Definição e importância do problema

A leptospirose é uma zoonose sistémica aguda e febril com espectro clínico muito variável, provocada por um grupo de espiroquetas, móveis e aeróbios, do género Leptospira, o qual possui espécies com mais de 300 serótipos de virulência variável.

Na Europa, os serótipos mais comuns são L. icterohaemorrhagiae, L. canicola, L. pomona, L. hebdomadis e L. ballum. A Leptospira biflexa engloba mais de 60 serótipos não patogénicos. A correlação dos serótipos referidos com síndromas específicas é impossível dada a variedade da patologia que pode ser produzida por cada serótipo.

De distribuição universal, é a zoonose mais frequente. Contudo, a sua distribuição geográfica é muito variável, a qual depende, sobretudo, da maior ou menor abundância de vectores e do nível sanitário das populações.

Aspectos epidemiológicos

Está descrita variação sazonal na frequência de leptospirose. Com efeito, precipitação de chuvas e inundações, facilitando a acumulação de água contaminada, podem dar origem a surtos epidémicos.

A doença é cerca de 10 vezes mais prevalente em zonas tropicais do que em climas temperados e em ambientes pobres, sem saneamento.

A leptospirose é uma doença de notificação obrigatória. Em Portugal foram declarados 124 casos entre 2010-2013, dos quais apenas um corresponde a idade inferior a 15 anos.

O melhor conhecimento da epidemiologia da leptospirose e a introdução de antibióticos determinaram que praticamente tenha desaparecido de zonas, onde há décadas, era uma doença frequente e grave.

Etiopatogénese

Em geral, o ser humano contamina-se a partir do contacto com água, lama ou alimentos contaminados. A porta de entrada é geralmente a pele ou as mucosas com lesões (oral, ocular, esofágica e nasofaríngea).

O contágio directo através do sangue, por contacto com tecidos ou órgãos de animais infectados (por exemplo em acidentes de laboratório), é mais raro. O leite materno pode igualmente transmitir a doença.

Foram também descritos casos de transmissão vertical, por ingestão ou inalação.

O agente Leptospira infecta um grande número de animais, quer domésticos, quer selvagens, sendo o rato a principal fonte de infecção humana. Nestes animais (reservatórios), o serótipo determina o quadro clínico, variando entre doença fatal e portador crónico, assintomático.

A bactéria é excretada na urina, líquido amniótico e placenta dos animais infectados, permanecendo viável na água e solo durante meses nos climas temperados. Especificando, L. icterohaemorrhagiae é eliminado pela urina do rato, L. canicola pela urina do cão e L. pomona pela urina do porco.

O microrganismo, entrando em circulação, pode atingir todos os órgãos. As manifestações clínicas são secundárias a lesões em estruturas microvasculares (vasculite generalizada com lesão das células endoteliais dos pequenos vasos) produzindo, designadamente, aumento da permeabilidade capilar, microcoagulação local, edema, hipóxia-isquémia em órgãos-alvo e hipovolémia.

Posteriormente, ao mesmo tempo que os microrganismos desaparecem no sangue e LCR, aparecem anticorpos circulantes IgM, verificando-se deposição de Leptospiras em diversos órgãos, assim como de imunocomplexos (designadamente no rim/túbulos renais e humor aquoso/globo ocular, conduzindo a lesão funcional em consequência de infiltrados inflamatórios e necrose. Este quadro anatomofisiológico poderá persistir durante várias semanas.

Manifestações clínicas

O espectro de manifestações clínicas da leptospirose na espécie humana varia entre:

  • infecção assintomática ou doença ligeira (90% dos casos); e
  • doença grave (10% dos casos), caracterizada por disfunção multiorgânica, com letalidade > 5%.

Após um período de incubação médio de 7 a 15 dias (podendo variar entre 2 e 30 dias), a doença evolui em duas fases, respectivamente: a inicial (septicémica/com leptospirémia) e a tardia, imune ou de localização (com leptospirúria). Trata-se, pois, duma doença bifásica.

Assim, a fase inicial, septicémica, com duração de 3-7 dias, caracteriza-se por manifestações de doença febril aguda com sintomatologia inespecífica: febre alta, calafrio, cefaleias, mialgias intensas dos gémeos e região lombar (80% dos casos), náuseas, vómitos, injecção conjuntival sem exsudado (30%-40%), exantema no tronco, adenomegálias generalizadas e hepatosplenomegália.

Na fase seguinte (imune), com duração até várias semanas, atenuam-se os sintomas iniciais, diminui a febre e passam a ser notórios sinais e sintomas de localização traduzidos sobretudo por meningite asséptica e nefrite intersticial mais frequentemente, e por síndroma de Guillain-Barré, neuropatia, colecistite e pneumopatia, menos frequentemente. Apesar da presença de anticorpos circulantes, Leptospiras podem persistir nos tecidos e órgãos, designadamente, rim, urina e humor aquoso. Pode também surgir uveíte com evolução arrastada até cerca de 6 a 12 meses.

