os espiroquetas, entrando na corrente sanguínea, promovem o desenvolvimento de anticorpos específicos IgM e IgG, os quais actuando contra determinadas espécies antigénicas, contribuem para a “depuração” de determinadas variantes, restando contudo incólumes outras variantes de espécies que poderão proliferar e originar ulteriormente outros episódios.

Ou seja, durante a fase de remissão os espiroquetas Borrelia podem permanecer na corrente sanguínea, podendo originar novos episódios em função do número remanescente. A eliminação dos referidos microrganismos dependerá da efectividade do tratamento.

Salienta-se que os microrganismos podem ser sequestrados, fagocitados e sofrendo lise, no fígado, baço, sistema nervoso central, e/ou medula óssea.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação médio de 7 dias (2-18 dias), verifica-se o aparecimento súbito de febre alta com calafrio, sudorese, cefaleias, mialgias, fraqueza muscular e artralgias.

O episódio inicial febril termina ao fim de 4 a 7 dias com um quadro agudo marcado por diaforese, hipotermia, hipotensão, bradicárdia e fraqueza muscular profunda.

De acordo com o que foi referido antes, nos doentes sem tratamento a febre poderá surgir de novo ao fim de uma semana com manifestações de síndroma gripal.

Poderão ocorrer cerca de 10 episódios de febre; todavia os episódios sintomáticos tornam-se progressivamente mais espaçados e mais moderados. Ou seja, verifica-se um aumento gradual dos períodos de remissão.

As picadas, quer da carraça, quer do piolho, são assintomáticas.

É comum surgir exantema macular fugaz no tronco, podendo generalizar-se ou tornar-se petequial. O exame objectivo poderá evidenciar, também, hepatosplenomegália.

Poderão também surgir trombocitopénia, icterícia, iridociclite, pneumonia, meningite ou miocardite.

Sinais de discrasia hemorrágica são comuns na febre epidémica, mas não na endémica.

Diagnóstico

Apesar de a história epidemiológica ser extremamente valiosa, levantando forte suspeita, torna-se fundamental proceder à identificação de Borrelia no sangue durante o episódio febril: a observação ao microscópio do esfregaço de sangue periférico corado pelos métodos de Wright e Giemsa permite, assim, o diagnóstico.

O diagnóstico também pode ser realizado por imunofluorescência indirecta.

O estudo molecular, atilizando a PCR é igualmente útil.

Salienta-se que o estudo serológico está fortemente limitado pela grande variabilidade antigénica a que atrás se fez menção. Por outro lado, salienta-se que existe reacção serológica cruzada com outros espiroquetas, designadamente com Borrelia burgdorferi, agente da doença de Lyme.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da febre recorrente podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como malária, riquetsioses, brucelose, febre tifóide, tularémia, vírus da dengue, hepatite vírica ou leptospirose, pelo que a epidemiologia e a história clínica devem ser devidamente valorizadas.

Tratamento

Os objectivos essenciais do tratamento são eliminar os espiroquetas do sangue e prevenir ou controlar a reacção de Jarisch-Herxheimer resultante da destruição maciça de microrganismos.

Existe uma larga gama de antibióticos eficazes.

O tratamento da febre recorrente, epidémica ou endémica, consiste na administração de eritromicina PO 50 mg/kg/dia, 4 vezes por dia, durante 10 dias, em crianças pequenas. Acima dos 8 anos, pode considerar-se ainda a tetraciclina PO (500 mg 4 vezes por dia) ou doxiciclina PO (100 mg 2 vezes por dia), durante 10 dias.

Aspecto importante da antibioticoterapia é a possibilidade de ocorrência da já referida reacção de Jarisch-Herxheimer (J-H), associada a níveis elevados de TNF-alfa, IL-6 e IL-8.

Por isso, é recomendável que se mantenha linha IV com soro fisiológico para eventual tratamento do choque anafiláctico na eventualidade de surgir a reacção. Está em investigação o tratamento da reacção de J-H com anticorpos anti-TNF-alfa.

Prognóstico

Com tratamento adequado em regime hospitalar, a mortalidade em doentes com febre recorrente é < 2%. A febre recorrente epidémica sem tratamento pode comportar mortalidade elevada, entre 10% a 70% dos casos.

Prevenção

A prevenção faz-se através da erradicação dos vectores. A melhoria dos cuidados de higiene pessoal é essencial para a prevenção da febre recorrente epidémica. Quanto à febre recorrente endémica, o uso de roupa adequada, de repelentes e a desinfestação dos abrigos de montanha reduz o número de pessoas infectadas.

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BORRELIOSE DE LYME

Definição e importância do problema

A borreliose de Lyme, ou doença de Lyme, uma zoonose descrita pela primeira vez em 1975, é uma perturbação inflamatória multissistémica causada pela resposta do sistema imunitário à infecção por um grupo de espiroquetas – Borrelia burgdorferi sensu latu –; trata-se de bactérias Gram-negativas de forma cilíndrica espiralada, fazendo-se a transmissão por picada dum artrópode infectado – a carraça.

Nos EUA, particularmente nalguns estados, constitui a zoonose mais frequente, com mais de 30.000 casos declarados anualmente. Na Europa, a doença é mais comum no norte e região central, evidenciando características clínicas ligeiramente diferentes.

Epidemiologia

O nome da doença corresponde ao nome duma comunidade de Connecticut nos EUA (Lyme) onde foi pela primeira vez descrita. Ulteriormente foi identificada em mais de 50 países; na Europa verifica-se maior prevalência na Alemanha, Áustria, Eslovénia e Suécia.

Existem algumas áreas endémicas onde a incidência anual da doença oscila entre 20 a 130 casos/100.000 habitantes admitindo-se que seja uma doença subdiagnosticada. Pode afectar indivíduos de qualquer idade mas, em cerca de 25% dos casos, atinge crianças abaixo dos 15 anos. No nosso país é uma doença de notificação obrigatória. Entre 2010-2013 foram declarados 24 casos, 2 dos quais na faixa etária entre 5 e 14 anos.

A doença apresenta-se com maior incidência em dois períodos de idade: 5-10 anos e 35-55 anos, sendo que no primeiro grupo a doença é mais prevalente no sexo masculino, devendo-se provavelmente a maior prática de actividades ao ar livre por rapazes.

Quanto aos reservatórios naturais da doença, eles são múltiplos: ratos do campo, ungulados selvagens (raposa, javali), ou domésticos (cabra, vaca) e cães. A carraça, vector da doença para o homem, é mais pequena do que a carraça comum do cão, encontrando-se com maior frequência em animais selvagens do que em animais domésticos.

A maioria dos casos de doença ocorre entre Abril e Outubro, estando esta sazonalidade relacionada com o ciclo de vida do vector artrópode. O risco de transmissão do agente B. burgdorferi a partir da carraça infectada relaciona-se directamente com a duração da picada; ou seja, são necessárias mais de 24 horas de contacto do artrópode com o ser humano, considerando-se que o risco infeccioso é elevado a partir das 36-48 horas de duração do mesmo.

O risco associa-se ainda ao estado em que se encontra a carraça – larvar, ninfa ou forma adulta -, sendo a ninfa o principal vector da doença.

Não se encontrou relação directa entre doença de Lyme na gravidez e o aparecimento de defeitos congénitos no feto, nem está provado que o leite materno transmita o microrganismo.

Etiopatogénese

Os agentes em causa – Borrelia burgdorferi sensu latu possuem dupla membrana (externa e interna) e flagelos inseridos na membrana interna.

Foram descritas três proteínas major na membrana externa (designadas respectivamente OspA, OspB e OspC) e uma proteína flagelar designada 41 kDa, inserida na membrana interna. Estas proteínas, com pesos moleculares diversos, têm papel importante na resposta imune.

As diferenças quanto à estrutura molecular das diferentes espécies estão associadas a diferenças quanto a manifestações clínicas na Europa e Estados Unidos (por ex. frequência mais elevada de casos de radiculoneurite na Europa e de artrite nos Estados Unidos.

Na América do Norte, Borrelia burgdorferi sensu strictu é a única espécie causadora de doença.

Na Europa, são cinco as espécies responsáveis pela doença: Borrelia afzelli, Borrelia garinii, Borrelia burgdorferi, Borrelia spielmanii e Borrelia bavariensis, sendo as primeiras duas as mais prevalentes. Na Ásia, a espécie Borrelia garinii é a mais comum.

A bactéria pode ser isolada a partir do sangue, pele, líquor e líquido sinovial de doentes infectados, bem como a nível do intestino do vector – a carraça do género Ixodes.

O I. scapularis e I. pacificus são prevalentes nos EUA, o I. ricinus na Europa e o I. persulcatus na Ásia.

O alvo inicial da infecção causada pela B. burgdorferi é a pele, onde o espiroqueta pode ser depositado pela saliva ou pelo material fecal da carraça. Após um período de incubação de 3 a 31 dias, neste local da pele surge eritema cutâneo característico adiante descrito. Contudo, o espiroqueta pode ser injectado na corrente sanguínea através da saliva da carraça, atingindo vários tecidos e órgãos, aderindo às células, onde pode permanecer por longos períodos de tempo após a infecção inicial. Esta permanência explica os sintomas tardios.

Os espiroquetas não produzem toxinas. O aparecimento de sintomas, quer na fase precoce disseminada, quer na fase tardia, está directamente relacionado com os danos teciduais originados a partir da resposta imunológica desencadeada pela estimulação de mediadores da inflamação, como o factor de necrose tumoral (TNF), interferão-gama (IFN-δ), factor transformador de crescimento (TGF) e interleucinas (IL-1, IL-6, IL-8, IL-10).

Um dos aspectos do mecanismo de resposta imunológica a determinadas espécies de espiroqueta é a desactivação do complemento. Salienta-se também o recrutamento de macrófagos e neutrófilos para eliminar o espiroqueta.

Admite-se que o desenvolvimento de sintomas refractários da doença esteja relacionado com uma base imunogenética, sendo os indivíduos portadores dos genótipos HLA-DR2, DR3 e DR4 mais predispostos.

As alterações histológicas secundárias à agressão microbiana a doença de Lyme caracterizam-se por lesões inflamatórias contendo linfócitos, macrófagos e plasmócitos. Estes infiltrados inflamatórios podem ser observados na pele ou em qualquer dos órgãos atingidos, como o miocárdio ou o SNC. Também podem coexistir fenómenos de vasculite, o que sugere a presença do microrganismo na parede ou em redor dos pequenos vasos sanguíneos.

Manifestações clínicas

No que respeita às manifestações clínicas, consideram-se três estádios ou formas de apresentação: precoce (localizada e disseminada) e doença tardia e persistente.

Doença precoce localizada

No local da picada (entre 3 e 30 dias após a mesma) verifica-se uma lesão eritematosa macular ou papular (única).

Esta lesão, localizada, tem a forma de coroa circular (contorno redondo), aumenta de dimensão expandindo-se concentricamente, em dias ou semanas, podendo atingir um diâmetro entre 5 e 20 cm; tipicamente exibe, então, de fora para dentro, um aspecto em alvo com três zonas: bordo eritematoso em “anel”, zona intermédia mais clara, e pequena zona central concêntrica eritematosa rósea/eritematosa com tonalidade semelhante à do bordo externo circular. Por vezes a lesão, de contormo circular, exibe interiormente mais do que um anel circular de rubi, separado por aneis “pálidos”, isto é, de rubor menos acentuado ou com o aspecto de pele de cor normal.

O bordo externo “em anel” é habitualmente plano mas, por vezes, pode ser proeminente e endurecido. Raramente, existem vesículas ou zonas necróticas ao nível da pequena área circular central eritematosa.

Ao toque, a lesão aparenta temperatura mais elevada, sendo ocasionalmente pruriginosa ou dolorosa. Pode surgir em qualquer parte do corpo. As crianças mais pequenas são mais atingidas na cabeça e pescoço, enquanto as maiores, nas extremidades. (Figura 1)

A este tipo de lesão cutânea com expansão periférica e apagamento central é dado o nome de eritema migratório (eritema migrans), o qual evolui durante alguns dias, podendo persistir durante duas ou três semanas, regredindo posteriormente de forma gradual.

Esta forma clínica pode ser acompanhada de febre, mialgia, artralgia e cefaleia.

Como nota importante, salienta-se que em cerca de 1/3 dos doentes não há antecedentes precisos de picada, pelo que é essencial a suspeita clínica.

Doença precoce generalizada

Esta forma clínica, a mais frequente, caracteriza-se por lesões cutâneas múltiplas de eritema migrans atrás descrito, habitualmente de menores dimensões. Surge cerca de 3 a 12 semanas após a inoculação da bactéria a partir do vector artrópode.

A disseminação das lesões de eritema migrans corresponde à disseminação hematogénica do microrganismo.

Regra geral, está presente sintomatologia sistémica de maior intensidade em relação à doença localizada, como febre, cefaleias, artralgia e mialgia.

As manifestações neurológicas, nomeadamente de meningite asséptica, ocorrem em cerca de 8% dos casos, podendo coexistir com edema da papila e paralisia facial. Esta última, relativamente frequente na criança, persiste cerca de 2 a 8 semanas, e pode constituir a manifestação inicial e, por vezes, única, desta forma da doença de Lyme; regride na maioria dos casos.

FIGURA 1. Mácula circular em forma de alvo com tendência para ir aumentando de dimensões com a evolução, como que expandindo-se; neste caso, rubor acentuado na periferia, em “coroa” periférica e zona central mais “pálida”. (Arquivo pessoal do editor – JMVA)

Embora as alterações citoquímicas do LCR sejam semelhantes às encontradas na meningite vírica, em cerca de 90% das crianças com doença de Lyme verifica-se associação a neuropatia doutros pares cranianos para além do VIIº atrás referido; contudo, o curso da meningite da doença de Lyme é mais arrastado.

O compromisso cardíaco, raro na criança, traduz-se por graus variáveis de bloqueio auriculoventricular, miocardite, pericardite ou disfunção ventricular esquerda.

Como nota final, cumpre referir que, perante quadro de paralisia facial, a doença de Lyme deve ser equacionada, mesmo na ausência de outras manifestações.

Doença tardia

Esta forma clínica (classicamente associada a intervalo entre picada e início de sintomatologia > 2 meses) caracteriza-se pelo aparecimento de episódios recorrentes de artrite. Trata-se de artrite pauciarticular, envolvendo as grandes articulações, sendo o joelho atingido em cerca de 90% dos casos: são notórios edema e dor (não tão intensa como na artrite bacteriana) e sensação de calor sem rubor.

As manifestações de artrite podem ocorrer sem história inicial de doença, nomeadamente sem antecedentes de eritema migrans (ver atrás). Se a doença não for tratada, as manifestações de artrite podem regredir em semanas, voltando a surgir ulteriormente e a atingir progressivamente outras articulações; esta forma clínica recorrente surge em 50% dos casos não tratados.

Notas importantes: a)- embora o microrganismo B. burgdorferi tenha sido isolado de abortos, fetos mortos e nados-vivos com anomalias congénitas, nas respectivas placentas não foram detectados sinais de inflamação; de acordo com alguns patologistas, se existir doença de Lyme congénita, ela será muito rara; b)- B. burgdorferi não se transmite através do leite materno.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se no antecedente de picada de carraça com manifestações clínicas compatíveis, requerendo-se, no entanto, confirmação microbiológica ou serológica em todas as formas da doença.

A avaliação laboratorial global é pouco informativa. A velocidade de sedimentação elevada, o valor normal de leucócitos ou discretamente elevado, bem como o aumento moderado das aminotransferases séricas, não são orientadores do diagnóstico.

Quanto ao estudo serológico, importa salientar que este apenas deve ser realizado nas seguintes circunstâncias:

  • doente viajante ou residente em zona endémica de doença de Lyme;
  • factor de risco de exposição a picada;
  • sintomas compatíveis com estádio disseminado da doença.

Não está indicado estudo serológico nos casos de:

  •  eritema migrans como manifestação única;
  •  doentes assintomáticos em áreas endémicas.

Os anticorpos específicos IgM após infecção aguda com B. bugdorferi são detectáveis em geral 3-4 semanas após a infecção aguda com valor máximo cerca das 6-8 semanas, diminuindo depois (ou seja, na fase de aparecimento do eritema migrans não é ainda possível detectar anticorpos contra B. burgdorferi na maioria dos doentes).

Por outro lado, pode verificar-se elevação do valor de IgM durante tempo mais prolongado apesar do tratamento antimicrobiano.

Os anticorpos específicos IgG aparecem em geral pelas 6-8 semanas após início da infecção, atingindo valor máximo ao cabo de 4-6 meses, mantendo-se elevados indefinidamente; assim, como não desaparecem por completo após cura da doença, não têm utilidade para confirmar o sucesso terapêutico.

Nalguns casos de tratamento antimicrobiano muito precoce, poderá ser anulada a resposta com formação de anticorpos.

As técnicas mais sensíveis e específicas para detecção de anticorpos específicos incluem a imunofluorescência e o método ELISA; este último é responsável por maior número de falsos positivos devido à reacção cruzada com anticorpos para outros espiroquetas, varicela, mononucleose, bem como em casos de lúpus eritematoso sistémico. Nos casos de positividade de qualquer destas provas, a confirmação serológica deve ser realizada pela técnica Western-Blot.

Contudo, resultados de estudos recentes comprovam que, a partir de um determinado cut-off (> 3,0), o método ELISA tem um valor preditivo positivo muito elevado e dispensa o Western-Blot. Em estudo encontram-se outros testes, nomeadamente o VisE C6, em associação ou alternativa aos testes serológicos anteriores.

Quanto à confirmação microbiológica, nalguns laboratórios procede-se ao estudo molecular por PCR, cuja sensibilidade é baixa pelo facto de a concentração de bactérias ser baixa e associada a muitos falsos positivos.

Através de exames culturais, o isolamento de B. burgdorferi a partir do sangue, pele, líquor e líquido sinovial é um processo moroso e dispendioso (e por vezes invasivo), exigindo meios de cultura especiais como o de Barbour-Stoenner-Kelly e tempo superior a 4 semanas para que haja crescimento bacteriano; por outro lado, a percentagem de isolamento do agente em tais circunstâncias é baixa.

De salientar que o crescimento dos microrganismos Borrelia em cultura é extremamente lento, exigindo, para tal, meios especiais. Como se torna lógico depreender, tanto as provas serológicas como o exame cultural implicam a disponibilidade de laboratórios especializados.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da doença de Lyme, exceptuando no que respeita ao eritema migrans na sua forma típica, são inespecíficas. A forma mono ou pauci-articular de artrite poderá levantar a suspeita, quer de artrite séptica aguda, quer doutras causas de artrite tais como artrite reumatóide juvenil ou artrite pós-estreptocócica.

Por outro lado, a paralisia facial devida a doença de Lyme não se distingue da paralisia de Bell, assim como a meningite de Lyme não se distingue da meningite por enterovírus.

Considerando o quadro morfológico cutâneo de eritema migrans, há que salientar que, por vezes, o mesmo poderá ser confundido inicialmente com eczema numular, granuloma anular, manifestação cutânea no local de picada de insecto em geral, tinha ou celulite.

