Definição e importância do problema

A brucelose humana é uma doença infecciosa zoonótica causada por microrganismos do género Brucella (coco Gram-negativo cujo crescimento é insidioso).

Também conhecida por febre de Malta, doença de Bang ou febre ondulante, constitui um problema de saúde pública em todo o mundo, sendo de notificação obrigatória em Portugal.

Embora a brucelose seja reconhecida tradicionalmente como uma doença de risco profissional nos adultos, a mesma pode afectar crianças em relação com o consumo de produtos lácteos não pasteurizados e em deficientes condições de higiene.

Salienta-se que na época actual, os microrganismos Brucella constituem uma arma potencial no âmbito do bioterrorismo.

 Aspectos epidemiológicos

A brucelose é a zoonose bacteriana mais frequente no mundo, com uma incidência acima de 500.000 novos casos por ano (incidência oscilando entre 0,03 e 160/100.000 habitantes). Apesar de a doença ser universal, é mais comum na zona do Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia, Américas Central e do Sul. Depois do desmembramento da União Soviética assistiu-se a um recrudescimento da referida doença na Europa de Leste, associado a degradação de condições de vigilância veterinária e de saúde pública.

Como regra, é considerada rara nos países industrializados, com condições de higiene mais regulamentadas. De Portugal, foram obtidos os seguintes dados: -entre 2010 e 2013 foram notificados 249 casos, dos quais 20 abaixo dos 15 anos de idade; – entre 2013 e 2016, 185 casos, sendo 6 abaixo dos 15 anos.

Estatísticas doutro país da Europa (Reino Unido), no período 2013-2016, apontam para ~ 20 casos/ano.

Nos EUA a erradicação da brucelose bovina reduziu a incidência de infecção no homem a 0,5 casos por 100.000 habitantes, embora na fronteira mexicana a prevalência seja 8 vezes superior.

O ser humano é um hospedeiro acidental, contraindo a infecção por contacto directo (feridas da pele) com produtos animais infectados, inalação de microrganismos veiculados por partículas sob a forma de aerossóis e ingestão de leite ou de queijo fresco não pasteurizados, ou ainda de produtos lácteos obtidos de animais infectados. No primeiro caso trata-se frequentemente duma doença profissional de veterinários ou de funcionários de matadouros. (ver Glossário)

A ingestão de leite ou derivados não pasteurizados constitui a forma mais frequente de transmissão da doença em idade pediátrica.

A transmissão inter-humana é rara, tendo sido descrita em relação com transfusões de sangue, transplantação de medula óssea e bancos de esperma.

A transmissão mãe-filho pode ocorrer via transplacentar ou pelo leite materno.

Etiopatogénese

Foram descritas 8 espécies do género Brucella pelas suas características fenotípicas, antigénicas e prevalência da infecção em diferentes hospedeiros; de referir que a sequenciação dos respectivos genomas revelam muitas similitudes.

Os agentes mais comuns responsáveis pela doença humana são: B. melitensis (a partir do gado caprino), B. abortus (a partir do gado bovino), B. suis (a partir do gado suíno) e B. canis (a partir dos cães). Os agentes B. ovis (a partir dos carneiros) e B. neotomae (a partir dos roedores do deserto) não têm sido transmitidos ao Homem.

As bactérias Brucella são parasitas intracelulares facultativos com capacidade de sobrevivência e de multiplicação no interior das células do SRE. Não possuem flagelos, endosporos, cápsula ou plasmidos. A membrana celular externa tem um componente lipopolissacarídeo dominante, o qual constitui o principal factor determinante de virulência da bactéria. B. melitensis e B. suis são mais virulentas que B. abortus.

Todas as espécies de Brucella produzem granulomas no fígado, baço, gânglios linfáticos e medula óssea. A inflamação de tipo granulomatoso poderá também ocorrer na bexiga, testículo (produzindo orquite intersticial com atrofia fibróide), endocárdio (produzindo endocardite com vegetações nas válvulas), cérebro, rim e pele.

A multiplicação dos germes dentro de células do SRE é essencial para a indução da imunidade; com efeito, o organismo hospedeiro responde elaborando anticorpos específicos tais como aglutininas, opsoninas, precipitinas e anticorpos fixadores do complemento contra polissacáridos e outros antigénios da parede celular.