Em cerca de 10% dos casos (raramente em idade pediátrica), a leptospirose, para além da sintomatologia descrita antes, pode apresentar-se com icterícia, e sinais de insuficiência hepática e renal graves, logo após o 4º-6º dia de evolução, constituindo a chamada Forma clínica ictérica ou Síndroma de Weil (em geral provocada por L. icterohaemorrhagiae). A sintomatologia mais relevante é constituída, sobretudo, por pneumonite hemorrágica e colapso cardiocirculatório.

A infecção da grávida por Leptospira pode provocar abortamento e infecção congénita.

Diagnóstico

Deve suspeitar-se de leptospirose perante uma doença febril aguda, surgindo em doentes que vivem em zonas de prevalência de roedores, nomeadamente ratos, sem saneamento básico, com história de contacto directo com animais, águas ou solos contaminados.

O agente Leptospira pode ser isolado no sangue ou líquor durante a fase septicémica, através de técnicas e meios de cultura especiais.

Na fase imune, que corresponde à excreção pela urina, pode ser pesquisado através de exame directo – microscopia em campo escuro, ou de exame cultural. Também podem ser utilizadas técnicas ELISA e técnica molecular/PCR em tempo real para identificação do microrganismo em tecidos infectados ou fluidos orgânicos.

A bactéria também se pode detectar em tecidos por meio de técnicas imuno-histoquímicas.

As provas serológicas em sangue colhido 7 dias após o início da doença evidenciam subida do título de anticorpos (3 a 4 vezes) a partir do 12º dia, com títulos máximos pela 2ª a 3ª semana, em casos da doença. Títulos baixos poderão persistir durante anos. Em cerca de 10% dos casos não é possível detectar aglutininas, possivelmente pelo facto de os anti-soros disponíveis não identificarem todos os serótipos

Tendo em conta a repercussão multissistémica da doença, em função da sintomatologia, poderão ser realizados diversos exames fundamentados em diversas circunstâncias:

  • diátese hemorrágica: hemograma com plaquetas, estudo da coagulação;
  • icterícia: bilirrubinémia, transaminases, gamaglutamil transpeptidase, fosfatase alcalina;
  • disfunção renal: análise sumária de urina, creatininémia e ionograma sérico;
  • disfunção cardíaca: CPK e CPK-MB, ECG, ECO-CG e radiografia do tórax.

Diagnóstico diferencial

Nas formas anictéricas o diagnóstico diferencial faz-se com: infecções víricas e com meningite linfocitária. Nas formas ictéricas e septicémia, com hepatites víricas, colecistite aguda, malária, riquetsioses e febre tifóide.

Tratamento

Leptospira é sensível a múltiplos antibióticos sem que se tenham verificado resistências.

A antibioticoterapia é tanto mais eficaz quanto mais precocemente se iniciar, inclusivamente na primeira semana após início dos sintomas.

A penicilina G cristalina por via IV, 25.000-50.000 UI/kg/dia dividida em doses de 4/4 horas (máximo 12 milhões UI/dia), durante 7 a 10 dias é o antibiótico de eleição para os doentes com necessidade de internamento.

Na doença moderada poderá ser administrada a doxiciclina 2 mg/kg/dia, de 12/12 horas, (dose máxima 200 mg/dia); o tratamento deve durar também 7-10 dias. A azitromicina, também eficaz, é uma alternativa à doxiciclina.

O tratamento de suporte inclui vigilância do equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base, eventual terapia intensiva, incluindo oxigenoterapia, correcção da hipovolémia e hipotensão, e prevenção da hemorragia digestiva com ranitidina ou omeprazol.

Prognóstico

A mortalidade causada por Leptospira varia entre cerca de 1% nas formas ligeiras, e superior a 40% nos casos graves, sendo que as infecções por L. icterohemorrhagiae e L. copenhageni estão associadas a doença mais grave. Tal deve-se essencialmente à síndroma hemorrágica (equimoses, petéquias, hemorragia pulmonar, hemorragia gastrintestinal).

Todavia, realça-se que na maioria dos casos a leptospirose é uma doença autolimitada.

Prevenção

A prevenção tem como principal objectivo controlar as pragas de roedores e proceder à imunização dos animais reservatórios da doença (com vacina inactivada que, no entanto, não previne a leptospirúria); portanto, os animais vacinados poderão ainda ser fontes de infecção humana. Não existe actualmente disponível vacina humana.

Alguns autores preconizam como medida profiláctica transitória, para quem se desloca em viagens a zonas de alta endemia, doxiciclina PO em dose de 200 mg semanal.

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