Tratamento

Na doença precoce localizada, a doxiciclina PO na dose de 4 mg/kg/dia (máximo 200 mg/dia) de 12/12 horas durante 14 a 21 dias é o antimicrobiano de escolha para crianças com idade superior a 8 anos.

Nas crianças com idade inferior a 8 anos está indicada a amoxicilina PO na dose de 50 mg/kg/dia (máximo 1,5 g/dia) de 8/8 horas durante 14-21 dias.

Nos casos de alergia à penicilina, constituem alternativas a cefuroxima axetil (PO) na dose de 30-40 mg/kg/dia (máximo 1 g/dia), em duas doses.

Na doença precoce disseminada e na doença tardia, com eritema migrans múltiplo, paralisia facial isolada (ou paralisia de outros nervos cranianos), ou artrite não complicada, recomenda-se o mesmo regime terapêutico aplicável à doença localizada, entre 14 a 21 dias. Nos casos de paralisia dos nervos cranianos os corticóides não deverão ser utilizados.

Na cardite, meningite ou encefalite, a antibioticoterapia (com a duração de 10 a 28 dias) deverá ser IV com:

  • ceftriaxona (50-75mg/kg/dia, máximo 2 g/dia).

Nos casos de artrite recorrente ou persistente (para além de 2 meses) aconselha-se duração de 28 dias e eventualmente segundo curso terapêutico.

Notas importantes:

    • a resposta ao tratamento poderá ser demorada persistindo sinais e sintomas durante várias semanas;
    • existe risco de fotossensibilidade em doentes durante tratamento com doxiciclina;
    • nalguns doentes (até 15%) verifica-se reacção de Jarisch-Herxheimer após início do tratamento (febre, sudação, e mialgias).

Prognóstico

Nas crianças com doença de Lyme tratada, o prognóstico é excelente.

De salientar que, com a regressão dos sinais de eritema migrans após tratamento precoce, não se verifica, em geral, o desenvolvimento de fases ulteriores da doença (evolução para doença tardia). (ver atrás)

Quer nos casos clínicos que cursam com meningite, quer nos casos de artrite, a resolução clínica é em geral completa e sem sequelas se o tratamento for adequado.

Prevenção

A medida preventiva mais eficaz implica o uso de vestuário adequado aquando da permanência em áreas endémicas.

Os repelentes de insectos, como o DEET, produzem efeito temporário; e em doses elevadas podem provocar toxicidade para a criança. As permetrinas matam o vector, devendo ser aplicadas somente à superfície da roupa.

O banho ajuda à remoção de prováveis vectores. Medidas ambientais, como o uso de acaricidas em zonas endémicas, poderão ter igualmente algum efeito protector.

Como a maioria das pessoas reconhece a presença da carraça, esta será removida nas primeiras 36 horas de adesão, ou seja, antes de haver risco elevado de transmissão da bactéria (com pinça ou, na falta dela, por extracção manual/dedos em pinça, na vertical, capturando-a sob a roupa, pela região cefálica).

De acordo com um estudo realizado numa zona endémica demonstrou-se que, após picada de carraça, uma dose única profiláctica de doxiciclina PO 200 mg preveniu a doença de Lyme em 87% de casos. Contudo, este estudo decorreu em adultos, pelo que continua a não recomendar-se o uso de antibióticos profilácticos em crianças..

Actualmente, não existe vacina disponível.

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BOTULISMO

Definição e importância do problema

O botulismo é uma afecção rara e potencialmente fatal caracterizada por paralisia flácida aguda simétrica e descendente, não acompanhada de febre e afectando tipicamente os pares cranianos, causada por uma neurotoxina produzida por Clostridium botulinum (e, mais raramente, Clostridium butyricum e Clostridium baratii).

Como consequência surge bloqueio irreversível dos receptores pré-sinápticos colinérgicos da junção neuromuscular. Trata-se, pois, de bactérias anaeróbias Gram-positivas do género Clostridium, produtoras de esporos.

O termo botulismo, derivando do latim botulus significando “salsichas ou enchidos em geral”, explica-se pelo facto de, em 1820, na Alemanha, se ter relacionado pela primeira vez um quadro de paralisia com “intoxicação com salsichas ingeridas em estado de deterioração”. A taxa de mortalidade varia entre 5% e 25%.

Sistematização

Estão descritas actualmente 6 formas clínicas distintas de botulismo de acordo com o seu modo de transmissão:

  1. botulismo alimentar (através de alimentos contaminados com a toxina pré-formada, por exemplo, em conservas, produtos desidratados, presunto, azeitonas, mel, etc.);
  2. botulismo infantil (através da ingestão de esporos de Clostridium, colonização no tracto gastrintestinal e libertação da toxina in vivo);
  3. botulismo associado a ferimentos (através de infecção de lesão cutaneomucosa, – como nos casos de tétano – com produção da toxina in vivo);
  4. botulismo entérico forma-adulta (idêntico à forma clássica infantil);
  5. botulismo inalado (situação rara, com toxina aerossolizada, em contexto de potencial bioterrorismo; estima-se que um grama de toxina pode matar pelo menos 1,5 milhões de pessoas); e
  6. botulismo iatrogénico (por sobredosagem na administração da toxina botulínica com fins cosméticos ou terapêuticos).

Neste capítulo é dada ênfase às formas 1, 2 e 3.

Aspectos epidemiológicos

As formas alimentar e infantil, manifestadas em geral como pequenos surtos, são as mais frequentes em todo o mundo (respectivamente 70% e 25%), com o maior número de casos descritos nos Estados Unidos da América (EUA). Dados dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) estimam ocorrência média anual de 110 casos. Em cerca de 95% dos casos da forma infantil são atingidas crianças entre as 3 semanas de vida e os 6 meses de idade e com um “pico” entre os 2 e 4 meses. A forma associada a ferimentos é muito rara, com menos de 400 casos notificados a nível mundial.

Na Europa, os registos do sistema de vigilância das doenças infecciosas de declaração obrigatória (DDO) são heterogéneos e com limitações dependentes dos notificantes, o que condiciona a precisão dos dados estatísticos. Neste continente, nos últimos nove anos (2007-2015) foram reportados 1029 casos (~ 114/ano), com distribuição variável.

Em 2016, no âmbito da União Europeia foram emitidos alertas a relembrar o risco de alguns alimentos potencialmente contaminados: salmão fumado, sopas embaladas, molho de mostarda caseiro e feijão branco embalado.

Embora o botulismo possa ocorrer em todas as zonas do mundo, os surtos são mais frequentes nas regiões em que a preservação da fruta, vegetais e outros bens de consumo alimentar é menos comum, como nos países tropicais.

Em Portugal, o botulismo é uma DDO desde 1999, devendo proceder-se à respectiva notificação à Direcção Geral da Saúde (DGS). No ano de 2000, em contexto de consumo de fumeiros caseiros no Norte do país e na Região Autónoma da Madeira foram notificados 31 pacientes.

De acordo com dados da DGS, entre 2013 e 2016, foram notificados 14 casos (entre < 1 ano e > 75 anos), correspondendo apenas 1 caso abaixo dos 18 anos (ano de 2015) constam (dos dados do sistema de vigilância europeia) 26 casos nacionais, incluindo 6 casos recentes, em 2015.

Etiopatogénese

Microbiologia

Reafirmando que o botulismo é provocado na quase totalidade dos casos por Clostridium botulinum – um grupo heterogéneo de bacilos Gram-positivos, formadores de esporos e anaeróbios obrigatórios – realça-se que se trata de microrganismos ubíquos, com habitat natural no solo, pó e sedimentos marinhos, facilmente isolados duma variedade de produtos agrícolas e alimentos frescos, cozinhados ou processados. Os esporos são resistentes ao calor e sobrevivem a 100ºC por várias horas, sendo destruídos acima dos 120ºC durante 5 minutos. Em determinadas condições (ambiente anaeróbio, água com pH ácido baixo 4 e temperatura entre os 25-37ºC) os referidos esporos germinam e crescem, produzindo neurotoxinas. Por outro lado, esta toxina – provavelmente o “veneno” mais potente conhecido, donde o papel do seu aproveitamento para o bioterrorismo – é termolábil e facilmente destruída acima dos 85ºC, ou fica inactiva em água com cloro em apenas vinte minutos, ou em água fresca por três a seis dias.

Foram indentificadas 8 estirpes de C. botulinum de acordo com a especificidade antigénica, sendo que cada uma das 8 estirpes produz respectivamente um tipo específico de toxina (com as designações de A, B, C, D, E, F, G, H). O botulismo humano produz-se quase sempre pelas toxinas A, B, E e raramente pelas F, G e H. As toxinas E e F são também produzidas por Clostridium baratii e Clostridium butyricum. Ou seja, as toxinas patogénicas para o ser humano são as A, B, E, F, G e H. Esta última foi descrita pela primeira vez em 2013.

Patogénese

A toxina botulínica é uma proteína com cadeia de dupla hélice, libertada como um precursor polipeptídico que origina, por clivagem através das proteases, uma neurotoxina composta por uma cadeia leve de 50 KDa e uma cadeia pesada de 100 KDa.

Após a sua ingestão é absorvida inicialmente no estômago (resistindo à acidez gástrica), e posteriormente no intestino delgado e cólon. Distribuindo-se por via hematogénica, atinge as sinapses colinérgicas com consequente bloqueio pré-sináptico, impedindo a libertação de acetilcolina. Como consequência verifica-se paralisia flácida. De salientar que a toxina exerce também bloqueio da acetilcolina ao nível do sistema autonómico, induzindo sintomas de boca seca e sudação reduzida.

Mais pormenorizadamente, importa referir que o mecanismo preciso da acção da toxina compreende um processo com várias etapas que incluem a ligação irreversível da cadeia pesada a receptores específicos na terminação (só a colinérgica) pré-sináptica dos nervos periféricos e na placa motora. A ligação faz-se através da chamada sinaptotagmina II.

Uma vez no interior da célula (isto é, após endocitose), a cadeia leve, uma metaloprotease de zinco, impede a fusão das vesículas pré-sinápticas com a membrana, o que evita a libertação de acetilcolina (neurotransmissor) e provoca a “desinervação” funcional do músculo. A recuperação requer a formação de novas terminações pré-sinápticas (em cerca de 6 meses).

Sendo afectadas a união motora e autonómica, pode deduzir-se o atingimento de neurónios motores e sensitivos, bem como o bloqueio da inervação colinérgica do músculo liso e estriado, assim como das glândulas salivares, lacrimais e sudoríparas.

Está provado que a toxina pode atravessar a barreira hemato-encefálica, quer por via da disseminação sistémica, quer por transporte axonal anterógrado ou retrógrado. A morte resulta frequentemente dos efeitos paralíticos sobre a via respiratória.

Alimentos como o peixe, a carne, os vegetais, as frutas e os molhos, sobretudo se em ambiente com pH ácido baixo, representam o meio propício para a multiplicação de Clostridium botulinum e a produção de toxina. Também os alimentos embalados e processados para distribuição comercial, mesmo que selados em sacos de plástico e refrigerados, podem constituir um risco considerável.

Com implicações práticas no que respeita à forma infantil de botulismo, importa referir que em estudos prospectivos se demonstrou efeito benéfico e protector do leite humano, traduzido nomeadamente por manifestações clínicas mais ligeiras do que nos pacientes alimentados com fórmula. Por outro lado, também se verificou que nas crianças amamentadas, a suplementação com ferro antecipa o início da doença.

A doença não confere imunidade.

Manifestações clínicas

Aspectos gerais 

Como foi referido anteriormente, o botulismo traduz-se tipicamente por paralisia flácida descendente e simétrica surgida em horas ou dias. A gravidade pode variar de doente para doente: entre obstipação e hipotonia ligeira, e tetraparésia flácida.

Nos casos de C. baratii, produtor da toxina F, o quadro clínico ocorre em idades muito jovens, com início rápido e maior gravidade; em tal contexto, contudo, a paralisia tem duração inferior à da provocada por C. botulinum.

Em crianças mais velhas, com botulismo clássico ou associado a ferimentos, o início de sintomas obedece a uma sequência: diplopia, visão turva, ptose, xerostomia, disfagia, disfonia, disartria e reflexo córneo diminuído.

De referir que a assimetria dos sinais, o carácter ascendente e a ausência de atingimento cervical e facial afastam a hipótese de botulismo.

Botulismo alimentar

Em cerca de 30% dos casos o doente começa com náuseas, vómitos ou diarreia cerca de 12-36 horas após a ingestão de alimentos contaminados; contudo, estes sintomas poderão surgir tão precocemente como às duas horas ou, tardiamente, ao oitavo dia. Na fase seguinte surge obstipação e sintomas motores e anticolinérgicos, iniciando-se pelos nervos cranianos: diplopia, disartria, disfagia e disfonia. A visão é afectada, tornando-se “nebulosa” por alteração da acomodação, surgindo também secura bucal e ocular paralelamente a debilidade muscular/paralisia flácida descendente rapidamente progressiva, retenção urinária e fecal, assim como hipotensão ortostática. O paciente está apirético, excepto se houver outra infecção secundária, mais frequentemente, pneumonia.

Os raros casos provocados pela colonização por C. butyricum cursam com distensão abdominal, podendo conduzir ao diagnóstico de abdómen agudo.

Botulismo infantil

As manifestações clínicas, correspondendo a 50% de todos os casos, podem surgir pelas 7 a 13 semanas de vida. Geralmente apirética, o primeiro indício na criança é a obstipação. Os pais notam hipoactividade motora, letargia, hipotonia cervicocefálica (que pode passar despercebida se a criança não for colocada em posição vertical), incapacidade para alimentar-se por hiporreflexia da sucção e choro fraco. Em média, nos quatro a cinco dias seguintes surge paralisia flácida descendente, dificuldade respiratória e sintomas anticolinérgicos.

O exame objectivo ocular – de grande importância para o diagnóstico – evidencia, em 50%-80% dos casos, ptose palpebral, oftalmoplegia e pupilas hiporreactivas. Nalguns casos o reflexo pupilar pode manter-se intacto até estádios avançados.

Esta forma clínica pode evoluir de forma fulminante, conduzindo a morte súbita.

Pode ocorrer paragem respiratória súbita por acumulação de secreções não deglutidas e paralisia da musculatura faríngea. Poderá surgir febre, geralmente provocada por complicação, como infecção bacteriana secundária, em geral pneumonia de aspiração.

Salienta-se que nos casos menos graves os sinais de botulismo são subtis e poderão não ser diagnosticados.

Botulismo associado a ferimentos

Difere do botulismo alimentar pela ausência de sintomas gastrintestinais e período de incubação superior ao das restantes formas clínicas (4-14 dias). Inicialmente foram descritos casos no contexto de feridas perfurantes, abcessos subcutâneos ou infecções de tecidos profundos. Ultimamente, têm sido descritos como consequência de abrasões, lacerações, incisões cirúrgicas e até fracturas expostas. A febre pode estar presente, sendo que os sinais de infecção poderão estar ausentes.

Diagnóstico

Como com qualquer tipo de patologia, uma anamnese criteriosa seguida de exame físico completo são fundamentais.

Admitida a hipótese clínica de botulismo, na base de suspeita fundamentada, importa obter a confirmação laboratorial definitiva, o que requer métodos especializados e morosos (inoculação da neurotoxina em ratinhos).

Outros métodos de confirmação incluem a demonstração da presença da toxina no soro do doente, ou dos esporos em alimentos, material de feridas, fluidos ou fezes.

A emissão da toxina nas fezes pode durar meses, em especial em lactentes.

Dado que o microrganismo C. botulinum não faz parte da microbiota intestinal na espécie humana, o seu isolamento nas fezes pode considerar-se patognomónico.

O electromiograma mostra padrão característico, mas não é justificado por ser doloroso e eventualmente não conclusivo.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se com outras formas de fraqueza muscular com a síndroma de Guillain-Barré (que é ascendente), paralisia por picada de carraça (a avaliar pela história clínica), doenças metabólicas (em que há vómitos, hipoglicémia e acidose), hipotiroidismo (de evolução mais lenta), a Mistenia gravis (limitada habitualmente a ptose palpebral intermitente), a doença de Werdnig-Hoffman (que respeita os pares cranianos), o enfarte cerebral (localizado), a síndroma de Miller-Fisher, a poliomielite, a intoxicação por metais pesados, por organofosforados e por mariscos.

Há determinados exames complementares com utilidade no diagnóstico diferencial com outras causas de paralisia.

O líquido cefalorraquidiano é normal no botulismo, ao invés do que acontece noutro tipo de patologia do SNC. Na síndroma de Guillain-Barré é muitas vezes normal no início da doença.

Exames de imagem do cérebro, medula espinhal e tórax podem mostrar sinais de hemorragia, inflamação ou neoplasia.

O teste com cloreto de edrofónio reverte por curto período de tempo a paralisia em doentes com Miastenia gravis e em alguns com botulismo.

A inspecção da pele e do couro cabeludo pode revelar uma carraça.

No caso de suspeita de intoxicação por organofosforados, esta deve ser rapidamente confirmada pela premência do uso do antídoto.

Prognóstico

O botulismo poderá requerer internamento hospitalar durante 4 a 8 semanas. A taxa de mortalidade é cerca de 1% a 8%. Nas formas graves poderão surgir sequelas neurológicas. Parece haver maior incidência de estrabismo nas crianças não tratadas.

Nos tipos de botulismo alimentar ou associado a ferimentos, quanto menor a idade, melhor o prognóstico. De salientar que há casos descritos de fadiga crónica e de fraqueza muscular após um ano do diagnóstico.

Nas formas ligeiras a recuperação é total.

Tratamento

O tratamento de qualquer tipo de botulismo implica as seguintes medidas:

Suporte respiratório, nutricional, hidroelectrolítico e cuidados de enfermagem. Em cerca de 50% dos casos de botulismo infantil é necessária a assistência ventilatória/entubação orotraqueal, muitas vezes realizada de forma antecipada e profiláctica nas seguintes situações: reflexo da tosse diminuído e obstrução da via aérea com a acumulação de secreções.

A alimentação deve ser administrada por sonda nasogástrica ou nasojejunal até recuperação da força muscular e da coordenação necessárias à amamentação ou leite por tetina. O aleitamento materno deve ser mantido nas crianças com botulismo.

Deve promover-se o estado de hidratação e usar laxantes como a lactulose para melhorar os sintomas de obstipação.

Em pacientes com < 1 ano de idade: Antitoxina através de administração precoce (sem esperar pelo diagnóstico definitivo) de imunoglobulina humana específica intravenosa /IGIV (BabyBIG®), numa dose única de 50-100 mg/kg para neutralização da neurotoxina livre. Especialmente indicada na forma clínica de botulismo infantil causada pelas toxinas A ou B, os estudos mostram que esta abordagem reduz a gravidade, a duração e a mortalidade da doença. A referida imunoglobulina, com um custo de 45.000 dólares, não se encontra aprovada para uso na Europa. Em caso de necessidade deve ser importada dos EUA (California Department of Health Services): http://www.infantbotulism.org/contact/index.php).

Em pacientes com > 1 ano de idade ou no tipo de botulismo aerossolizado:

Antitoxina equina heptavalente (A-G), disponível nos EUA através dos CDC.