Os anticorpos IgM específicos aparecem dentro de 1 semana após a entrada do germe no organismo, diminuindo após cerca de 3 meses. Os anticorpos IgG aumentam pela 2ª-3ª semana, persistindo nos casos não tratados ou incompletamente tratados. A verificação de reactividade cruzada dos anticorpos específicos para a Brucella com os germes Yersinia, Vibrio cholerae, Salmonella e Francisella resulta da similitude estrutural dos lipossacáridos das membranas dos referidos germes.

O principal determinante do processo de cura da infecção está relacionado com activação dos macrófagos através da acção de linfócitos T que, libertando citocinas (interferão-gama e TNF-alfa), conferem àqueles capacidade para a destruição do microrganismo Brucella.

A característica de crescimento insidioso de Brucella tem implicações práticas no que respeita a exames culturais; com efeito, para excluir resultados negativos verdadeiros dever-se-á esperar 21 dias pelo resultado laboratorial definitivo.

Manifestações clínicas

O período de incubação pode variar entre vários dias a 4-6 semanas.

As queixas de febre arrastada e/ou queixas articulares, associadas à ingestão de alimentos não pasteurizados, devem conduzir à suspeita de brucelose. Na ausência de antecedentes conhecidos de contacto com animais ou de ingestão de leite ou produtos lácteos não pasteurizados, o diagnóstico clínico de brucelose é difícil.

Trata-se duma doença sistémica com início agudo ou insidioso, habitualmente cerca de 2 a 4 semanas após a inoculação da bactéria no organismo. Surgem então manifestações inespecíficas de febre, artralgia, ou artrite, e hepatosplenomegália (30%-40% dos casos), as quais constituem a tríade clássica da doença. A febre, classicamente descrita como ondulante, é elevada, diária podendo acompanhar-se de sudorese nocturna intensa.

É comum a coexistência de sintomas gerais inespecíficos, tais como prostração, anorexia, cefaleias, dor abdominal, tosse e faringite. A doença pode envolver qualquer órgão ou sistema, embora as manifestações articulares sejam mais frequentes.

Em cerca de 30% dos casos, a doença, não se acompanha de febre, podendo manifestar-se apenas por doença articular, sendo mais frequentemente afectadas as articulações sacroilíaca, coxo-femoral e do joelho.

O exame objectivo é pouco informativo, podendo apenas evidenciar discreta hepatosplenomegália ou sinais de artrite. Raramente, pode ocorrer endocardite e meningoencefalite. No jovem, a doença pode manifestar-se por orquite aguda.

Os sinais de localização em órgãos ou sistemas (por ex. miocardite, osteomielite e infecção do tracto génito-urinário) são pouco frequentes. O intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico pode ser cerca de 150 dias, com uma média de 4 semanas.

Diagnóstico

O diagnóstico de suspeita poderá ser fácil nas áreas onde a infecção animal é endémica. Nas áreas não endémicas, o clínico poderá orientar-se valorizando a estadia do doente em áreas endémicas ou a ingestão de leite ou produtos animais provenientes das referidas áreas.

Os achados hematológicos, inespecíficos, poderão evidenciar anemia, hemólise, leucopénia, trombocitopénia ou pancitopénia por hiperesplenismo, hemofagocitose ou compromisso medular. A proteína C reactiva pode estar elevada, assim como a velocidade de sedimentação, especialmente nos casos de compromisso articular.

Existem fundamentalmente três instrumentos laboratoriais para o diagnóstico definitivo: – exame cultural; – serologia e; – provas moleculares.

O diagnóstico definitivo é realizado pelo isolamento da bactéria em hemocultura, líquido articular ou medula, sendo que tal ocorre numa percentagem entre 15% a 75% dos casos na fase aguda, antes da antibioticoterapia; na fase subaguda a percentagem de isolamento da bactéria diminui. Realça-se aqui o que atrás foi dito, tendo em conta as características do crescimento (lento) do agente Brucella: haverá que esperar pelo resultado até 4 semanas.

Por esta razão, e atendendo à fisiopatologia da doença, as provas serológicas através da pesquisa de anticorpos (provas de aglutinação) são fundamentais para o diagnóstico, salientando que os resultados devem ser interpretados em função da anamnese e exame objectivo.

O exame laboratorial de rastreio-padrão é a prova Rosa de Bengala pela elevada sensibilidade, embora a especificidade seja baixa. Este exame utiliza antigénios de B. abortus e detecta anticorpos contra todas as bactérias do género Brucella que contêm LPS. É considerada positiva se os títulos de IgM forem ≥ 1/160, o que acontece na maioria dos casos; contudo, o resultado desta prova poderá ser negativo na primeira semana de doença.

