Definição e importância do problema

A febre recorrente é uma doença infecciosa pouco comum, caracterizada por episódios recorrentes de febre. A mesma é causada por espiroquetas do género Borrelia, os quais se transmitem à espécie humana por dois artrópodes-vectores distintos, respectivamente: o piolho Pediculus humanus e a carraça da espécie Ornithodoros erraticus.

Trata-se duma doença de distribuição mundial, salientando-se o aparecimento de epidemias na África Oriental. A doença em lactentes é responsável por cerca de 5% do total de casos.

Aspectos epidemiológicos

A febre recorrente epidémica é causada pelo agente Borrelia recurrentis; foram descritas epidemias na costa oriental de África, designadamente Sudão e Etiópia.

A febre recorrente endémica é causada por cerca de 15 espécies de Borrelia; as mais comuns são B. hermsii e B. turicatae, prevalentes na parte ocidental dos EUA, B. dugesi no México e América Central, B. hispanica em Espanha, e B. persica na Ásia.

Estas espécies de Borrelia (recurrentis) são distintas das associadas a outras doenças, nomeadamente à doença de Lyme.

Uma característica particular destes germes bacterianos é a contínua mutação de genes determinando grande variação de antigénios ao longo do tempo. Assim, o agente Borrelia isolado num primeiro episódio febril será antigenicamente diferente dos agentes isolados em episódios subsequentes, o que explica a natureza cíclica da infecção.

Etiopatogénese

A febre recorrente epidémica é transmitida ao homem pelo piolho Pediculus humanus, que ingere o espiroqueta ao alimentar-se do sangue de um doente. Ao ser esmagado pelo homem, os fluidos do piolho contaminam o local da picada.

Por outro lado, feridas da pele decorrentes do efeito traumático de lesões de coceira permitem a entrada em circulação do espiroqueta.

Esta infecção está associada a precárias condições de higiene e saneamento. Actualmente é mais frequente na Etiópia, Somália e Eritreia, tendo sido associada aos desastres sociais e guerra naquela região do globo.

A febre recorrente endémica é transmitida ao homem por carraças do género Ornithodoros, infectadas a partir de roedores selvagens. A saliva do artrópode que pica o homem permite a entrada de Borrelia na circulação sanguínea. Salienta-se que nos abrigos de montanha de parques naturais existem condições propícias para contrair a infecção.

Durante os episódios febris, os espiroquetas, entrando na corrente sanguínea, promovem o desenvolvimento de anticorpos específicos IgM e IgG, os quais actuando contra determinadas espécies antigénicas, contribuem para a “depuração” de determinadas variantes, restando contudo incólumes outras variantes de espécies que poderão proliferar e originar ulteriormente outros episódios.

Ou seja, durante a fase de remissão os espiroquetas Borrelia podem permanecer na corrente sanguínea, podendo originar novos episódios em função do número remanescente. A eliminação dos referidos microrganismos dependerá da efectividade do tratamento.

Salienta-se que os microrganismos podem ser sequestrados, fagocitados e sofrendo lise, no fígado, baço, sistema nervoso central, e/ou medula óssea.

Manifestações clínicas

Após um período de incubação médio de 7 dias (2-18 dias), verifica-se o aparecimento súbito de febre alta com calafrio, sudorese, cefaleias, mialgias, fraqueza muscular e artralgias.

O episódio inicial febril termina ao fim de 4 a 7 dias com um quadro agudo marcado por diaforese, hipotermia, hipotensão, bradicárdia e fraqueza muscular profunda.

De acordo com o que foi referido antes, nos doentes sem tratamento a febre poderá surgir de novo ao fim de uma semana com manifestações de síndroma gripal.

Poderão ocorrer cerca de 10 episódios de febre; todavia os episódios sintomáticos tornam-se progressivamente mais espaçados e mais moderados. Ou seja, verifica-se um aumento gradual dos períodos de remissão.

As picadas, quer da carraça, quer do piolho, são assintomáticas.

É comum surgir exantema macular fugaz no tronco, podendo generalizar-se ou tornar-se petequial. O exame objectivo poderá evidenciar, também, hepatosplenomegália.

Poderão também surgir trombocitopénia, icterícia, iridociclite, pneumonia, meningite ou miocardite.

Sinais de discrasia hemorrágica são comuns na febre epidémica, mas não na endémica.

Diagnóstico

Apesar de a história epidemiológica ser extremamente valiosa, levantando forte suspeita, torna-se fundamental proceder à identificação de Borrelia no sangue durante o episódio febril: a observação ao microscópio do esfregaço de sangue periférico corado pelos métodos de Wright e Giemsa permite, assim, o diagnóstico.

O diagnóstico também pode ser realizado por imunofluorescência indirecta.

O estudo molecular, atilizando a PCR é igualmente útil.

Salienta-se que o estudo serológico está fortemente limitado pela grande variabilidade antigénica a que atrás se fez menção. Por outro lado, salienta-se que existe reacção serológica cruzada com outros espiroquetas, designadamente com Borrelia burgdorferi, agente da doença de Lyme.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas da febre recorrente podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como malária, riquetsioses, brucelose, febre tifóide, tularémia, vírus da dengue, hepatite vírica ou leptospirose, pelo que a epidemiologia e a história clínica devem ser devidamente valorizadas.

Tratamento

Os objectivos essenciais do tratamento são eliminar os espiroquetas do sangue e prevenir ou controlar a reacção de Jarisch-Herxheimer resultante da destruição maciça de microrganismos.

Existe uma larga gama de antibióticos eficazes.

O tratamento da febre recorrente, epidémica ou endémica, consiste na administração de eritromicina PO 50 mg/kg/dia, 4 vezes por dia, durante 10 dias, em crianças pequenas. Acima dos 8 anos, pode considerar-se ainda a tetraciclina PO (500 mg 4 vezes por dia) ou doxiciclina PO (100 mg 2 vezes por dia), durante 10 dias.

Aspecto importante da antibioticoterapia é a possibilidade de ocorrência da já referida reacção de Jarisch-Herxheimer (J-H), associada a níveis elevados de TNF-alfa, IL-6 e IL-8.

Por isso, é recomendável que se mantenha linha IV com soro fisiológico para eventual tratamento do choque anafiláctico na eventualidade de surgir a reacção. Está em investigação o tratamento da reacção de J-H com anticorpos anti-TNF-alfa.

Prognóstico

Com tratamento adequado em regime hospitalar, a mortalidade em doentes com febre recorrente é < 2%. A febre recorrente epidémica sem tratamento pode comportar mortalidade elevada, entre 10% a 70% dos casos.

Prevenção

A prevenção faz-se através da erradicação dos vectores. A melhoria dos cuidados de higiene pessoal é essencial para a prevenção da febre recorrente epidémica. Quanto à febre recorrente endémica, o uso de roupa adequada, de repelentes e a desinfestação dos abrigos de montanha reduz o número de pessoas infectadas.

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