Notas importantes:

    • O uso de antibióticos não está recomendado no BI pelo risco de lise bacteriana no intestino com libertação e absorção de grandes quantidades de neurotoxina. Mais precisamente, há a salientar que os aminoglicosídeos, provocando bloqueio neuromuscular, estão contraindicados por agravamento da parésia.
    • É fundamental evitar o uso de sedativos ou depressores do SNC a fim de manter o impulso respiratório central eficaz.

Prevenção

No botulismo alimentar, a forma mais eficaz consiste no cumprimento das medidas de segurança alimentar e na sua divulgação junto dos agentes responsáveis, bem como na evicção dos alimentos considerados suspeitos. Nos casos de confecção e armazenamento em meio doméstico, os alimentos devem ser aquecidos, pelo menos a 85ºC durante mais de 5 minutos.

No BI, o único factor sobre o qual se pode intervir diz respeito à evicção do consumo de mel em crianças abaixo de um ano idade, uma vez que a inalação de esporos do solo ou poeira nem sempre é passível de prevenção.

No botulismo associado a ferimentos, a melhor prevenção é a evicção do uso de drogas ilícitas injectáveis e o tratamento precoce e adequado das feridas traumáticas com lavagem, desbridamento cirúrgico e insituição de antibioticoterapia adequada.

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TUBERCULOSE

Aspetos epidemiológicos e importância do problema

A tuberculose (TB) resulta da infecção por Mycobacterium tuberculosis (Mtb) ou bacilo de Koch (BK), uma micobactéria descoberta por Robert Koch em 1882. Mais de um século depois, a TB continua a ser uma das doenças infecciosas com maior morbimortalidade. Segundo estimativas da OMS, cerca de um terço da população mundial está infectada com Mtb. Desde o ano 2000 que globalmente a taxa de incidência de TB diminuiu, apenas cerca de 1,4% ao ano, mantendo-se como uma das 10 principais causas de morte a nível global.

A importância da TB como doença pode ser avaliada em termos de incidência – número de casos novos e de recidivas durante determinado período de tempo, geralmente um ano; prevalência – número de casos de TB em determinado ponto no tempo; e mortalidade – número de mortes por TB num determinado período de tempo, geralmente um ano. A taxa de letalidade é a relação entre o número de mortes por TB e o número total dos respectivos casos numa dada população.

Em 2015, segundo a OMS, ocorreram cerca de 10,4 (8,7-12,2) milhões de novos casos, o equivalente a 142 novos casos por 100.000 habitantes. Um milhão dos novos casos ocorreu em crianças. O maior número de casos registou-se na Ásia (61%) e em África (26%), enquanto a Europa representou apenas 3% do total de casos. Cerca de 11% (9%-14%) dos novos casos ocorreram em pessoas infectadas com VIH, sendo as taxas de coinfeção mais elevadas (até 50% em algumas regiões) registadas em África. O número de novos casos de tuberculose multirresistente (TBMR), resistente em simultâneo à isoniazida e rifampicina, foi de 480.000, e o de resistentes apenas à rifampicina, de cerca de 100.000. Apesar da diminuição de cerca de 22% do número de mortes entre 2000 e 2015, as estimativas apontam, ainda, para 1,4 milhões de óbitos em indivíduos seronegativos para VIH e de 0,4 milhões em indivíduos coinfetados com VIH. 

Em Portugal, as taxas de incidência têm diminuído progressivamente fixando-se, pela primeira vez, abaixo de 20 novos casos por 100.000 habitantes (18,6/100.000), em 2015; neste último ano foram notificados 2.089 casos, número que engloba 1.925 casos novos.

Em 2018, a taxa de notificação foi de 16,6 casos por 100 mil habitantes[i]. Os distritos de Porto e Lisboa são os distritos com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm acima dos 20 casos por 100 mil habitantes, 25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respetivamente.

Também, em 2018 a idade mediana dos doentes foi de 49 anos. Foram notificados 34 casos de tuberculose em crianças com menos de 6 anos de idade, correspondendo a uma taxa de incidência neste grupo etário de 6,59 casos/100 mil crianças dos 0 aos 5 anos. Foram identificados 4 casos de formas graves de tuberculose, todas em crianças sem BCG e 3 com critérios individuais para vacinação.

Em 2005 tinham sido notificados 3.543 casos. No entanto, a distribuição de casos notificados é bastante assimétrica, sendo os distritos mais afectados os de Lisboa (627), Porto (551), Braga (157), Setúbal (135) e Aveiro (108). O pico de incidência ocorreu no grupo etário dos 45-54 anos (418/2.089; 19,4%) sendo que apenas 22 casos (1%) foram notificados em crianças e adolescentes com menos de 15 anos. O número total de casos de tuberculose multirresistente (TB-MR) tem vindo a diminuir, tendo sido notificados 18 casos em 2015, em comparação com 40 casos em 2000. Os quatro casos de tuberculose extensivamente resistente (TB-XDR) foram todos notificados na região de Lisboa e Vale do Tejo. O “pico” de casos de TB-XDR verificou-se em 2004, com 13 notificações.

A Figura 1 mostra as taxas de notificação de Tuberculose em Portugal, por distrito, em 2018. Como se pode verificar, os distritos de Porto e Lisboa são aqueles com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm com valores acima dos 20 casos por 100 mil habitantes (25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respectivamente).

De entre as comorbilidades que configuram risco para tuberculose, devemos realçar a infecção por vírus de imunodeficiência humana (VIH). É reconhecida a necessidade de rastreio de todos os doentes com tuberculose para a infecção por VIH, dado o impacte desta comorbilidade no resultado de tratamento da tuberculose. O rastreio de infecção por VIH, foi efectuado em 87,9% dos doentes com tuberculose. Verificou-se que 8,8% dos doentes com tuberculose eram também VIH positivo.

Na população geral, importa referir outros factores de risco com doenças crónicas, nomeadamente diabetes (5,81%), doença neoplásica (6%), doença pulmonar obstrutiva crónica (4,23%).

Fonte: Direcção Geral da Saúde, 2020

FIGURA 1. Taxas de notificação de tuberculose em Portugal, ano 2018.

Os distritos de Porto e Lisboa são os distritos com mais alta taxa de notificação e os únicos do País que se mantêm acima dos 20 casos por 100 mil habitantes (25,3 e 23,7 casos por 100 mil habitantes, respetivamente.

Etiopatogénese

As cinco micobactérias que integram o complexo M. tuberculosis são: M. tuberculosis hominis, M. bovis, M. africanum, M. microti e M. canetti. Os agentes patogénicos mais importantes para o Homem são M. tuberculosis e M. tuberculosis bovis. M. tuberculosis é um bacilo não móvel, não formador de esporos, aeróbio, cuja parede celular apresenta um elevado conteúdo de lípidos de alto peso molecular. Cora mal com o método de Gram e, quando corado com o método de Zhiel-Nielsen, resiste à descoloração com álcool e ácido; daí a designação de bacilo ácido-álcool resistente. As micobactérias crescem lentamente (três a seis semanas) em meio de cultura sólido específico, meio de Lowenstein. Os métodos radiométricos culturais (Bactec®, meio líquido) permitem diagnósticos mais precoces, em cerca de sete a 14 dias. Após o crescimento bacteriano em meio sólido ou líquido, a identificação da espécie pode efetuar-se através de provas de hibridização dos ácidos nucleicos. A infecção humana com M. bovis é rara nos países tecnicamente avançados, em que se procede à pasteurização do leite. Embora a transmissão se possa fazer, como no M. tuberculosis hominis por via inalatória, em regra, M. bovis é veiculado por produtos lácteos (via digestiva), podendo invadir os linfáticos da orofaringe ou penetrar na mucosa intestinal.

Tuberculose em idade pediátrica define-se genericamente como o processo mórbido infeccioso originado por micobactérias pertencentes ao complexo Mycobacterium tuberculosis (ver atrás) ocorrendo em indivíduos com menos de 18 anos de idade. A TB pediátrica é um “acontecimento-sentinela” que indicia o contacto da criança com um adulto ou adolescente que elimina e propaga bacilos: a transmissão do bacilo a partir de paciente bacilífero é eficaz se houver convivência estreita e mantida mais de 4 horas/dia no mesmo habitáculo fechado.

A designação de TB primária (ou primoinfecção tuberculosa) refere-se ao conjunto de manifestações biológicas e clínicas, que podem ou não ser demonstradas por imagem radiográfica, aquando da infecção por Mtb num indivíduo até então indemne da infecção.

Reiterando o que foi atrás referido, na maioria dos casos (> 95%) a contaminação faz-se por via respiratória. Com efeito, a transmissão da TB é inter-humana, por inalação de pequenas partículas aerossolizadas, de diâmetro inferior a 5 μm, provenientes de um indivíduo doente.

As partículas contendo Mtb atingem sobretudo alvéolos das áreas mais ventiladas dos pulmões (vértices pulmonares no adulto, porções basais na criança), desencadeando um processo inflamatório parenquimatoso que culmina na formação de granuloma classicamente chamado foco de Ghon. Os bacilos são rapidamente fagocitados pelos macrófagos alveolares continuando, no entanto, a multiplicar-se no interior dos mesmos.

Cerca de 4-8 semanas após a inalação de Mtb, os linfócitos T sensibilizados começam a libertar linfocinas, as quais activam os macrófagos e incrementam a destruição intracelular dos microrganismos inalados.

A resposta inflamatória resulta no recrutamento para o local da infecção de outras células mononucleares como monócitos, macrófagos e linfócitos. Os macrófagos diferenciam-se em macrófagos espumosos, macrófagos epitelióides e células gigantes multinucleadas delimitando o núcleo do granuloma, constituído por macrófagos infectados. Nesta fase, após indução da imunidade adaptativa, o granuloma está rodeado à periferia por uma camada constituída sobretudo por linfócitos T e B. Outras células como neutrófilos, células dendríticas, células natural killer e fibroblastos estão, também, presentes no granuloma.

Este equilíbrio entre a infecção e a resposta do hospedeiro pode persistir indefinidamente, ficando os bacilos confinados apenas ao centro do granuloma, não se desenvolvendo doença (infecção latente).

No entanto, se a infecção progredir, a destruição das células do granuloma origina a necrose caseosa que pode resultar na cavitação do referido granuloma com consequente libertação de bacilos na via aérea.

Macrófagos infectados do granuloma primário podem originar granulomas secundários, no pulmão ou outros órgãos, contribuindo para a disseminação da infecção. Os gânglios linfáticos regionais são atingidos por macrófagos infectados através dos vasos linfáticos, originando uma reação inflamatória local.

O conjunto do granuloma primário e dos gânglios hilares e paratraqueais aumentados de volume é designado por complexo primário tuberculoso. Na infecção primária pode verificar-se compressão brônquica por gânglio, erosão brônquica e disseminação da infeção por via endobrônquica (~ 3-9 meses depois), extensão parenquimatosa para áreas adjacentes do pulmão como a pleura (com derrame pleural; ~ 3-7 meses), disseminação linfática ou hematogénica (~ 1-3 meses a dois anos) com disseminação pulmonar (miliar) ou compromisso de outros órgãos, incluindo meninges, rins, medula óssea, cérebro e tracto gastrintestinal. As manifestações de doença óssea surgem, em regra, mais de um a três anos após a infecção primária e as de doença renal mais de cinco a sete anos depois. De salientar que poderá haver disseminação hematogénica multiorgânica.

Cerca de 8 a 12 semanas após a infecção primária pode detectar-se uma resposta de hipersensibilidade retardada às proteínas de Mtb demonstrável classicamente pela prova tuberculínica ou intradermorreacção de Mantoux evidenciando alergia/prova de Mantoux alérgica (ver adiante). Se anteriormente estava documentada anergia através desta prova, diz-se que ocorreu viragem tuberculínica.

Após a infecção primária, os focos de infecção contendo pequeno número de bacilos e em fase de não replicação (latentes) podem sofrer fibrose. No entanto, pode ocorrer reactivação destes focos, nomeadamente, em situações de: imunossupressão, mesmo que transitória, infecção por VIH, diabetes, insuficiência renal terminal, desnutrição, crianças com menos de cinco anos (especialmente lactentes) e infecção intercorrente (por ex. sarampo). O risco de desenvolvimento de doença após a infecção primária vai decrescendo com a idade, sendo maior nos primeiros dois anos.

Sob o ponto de vista da cronologia de eventos, sintetiza-se a evolução natural da infecção:

  1. Exposição – a criança teve contacto com um adulto ou adolescente com TB pulmonar bacilífera; a prova tuberculínica é negativa (mais propriamente, anérgica), a radiografia de tórax é normal e a criança não apresenta sinais ou sintomas de doença;
  2. Tuberculose infecção ou tuberculose latente – na grande maioria dos casos os bacilos mantêm-se em fase latente, não replicativa, sendo o risco de evolução determinado por circunstâncias do meio e do hospedeiro; nesta fase a prova tuberculínica/intradermorreacção de Mantoux(*) evidencia alergia ou é alérgica, ou as provas imunológicas IGRA (Interferon-Gamma Release Assay) são positivas, mas não se observam sinais ou sintomas de doença; (ver adiante)
  3. Tuberculose doença – as manifestações clínicas ou radiológicas causadas pela infecção por Mtb tornam-se evidentes, o que constitui um “fracasso” imunológico após infecção primária;
  4. Tuberculose latente não tratada – poderá evoluir para à tuberculose doença em ~ 43% das crianças de idade inferior a um ano, em ~ 24% das crianças entre um e cinco anos, e em ~ 5% a 15% dos adolescentes com idade superior a 15 anos.

(*) Nota: a prova tuberculínica ou intradermorreacção de Mantoux realiza-se do seguinte modo: injecção intradérmica de 0,1 mL de tuberculina PPD (Purified Protein Derivate) no 1/3 médio da região ântero-lateral do antebraço esquerdo, paralelamente ao eixo, com bisel da agulha (25-26G) para cima, até se obter pápula de 5-8 mm, e pele em “casca de laranja”. Verificação do tipo de reacção após 48-72 horas com medição da induração (não do eritema). Se não se verificar qualquer reacção, diz-que a prova foi anérgica. (ver Quadros 3 e 8)

Factores de risco

Por cada criança com TB há, pelo menos, um adulto a eliminar e propagar bacilos e, por cada adulto nestas condições, poderá haver uma ou mais crianças infectadas. Este é o conceito do binómio adulto-criança. Assim, o factor mais importante de infecção por Mtb na criança é o contacto com um adulto ou adolescente com infecção tuberculosa. A progressão para doença activa após um contacto depende da interacção entre factores do meio e do hospedeiro (Quadros 1 e 2).

QUADRO 1 – Factores do meio: características da fonte infectante e magnitude do inóculo.

    • Os adultos com exame directo positivo são mais contagiosos do que aqueles em que o Mtb é detectado apenas na cultura da expectoração.
    • As lesões cavitárias (cavernas) e a tosse aumentam o risco de disseminação.
    • O contacto íntimo e mantido com doente, e a coabitação de muitos indivíduos em espaço exíguo, aumentam o risco de infecção.
    • A co-infecção por VIH/SIDA condiciona situações de maior contágio, mesmo que não existam lesões cavitárias.

QUADRO 2 – Factores do hospedeiro: maior probabilidade de infecção e de progressão para doença activa.

    • O risco de progressão para doença activa é inversamente proporcional à idade.
    • A má-nutrição, a co-infecção com VIH, as doenças crónicas como insuficiência renal, hepática ou diabetes mellitus, a terapêutica com imunossupressores, ou doenças que se acompanham de imunossupressão temporária, como o sarampo, são factores que favorecem a evolução para tuberculose-doença.
    • O risco de progressão para tuberculose extrapulmonar (nomeadamente meníngea) é maior nas crianças de idade inferior a um ano.
    • O risco de progressão para tuberculose extrapulmonar (nomeadamente meníngea) é maior no primeiro ano após o início do processo de tuberculose-infecção.

Manifestações clínicas

Na maioria dos casos de TB, as manifestações consideradas clássicas como febre prolongada, pneumonia de evolução arrastada, anorexia, perda de peso, tosse persistente, hemoptise, etc. relacionam-se com doença de evolução avançada; nas crianças mais jovens existe maior probabilidade de sintomas vagos e inespecíficos, tais como tosse, febre, perda ou não progressão ponderal, mal-estar, adinamia, vómitos, diarreia e, raramente, hipersudorese noturna.

Em 27 doentes com TB internados na Unidade de Infecciologia do Hospital de Dona Estefânia, Lisboa, no período de dois anos (2004-2005) o diagnóstico de TB foi admitido como primeira hipótese em 15, tendo em conta o conhecimento da epidemiologia intrafamiliar. Dos restantes, os motivos de internamento foram diversos, tais como: febre, vómitos, diarreia, astenia, mau estado geral, alterações do estado de consciência, dificuldade respiratória e pneumonia. De salientar que sintomas vagos e persistentes em contexto epidemiológico sugerindo tuberculose, obrigarão à realização de exames complementares no sentido de excluir ou confirmar o diagnóstico.

Duas situações particulares, relacionáveis com fenómeno de hipersensibilidade mediada por células, poderão indiciar TB primária: o eritema nodoso e a ceratoconjuntivite flictenular.

O primeiro traduz-se pelo aparecimento de nódulos e placas de 1-5 cm de diâmetro, dispostos tipicamente e de modo grosseiramente simétrico sobretudo ao nível das regiões pré-tibiais, mas podendo surgir em outras localizações. (ver capítulo na Parte sobre vasculites)

A conjuntivite flictenular caracteriza-se por grupos de pequenos nódulos amarelo-acinzentados no limbo, na córnea ou na conjuntiva bulbar, persistindo por vários dias e, por vezes, com carácter recorrente. Podem causar lacrimejo intenso, fotofobia, dor e sensação de corpo estranho.

Neste capítulo são abordadas duas grandes formas clínicas de TB:

  1. TB torácica, subdividida, arbitrariamente, em pulmonar e extrapulmonar;
  2. TB extratorácica, ocorrendo em menos de 5% dos casos pediátricos, sendo que todos os órgãos podem ser atingidos.

1. Tuberculose torácica

Forma adenopática traqueobrônquica

Na idade pediátrica é a forma mais frequente, traduzida por compromisso ganglionar evidenciado em radiografia do tórax e/ou TC. O aumento de volume dos gânglios ao nível da bifurcação brônquica e mediastino poderá levar a compressão brônquica, com atelectasia ou enfisema se se verificar compressão associada a mecanismo valvular com retenção progressiva de ar. Outras possibilidades de evolução natural do componente ganglionar do complexo primário são esquematizadas em desenho na Figura 2. (Segundo Thomé Villar e Ducla Soares)

A Figura 3 mostra aspecto radiográfico da forma adenopática traqueobrônquica (radiografia do tórax PA e perfil): opacidade arredondada de limites bem definidos, confluente com o hilo pulmonar.

Notas importantes:

    • As lesões tuberculosas dos gânglios cicatrizam mais lentamente que as do foco de inoculação.
    • Conforme o estado do caseum quando se dá a perfuração do gânglio para o lume brônquico – elástico, desidratado ou líquido – podem resultar síndromas obstrutivas ou disseminação brônquica.
    • O tecido ganglionar no lume brônquico, e o tecido de granulação em torno da fístula adenobrônquica podem originar sequelas nas for- mas arrastadas (fibrose, estenose e calcificação).