A evolução dos títulos de IgM e de IgG constitui um bom indicador de cura ou de recaída, sendo fundamental para a interpretação dos títulos de anticorpos, quantificar as IgG através de tratamento laboratorial do soro com 2-mercaptoetanol.

Pode utilizar-se a prova enzimática de imunoensaio, de elevada sensibilidade para a detecção de anticorpos anti-Brucella.

Assim, como notas importantes, cabe salientar:

    1. O sucesso do tratamento é seguido por diminuição rápida de anticorpos IgG;
    2. Títulos elevados ou em subida de IgG após tratamento sugerem infecção persistente ou recaída;
    3. Títulos baixos de IgM podem persistir durante semanas ou meses após tratamento da infecção;
    4. Em consonância com o que foi referido atrás, poderão ser encontrados resultados positivos falsos por reacção cruzada (anticorpos contra outros agentes Gram-negativos como Yersinia enterocolitica, Francisella tularensis e Vibrio cholerae);
    5. Poderão ser encontrados resultados negativos falsos devido ao fenómeno pró-zona (presença de títulos elevados de anticorpos anti-Brucella).

No âmbito de novos exames cabe citar:

    • a reacção em cadeia da polimerase (PCR) identifica o ADN do agente Brucella, salientando-se as suas elevadas sensibilidade e especificidade;
    • os achados histológicos são característicos, mas não patognomónicos. A biópsia de um gânglio linfático mostra inicialmente hiperplasia linfóide com proliferação arteriolar.

Diagnóstico diferencial

As manifestações clínicas de brucelose podem ser sobreponíveis a outras doenças tais como riquetsioses, febre tifóide, tularémia, tuberculose, infecções por micobactérias atípicas, infecções por fungos (histoplasmose, blastomicose, coccidioidomicose) e vírus (da mononucleose infecciosa, entre outros).

No caso de brucelose persistente haverá que fazer a destrinça com histiocitose maligna, linfoma ou outras doenças neoplásicas.

Em circunstâncias especiais em que a história clínica não é suficientemente elucidativa, poderão estar indicados exames especiais, designadamente imagiológicos e biópsia medular.

Tratamento

Dado que o microrganismo Brucella é uma bactéria intracelular de crescimento insidioso, o tratamento antimicrobiano deve ser sempre duplo e prolongar-se por 4 a 6 semanas nas formas comuns. Nas formas associadas a osteomielite, meningite ou endocardite, o tratamento tem maior duração, 4 a 6 meses.

Chama-se a atenção para o facto de a actividade de muitos antimicrobianos demonstrada in vitro contra Brucella nem sempre corresponder ao resultado clínico desejado.

A doxiciclina é o antimicrobiano mais útil; quando associado a aminoglicosídeo, garante menor percentagem de recaídas. As falências verificadas com beta-lactâmicos, incluindo cefalosporinas de 3ª geração, poderão ser explicadas pela natureza intracelular do microrganismo.

Nesta perspectiva, a chave do êxito terapêutico passa pelo esquema de tratamento prolongado no sentido de minorar a probabilidade de recaídas.

No início do tratamento poderá verificar-se reacção de Herxheimer relacionada com grande carga antigénica libertada com a destruição do agente infeccioso.

O Quadro 1 resume o esquema de tratamento antimicrobiano considerando idade (> 8 anos, igual ou < 8 anos) e situações associadas a meningite, osteomielite e endocardite.

Situações de meningite, endocardite e osteomielite implicam internamento hospitalar, para além de outras situações específicas em função do respectivo contexto clínico. Na meningite por Brucella, a utilização de corticóides como terapêutica adjuvante da antibioticoterapia tem sido recomendada.

Tratando-se duma doença com repercussão sistémica, estão indicadas medidas sintomáticas com analgésicos e antipiréticos.

QUADRO 1 – Tratamento antimicrobiano da brucelose.

> 8 anos de idade
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas; ou Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 semanas + Estreptomicina IM (20-30 mg/kg/dia), dose máxima de 1 g/dia, durante 1-2 semanas, ou Gentamicina IM/IV(3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas.

≤ 8 anos de idade
Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 semanas + trimetoprim (TMP)-sulfametoxazol (SMZ) PO (TMP: 10 mg/kg/dia, dose máxima de 480 mg/dia) e (SMZ: 50 mg/kg/dia, dose máxima de 100 mg/kg/dia), durante 4-6 semanas.