FIGURA 2. Esquema das possibilidades de evolução natural do componente ganglionar do complexo primário (consultar texto).

FIGURA 3. Imagem radiográfica de adenopatia traqueobrônquica esquerda: A – Póstero-anterior; B – Perfil. (NIHDE)

Foco primário

Esta forma corresponde às manifestações resultantes da progressão do foco parenquimatoso pulmonar. Clinicamente é traduzida por quadro de bronquite e, radiologicamente, por foco de condensação (opacidade arredondada). As suas dimensões não ultrapassam em geral dois centímetros; poderá ser visualizado na radiografia do tórax concomitantemente com a adenopatia.

Disseminação brônquica

O quadro clínico de disseminação brônquica, quer a partir do gânglio, quer a partir do foco primário, é o de broncopneumonia caseosa de evolução subaguda ou crónica (formação de caseum, Figura 2). Tal situação poderá obrigar ao diagnóstico diferencial com quadro broncopneumónico relacionável com agentes infeciosos que não Mtb; a história clínica e os achados epidemiológicos associados ao resultado da prova tuberculínica ou testes IGRA contribuem para a destrinça. (Figura 4)

FIGURA 4. Disseminação broncogénica de caseum: imagens radiográficas nodulares dispersas, associadas a adenopatia hilar. (NIHDE) (ver Figura 2)

Tuberculose miliar

Trata-se duma forma grave de disseminação linfo-hematogénica a qual pode atingir qualquer órgão. Em geral, surge em crianças debilitadas e/ou desnutridas e manifesta-se por febre, mau estado geral, perda de peso, suores nocturnos, hepatosplenomegália, podendo associar-se a meningite. Existe um quadro de pneumonite bilateral que se traduz radiologicamente por infiltrados miliares/micronódulos de 1-2 mm, confluentes, dispersos em ambos os campos pulmonares (daí o nome de granúlia) e arredondados como grãos de milho (daí o nome de miliar). É notória a dificuldade respiratória que, nos pequenos lactentes pode partilhar sinais com a bronquiolite. Face ao estado de debilitação da criança, a prova tuberculínica poderá ser anérgica. (Figura 5)

FIGURA 5. Padrão radiográfico de tuberculose miliar. (NIHDE)

FIGURA 6. TAC torácica: lesões cavitárias de tuberculose. (NIHDE)

Tuberculose pulmonar reactivada

Esta forma, típica dos adolescentes e adultos, é muitas vezes designada por “tuberculose pulmonar tipo adulto”; corresponde à chamada tuberculose pós-primária, epifenómeno de reactivação endógena ou reinfecção exógena. Na forma de doença avançada surgem lesões cavitárias localizadas predominantemente nos segmentos apicais dos lobos superiores, correspondendo a zonas com maior pressão de oxigénio (Figura 6). A partir de tais lesões cavitárias verifica-se disseminação endobrônquica de bacilos, o que contribui para propagação de Mtb junto dos contactos. Os sintomas e sinais gerais são os referidos anteriormente, sendo que a tosse e hemoptise poderão indiciar cavitação e erosão brônquica.

Derrame pleural tuberculoso

O derrame pleural tuberculoso, de tipo serofibrinoso, que pode acompanhar a infecção primária, representa uma resposta imune ao Mtb. A prova tuberculínica é geralmente exuberante, e a resposta ao tratamento é em geral rápida quando coadjuvada por corticóides. Mais frequente na idade escolar e na adolescência tem início agudo com febre, dor torácica ou abdominal, agravando-se com a respiração e a tosse. A análise do líquido pleural evidencia linfócitos e elevado teor em proteínas, não contendo bacilos. A imagem radiológica do derrame pleural é sobreponível à associada a outras etiologias. (Figura 1 do Capítulo sobre Derrame Pleural-Parte XIV)

Pericardite tuberculosa

Esta forma de pericardite surge quando Mtb atinge o pericárdio por via hematogénica ou por contiguidade a partir da pleura ou pulmão. Se o processo inflamatório persistir com esta localização, poderá resultar resposta celular imune com ruptura de granulomas para o espaço pericárdico conduzindo ao desenvolvimento de pericardite constritiva.

2. Tuberculose extratorácica

Linfadenite superficial

A linfadenite superficial extratorácica surge sobretudo nas regiões cervical, supraclavicular e submaxilar, embora outras cadeias ganglionares possam ser atingidas. Trata-se da forma mais comum de TB extratorácica na idade pediátrica. Historicamente é relacionada com a ingestão de leite de vaca não pasteurizado veiculando M. bovis, o que ocorria cerca de seis meses a anos depois. Ao nível das regiões, inguinal, axilar e epitroclear pode associar-se a TB da pele ou sistema esquelético. Na região supraclavicular pode associar-se a extensão de lesão primária de segmentos superiores do pulmão ou abdómen. A tumefacção ganglionar uni ou bilateral, pode atingir grandes dimensões e originar a compressão de estruturas adjacentes. É acompanhada de sinais inflamatórios locais e regionais, com coloração eritematosa e violácea da pele, aderente aos planos profundos e tendência para a fistulização. Como sequela forma-se uma cicatriz quelóide designada habitualmente por escrófula.

Meningite tuberculosa

A meningite tuberculosa corresponde a cerca de 0,3% das infecções tuberculosas não tratadas em idade pediátrica. Manifesta-se na maioria dos casos no período de seis a 24 meses após infecção primária e em crianças com menos de cinco anos. Cerca de 40% a 50% das crianças com meningite tuberculosa têm outros focos de infecção tuberculosa, incluindo TB miliar. O início pode ser insidioso com sintomas vagos e inespecíficos como febrícula, cefaleia e alterações do comportamento, irritabilidade ou sonolência. O diagnóstico precoce é fundamental tendo em vista a redução da morbilidade e mortalidade, exigindo-se do clínico um elevado índice de suspeição. Classicamente, são descritos três estádios evolutivos, ao longo de três a quatro semanas:

  • Estádio I – febre, irritabilidade, sonolência;
  • Estádio II – alterações do comportamento, por vezes sinais focais; podem surgir sinais meníngeos e ocorrer convulsões;
  • Estádio III – delírio e coma; sinais meníngeos francos, sinais neurológicos focais. O processo inflamatório das meninges afecta sobretudo a base do encéfalo (meningite basilar), com repercussão significativa sobre os nervos cranianos, levando a hipertensão intracraniana, deterioração do estado mental e coma. A análise do líquido cefalorraquidiano revela aumento do número de leucócitos (50-500/mm3), sendo que na fase inicial poderão predominar, quer linfócitos, quer neutrófilos; hiperproteinorráquia e hipoglicorráquia. Embora o exame cultural seja o método de excelência para detecção de Mtb, os métodos de biologia molecular/reacção em cadeia da polimerase (PCR) específicos para Mtb são de grande utilidade para o diagnóstico.
Tuberculose osteoarticular

Esta forma clínica de início insidioso pode ocorrer após disseminação hematogénica ou por extensão directa a partir de gânglio regional caseoso. Inclui diversas entidades nosológicas: TB da coluna vertebral (mal de Pott), a forma mais frequente; artrite coxofemoral, com lesão destrutiva da cabeça do fémur e acetábulo; dactilite com compromisso dos dedos das mãos e pés. No mal de Pott os segmentos mais atingidos são, por ordem de frequência, o torácico inferior, o lombar e o cervical. Ocorre destruição da porção anterior do corpo vertebral, com compromisso contíguo de várias vértebras em diferentes fases de destruição e, com frequência, abcesso frio paravertebral extenso. Clinicamente, a criança encontra-se, regra geral, assintomática, com cifose acentuada.

Tuberculose abdominal

A etiopatogénese desta forma clínica relaciona-se, quer com a deglutição de material pulmonar infectado com bacilo humano (forma secundária), quer com a deglutição de produtos alimentares contaminados pelo bacilo bovino (forma primária). Trata-se duma forma relativamente rara nos países industrializados em que as medidas preventivas de medicina humana e veterinária contemplam, designadamente, a detecção da tuberculose bovina e a pasteurização do leite. A deglutição de Mtb origina ulceração da mucosa intestinal com compromisso dos gânglios mesentéricos, e especial predilecção pelos gânglios ao nível do íleo terminal (lesão caseosa com consequente erosão) (Figura 7); esta lesão pode levar a perfuração intestinal originando quadro de peritonite tuberculosa. Para além da ascite, poderá surgir sintomatologia diversa: dor abdominal, síndroma obstrutiva, diarreia crónica inflamatória, massas abdominais palpáveis, etc..

Tuberculose urogenital

Rara na idade pediátrica, ocorre por disseminação hematogénica, correspondendo a reactivação tardia. As manifestações incluem essencialmente piúria (estéril), hematúria e proteinúria. A suspeita implica a detecção específica de Mtb na urina.

FIGURA 7. Radiografia abdominal simples evidenciando adenopatia abdominal calcificada no contexto de tuberculose abdominal. (NIHDE)

Tuberculose congénita

É uma forma rara cuja etiopatogénese se relaciona, quer com transmissão por via transplacentar, formando-se o complexo primário no fígado, quer com aspiração ou deglutição de material infectado a partir do líquido amniótico ou do canal genital. As manifestações incluem quadros de sépsis, hepatosplenomegália, dificuldade respiratória precoce, com padrões radiográficos diversos (pneumonia de aspiração, simile granúlia, etc.).

Outras formas de tuberculose extratorácica

Sucintamente faz-se referência (por razões didácticas históricas) a outras formas de tuberculose extratorácica, raras:

  • Tuberculose cutânea traduzida por tubercúlides papulonecróticas, tuberculose verrucosa cútis, e eritema nodoso (já citado, por hipersensibilidade);
  • Tuberculoma cerebral originando sinais focais e de hipertensão intracraniana;
  • Laringite tuberculosa por fezes associada a tuberculose pulmonar;
  • Tuberculose nasofaríngea resultante de disseminação hematogénica ou secundária a expectoração de material pulmonar estendendo-se à nasofaringe;
  • Tuberculose oftálmica, rara, por disseminação hematogénica ou por propagação a partir dos tecidos circundantes; as formas clássicas, com valor histórico, hoje excepcionais, englobam a ceratoconjuntivite flictenular, já citada, a uveítes e a coroidite clássica agregando os chamados tubérculos coroideus, identificáveis por fundoscopia.

Diagnóstico de tuberculose

Aspectos gerais

Ao contrário do adulto, em que o diagnóstico de TB é directo, baseado na história clínica e confirmado por exames culturais, na criança o diagnóstico de TB é geralmente indirecto, baseando-se nas histórias clínica e epidemiológica valorizando o binómio adulto-criança, e na positividade da prova tuberculínica e/ou de uma prova imunológica/de imunodiagnóstico. (ver adiante)

No que respeita a resultados de exames complementares correntes, importa realçar que a fórmula sanguínea é em geral normal, a velocidade de sedimentação está aumentada e a proteína C reactiva evidencia em geral, também valores elevados. Contudo, estes resultados exprimem de modo inespecífico apenas repercussão de um processo inflamatório sobre o estado geral do organismo. O doseamento da adenosinadeaminase (ADA) no LCR ou líquido pleural poderá orientar no sentido de infecção por Mtb se os valores forem superiores a 40 U/L; no entanto, tal achado não é patognomónico, pois poderá verificar-se idêntica alteração, designadamente em casos de artrite reumatóide. Por fim, cita-se a realização de fundoscopia podendo identificar a presença de tubérculos coroideus e confirmar o diagnóstico.

Prova tuberculínica

A prova tuberculínica/intradermorreacção de Mantoux mantém a sua inegável importância no processo diagnóstico da TB; contudo, deverão ser interpretadas no contexto de eventual vacinação anterior e de parâmetros epidemiológicos, clínico-laboratoriais e radiológicos. O Quadro 3 pormenoriza aspectos importantes relacionados com este procedimento. A técnica de realização deste é descrita na caixa a seguir ao quadro.

QUADRO 3 – Interpretação da prova tuberculínica.

O BCG determina, em geral, reacção alérgica após prova tuberculínica evidenciando alergia (zona de induração 10 mm). No entanto, muitas crianças vacinadas apresentam resultados de provas tuberculínicas com induração de menores dimensões ou até anergia, sem que tal signifique menor protecção em relação às formas graves de TB.*

    • Se existir contexto epidemiológico, uma prova tuberculínica anérgica e induração até 10 mm não deverá excluir TB. Deverão ser efectuados exames radiológicos e laboratoriais.
    • Cerca de 10% das crianças com TB-doença evidenciam provas tuberculínicas anérgicas. Como causas desta situação destacam-se idade baixa, infecção tuberculosa grave em curso, má-nutrição e imunossupressão.
    • Uma prova tuberculínica com induração ≥ 10 mm deve ser sempre valorizada, caso exista contexto epidemiológico sugestivo e BCG administrada há mais de cinco anos.
    • Uma prova tuberculínica com induração ≥ 15 mm indica sempre TB-infecção ou TB-doença (excepto quando há história de TB anterior tratada: a prova tuberculínica continua a evidenciar resultado compatível com alergia após a infecção, mesmo nas situações de doença considerada tratada).
    • Num imunodeprimido, qualquer dimensão de induração deverá ser valorizada.
    • Reacção alérgica com induração ≤ 5 mm é considerada ~ anergia. Tal pode acontecer também nas 1as 6-10 semanas após início da infecção.
    • Reacção com induração de 6-9 mm poderá estar associada a infecção por micobactérias atípicas.
    • Nos vacinados com BCG a alergia poderá não ser permanente.

(*) Além da prova de Mantoux existem outras provas tuberculínicas, hoje em desuso pela fraca sensibilidade e especificidade (por exemplo, com micropunções, adesivo com tuberculina percutânea tipo Volmer, etc.), citados por razões históricas. Segundo alguns autores, a vacinação com BCG poderá dificultar o diagnóstico, por problemas de interpretação das provas tuberculínicas.

 

Técnica de realização da prova de Mantoux: – desinfecção da pele com álcool no terço médio do antebraço esquerdo; – seringa descartável de 1 mL (graduada em centésimos de mL) com agulha de calibre 26 e comprimento de 10 mm; – administração de 0,1 mL de tuberculina purificada (PPD RT 23) na localização referida; – injecção intradérmica de modo a criar pápula de 5 mm com bordos bem delimitados desaparecendo em 10-15 minutos.


Provas de imunodiagnóstico

Como alternativa e/ou complemento à prova tuberculínica recentemente foram desenvolvidas novas provas diagnósticas, como a IGRA, acrónimo do inglês Interferon-Gamma Release Assay, baseadas na detecção da secreção/libertação de interferão/IFN-gama pelos linfócitos T ao entrar em contacto com antigénios de M. Tuberculosis, o que não acontece com os antigénios da estirpe atenuada BCG.

Existem comercializadas duas técnicas IGRA, respectivamente T-SPOT.TB e QuantiFERON-TB Gold.

  • utilizando o teste T-SPOT.TB: na presença de tuberculosis (contendo antigénios específicos – ESAT-6, CFP-10 e TB7.7 – não existentes em M. bovis, nem no complexo M. avium) ocorre estimulação de linfócitos T no sangue periférico, permitindo a contagem do número de linfócitos T produtores de IFN-gama.
  • utilizando o teste QuantiFERON-TB Gold é medido o teor de IFN-gama.

As principais vantagens dos testes de detecção de IFN-gama relativamente às provas tuberculínicas são a maior especificidade devido à falta de reactividade cruzada com BCG e micobactérias atípicas, e maior sensibilidade para o diagnóstico nos casos de crianças com infecções por VIH e com síndromas de má-nutrição. Um resultado positivo dos testes IGRA confirma apenas um estado de infecção e não necessariamente de doença, mas um resultado negativo não exclui, nem doença, nem infecção. Os resultados dos testes IGRA são, por vezes, bastante discordantes com a prova tuberculínica, pelo que em algumas situações poderão ser usados ambos de forma sequencial. Em crianças com idade inferior a cinco anos os dados disponíveis são escassos e não consensuais, mas os resultados sugerem uma menor sensibilidade que em crianças mais velhas e adultos.

Pesquisa de M. tuberculosis (métodos convencionais)

A pesquisa de Mtb na idade pediátrica deve ser efectuada no suco gástrico, de manhã, em jejum, com a criança em decúbito mantido desde a véspera, e durante três dias (três amostras). Deve introduzir-se 20 a 50 ml de água destilada através de sonda de aspiração, à temperatura ambiente, recolher-se o aspirado e colocá-lo em recipiente estéril. O produto deve ser transportado à temperatura ambiente, devendo a entrega no laboratório e o processamento ser feitos nos 15 minutos seguintes; se tal não for possível dever-se-á congelar (-20ºC). O método mais económico e com maior percentagem de positividade no adulto é a cultura da expectoração, a qual é raramente positiva na criança, dado esta ser habitualmente paucibacilar. A positividade aumenta em crianças de idade superior a sete anos, colaborantes e com tuberculose endobrônquica ou parenquimatosa. Tal como com o suco gástrico, devem ser obtidas três amostras. Em qualquer idade, um exame directo negativo, em qualquer produto, não exclui tuberculose. A colheita de secreções brônquicas, líquido pleural, líquor ou urina deve ser ponderada caso a caso.

De acordo com estudos recentes provenientes da China (por Sun, et al), comprovou-se a vantagem (em termos de sensibilidade e rapidez do diagnóstico bacteriológico), da utilização do líquido de lavagem broncoalveolar, relativamente ao uso da expectoração, através do teste designado Xpert MTB/RIF.

Pesquisa de M. tuberculosis por técnica de amplificação do ácido nucleico

As técnicas de amplificação do ácido nucleico (TAAN) podem identificar directamente Mtb com a vantagem de não ser necessário crescimento em meio de cultura. No entanto, um resultado positivo nas TAAN não excluiu a realização de cultura, pela necessidade de efectuar os testes de sensibilidade aos antibacilares.

Outros exames complementares

Apesar de não haver um padrão radiológico específico da TB pulmonar na criança, a radiografia do tórax em incidências póstero-anterior e perfis é fundamental. A alteração mais frequente é a adenopatia mediastínica (hilar), que poderá ser responsável por atelectasia. Outros sinais radiológicos incluem a pneumonia, o derrame pleural, o padrão de disseminação miliar ou broncogénica e, nos adolescentes, as imagens sugestivas de cavitação (Figuras 2, 3 e 4). Quando são detectadas alterações radiológicas, deve ser efectuada tomografia computadorizada (TC), para melhor definição das características e extensão das lesões. A broncoscopia está indicada em situações específicas. (Quadro 4)

QUADRO 4 – Indicações da broncoscopia.

    1. Perturbações da ventilação
    2. Imagens de disseminação broncogénica
    3. Adenomegália volumosa látero-traqueal ou traqueobrônquica direita
    4. Redução súbita de dimensões de adenomegália em radiogramas sucessivos
    5. Verificação de sinais de “escavação” ganglionar
    6. Hemoptises
    7. Doente VIH+


Em casos especiais de derrame pleural poderá estar indicada biópsia pleural para detecção de eventual granuloma. Igualmente, em função do contexto clínico, nalguns casos de tuberculose miliar/granúlia poderá estar indicada biópsia da medula óssea.

Nas formas extratorácicas deverão ser realizados exames de imagem (radiografia, ecografia, TC, RM, conforme indicado) para melhor caracterização das lesões, e biópsia para colheita de produtos, que devem ser sempre enviados para realização de exame directo por microscopia óptica, TANN e cultura.

Na meningite tuberculosa além dos exames de imagem já citados, que poderão evidenciar sinais de edema cerebral, hidrocefalia, ventriculomegália ou tuberculomas, deve ser efectuada punção lombar para colheita e análise do LCR, incluindo cultura (negativa em 30% dos casos), PCR/reacção da polimerase em cadeia, e pesquisa de Mtb por TANN.

Perante a suspeita de meningite ou granúlia, a realização de fundoscopia é fundamental, pois a presença de tubérculos coroideus pode confirmar o diagnóstico.

Diagnóstico diferencial

Apesar de Portugal ser actualmente um país de baixa incidência, o diagnóstico diferencial de TB deve ser efectuado em situações de pneumonia de evolução arrastada, meningoencefalite, síndroma febril prolongada e de origem não determinada; síndromas de etiopatogénese diversa associadas a derrame pleural, doença articular, adenopatia superficial, eritema nodoso, conjuntivite flictenular, etc..

Tratamento

Princípios gerais

O tratamento da TB inclui a administração de fármacos ao doente infectado e medidas de Saúde Pública para controlo da infecção a nível comunitário. As características de cada doente devem ser tidas em conta, designadamente, a idade, o local da infecção, assim como a eventualidade de estado de imunossupressão e de coinfecção com VIH.

Os Quadros 5 e 6 discriminam respectivamente fármacos antibacilares de 1ª e 2ª linhas actualmente utilizados.

QUADRO 5 – Posologia dos antibacilares de primeira linha.

Rifampicina 15 mg/kg/dia (10-20 mg/kg/dia); máx. 600 mg
Isoniazida 10 mg/kg/dia (7-15 mg/kg/dia); máx. de 300 mg
Pirazinamida 35 mg/kg/dia (30-40 mg/kg/dia)
Etambutol 20 mg/kg/dia (15-25 mg/kg/dia)

QUADRO 6 – Posologia de antibacilares de segunda linha.

Amicacina 15-22,5 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Canamicina 15-30 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Capreomicina 15-30 mg/kg/dia (máx. 1000 mg)
Levofloxacina 15-20 mg/kg/dia (máx. 750 mg)
Moxifloxacina 15-20 mg/kg/dia (máx. 400 mg)
Etionamida 15-20 mg/kg/dia (máx. 1000); 2 tomas
Cicloserina 10-20 mg/kg/dia (máx. 1000 mg); 1-2 tomas
PAS (ácido para-amino-salicílico) em carteiras 150 mg/kg/dia (máx. 12.000 mg); 2-3 tomas
Linezolide 20 mg/kg/dia (máx. 1200 mg); 2 tomas

Logo após o início da terapêutica antibacilar tornou-se evidente que a emergência de resistência de Mtb se desenvolveria a uma taxa previsível se os sucessivos fármacos fossem usados em monoterapia.

Por conseguinte, uma vez que o tratamento tem por objectivo principal a erradicação de Mtb, dever-se-á usar sempre um esquema de politerapia que inclua fármacos bactericidas. Esta associação de fármacos impedirá o aparecimento de estirpes mutantes e reduzirá o tempo de tratamento; este, deverá, no entanto, ser suficientemente longo para permitir a esterilização das lesões.

Os esquemas-padrão de tratamento para as formas de TB torácica e para a maioria das formas de TB extratorácica, pressupõem seis meses de duração. Em determinadas situações poderão ser mais longos, com excepção das formas multirresistentes e extensivamente resistentes, não excedendo contudo um ano.

O tratamento com fármacos que actuam sobre bacilos em multiplicação activa é bastante eficaz. No entanto, para conseguir a esterilização das lesões na presença de bacilos em estado latente e/ou multiplicação lenta ou intermitente, o tratamento deve ser prolongado.

No adulto, a terapêutica intermitente (duas a três vezes/semana) tem interesse em situações de suspeita de má adesão ao tratamento diário ou em ambientes com dificuldades de acesso aos serviços de saúde, o que implica supervisão/vigilância rigorosas.

Em determinados contextos deverá adoptar-se a estratégia de toma observada direta (TOD), em que o profissional de saúde observa e confirma a toma dos antibacilares pelo doente.

Sendo a multiplicação do bacilo proporcional à pressão de oxigénio no meio, torna-se fácil compreender que as lesões poderão conter três tipos de populações microbianas distintas:

  • bacilos em multiplicação activa, nas paredes das lesões caseosas das cavernas;
  • população mais reduzida de bacilos, fagocitados pelos macrófagos (em meio ácido, sob o efeito de várias enzimas) com multiplicação lenta e ocasional;
  • bacilos extracelulares em focos caseosos sólidos com multiplicação intermitente.

De salientar que as micobactérias podem sobreviver durante anos em estado latente (de quiescência) quando o metabolismo é inibido por baixa pressão de oxigénio ou pH baixo.

Os testes de sensibilidade aos antimicrobianos são habitualmente efectuados em duas fases. Na primeira são testados os fármacos de 1ª linha que incluem isoniazida/INH, rifampicina/RIF, pirazinamida/PZA e etambutol/EMB. Se o microrganismo for multirresistente, são testados numa 2ª fase, os de 2ª linha.

Os testes de sensibilidade (dado o crescimento lento das micobactérias) demoram, em média, duas semanas para os de 1ª linha e duas a quatro semanas para os de 2ª linha.

A propósito do fenómeno das resistências a fármacos, os quais são administrados a pessoas doentes, importa proceder à seguinte sistematização:

*considerando o fármaco

      • Monorresistência – resistência apenas a um dos antibacilares de 1ª linha;
      • Polirresistência – resistência a mais do que um dos antibacilares de 1ª linha;
      • Multirresistência – resistência simultânea à INH e RIF a que se podem associar resistências a outros fármacos antibacilares;
      • Resistência extensiva – resistência simultânea a INH, RIF, qualquer quinolona e, no mínimo, a um dos três fármacos injectáveis de segunda linha.

*considerando o doente

      • Resistência inicial (primária) – resistência em doentes a submeter a um primeiro tratamento; trata-se dum indicador epidemiológico de excelência, reflectindo o reservatório de bacilos circulantes na comunidade;
      • Resistência adquirida (secundária) – resistência demonstrável em doentes já em tratamento (inicialmente sensíveis, tornando-se resistentes); traduz casos de falência terapêutica.

Esquemas de tratamento

Tuberculose infecção ou tuberculose latente

Não existe uniformidade de critérios para a terapêutica da tuberculose-infecção ou tuberculose latente (que, de facto corresponde ao conceito de quimioprofilaxia secundária – ver Glossário geral).

Em Portugal recomenda-se a administração de isoniazida durante seis a nove meses ou, em alternativa, isoniazida e rifampicina por um período de três meses. Se confirmada resistência à isoniazida recomenda-se rifampicina durante quatro meses.

Têm indicação para tratamento da infecção latente, crianças com idade inferior a cinco anos submetidas a terapêutica actual com fármacos imunossupressores, especialmente fármacos biológicos, infecção por VIH, desnutrição grave e doença depauperante.

Estudos recentes apontam, por mecanismo não completamente esclarecido, para uma melhoria do prognóstico da tuberculose nos pacientes com diabetes mellitus associada, submetidos a tratamento com metformina.

Tuberculose doença

Nas formas de TB pulmonar (esquema terapêutico inicial) recomenda-se a utilização de três ou quatro fármacos durante dois meses com pirazinamida, isoniazida, rifampicina e etambutol.

Após este período são mantidas a isoniazida e a rifampicina durante mais quatro meses. Em regiões com elevada resistência à isoniazida, ou no doente com baciloscopias positivas, doença pulmonar extensa, imunodeprimidos (infecção por VIH ou outra) e formas extrapulmonares graves, a terapêutica inicial deverá incluir sempre quatro fármacos.

Nota: A utilização de estreptomicina (citada no quadro) como primeira linha não é recomendada em nenhuma das formas de doença.

Na resistência isolada à isoniazida, esta deve ser substituída por uma quinolona (levofloxacina ou moxifloxacina), mantendo terapêutica durante seis a nove meses. Na resistência isolada à rifampicina recomenda-se um esquema de multirresistência com ou sem isoniazida.

O tratamento da TB-MR, deve ser orientado pelas susceptibilidades encontradas na criança e/ou na fonte infectante. Como regra geral, devem incluir pirazinamida e, no mínimo, quatro fármacos de segunda linha aos quais se julgue não haver resistência.

A duração do tratamento deve ser individualizada em função da resposta clínica e laboratorial.

Como regra geral recomenda-se uma fase inicial intensiva de oito meses e uma fase de consolidação, no mínimo, com três fármacos comprovadamente activos (duração de 12 meses).

O tratamento deve ser administrado, na totalidade, em sistema TOD. Todos os referidos fármacos podem causar reacções adversas importantes as quais poderão obrigar a modificação da terapêutica e/ou suspensão de alguns.

Nos casos de TB-MR e TB-XDR a monitorização bacteriológica deverá ser mensal até final do tratamento e repetida, respectivamente, 6 e 12 meses após suspensão da terapêutica.

Nos casos de TB pulmonar a radiografia de tórax deverá ser realizada de seis em seis meses e no final do tratamento. O doente deve ser observado por médico mensalmente durante o tratamento e, posteriormente, aos 3, 6 e 12 meses, no mínimo.

Outras formas de tuberculose

No tratamento da linfadenite tuberculosa poderá ser necessária a remoção cirúrgica do gânglio e da fístula à pele. A meningite tuberculosa, e a tuberculose osteoarticular obrigam sempre a terapêutica quádrupla inicial (isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol) durante dois meses, seguida de dupla (isoniazida e rifampicina) no total de 12 meses.

Situações especiais
  • A corticoterapia está indicada em todas as situações em que o processo inflamatório causado pela infecção tuberculosa possa ser factor adjuvante para o estabelecimento de complicações e sequelas. O “desmame” dos corticóides deve ser muito lento, em quatro a seis semanas. O Quadro 7 elucida sobre as indicações universais e a ponderar.
  • A coinfecção por VIH, menos frequente na criança do que no adulto, obriga no entanto ao respectivo rastreio em todas as crianças com tuberculose-doença. A terapêutica da criança VIH positiva com TB é semelhante à da criança VIH negativa. Contudo, devem ser ponderados esquemas terapêuticos mais longos se a resposta inicial for lenta.
    A introdução dos fármacos antiretrovíricos inibidores da protease (IP; por ex. indinavir e nelfinavir) trouxe problemas adicionais na terapêutica antibacilar destes doentes, nomeadamente em relação à utilização das rifamicinas (rifampicina e rifabutina).
    Sendo as rifamicinas indutoras do citocromo P450 hepático, aceleram o metabolismo dos IP (a rifampicina é o indutor mais potente) condicionando concentrações séricas baixas e níveis infraterapêuticos dos referidos antiretrovíricos. Estes, por sua vez, ao retardarem o metabolismo das rifamicinas, elevam os seus níveis séricos com consequente risco de toxicidade. Assim, a rifampicina não deve ser utilizada conjuntamente com os IP actualmente disponíveis; contudo, a rifabutina poderá ser uma alternativa eficaz, desde que se efetcuem ajustes posológicos (redução da dose de rifabutina e aumento da referente aos IP).

QUADRO 7 – Corticoterapia na tuberculose.

Indicações universaisIndicações a ponderar
    • Granúlia/miliar
    • Meningite tuberculosa
    • Tuberculose endobrônquica
    • Pericardite tuberculosa
    • Derrame pleural
    • Perturbação da ventilação
    • Muito mau estado geral

Prevenção

A prevenção da tuberculose exige uma acção harmónica entre as várias estruturas da Saúde, com detecção precoce dos casos e seu tratamento eficaz, rastreio dos contactos, quimioprofilaxia e vacinação.

Quimioprofilaxia (primária)

Consiste na administração profiláctica de fármacos antibacilares a crianças ainda não infectadas e em contacto com doente que elimina e propaga bacilos, por conseguinte em risco de adquirirem a tuberculose (Quadro 8). Como regra, a quimioprofilaxia primária está indicada em crianças de idade inferior a cinco anos. No entanto, a quimioprofilaxia deverá ser ponderada, caso a caso, em todas as situações de maior risco de evolução para doença activa. Habitualmente, consiste na administração de isoniazida em monoterapia. Quando haja resistência da fonte infectante à isoniazida, alguns autores preconizam a administração de rifampicina, enquanto outros preferem a administração conjunta de isoniazida e rifampicina. Para além da prova tuberculínica e/ou testes IGRA, antes de iniciar a quimioprofilaxia deverá ser efectuada radiografia de tórax, de modo a excluir doença.

QUADRO 8 – Quimioprofilaxia (primária).

Indicações Duração No final
Contactos intrafamiliares ou muito próximos de doentes bacilíferos com:
    • Idade inferior ou igual a 5 anos (a ponderar caso a caso nas crianças com idade superior)
    • Imunodeficiência congénita ou adquirida
    • Doença grave
    • Terapêutica prolongada (superior a um mês) com corticóides em doses imunossupressoras
    • Outras terapêuticas imunossupressoras
Enquanto se mantiver o contacto infetante e mais três meses após este terminar Realizar prova tuberculínica ou teste IGRA
    • Prova tuberculínica anérgica e ausência de critérios de tuberculose-doença: suspender a terapêutica
    • Prova tuberculínica alérgica (TB-infecção ou TB-doença): Avaliar a situação e tratar em função do contexto clínico-epidemiológico

Vacinação

A vacinação com BCG segue as recomendações da OMS para países de elevada incidência de tuberculose. Trata-se duma vacina viva atenuada contendo estirpes de M. bovis. Os estudos efetuados sobre a efectividade da vacina não são concludentes; enquanto alguns atestam elevada protecção, outros referem ser escassa ou nenhuma. Algumas particularidades ajudam a explicar estes resultados: 1) não existem critérios universais para o diagnóstico de tuberculose, nomeadamente da tuberculose em idade pediátrica; 2) necessidade de estudos muito longos porque existe geralmente um grande intervalo entre a administração da vacina e a eclosão da doença; 3) grande variedade de estirpes da vacina, de diversos fabricantes; 4) mecanismo de acção não está, ainda, verdadeiramente esclarecido; 5) interferência imunológica por micobactérias não tuberculosas; 6) polimorfismos genéticos das populações.

A vacinação com BCG não determinou, de facto, a eliminação da tuberculose em nenhum país, nem tem tido qualquer efeito na epidemiologia mundial da tuberculose. No entanto, a principal vantagem relaciona-se com a possibilidade de redução de formas mais graves de tuberculose infantil como a meningite e a tuberculose disseminada. Como vacinação universal a vacina foi retirada do PNV português em 2015, passando a ser vacinados, à semelhança de outros países, apenas os grupos de risco conforme Norma 6/2016 da DGS. (Quadro 9)

Quadro 9 – Crianças de idade inferior a seis anos, elegíveis para vacinação com BCG – Grupos de risco.1

1A partir dos 12 meses de idade há indicação para realização de prova tuberculínica ou de IGRA antes da vacinação com BCG. Se houver antecedentes de contacto com caso de tuberculose activa (possível ou confirmada), ou outras circunstâncias que levem a suspeitar que a criança teve ou tem uma probabilidade elevada de ter contraído infecção, deve ser submetida a rastreio em articulação com o PNT. Após prova tuberculínica/IGRA negativo a vacina BCG pode ser administrada nos três meses seguintes.
2Dependendo de uma avaliação do risco, caso a caso.

Crianças sem registo de BCG/sem cicatriz vacinal e: Situações abrangidas
Provenientes de países com elevada incidência de tuberculoseEstadia de, pelo menos, três meses
Que terminaram o processo de rastreio de contactos e/ou esquema de profilaxiaA avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose (PNT) e Centros de Diagnóstico Pneumológico (CDP)
Cujos pais, outros coabitantes ou conviventes apresentem →
    • Infeção VIH/SIDA, após exclusão de infeção VIH na criança, se mãe VIH+
    • Dependência de álcool ou de drogas
    • Naturalidade de país com elevada incidência de TB2
    • Antecedentes de tuberculose
Pertencentes a comunidades com risco elevado de tuberculoseA avaliar pelas Unidades de Saúde Pública em articulação com os Coordenadores Regionais do Programa Nacional para a Tuberculose e CDP
Viajantes para países com elevada incidência de tuberculose2
    • Estadia de, pelo menos, três meses
    • Pode ser ponderada a vacinação para estadias mais curtas, se for considerado um elevado risco de infeção

As vacinas actualmente incluem diversas modalidades:

  • vacinas de subunidades que utilizam proteínas de Mtb;
  • vacinas contendo DNA de Mtb usando vectores víricos;
  • BCG recombinante; – utilização de estirpes mutantes de Mtb; e
  • vacinas inactivadas e atenuadas contendo micobactérias não-tuberculosas.

As novas vacinas deverão ser acessíveis aos países mais pobres, onde o peso da doença é mais significativo e os sistemas de saúde mais débeis.

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DOENÇA DO ARRANHÃO DO GATO E OUTRAS BARTONELOSES

Bartoneloses e importância do problema

As bartoneloses são doenças reemergentes em todo o mundo. No que respeita às espécies patogénicas para o homem do género Bartonella (> 60), citam-se como principais, B. henselae, B. bacilliformis, B. quintana, B. elizabethae e B. clarridgeiae.

As manifestações clínicas e a gravidade da infecção dependem da espécie do agente microbiano, do estado imune e da idade do paciente.

A chamada doença do arranhão do gato é uma doença infecciosa autolimitada e benigna provocada por Bartonella henselae (bacilo Gram-negativo aeróbio, comportando-se como intracelular facultativo), surgindo após contacto com gato e escoriação provocada pelo mesmo. Trata-se duma afecção que atinge principalmente crianças e adultos jovens e é a causa mais frequente de linfadenopatia crónica (de duração igual ou superior a 3 semanas).

Na primeira bartonelose descrita na espécie humana (provocada por B. bacilliformis) no Perú/América do Sul verificou-se, para além da febre e anemia hemolítica (febre Oroya), erupção cutânea semelhante a hemangioma (verruga peruana).

À B. quintana estão associados casos em doentes com imunodeficiência, sintomatologia de compromisso do SRE, bacteriémia e endocardite, para além de outros quadros clínicos.

Neste capítulo é dada ênfase à doença do arranhão do gato, a que surge com expressão mais significativa no nosso meio.

Aspectos epidemiológicos

A doença do arranhão do gato é uma doença universal, em geral esporádica, que afecta todas as etnias e géneros em proporções semelhantes. Há uma maior incidência da doença no Outono e no Inverno, quer devido ao ciclo reprodutivo da pulga do gato, quer porque nestas estações os animais são mantidos mais tempo em casa. Nos EUA é estimada uma incidência anual de 9/100.000 casos em doentes ambulatórios. Não há referência a dados de incidência da doença em Portugal. Foram descritos surtos afectando membros da mesma família.