Meningite, Osteomielite, Endocardite
Doxiciclina PO (5 mg/kg/dia), dose máxima de 200 mg/dia, durante 4-6 meses + Gentamicina IV (3-5 mg/kg/dia), durante 1-2 semanas + Rifampicina PO (15-20 mg/kg/dia), dose máxima de 600-900 mg/dia, durante 4-6 meses.

Prognóstico

O prognóstico das formas comuns da doença é excelente, desde que o doente cumpra o regime antibiótico prescrito. Por vezes as famílias não respeitam tratamentos prolongados, o que contribui para recaídas da doença.

Salienta-se que o tratamento com apenas um antimicrobiano comporta risco de recaída da ordem de 5%-40%. As formas letais decorrem de complicações como a endocardite.

Prevenção

Tratando-se duma zoonose, a prevenção desta doença depende, entre outras medidas, e no âmbito da medicina veterinária, dos cuidados no manuseamento de carne e leite de animais e da erradicação da doença no gado caprino, ovino, suíno e bovino (imunização ou abate de animais infectados). Os cuidados com o manuseamento de animais potencialmente infectados devem ser aplicados igualmente pelos caçadores.

Por outro lado, deverá ser proscrita a ingestão de alimentos lácteos não pasteurizados.

A aplicação de vacina viva atenuada utilizada em animais não é praticável na espécie humana.

GLOSSÁRIO

Aerossol > Em Infecciologia significa disseminação aérea de partículas ≤ 5 mm de gotículas evaporadas contendo microrganismos, que permanecem em suspensão durante longos períodos, ou poeiras contendo agentes infecciosos ou esporos; os microrganismos podem dispersar-se até longas distâncias através de correntes de ar.

Plasmido > Elemento genético das bactérias susceptível de ser transmitido de um indivíduo para outro, independentemente dos genes veiculados pela grande molécula de DN.

BIBLIOGRAFIA

Cunha M, Miguel N, Manso J. Brucelose em Portugal. Acta Pediatr Port 2002;33:131-135

Direcção Geral da Saúde (DGS). Doenças de Declaração Obrigatória 2010-2013. Lisboa: DGS, 2015

Feigin RD, Cherry JD, Demmler GL, Kaplan SL (eds). Textbook of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2014

Garcia JJ, Cruz O, Mintegi S, Moreno JM (eds). M Cruz Manual de Pediatria. Madrid: Ergon, 2020

Goldman L, Schafer AI (eds). Goldman-Cecil Medicine. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2016

Harrison ER, Posada R. Brucellosis. Pediatr Rev 2018;39:222-224. DOI: 10.1542/pir.2017-0126

Kimberlain D, Brady M, Jackson M, Long S (eds). Red Book. American Academy of Pediatrics, 2015:268-270

Kliegman RM, StGeme JW, Blum NJ, Shah SS, Tasker RC, Wilson KM (eds). Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier, 2020

Kline MW, Blaney SM, Giardino AP, Orange JS, Penny DJ, Schutze GE, Shekerdemien LS (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: Mc Graw Hill Education, 2018

Long SS, Prober CG, Fischer M (eds). Principles and Practice of Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Elsevier, 2018

Moro M, Málaga S, Madero L (eds). Cruz Tratado de Pediatria. Madrid: Panamericana, 2015

Pappas G, Akritidis N, Bosilkovski M, et al. Brucellosis. NEJM 2005;352:2325-2326

Patt HA, Feigin RD. Diagnosis and management of suspected cases of bioterrorism. Pediatrics 2002;109:685-692

Sharland M, Cant A, Shingadia D (eds.). Manual of Childhood Infections: The Blue Book (Oxford Specialist Handbooks in Paediatrics). ESPID, 2011;53:452-455

Shen MW. Diagnostic and therapeutic challenges of childhood brucellosis in a nonendemic country. Pediatrics 2008;121:e1178-e1181

Troy SB, Rickman LS, Davis CE. Brucellosis in San Diego – epidemiology and species – related differences in acute clinical presentations. Medicine 2005;84:174-187

Tsolia M, Drakonaki S, Messaritaki A, et al. Clinical features, complications and treatment outcome of childhood brucellosis in central Greece. J Infect 2002;44:257-262

Ulug M, Yaman Y, Yapici F, et al. Clinical and laboratory features, complications and treatment outcome of brucellosis in childhood and review of the literature. Turk J Pediatr 2011;53:413-424