Etiopatogénese

O agente Bartonella henselae tem um crescimento em cultura muito insidioso (cerca de 5 semanas). O seu principal reservatório é o gato, portador assintomático, em particular com menos de seis meses de idade, o qual infecta o ser humano por inoculação cutânea; com efeito, a bacteriémia (assintomática) nos gatos de menor idade envolve maior carga bacteriana do que a verificada nos gatos com > 6 meses de idade. A infecção é transmitida entre os gatos pela acção dum vector – a pulga Ctenocephalides felis.

Após a lesão na pele provocada pelo arranhão do gato, do qual resulta a inoculação do microrganismo no ser humano, verifica-se o aparecimento de uma pápula ou nódulo e necrose da derme. Posteriormente, há alterações nos gânglios linfáticos locorregionais. O aspecto histológico característico do gânglio linfático consiste em hiperplasia folicular, com necrose cortical e formação de granuloma necrótico com microabcessos centrais.

Granulomas idênticos podem ser encontrados no fígado, baço e sistema ósseo provocando, nesta última localização, lesões osteolíticas.

Importa referir que em cerca de 1% dos casos o microrganismo pode ser transmitido pela saliva do gato inoculado em zona de pele ou mucosa lesada. Nalguns casos, o agente etiológico é B. clarridgeiae. Cães e macacos podem ser reservatório. Não se provou a transmissão de pessoa a pessoa.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação compreendido entre 7 e 12 dias, surge no local da inoculação, em cerca de 60% dos doentes, uma pápula ou nódulo avermelhado de 3-5 mm (Figura 1). Todavia, esta lesão poderá não ser valorizada pelas suas pequenas dimensões. Uma a quatro semanas depois, na maioria dos casos, verifica-se o aumento de volume dos gânglios satélites, com sinais inflamatórios na pele adjacente (Figura 2). As manifestações de adenite verificam-se mais frequentemente na zona da cabeça e pescoço, seguindo-se as extremidades. Em cerca de 10% a 20% dos casos os gânglios linfáticos atingidos supuram espontaneamente. A presença concomitante de sinais e sintomas sistémicos tais como febre, cefaleia e prostração, é frequente.

Ocasionalmente, a doença pode cursar com conjuntivite granulomatosa e adenopatia pré-auricular, constituindo-se a chamada síndroma oculoglandular de Parinaud.

Raramente, podem ocorrer outras alterações como exantema maculopapular, eritema nodoso e púrpura não trombocitopénica. (Figura 3)

FIGURA 1. Nódulo ulcerado com crosta no dorso do polegar após arranhão. (NIHDE)

FIGURA 2. A – Arranhão no polegar esquerdo; B – Adenopatia axilar esquerda. (NIHDE)

FIGURA 3. Exantema maculopapular notório no abdómen. (NIHDE)

Complicações

As complicações neurológicas, em regra com evolução favorável, surgem em cerca de 2%-5% dos doentes, geralmente 6 semanas após o aparecimento da adenite. A complicação mais frequente é a encefalopatia; na sua forma de apresentação clássica podem surgir convulsões, comportamento bizarro e alterações do estado de consciência.

Outras manifestações neurológicas incluem paralisia periférica do nervo facial, mielite, radiculite e ataxia cerebelosa.

As complicações hematológicas incluem anemia hemolítica, púrpura trombocitopénica e não trombocitopénica, assim como, eosinofilia.

A vasculite leucocitoclástica, semelhante à púrpura de Henoch-Schonlein, é rara.

As complicações sistémicas, surgindo com maior probabilidade em doentes imunodeprimidos, constam de quadros clínicos diversos, mais graves tais como: hepatite, anemia hemolítica, pneumonia atípica, retinopatia macular estelar, hepatosplenomegália (por alterações granulomatosas), endocardite, lesões osteolíticas granulomatosas ósseas, eritema nodoso, etc..

Exames complementares e diagnóstico

Existe suspeita desta doença quando, pela anamnese, se comprova contacto com gatos, e pelo exame objectivo se verifica lesão cutânea primária associada a adenopatia satélite.

As provas de serologia permitem a confirmação do diagnóstico utilizando a técnica de imunofluorescência indirecta, sendo a subida do título de anticorpos (IgG e IgM) detectada desde o início dos sintomas. De salientar que existe reactividade cruzada entre as espécies de Bartonella, especialmente entre B. henselae e B. quintana.

Através de exames de biologia molecular/PCR, utilizando como material de estudo amostras obtidas por escarificação da pele lesada, é possível evidenciar a sequência de ácidos nucleicos da Bartonella.

Os exames imagiológicos como a ecografia ou a TAC permitem detectar numerosos nódulos granulomatosos no fígado e baço.

Os resultados anómalos de determinados exames laboratoriais correntes, tais como velocidade de sedimentação elevada, leucocitose ligeira a moderada, ou elevação do valor das aminotransferases em casos de doença sistémica não têm, na maior parte das vezes, grande utilidade, excepto no que respeita à avaliação mais objectiva da repercussão da doença sobre o estado geral do doente.

Nota importante: é desaconselhada a prova cutânea empregando antigénios obtidos de aspirado purulento de lesões ganglionares pela falta de padronização e pelo risco de transmissão da infecção.

Diagnóstico diferencial

A verificação de adenopatias impõe o diagnóstico diferencial com outras situações:

  • de etiologia infecciosa, tais como infecções por Streptococcus Beta-hemolítico do grupo A, S. aureus, espécies de Brucella, citomegalovírus, vírus de Epstein-Barr, VIH, Toxoplasma, fungos; e
  • de etiologia não infecciosa como por ex. lesões tumorais.

A síndroma oculoglandular pode, por sua vez, estar associada a outras afecções tais como sífilis, tuberculose, infecções por Chlamydia, entre outras.

Os nódulos e pápulas cutâneos associados a adenopatia locorregional podem impor o diagnóstico diferencial com infecções por micobactérias atípicas, tuberculose, fungos e leishmaníase.

Tratamento

Sendo na maioria dos casos uma doença autolimitada, com resolução espontânea, o tratamento pode ser apenas sintomático. Todavia, diversos autores referem que a antibioticoterapia contribui para encurtar o tempo de resolução da doença, advogando a sua instituição após o diagnóstico. Nas formas sistémicas e nos doentes imunodeprimidos, tal tipo de tratamento é obrigatório.

A escolha dos antimicrobianos recai na azitromicina PO (10 mg/kg/dia no primeiro dia, 5 mg/kg/dia nos 4 dias seguintes), ou claritromicina PO (15 mg/kg/dia, em 2 doses diárias), 7 a 10 dias.

Nos doentes com repercussões sistémicas verifica-se em geral boa resposta à rifampicina PO (20 mg/kg/dia, de 12/12 horas), isolada ou associada a cotrimoxazol PO (40-100 mg/kg/dia de sulfametoxazol, de 12/12 horas) durante 14 dias. As fluoroquinolonas, em idades > 17 anos, são uma alternativa.

Nota importante: a duração ideal da terapêutica não está estabelecida; os esquemas referidos são os recomendados habitualmente. Os beta-lactâmicos, tetraciclinas e a eritromicina não são eficazes. Em circunstâncias especiais, poderá estar indicada a drenagem cirúrgica dos gânglios linfáticos atingidos.

Prognóstico

O prognóstico é, dum modo geral, excelente, com recuperação em semanas ou meses. Em regra, as manifestações sistémicas surgem em doentes portadores de síndromas de imunodeficiência.

Prevenção

As crianças, em especial as imunocomprometidas, devem evitar contactos íntimos com gatos com menos de 6 meses de idade. Se o indivíduo fôr arranhado pelo gato, a ferida deve ser imediatamente bem lavada. Devem igualmente ser promovidas medidas de controlo da pulga do gato.

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BRUCELOSE

Definição e importância do problema

A brucelose humana é uma doença infecciosa zoonótica causada por microrganismos do género Brucella (coco Gram-negativo cujo crescimento é insidioso).

Também conhecida por febre de Malta, doença de Bang ou febre ondulante, constitui um problema de saúde pública em todo o mundo, sendo de notificação obrigatória em Portugal.

Embora a brucelose seja reconhecida tradicionalmente como uma doença de risco profissional nos adultos, a mesma pode afectar crianças em relação com o consumo de produtos lácteos não pasteurizados e em deficientes condições de higiene.

Salienta-se que na época actual, os microrganismos Brucella constituem uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.

 Aspectos epidemiológicos

A brucelose é a zoonose bacteriana mais frequente no mundo, com uma incidência acima de 500.000 novos casos por ano (incidência oscilando entre 0,03 e 160/100.000 habitantes). Apesar de a doença ser universal, é mais comum na zona do Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia, Américas Central e do Sul. Depois do desmembramento da União Soviética assistiu-se a um recrudescimento da referida doença na Europa de Leste, associado a degradação de condições de vigilância veterinária e de saúde pública.

Como regra, é considerada rara nos países industrializados, com condições de higiene mais regulamentadas. De Portugal, foram obtidos os seguintes dados: -entre 2010 e 2013 foram notificados 249 casos, dos quais 20 abaixo dos 15 anos de idade; – entre 2013 e 2016, 185 casos, sendo 6 abaixo dos 15 anos.

Estatísticas doutro país da Europa (Reino Unido), no período 2013-2016, apontam para ~ 20 casos/ano.

Nos EUA a erradicação da brucelose bovina reduziu a incidência de infecção no homem a 0,5 casos por 100.000 habitantes, embora na fronteira mexicana a prevalência seja 8 vezes superior.

O ser humano é um hospedeiro acidental, contraindo a infecção por contacto directo (feridas da pele) com produtos animais infectados, inalação de microrganismos veiculados por partículas sob a forma de aerossóis e ingestão de leite ou de queijo fresco não pasteurizados, ou ainda de produtos lácteos obtidos de animais infectados. No primeiro caso trata-se frequentemente duma doença profissional de veterinários ou de funcionários de matadouros. (ver Glossário)

A ingestão de leite ou derivados não pasteurizados constitui a forma mais frequente de transmissão da doença em idade pediátrica.

A transmissão inter-humana é rara, tendo sido descrita em relação com transfusões de sangue, transplantação de medula óssea e bancos de esperma.

A transmissão mãe-filho pode ocorrer via transplacentar ou pelo leite materno.

Etiopatogénese

Foram descritas 8 espécies do género Brucella pelas suas características fenotípicas, antigénicas e prevalência da infecção em diferentes hospedeiros; de referir que a sequenciação dos respectivos genomas revelam muitas similitudes.

Os agentes mais comuns responsáveis pela doença humana são: B. melitensis (a partir do gado caprino), B. abortus (a partir do gado bovino), B. suis (a partir do gado suíno) e B. canis (a partir dos cães). Os agentes B. ovis (a partir dos carneiros) e B. neotomae (a partir dos roedores do deserto) não têm sido transmitidos ao Homem.

As bactérias Brucella são parasitas intracelulares facultativos com capacidade de sobrevivência e de multiplicação no interior das células do SRE. Não possuem flagelos, endosporos, cápsula ou plasmidos. A membrana celular externa tem um componente lipopolissacarídeo dominante, o qual constitui o principal factor determinante de virulência da bactéria. B. melitensis e B. suis são mais virulentas que B. abortus.

Todas as espécies de Brucella produzem granulomas no fígado, baço, gânglios linfáticos e medula óssea. A inflamação de tipo granulomatoso poderá também ocorrer na bexiga, testículo (produzindo orquite intersticial com atrofia fibróide), endocárdio (produzindo endocardite com vegetações nas válvulas), cérebro, rim e pele.

A multiplicação dos germes dentro de células do SRE é essencial para a indução da imunidade; com efeito, o organismo hospedeiro responde elaborando anticorpos específicos tais como aglutininas, opsoninas, precipitinas e anticorpos fixadores do complemento contra polissacáridos e outros antigénios da parede celular.

Os anticorpos IgM específicos aparecem dentro de 1 semana após a entrada do germe no organismo, diminuindo após cerca de 3 meses. Os anticorpos IgG aumentam pela 2ª-3ª semana, persistindo nos casos não tratados ou incompletamente tratados. A verificação de reactividade cruzada dos anticorpos específicos para a Brucella com os germes Yersinia, Vibrio cholerae, Salmonella e Francisella resulta da similitude estrutural dos lipossacáridos das membranas dos referidos germes.

O principal determinante do processo de cura da infecção está relacionado com activação dos macrófagos através da acção de linfócitos T que, libertando citocinas (interferão-gama e TNF-alfa), conferem àqueles capacidade para a destruição do microrganismo Brucella.

A característica de crescimento insidioso de Brucella tem implicações práticas no que respeita a exames culturais; com efeito, para excluir resultados negativos verdadeiros dever-se-á esperar 21 dias pelo resultado laboratorial definitivo.

Manifestações clínicas

O período de incubação pode variar entre vários dias a 4-6 semanas.

As queixas de febre arrastada e/ou queixas articulares, associadas à ingestão de alimentos não pasteurizados, devem conduzir à suspeita de brucelose. Na ausência de antecedentes conhecidos de contacto com animais ou de ingestão de leite ou produtos lácteos não pasteurizados, o diagnóstico clínico de brucelose é difícil.

Trata-se duma doença sistémica com início agudo ou insidioso, habitualmente cerca de 2 a 4 semanas após a inoculação da bactéria no organismo. Surgem então manifestações inespecíficas de febre, artralgia, ou artrite, e hepatosplenomegália (30%-40% dos casos), as quais constituem a tríade clássica da doença. A febre, classicamente descrita como ondulante, é elevada, diária podendo acompanhar-se de sudorese nocturna intensa.

É comum a coexistência de sintomas gerais inespecíficos, tais como prostração, anorexia, cefaleias, dor abdominal, tosse e faringite. A doença pode envolver qualquer órgão ou sistema, embora as manifestações articulares sejam mais frequentes.

Em cerca de 30% dos casos, a doença, não se acompanha de febre, podendo manifestar-se apenas por doença articular, sendo mais frequentemente afectadas as articulações sacroilíaca, coxo-femoral e do joelho.

O exame objectivo é pouco informativo, podendo apenas evidenciar discreta hepatosplenomegália ou sinais de artrite. Raramente, pode ocorrer endocardite e meningoencefalite. No jovem, a doença pode manifestar-se por orquite aguda.

Os sinais de localização em órgãos ou sistemas (por ex. miocardite, osteomielite e infecção do tracto génito-urinário) são pouco frequentes. O intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico pode ser cerca de 150 dias, com uma média de 4 semanas.

Diagnóstico

O diagnóstico de suspeita poderá ser fácil nas áreas onde a infecção animal é endémica. Nas áreas não endémicas, o clínico poderá orientar-se valorizando a estadia do doente em áreas endémicas ou a ingestão de leite ou produtos animais provenientes das referidas áreas.

Os achados hematológicos, inespecíficos, poderão evidenciar anemia, hemólise, leucopénia, trombocitopénia ou pancitopénia por hiperesplenismo, hemofagocitose ou compromisso medular. A proteína C reactiva pode estar elevada, assim como a velocidade de sedimentação, especialmente nos casos de compromisso articular.

Existem fundamentalmente três instrumentos laboratoriais para o diagnóstico definitivo: – exame cultural; – serologia e; – provas moleculares.

O diagnóstico definitivo é realizado pelo isolamento da bactéria em hemocultura, líquido articular ou medula, sendo que tal ocorre numa percentagem entre 15% a 75% dos casos na fase aguda, antes da antibioticoterapia; na fase subaguda a percentagem de isolamento da bactéria diminui. Realça-se aqui o que atrás foi dito, tendo em conta as características do crescimento (lento) do agente Brucella: haverá que esperar pelo resultado até 4 semanas.

Por esta razão, e atendendo à fisiopatologia da doença, as provas serológicas através da pesquisa de anticorpos (provas de aglutinação) são fundamentais para o diagnóstico, salientando que os resultados devem ser interpretados em função da anamnese e exame objectivo.

O exame laboratorial de rastreio-padrão é a prova Rosa de Bengala pela elevada sensibilidade, embora a especificidade seja baixa. Este exame utiliza antigénios de B. abortus e detecta anticorpos contra todas as bactérias do género Brucella que contêm LPS. É considerada positiva se os títulos de IgM forem ≥ 1/160, o que acontece na maioria dos casos; contudo, o resultado desta prova poderá ser negativo na primeira semana de doença.

A evolução dos títulos de IgM e de IgG constitui um bom indicador de cura ou de recaída, sendo fundamental para a interpretação dos títulos de anticorpos, quantificar as IgG através de tratamento laboratorial do soro com 2-mercaptoetanol.

Pode utilizar-se a prova enzimática de imunoensaio, de elevada sensibilidade para a detecção de anticorpos anti-Brucella.

Assim, como notas importantes, cabe salientar:

    1. O sucesso do tratamento é seguido por diminuição rápida de anticorpos IgG;
    2. Títulos elevados ou em subida de IgG após tratamento sugerem infecção persistente ou recaída;
    3. Títulos baixos de IgM podem persistir durante semanas ou meses após tratamento da infecção;
    4. Em consonância com o que foi referido atrás, poderão ser encontrados resultados positivos falsos por reacção cruzada (anticorpos contra outros agentes Gram-negativos como Yersinia enterocolitica, Francisella tularensis e Vibrio cholerae);
    5. Poderão ser encontrados resultados negativos falsos devido ao fenómeno pró-zona (presença de títulos elevados de anticorpos anti-Brucella).

No âmbito de novos exames cabe citar:

    • a reacção em cadeia da polimerase (PCR) identifica o ADN do agente Brucella, salientando-se as suas elevadas sensibilidade e especificidade;
    • os achados histológicos são característicos, mas não patognomónicos. A biópsia de um gânglio linfático mostra inicialmente hiperplasia linfóide com proliferação arteriolar.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas de brucelose podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como riquetsioses, febre tifóide, tularémia, tuberculose, infecções por micobactérias atípicas, infecções por fungos (histoplasmose, blastomicose, coccidioidomicose) e vírus (da mononucleose infecciosa, entre outros).

No caso de brucelose persistente haverá que fazer a destrinça com histiocitose maligna, linfoma ou outras doenças neoplásicas.

Em circunstâncias especiais em que a história clínica não é suficientemente elucidativa, poderão estar indicados exames especiais, designadamente imagiológicos e biópsia medular.

Tratamento

Dado que o microrganismo Brucella é uma bactéria intracelular de crescimento insidioso, o tratamento antimicrobiano deve ser sempre duplo e prolongar-se por 4 a 6 semanas nas formas comuns. Nas formas associadas a osteomielite, meningite ou endocardite, o tratamento tem maior duração, 4 a 6 meses.

Chama-se a atenção para o facto de a actividade de muitos antimicrobianos demonstrada in vitro contra Brucella nem sempre corresponder ao resultado clínico desejado.

A doxiciclina é o antimicrobiano mais útil; quando associado a aminoglicosídeo, garante menor percentagem de recaídas. As falências verificadas com beta-lactâmicos, incluindo cefalosporinas de 3ª geração, poderão ser explicadas pela natureza intracelular do microrganismo.

Nesta perspectiva, a chave do êxito terapêutico passa pelo esquema de tratamento prolongado no sentido de minorar a probabilidade de recaídas.

No início do tratamento poderá verificar-se reacção de Herxheimer relacionada com grande carga antigénica libertada com a destruição do agente infeccioso.

O Quadro 1 resume o esquema de tratamento antimicrobiano considerando idade (> 8 anos, igual ou < 8 anos) e situações associadas a meningite, osteomielite e endocardite.

Situações de meningite, endocardite e osteomielite implicam internamento hospitalar, para além de outras situações específicas em função do respectivo contexto clínico. Na meningite por Brucella, a utilização de corticóides como terapêutica adjuvante da antibioticoterapia tem sido recomendada.

Tratando-se duma doença com repercussão sistémica, estão indicadas medidas sintomáticas com analgésicos e antipiréticos.

QUADRO 1 – Tratamento antimicrobiano da brucelose.

> 8 anos de idade
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas; ou Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 semanas + Estreptomicina IM (20-30 mg/kg/dia), dose máxima de 1 g/dia, durante 1-2 semanas, ou Gentamicina IM/IV(3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas.

≤ 8 anos de idade
Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas + trimetoprim (TMP)-sulfametoxazol (SMZ) PO (TMP: 10 mg/kg/dia, dose máxima de 480 mg/dia) e (SMZ: 50 mg/kg/dia, dose máxima de 100 mg/kg/dia), durante 4-6 semanas.

Meningite, Osteomielite, Endocardite
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 meses + Gentamicina IV (3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 meses.

Prognóstico

O prognóstico das formas comuns da doença é excelente, desde que o doente cumpra o regime antibiótico prescrito. Por vezes as famílias não respeitam tratamentos prolongados, o que contribui para recaídas da doença.

Salienta-se que o tratamento com apenas um antimicrobiano comporta risco de recaída da ordem de 5%-40%. As formas letais decorrem de complicações como a endocardite.

Prevenção

Tratando-se duma zoonose, a prevenção desta doença depende, entre outras medidas, e no âmbito da medicina veterinária, dos cuidados no manuseamento de carne e leite de animais e da erradicação da doença no gado caprino, ovino, suíno e bovino (imunização ou abate de animais infectados). Os cuidados com o manuseamento de animais potencialmente infectados devem ser aplicados igualmente pelos caçadores.

Por outro lado, deverá ser proscrita a ingestão de alimentos lácteos não pasteurizados.

A aplicação de vacina viva atenuada utilizada em animais não é praticável na espécie humana.

GLOSSÁRIO

Aerossol > Em Infecciologia significa disseminação aérea de partículas ≤ 5 mm de gotículas evaporadas contendo microrganismos, que permanecem em suspensão durante longos períodos, ou poeiras contendo agentes infecciosos ou esporos; os microrganismos podem dispersar-se até longas distâncias através de correntes de ar.

Plasmido > Elemento genético das bactérias susceptível de ser transmitido de um indivíduo para outro, independentemente dos genes veiculados pela grande molécula de DN.

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INFECÇÕES POR Salmonella

Definição, nomenclatura e importância do problema

O agente Salmonella é um bacilo Gram-negativo, não esporulado, anaeróbio facultativo, que se propaga à espécie humana. É resistente a muitos agentes físicos, sendo destruído a temperatura de 55ºC durante 1 hora ou a 60ºC durante 15 minutos. Mantém-se viável no ambiente a baixas temperaturas durante dias ou semanas em material fecal, resíduos orgânicos, etc.. A doença provocada por tal agente infeccioso, de expressão clínica variada, designa-se dum modo geral salmonelose.

Salmonella é um género da família Enterobacteriaceae cuja classificação taxonómica, algo complexa e confusa, tem mudado ao longo do tempo. (ver adiante)

O referido agente pode originar, após contacto com o organismo, para além da colonização assintomática, 2 síndromas clínicas:

  1. Infecção gastrintestinal (gastrenterite aguda ou prolongada); e
  2. Invasão sanguínea com consequente infecção sistémica.

As infecções por Salmonella (doenças de declaração obrigatória) surgem de forma endémica em várias regiões do globo, designadamente nos países em desenvolvimento, constituindo um problema de saúde pública de grande magnitude, com elevados custos para a sociedade (nos EUA, > de 3 biliões de dólares/ano).

A primeira forma descrita foi a febre tifóide, actualmente com baixa incidência nos países de maiores recursos económicos e rede adequada de cuidados primários e de saneamento básico. Em todo o mundo, estima-se que ocorram anualmente cerca de 20 milhões de casos e 600.000 mortes.

Nos países ditos desenvolvidos, a incidência de febre tifóide é < 15 casos/100.000 habitantes, ocorrendo, sobretudo em cidadãos que viajam e contactam com casos de portadores; em comparação, nos países do terceiro mundo, estima-se incidência da ordem de 100-1.000 casos/100.000 habitantes.

Em Portugal, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, no quadriénio 2010-2013 foram declarados até aos 15 anos de idade (exclusive) 742 casos de salmoneloses (S. typhi e paratyphi) correspondendo a média anual de 185. Neste período da idade pediátrica, a incidência anual média situou-se em ~ 1,85/100.000, inferior à obtida no quinquénio 2003-2007: ~ 3,2/100.000.

No que respeita às salmoneloses não tifóides (ver adiante), estatísticas da OMS referentes aos EUA, apontam, por ano, para ~ 1,4 milhões de casos, 15.000 hospitalizações e ~ 600 óbitos.

Com o desenvolvimento da biologia molecular, a partir de 2004 foi adoptada nomenclatura diversa da anterior relativamente ao género Salmonella em função da homologia genética, sendo que agentes infecciosos com analogias no genoma podem provocar doença de manifestação diversa.

O Quadro 1 pretende elucidar sobre a correspondência quanto a nomenclatura:

– tradicional; versus – actual, de acordo com os CDC (Centers for Disease Control and Prevention).

QUADRO 1 – Salmonella: Nomenclatura tradicional e actual (do CDC).

TradicionalActual
*S. typhiS. entérica, subespécie entérica, serótipo typhi
*S. paratyphi S. entérica, subespécie entérica, serótipo paratyphi A
*S. dublinS. entérica, subespécie entérica, serótipo dublin
*S. typhi muriumS. entérica, subespécie entérica, serótipo typhi murium
*S. enteritidisS. entérica, subespécie entérica, serótipo enteritidis
*S. marinaS. entérica, subespécie houtenae, serótipo marina

De acordo com a classificação tradicional, o género Salmonella (S) engloba mais de 2.500 serótipos caracterizados em função dos respectivos antigénios (O ou somáticos e H ou flagelares).

Actualmente são consideradas subespécies dentro de determinada espécie, salientando-se que cada subespécie contém vários serótipos. (ver adiante)

Relativamente às espécies, ainda hoje é utilizada a divisão em grupos A, B, C, D, E, etc..

A destrinça baseia-se em provas bioquímicas ou em técnicas de hibridação do DNA.

Algumas bactérias Salmonella (particularmente S. typhi) possuem mais um antigénio, o antigénio Vi.

S. typhi, paratyphi A, B, C, typhi murium, enteritidis, etc. têm na espécie humana o único reservatório; noutros, os principais reservatórios são os animais. (ver adiante salmonelose não-typhi)

Neste capítulo são descritas duas formas clínicas: salmoneloses não tifóides e febre tifóide.

1. SALMONELOSES NÃO TIFÓIDES

Aspectos epidemiológicos e etiopatogénese

Os agentes implicados nesta forma clínica são S. dublin, presente no gado em geral (vacum, ovelhas, cabras, etc.), S. cholerae suis, no porco; a maioria dos serótipos pode atingir, contudo, um espectro mais alargado de espécies animais.

Os 2 serótipos mais importantes nas salmoneloses de transmissão de animais à espécie humana são: S. enteritidis (S. enterica – serótipo enteritidis) e S. typhi murium (S. enterica – serótipo typhi murium).

A recrudescência deste tipo de infecções em muitas partes do mundo nas 3 décadas passadas relaciona-se com práticas intensivas em pecuária, traduzidas fundamentalmente por selecção de certas estirpes em resultado do emprego de antimicrobianos de largo espectro para conservação de rações animais preparadas industrialmente.

Como principais factores de risco de surtos de doença não tifóide por Salmonella, citam-se contacto com animais domésticos infectados: cães, gatos, répteis, roedores, galinhas, ovos, anfíbios, etc.; certos serótipos estão tipicamente associados a determinados animais (por ex. S. entérica marina em iguanas).

Outros factores de risco incluem: hemoglobinopatias, paludismo, doença inflamatória intestinal, acloridria, tratamento prolongado com corticóides ou imunossupressores, quimioterapia associada a doença oncológica, infecção por VIH, e défice hereditário de IL-12 comportam maior risco de septicémia e de osteomielite por Salmonella.

Como factores predisponentes, há a salientar défice imunitário e as idades extremas, mais vulneráveis (1ª infância e idade avançada). Os animais domésticos e o Homem adquirem o agente infeccioso através de produtos animais contaminados.

As estirpes resistentes aos antibióticos são também as mais virulentas.

As infecções sucedem-se à ingestão de alimentos contaminados (carne picada, ovos, leite, água, charcutaria, mariscos de concha, pastelaria, etc.) e ao contacto com animais infectados (galinhas, iguanas de estimação ou outros répteis, tartarugas, etc.); no entanto, a propagação também se pode fazer de pessoa a pessoa (epidemias em infantários, hospitais ou instituições em relação sobretudo com superlotação de enfermarias e deficiente lavagem das mãos por parte dos profissionais de saúde que contactam intimamente com doentes ou pessoas em geral). As pessoas infectadas sem sintomas ou portadores crónicos (muitas vezes com litíase biliar) constituem reservatórios de germes microbianos que são fonte de contágio.

Como nota à margem, cita-se que foram descritos casos de transmissão sexual e por via transplacentar.

Para que surja doença sintomática no adulto torna-se necessário que o número de bactérias ingeridas (inóculo) seja ~ 100 a 1.000. A acidez gástrica inibe a multiplicação dos agentes microbianos, sendo que surge morte dos mesmos com pH < 2; pelo contrário, a acloridria gástrica favorece-a (RN e lactente). As situações de esvaziamento gástrico rápido, designadamente as associadas a gastrenterostomias, constituem também factores predisponentes.

Outros factores incluem: serótipo envolvido, porta de entrada, doenças comprometendo os mecanismos de defesa imunitária, uso prévio de antimicrobianos, etc..

A resposta inflamatória típica da mucosa intestinal na infecção por Salmonella não tifóide é um processo de enterocolite com edema difuso da mucosa, por vezes com erosões e microabcessos.

Os agentes Salmonella (bactérias invasivas) localizam-se sobretudo no intestino (íleo terminal e intestino grosso): aderindo primeiramente às microvilosidades, são depois englobados pelo enterócito (por mecanismo semelhante à pinocitose, penetrando através da membrana da célula da bordadura em escova), ocupando o respectivo citoplasma sem se multiplicarem; tal processo de multiplicação, ocorrendo nos macrófagos após cerca de 24 horas ao atingirem a lâmina própria, conduz a reacção inflamatória com estimulação do AMP cíclico, libertação de prostaglandinas, etc..

Embora S. typhi murium possa originar doença sistémica na espécie humana, da infecção intestinal, geralmente, resultam:

  • resposta secretória do epitélio intestinal (por acção de enterotoxinas com consequente diarreia secretória); e
  • indução de secreção de IL-8 e outros mediadores ao nível dos lisossomas das células da bordadura.

Caso se verifique recrutamento e transmigração de neutrófilos até ao lume intestinal, a disseminação da bactéria fica condicionada.

Da interacção entre Salmonella e macrófagos resulta alteração na expressão de certos genes do hospedeiro, incluindo os que codificam mediadores pró-inflamatórios (sintetase do NO, IL-1b), receptores ou moléculas de adesão (TNF-alfa R, CD40, molécula de adesão intercelular-1 (ICAM-1), mediadores anti-inflamatórios (TGF-beta 1 e beta 2), assim como genes envolvidos no processo de morte celular e de apoptose.

Salienta-se que existem genes específicos de virulência cuja acção se traduz na capacidade para invasão da corrente sanguínea (bacteriémia). Estes genes encontram-se com maior frequência em estirpes de S. typhi murium isoladas do sangue e das fezes.

As estirpes de S. dublin têm maior propensão para invadir rapidamente a corrente sanguínea, ao mesmo tempo que existe menor ou nula acção patogénica intestinal.

A bacteriémia é possível, contudo, com qualquer serótipo de Salmonella, especialmente em indivíduos com défice imunitário ou compromisso do sistema reticuloendotelial.

A IL-12, produzida por macrófagos activados, é um potente indutor de interferão-gama através dos linfócitos T e das células natural killer. Considerando o possível papel protector da IL-12 contra a infecção por Plasmodium, a circunstância de fagócitos conterem/estarem infectados por Salmonella pode afectar secundariamente a produção de IL-12 e levar a situação de círculo vicioso de coinfecção Plasmodium e Salmonella.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas da salmonelose não tifóide dependem essencialmente de dois factores:

  • infecção confinada ao tubo digestivo; ou
  • disseminação da infecção com focos extraintestinais.

Assim, poderão surgir: gastrenterite aguda, bacteriémia e infecções focais extra-intestinais.

Gastrenterite aguda

Trata-se da forma de apresentação mais frequente, podendo manifestar-se, após período de incubação geralmente inferior a 24 horas, variando entre 6 e 72 horas.

Fora do período neonatal, o quadro clínico, com uma duração entre 1 a 2 semanas, integra essencialmente náuseas, com ou sem febre, vómitos, dor abdominal e diarreia aquosa, por vezes muco-sanguinolenta.

No recém-nascido, em situações acompanhadas de imunossupressão ou de carga infectante considerável, e em função do serótipo em causa, pode seguir-se bacteriémia com repercussão sistémica grave acompanhada de leucocitose (quadro simile septicémia e/ou ou meningite-cefaleias, prostração, confusão mental, convulsões, distensão abdominal e meningismo). As fezes contêm polimorfonucleares e, nos casos não associados a fezes sanguinolentas, sangue oculto.

Cerca de 0,5% a 1% das crianças infectadas por S. não-typhi tornam-se portadoras e excretoras pelas fezes durante período indeterminado, com maior frequência em crianças de idade inferior a 1 ano.

Bacteriémia

Surgindo em cerca de 1% a 5% dos casos com diarreia, é mais frequentemente associada a sintomas em crianças maiores. O prolongamento da febre > 5 dias no contexto de gastrenterite por Salmonella sugere bacteriémia.

Esta pode estar associada a choque séptico – o que se tem verificado nos países em desenvolvimento – e surgir com recorrências em doentes com infecção por VIH apesar da antibioticoterapia.

Têm sido descritas com frequência considerável (~ 40%-70%) formas de doença invasiva provocada por S. typhi murium e S. enteritidis no continente africano em doentes com infecção por VIH e malária.

Infecções focais extraintestinais

Esta forma pode seguir-se à bacteriémia com formação de focos infecciosos em diversos sistemas, designadamente se a esse nível existem lesões com susceptibilidade para infecção (sistema esquelético, áreas de enfarte ósseo, próteses ósseas, meninges, encéfalo, alterações vasculares relacionadas com cateteres, etc.).

O pico de incidência da meningite por Salmonella verifica-se na 1ª infância; este quadro é associado a manifestações sistémicas importantes e comporta risco elevado de sequelas neurológicas e de mortalidade.

 Complicações

As complicações mais frequentes são a desidratação por gastrenterite e artrite reactiva pós-gastrenterite, sobretudo em adolescentes com o antigénio HLA-B-27.

Muitas das complicações podem, por outro lado, corresponder a manifestações da própria doença, a qual assume um carácter mais arrastado e mais grave, evoluindo para septicémia, ou recorrente; tal poderá acontecer, nomeadamente, em crianças com < 6 meses de idade, se existir patologia de base como doença inflamatória crónica, malária, infecção por VIH, anemia hemolítica, esquistossomíase, etc..

Nos doentes com esquistossomíase, o agente Salmonella poderá persistir e multiplicar-se dentro dos esquistossomas, levando a infecção crónica, somente curada após tratamento efectivo da esquistossomíase.

Diagnóstico

Nas situações de gastrenterite, o diagnóstico baseia-se no isolamento do agente, sendo preferível nas fezes relativamente à zaragatoa rectal (de salientar que a eliminação pelas fezes pode ser intermitente e prolongar-se durante semanas ou meses).

A verificação de muco, sangue e leucócitos indicia colite; de salientar que a presença de leucócitos nas fezes aponta para a presença de germe invasivo ou de germe produtor de citotoxina incluindo Salmonella (o que igualmente acontece com Shigella, Campylobacter jejuni e E. coli invasivo, obrigando a diagnóstico diferencial. (ver adiante)

Havendo sinais evidentes de focos de supuração, está indicada a pesquisa em aspirados a partir dos respectivos locais para coloração pelo Gram e exame cultural. Embora os agentes Salmonella cresçam bem em meios não selectivos ou enriquecidos (por ex. agar-sangue), e existência de microbiota mista obriga a utilizar meios selectivos (por ex. MacConkey).

Em alternativa aos exames culturais, podem utilizar-se técnicas PCR. Outras técnicas (rápidas) incluem a de aglutinação pelo látex e a imunofluorescência.

Nos casos de colite está indicada endoscopia, identificando-se padrão que pode sugerir colite ulcerosa.

Através do estudo serológico podem ser detectados anticorpos utilizando diversas técnicas.

Nos casos de doença invasiva estão indicados exames culturais a partir do sangue, urina, LCR e das lesões metastáticas (por exemplo medula óssea).

Nota importante: em crianças com < 3 meses, assim como nos casos de crianças imunocomprometidas com isolamento positivo das fezes, independentemente de haver, ou não sintomas sugestivos de bacteriémia, está indicada hemocultura.

Diagnóstico diferencial

As formas de salmonelose não-typhi traduzidas por gastrenterite evidenciam sintomatologia semelhante à das gastrenterites provocadas por outros germes microbianos, por ex. Shigella, E. coli, Yersinia enterocolitica, Entamoeba histolytica, Campylobacter jejuni, Clostridium difficile, etc., sendo a destrinça feita através de exames culturais ou análises pelos métodos ELISA e PCR.

Nos casos de diarreia persistindo mais de 14 dias, poderão estar indicados exames para avaliar síndroma de má-absorção, incluindo endoscopia e biópsia do intestino delgado.

Tratamento

O esquema de tratamento varia em função da idade e apresentação clínica.

Nos casos de gastrenterite estão indicadas as medidas aplicáveis a situações com etiologia diversa. Os antibióticos não estão em geral indicados por suprimirem a microbiota intestinal normal e poderem prolongar a excreção de Salmonella, havendo risco de se criar estado de portador crónico.

Contudo, dado o risco de bacteriémia em crianças com < 3 meses de idade e de disseminação de infecção em indivíduos imunocomprometidos, nestes casos está indicada antibioticoterapia empírica até conhecimento dos resultados do exame cultural:

  • cefotaxima (100-200 mg/kg/dia em 4 doses) durante 5-14 dias; ou
  • ceftriaxona (75 mg/kg/dia em 1 dose) durante 7 dias; ou
  • ampicilina (100 mg/kg/dia em 4 doses) durante 7 dias; ou
  • cefixima (15 mg/kg/dia) durante 7-10 dias.

Dada a possibilidade de aparecimento de multirresistências aos antibióticos, em casos de infecção por agente Salmonella, está indicada a avaliação da sensibilidade. A propósito, salienta-se que a estirpe S. typhi murium, fago do tipo DT104 é geralmente resistente a: ampicilina, cloranfenicol, estreptomicina, sulfonamidas e tetraciclina.

 Prognóstico

Desde que não existam factores de risco (infecções crónicas antes referidas, má-nutrição, défice imunitário), as crianças com gastrenterite recuperam completamente da doença.

No entanto, reiterando o que foi dito antes, Salmonellas não tifóides poderão continuar a ser excretadas durante semanas; o tempo de excreção prolongado (< 1%) é mais frequente em crianças com litíase biliar no contexto de hemólise crónica. Esta situação poderá contribuir como fonte de contaminação fecal-oral ou através de alimentos.

Prevenção

Para evitar a transmissão de infecções por Salmonella à espécie humana torna-se necessário:

  1. Controlar a infecção nos reservatórios animais;
  2. Utilizar judiciosamente antibióticos no âmbito da indústria de lacticínios e da medicina veterinária;
  3. Prevenir a contaminação de alimentos, nomeadamente no âmbito da indústria e comércio alimentares;
  4. Garantir a confecção doméstica de refeições em condições de higiene relacionadas, não só com os próprios alimentos, mas também com o pessoal envolvido, o ambiente e o equipamento utilizado.

As medidas de prevenção englobam igualmente: – cuidados de isolamento com répteis e anfíbios (quer os ditos de companhia doméstica, quer os públicos em jardins zoológicos e exposições), evitando o contacto com pessoas; e – condições especiais de segurança (implicando nomeadamente possibilidade de lavagem das mãos).

Relativamente a vacinas contra infecções por Salmonella não tifóide, actualmente as mesmas somente estão disponíveis para aplicar em animais.

2. FEBRE TIFÓIDE ou ENTÉRICA

Definição e importância do problema

A entidade febre tifóide (também designada por alguns autores febre entérica) diz respeito à infecção por Salmonella enterica serótipo typhi e Salmonella entérica serótipo paratyphi A.

Reiterando o que foi descrito anteriormente, cumpre referir que a distribuição geográfica da febre tifóide é universal, com uma incidência anual de 20 milhões de casos e de 600.000 mortes.

É endémica em países em vias de desenvolvimento, especialmente na Ásia, África e América Latina.

Embora rara no nosso meio, justifica-se a sua abordagem pela facilidade actual de transportes, e pela probabilidade de ocorrência de casos em viajantes retornados de áreas endémicas.

Aspectos epidemiológicos

Uma das particularidades da epidemiologia da febre tifóide é a emergência de resistência do respectivo agente infectante a antimicrobianos usados (multirresistência), por vezes na sequência de surtos esporádicos.

O mecanismo de tal resistência adquirida tem sido relacionado:

  1. Com a intervenção de plasmidos (o que acontece com ampicilina, cloranfenicol e sulfametoxazol-trimetoprim); e
  2. Com a intervenção cromossómica (quinolonas se usadas indiscriminadamente).

Outra particularidade diz respeito à adaptação de S. typhi à espécie humana, significando que o agente perdeu a capacidade de se transmitir a outros animais. Admite-se que tal facto se deve a fenómeno de degenerescência de genes.

Assim, o contacto directo ou indirecto com uma pessoa infectada (doente ou portador crónico) constitui pré-requisito para a infecção.

A contaminação pode verificar-se através de mariscos e ostras obtidos em viveiros próximos de esgotos, ou a ingestão de alimentos ou água contaminados com fezes humanas por S. typhi ou paratyphi A (ausência de saneamento básico).

Etiopatogénese

Para além da implicação do agente referido anteriormente (Salmonella enterica serótipos typhi e paratyphi A), pode também surgir doença idêntica mais ligeira provocada por S. paratyphi B (Schotmulleri) e S. paratyphi C (Hirschfeldii), respectivamente na proporção de 10/1 casos. O Homem (doente ou portador) constitui o único hospedeiro das referidas bactérias. (ver adiante)

Em termos de património genético, cabe referir que S. typhi partilha muitos genes com Escherichia coli e com S. typhi murium, alguns dos quais são conhecidos pela sua patogenicidade, e outros, adquiridos durante a evolução dos respectivos agentes infecciosos.

Um dos genes mais específicos de S. typhi é o chamado Vi, o qual está presente em cerca de 90% das estirpes, com efeito protector contra a acção bactericida do soro de doentes infectados.

Após ingestão, o número de microrganismos S. typhi para provocar infecção pode oscilar entre 100 e 1.000. Os mesmos, atingindo a mucosa intestinal, penetram depois em determinados enterócitos especializados (células M do íleo terminal encimando as áreas de tecido linfóide – as placas de Peyer), ou atravessam o espaço intercelular. Em qualquer das modalidades de passagem transepitelial, atingem o tecido linfóide mesentérico e os vasos linfáticos até aos vasos sanguíneos. Inicia-se assim bacteriémia (chamada primária), assintomática, a que correspondem em geral culturas negativas.

Os agentes S. typhi disseminam-se, então, pelo organismo colonizando órgãos do SRE (baço, fígado, vesícula biliar, medula óssea), multiplicando-se no interior de macrófagos.

Após período de multiplicação, os referidos S. typhi voltam novamente à corrente sanguínea, originando nova bacteriémia (agora chamada secundária), a qual coincide com o início de sintomas e corresponde ao fim do período de incubação (de duração variável, em função da magnitude do inóculo).

A infecção com S. typhi produz uma resposta inflamatória nas camadas mais profundas da mucosa e tecido linfóide subjacente com hiperplasia das placas de Peyer e subsequente necrose que pode levar a ulceração do epitélio suprajacente; por sua vez, como consequência da lesão da muscularis e peritoneu, surgirá perfuração da parede intestinal.

As úlceras podem sangrar e curar depois sem cicatriz, ou originar estenose intestinal. Ao nível dos gânglios mesentéricos, fígado e baço, a par do processo inflamatório, verificam-se áreas de necrose focal.

Admite-se que, através dos genes de virulência (incluindo SPI-2, TTSS) exista capacidade para o agente infeccioso provocar infecção sistémica. O antigénio capsular polissacarídeo de virulência (Vi) interfere com a fagocitose prevenindo a ligação de C3 à superfície da bactéria.

A capacidade de os microrganismos sobreviverem dentro de macrófagos (outra característica de virulência) é também determinada geneticamente (gene phoP).

A ocorrência ocasional de diarreia pode ser explicada por enterotoxina termolábil (similar a enterotoxina produzida por E. coli e vibrião colérico).

A síndroma clínica constituída por febre e sinais sistémicos deve-se à libertação de citocinas pró-inflamatórias a partir das células infectadas (IL-6, IL1-beta, TNF-alfa).

Os doentes com infecção por VIH, e Helicobacter pylori têm especial predisposição para febre tifóide.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas revelam-se após período de incubação, oscilando entre 7 e 14 dias, com limites entre 3-60 dias. Classicamente são descritos cinco períodos:

1 – Período inicial (duração ~ 7-10 dias) com sintomatologia geral de início agudo ou insidioso integrando mal-estar geral, anorexia, dor abdominal, vómitos, diarreia ou obstipação, hepatosplenomegália; e também febre alta (39-40ºC) com frequência cardíaca não proporcional à febre (classicamente bradicárdia com febre).

2 – Período de estado (duração ~ 7-14 dias) caracterizado por exacerbação da sintomatologia descrita no período inicial, sendo notória a febre elevada. Neste período poderá surgir exantema maculopapular de cor rósea na face anterior do tórax e abdómen, desaparecendo à pressão e surgindo em surtos; é a chamada roséola tífica com valor de grande sensibilidade para o diagnóstico, mas de fraca especificidade por ser inconstante. Neste período poderão surgir complicações que são descritas adiante.

3 – Período de declínio (duração ~ 7 dias) associado a oscilações da temperatura, com febre cada vez menos elevada e melhoria progressiva dos sinais gerais.

4 – Período de convalescença (duração variável): astenia, emagrecimento e, por vezes, febrícula de curta duração; nalguns casos surge queda de cabelo e descamação da pele.

De salientar que existem variantes quanto a manifestações clínicas: forma clínica em que predomina hiperpirexia; forma subfebril ou acompanhada de febre intermitente, mas prolongada; forma acompanhada de miocardite ou pneumonia traduzindo repercussão especial ao nível de determinados territórios, etc..

Estima-se que cerca de 10% dos doentes com febre tifóide eliminam pelas fezes S. typhi durante 3 meses, e que em cerca de 4% dos casos se verifica o estado de portador crónico (risco, no entanto, que é superior no adulto).

Complicações

Hoje em dia raras, tendo em conta o diagnóstico e antibioticoterapia precoces, surgem habitualmente ao cabo de 3-4 semanas de evolução:

  1. Enterorragia, em cerca de 1% dos casos (por vezes subtil e microscópica);
  2. Abcesso intestinal;
  3. Perfuração intestinal (0,5%-1%), esta última a complicação de maior gravidade, podendo levar a peritonite.

Complicações raras incluem endocardite, miocardite tóxica, choque cardiogénico, neurológicas (ataxia cerebelosa, coreia, síndroma de Guillain-Barré, necrose da medula óssea, SHU, meningite, etc.).

Exames complementares

O diagnóstico de febre tifóide é fundamentalmente clínico, a confirmar pela realização dos seguintes exames:

  • Identificação do microrganismo (utilizando diversas técnicas) e em diversos locais: fezes (eliminação intermitente), sangue, medula óssea, bílis, LCR, etc.;
    A hemocultura (o melhor método para o diagnóstico) é positiva em 60%-80% dos doentes na fase precoce da doença desde que não tenha havido antibioticoterapia prévia. A coprocultura e a urocultura são positivas após a 1ª semana; a coprocultura poderá já ser positiva durante o período de incubação. O mielocultura, pela sua elevada sensibilidade, aumenta a probabilidade de confirmação bacteriológica, com o inconveniente de se tratar de técnica invasiva.
  • Estudo serológico (detecção de anticorpos utilizando diversas técnicas).
    Pela reacção de Widal, pesquisando o título de anticorpos aglutinantes ou aglutininas para os antigénios O e H; em geral, a reacção é negativa na primeira semana, positivando a partir desta data – para o antigénio O entre o 7º e 12º dia, e para o antigénio H entre o 8º e o 15º dia.
    Os resultados da reacção de Widal devem ser interpretados devidamente pelas seguintes razões:
    • somente em 30% a 50% dos doentes se verifica elevação dos títulos;
    • em 30% dos casos o resultado é falsamente negativo;
    • a imunização antitífica prévia e infecções anteriores por outros germes, designadamente enterobacteriáceas (partilhando com os agentes Salmonellas similitude de antigénios capsulares) poderão determinar a elevação de aglutininas O e H;
    • o nível sérico de aglutininas em indivíduos sãos varia de região para região endémica;
    • a utilização anterior, em fase precoce da doença, quer de corticóides, quer de antibióticos pode modificar também a evolução da resposta serológica;
    • Portanto, não se trata duma prova específica.
  • Prova da PCR (da reacção em cadeia da polimerase), prova rápida PCR usando H1-d primers para amplificação de genes específicos de S. typhi, prova rápida na urina para identificação do antigénio Vi, reacção ELISA (reacção imunoenzimática), reacção de contra-imunoelectroforese, anticorpos monoclonais, etc..
  • Exames para avaliação global: hemograma (os achados, inespecíficos, habitualmente detectados, são: anemia, leucopénia com neutropénia, eosinopénia e linfocitose relativa; nas crianças pequenas pode haver leucocitose; a leucocitose também poderá significar doença intercorrente; trombocitopénia pode corresponder a doença grave e acompanhar CIVD); as provas de função hepática poderão evidenciar anomalias, o que é raro.

Diagnóstico diferencial

As salmoneloses typhi e paratyphi evidenciam globalmente sintomatologia semelhante a doenças infecciosas de etiologia diversa (por ex. mononucleose infecciosa, malária, calazar, tuberculose, brucelose, endocardite bacteriana, etc.) e a doenças não infecciosas (conectivites, linfomas, leucemias, etc.).

A febre paratifóide originada por S. paratyphi cursa com um quadro clínico semelhante ao da febre tifóide, em geral mais ligeiro, com período febril mais curto e menor frequência de complicações (excepto no lactente). O período de incubação é mais curto e a diarreia surge mais frequentemente.

Tratamento

Medidas gerais

Na maioria dos casos de febre tifóide é possível o tratamento em regime ambulatório com vigilância médica rigorosa (detecção de complicações e de eventual ausência de resposta ao tratamento) e antibioticoterapia oral.

A hospitalização, pressupondo antibioticoterapia parentérica e fluidoterapia IV, está indicada perante vómitos persistentes, diarreia grave, distensão abdominal e compromisso do estado geral.

As medidas gerais incluem repouso, regime alimentar simples, mole, facilmente digerível, hidratação, correcção das alterações hidroelectrolíticas, e antipirexia com paracetamol PO (10-15 mg/kg/dose, 3 a 4 vezes, até dose máxima de 80 mg/kg/dia).

Verificando-se íleo paralítico ou distensão abdominal, deve proceder-se a pausa alimentar.

Tratamento antimicrobiano

São descritos dois esquemas aplicáveis a infecções por S. typhi e paratyphi (respectivamente febre tifóide e paratifóide), respeitando sempre o resultado das provas de sensibilidade aos antimicrobianos:

  1. → Esquema recomendado pela OMS, não consensual entre os peritos, designadamente no que respeita às fluoroquinolonas, indicadas somente a partir da adolescência tardia. (Quadro 2)

QUADRO 2 – Tratamento antimicrobiano da febre tifóide (segundo a OMS).

1 – Formas não complicadas

    • Sensibilidade comprovada
      • cloranfenicol PO ou IV (50-75 mg/kg/dia) em 4 doses durante 14-21dias; ou
      • amoxicilina PO ou IV (75-100 mg/kg/dia) em 3 doses durante 14 dias.
    •  Multirresistência
      • fluoroquinolona PO (15 mg/kg/dia) em 2 doses durante 5-7 dias; ou
      • cefixima PO (15-20 mg/kg/dia) em 2 doses durante 7-14 dias.
    • Resistência a quinolonas
      • azitromicina PO (8-10 mg/kg/dia) em 1 dose durante 7 dias; ou
      • ceftriaxona IV ou IM (75 mg/kg/dia) em 1dose durante 10-14 dias.

2 – Formas complicadas

    • Sensibilidade comprovada
      • fluoroquinolona (por ex. ciprofloxacina) idem durante 10-14 dias;
      • ceftriaxona idem.
    • Multirresistência
      • fluoroquinolona idem durante 10-14 dias.
    • Resistência a quinolonas
      • ceftriaxona idem;
      • cefotaxima (80 mg/kg/dia) durante 10-14 dias.

2.→ Esquema alternativo

2.1 – O tratamento de primeira linha face a estirpes sensíveis consiste na administração de ampicilina IV (200 mg/kg/dia em 4 doses durante 10-14 dias), trimetoprim/TMP-sulfametoxazol/SMX PO (10 mg/kg/dia de TMP + 50 mg/kg/dia de SMX em 2 doses durante 10-14 dias) ou fluoroquinolonas (por ex. ciprofloxacina PO (15-30 mg/kg/dia durante 10-14 dias), sendo que é dada preferência aos dois últimos antimicrobianos por se tratar de microrganismo intracelular.

2.2 – Se houver suspeita de estirpe resistente, utiliza-se a ceftriaxona IV ou IM (100 mg/kg/dia durante 14 dias) até se conhecer o perfil de sensibilidade; como alternativa: cefotaxima IV (150 mg/kg/dia em 4 doses durante 14 dias), ou ofloxacina PO (15 mg/kg/dia em 2 doses) durante 10 dias.

2.3 – Em casos resistentes, determinados estudos demonstraram boa resposta com azitromicina.

Corticosteróides

O tratamento com corticosteróides, indicado em situações críticas de choque, coma ou estado confusional, diminui a mortalidade. Recomenda-se dose inicial de dexametasona de 3 mg/kg IV em 30 minutos, seguida de 1 mg/kg/dia em 4 doses durante 2 dias.

Prognóstico

Apesar do tratamento, poderão surgir recaídas (manifestadas fundamentalmente por febre e outras manifestações),em cerca de 5%-15% dos casos no período de convalescença; as mesmas são explicáveis pela manutenção do microrganismo acantonado na vesícula biliar ou gânglios mesentéricos, regiões de difícil acesso aos antimicrobianos.

De acordo com dados da literatura, são mais frequentes após tratamento com cloranfenicol ou amoxicilina, obtendo-se maior percentagem de curas com quinolonas ou cefalosporinas de 3ª geração.

Os indivíduos que excretam o microrganismo durante período > 3 meses após episódio de infecção são considerados portadores crónicos (< 2% no casos pediátricos, valor que corresponde a proporção mais baixa do que a verificada na idade adulta).

Nos casos de esquistossomíase pode verificar-se estado de portador urinário crónico.

As recidivas correspondem a novo episódio de febre tifóide após se ter verificado cura do primeiro episódio.

Prevenção

Os aspectos gerais mais importantes de prevenção da doença diarreica infecciosa (em idade pediátrica, e não só) dizem respeito fundamentalmente à prática de medidas de higiene simples:

  • lavagem frequente das mãos com água e sabão;
  • utilização de água não contaminada na alimentação (fervida ou engarrafada com garantia) e como bebida simples;
  • cuidados de isolamento e conservação (rede de frio);
  • confecção dos alimentos, com especial atenção para a lavagem adequada de alimentos não submetidos a fervura.

A sigla em língua inglesa dos “três FFF” – Food, Flies, Fingers (alimentos, vectores, dedos das mãos) traduz bem a necessidade de detectar, controlar e eliminar as fontes de infecção, tanto animais como humanas. Chama-se mais uma vez a atenção para o papel dos répteis domésticos na transmissão de Salmonella, tornando-se indispensável que crianças com idade inferior a 5 anos ou pessoas com síndromas de imunodeficiência de qualquer etiologia não contactem com tais animais.

Em alínea anterior foi dada ênfase aos alimentos contaminados que poderão estar implicados na cadeia de transmissão de germes microbianos.

Outra medida diz respeito à imunização antitífica indicada em situações especiais (por exemplo deslocação para zonas endémicas com elevada prevalência de estirpes de Salmonella typhi multirresistente).

Na confecção de tais vacinas (de três tipos) são utilizadas subunidades antigénicas e células bacterianas atenuadas, tendo sido demonstrada relativa eficácia (< 100%) em crianças de idade escolar, no adolescente e no adulto:

  1. Vacina oral viva atenuada (Ty21a); é uma vacina imunogénica a partir dos 2 anos, devendo repetir-se de 5-5 anos;
  2. Vacina morta por via parentérica (inactivação pelo fenol e calor, holocelular);
  3. Vacina parentérica à base de polissacáridos capsulares (ViCPS ou Vi Conjugada) para crianças com > 2 anos, a repetir de 2-2 anos.

Em Portugal, é recomendada a vacina à base de polissacáridos com a indicação atrás expressa, conferindo protecção durante três anos.

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